Categoria: Artigos

  • O carro pagador do IPEG

    O carro pagador do IPEG

    www.robertogranja.com.br
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    Quando procurei o Iúri[1] para dizer que não via mais sentido em continuar no partidão, ouvi dele que era para eu ter paciência, que algo de diferente estava sendo gestado.  Nós éramos do Comitê Secundarista do PCB no Rio de Janeiro.  Eu não me conformava com a linha política absentista do partido na luta contra a ditadura.  É claro que o papo não foi exatamente nesses termos, mas foi mais ou menos esse o teor da conversa.  Aliás, não cobrem precisão das palavras.  A ambiguidade delas é imanente  No caso das minhas, a imprecisão é ainda maior, por causa da amnésia que me corrói as reminiscências.  Guardo lembranças retalhadas, recordações em frangalhos, como um quebra-cabeça em que se perderam muitas das suas peças.  Por isso, para recompor o passado, às vezes, minto.  Consciente ou inconscientemente, preencho os hiatos da memória com invencionices, criações da imaginação, pura fantasia.  Mas, como ia dizendo, quando procurei Iúri, não suspeitava aonde aquela conversa me levaria.

    Fruto desse papo germinal, um belo dia, outro companheiro me procurou.  Era o Crioulo[2].  A bem dizer, não sei se fazia um belo dia.  Tampouco me lembro se isso foi antes ou depois de eu ser apresentado ao Marighella.  Deve ter sido depois.  Eu já era estudante universitário, embora continuasse no Comitê Secundarista.  Mas o Crioulo chegou e me chamou para fazer um levantamento.  O Crioulo era da Seção Juvenil do Comitê Central do PCB, e também estava ligado ao Marighella.  Fomos até a frente do prédio do IPEG (Instituto de Pensões e Aposentadorias do Estado da Guanabara), na avenida Presidente Vargas, e ficamos observando a saída do carro pagador.  Era um carro forte que levava o dinheiro da sede para as agências.  Voltamos algumas vezes.  Acho que fui sempre com o Crioulo, mas pode ser que alguma vez tenha ido com o Iúri.  Sei lá.  Em todo caso, foram poucas vezes.

    Disseram-me que a informação sobre os pagamentos do IPEG fora colhida nos jornais, o que era verossímil, pois o dia do pagamento, as agências e a lista dos beneficiários saíam publicados nos jornais.  Muito tempo depois, fiquei sabendo que a informação viera de dentro, por um contato do Marighella.  Tratava-se de uma alta funcionária do IPEG.  Para o que vou contar, entretanto, esse é um detalhe sem relevância.

    A ação foi planejada e chegaram ao Rio os companheiro do famoso GTA, o Grupo Tático Armado de São Paulo.  Do Rio, participaríamos três companheiros: o Barba, o Poeta e eu.  Os dois primeiros ficariam no carro de cobertura; eu faria dupla com Marquito[3], o comandante da ação.

    Hora e local aprazados, estávamos a postos.  Era uma agência. Na porta dela se formara uma fila de pensionistas.  Havia um PM guardando a fila e outro dentro da agência.  A ação começou com a chegada do carro pagador.  Minha tarefa era dar cobertura ao Marquito, que deu uma banda no PM que guardava a fila.  O cara era grandalhão, mas caiu de costas na calçada.  Com o impacto do tombo, o capacete dele voou prum lado e o revólver pro outro.  O PM esticou o braço, tentando alcançar a arma no chão.   Reagi com uma coronhada no couro cabeludo dele.  A cabeça rachou e o sangue jorrou.  Inseguro da eficácia do meu golpe, ia desferir outro em seguida, mas o Marquito me deteve.  O cara estava desmaiado.   Respirei aliviado.  Eu estava muito tenso e ao mesmo tempo orgulhoso da minha coronhada.  Era a primeira vez que participava de uma ação armada.  Marquito, mais experiente e comedido, comentou que eu não precisava bater com tanta força na cabeça dos outros.

    Com a respiração ainda ofegante, vi que na calçada oposta caminhava, displicente, outro PM.  Atravessei a rua, correndo em direção a ele.  Ele vinha distraído porque estava paquerando uma mulher.  A mulher devia ser jovem, talvez atraente, e com certeza desfilava coxas, bunda e peitos que eu não notei.  Minha atenção estava toda concentrada no PM.  Surpreendi-o com um soco frontal do cano do revólver no seu tórax.  Acho que a força do golpe foi excessiva de novo.  Eu ia sempre com demasiada sede ao pote.  Ele foi jogado contra a parede e caiu sentado, com um olhar apavorado, pedindo pelo amor de deus para que eu não o matasse.  Talvez tivesse se machucado com o choque do cano do revólver contra o seu diafragma.  Vi que estava desarmado e vulnerável.  Dava pena.  Parecia muito fragilizado.   Procurei pela mulher.  Nem deu pra sacar se valia a pena.  Havia desaparecido.  Voltei para junto do Marquito.

    Estava tudo dominado.  Então, entramos no carro pagador.  Mas, para minha surpresa, havia lá dentro um senhor agarrado feito um carrapato à sacola do dinheiro.  Eu disse para ele entregar a sacola e sair do carro.  Não me obedeceu,   Gritei com ele e nada.  Dei-lhe um tapa na cara.  Continuou imóvel.  Comecei a esmurrá-lo.  Ele não se mexia.  Eu já não sabia como proceder quando o Marquito disse para eu deixar o sujeito em paz.  Marquito tirou a sacola das mãos dele e o conduziu pelo braço, calmamente, para fora do carro.  Foi aí que percebi que o sujeito estava paralisado de pavor.  O que eu interpretara como resistência era apenas pânico.

    A essa altura, a situação se complicara com a chegada de um carro da polícia civil que começou uma troca de tiros conosco.  O PM que estava dentro da agência também abriu fogo contra nós.  Ficamos sem poder usar a metralhadora porque o companheiro que a portava foi ferido no braço direito.  Mas conseguimos arrancar com o carro pagador, deixando a polícia para trás.

    Numa esquina erma, eu e o Jonas[4] descemos do carro forte.  Caminhamos um pouco e tomamos um táxi para a Praça XV.  Jonas carregava uma sacola com a metralhadora que tomáramos de um PM que estava no carro pagador e fora rendido logo de cara.  O rádio do táxi anunciou o assalto ao carro do IPEG.  E mais: informou que os assaltantes fugiam com o dinheiro em direção à Praça XV.   No banco traseiro, Jonas e eu nos entreolhamos.  Chegando à Praça XV, pagamos a corrida e descemos do táxi.  Eu o aconselhei a não pegar a barca para Niterói.  Mas ele não fez caso.  Disse para eu ficar observando, porque ele estava determinado a atravessar a baía com a metralhadora.  Fiquei de olheiro.  Ele tomou a barca, que zarpou baía adentro.  Logo em seguida a polícia chegou, fazendo estardalhaço.  Retirei-me.

    Devo ter passado uns dois dias dormindo, tamanha era a minha exaustão.  Quando acordei, liguei para o Aldo[5], que era companheiro e vizinho, e combinamos de nos encontrar na casa dele.

    Aldo era sobrinho do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, e morava com a avó.  Estávamos no quarto dele, conversando, quando fomos chamados à mesa, que estava posta.  Não me lembro se era almoço ou jantar.  Acho que era o almoço.  Fomos.  Quando sentei à mesa, a avó do Aldo me apresentou a um amigo dela que estava de visita e comeria conosco.  Tratava-se de um senhor de cabelos brancos ou grisalhos, não sei muito bem, mas que, para os meus padrões da época, era um velho.  Cumprimentei-o e me acomodei na cadeira sem prestar atenção nele.  Foi aí que a avó do Aldo introduziu um assunto espinhoso.  O amigo dela passara por uma experiência terrível.  Ele era tesoureiro do IPEG.  Estava dentro do carro pagador quando aconteceu o assalto.  Surpreso, fiquei abestalhado.  Ela passou a palavra para ele.  Espantado, escutei o relato do tesoureiro do IPEG, cara a cara com ele.

    O velho senhor disse que havia um assaltante muito mau, um sujeito grande e forte, com uma expressão de ódio, certamente um sádico, que o espancara sem nenhum motivo.   Ele só não fora morto por esse bandido, porque um comparsa do bando de assaltantes, talvez chefe da quadrilha, ficara penalizado e intercedera, livrando-o do brutamontes.

    Aldo olhou para o amigo da avó e depois para mim.  Adivinhou o que estava se passando.  Troquei uma olhada de cumplicidade com ele.  Que fazer? Temia ser reconhecido.  Interpelei o visitante.  “Puxa vida, o senhor passou um sufoco, hem?”  Era a forma de eu tentar saber se ele havia me reconhecido.  “Ah! Foi, meu filho.  Você nem imagina”, respondeu.  “Esse bandido era mau mesmo, né?”, falei.  Ele concordou comigo. Falou horrores do bandido e me deixou tranquilo.  Pelo jeito como falava comigo, não me havia reconhecido.  Na verdade, nem ele a mim, nem eu a ele.

    A avó do Aldo virou-se para mim e perguntou se eu não havia gostado da comida.  Aí me dei conta de que não havia tocado no prato.  Fiquei embaraçado.  Meti o garfo no prato, levei a comida à boca e mastiguei pela primeira vez.  “A comida está muito gostosa”, respondi, sem conseguir sentir-lhe o sabor.  “É que foi tão impressionante essa história, que eu nem me lembrei de comer”, acrescentei, soltando a respiração e relaxando finalmente.

    Relendo, agora, o que acabei de escrever, fico na dúvida se isso de fato aconteceu.

    Notas:

    [1] Iúri Xavier Pereira morreu na luta contra a ditadura.

    [2] Luiz José da Cunha morreu na luta contra a ditadura.

    [3] Marco Antonio Brás de Carvalho morreu na luta contra a ditadura.

    [4] Virgílio Gomes da Silva morreu na luta contra a ditadura.

    [5] Aldo Sá Brito morreu na luta contra a ditadura.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)

     

  • O Peru de Natal

    O Peru de Natal

    Retrato de Mário de Andrade, por Lasar Segall (1891-1957)
    Retrato de Mário de Andrade,
    por Lasar Segall (1891-1957)

    O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

    Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

    Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

    Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

    – Bom, no Natal, quero comer peru.

    Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

    – Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…

    – Meu filho, não fale assim…

    – Pois falo, pronto!

    E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

    Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

    Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

    – É louco mesmo!…

    Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

    – Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

    Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

    – Eu que sirvo!

    “É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

    – Se lembre de seus manos, Juca!

    Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

    – Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

    Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

    Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

    Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

    – Só falta seu pai…

    Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

    – É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

    E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

    Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

    Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

    A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

    Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…

    Mário de Andrade (1893-1945) nasceu em São Paulo, mostrando desde cedoinclinação pela música e pela literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar emSão Paulo, em parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, querasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmentebrasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. “Macunaíma”, baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

    [O texto acima foi extraído do livro “Nós e o Natal”, Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23.]

    Fonte: http://www.releituras.com/marioandrade_natal.asp

     


    O Peru de Natal (parte 01 de 02), de Mário de Andrade. Leitura dramática por Fellipe Foureaux. Música de Miles Davis.

     


    O Peru de Natal (parte 02 de 02), de Mário de Andrade. Leitura dramática por Fellipe Foureaux. Música de Miles Davis.

  • O Rei Logro, seu Conselho Turro e a saga de um povo

    O Rei Logro, seu Conselho Turro e a saga de um povo

    Ricardo CrôLá, bem adiante, naquele Reino tão… tão distante, entre vales e montes, riachos, lagos e fontes, vivia um Rei. O Grande Logro. Ao contrário de outros monarcas de seu tempo, ele não alcançou seu trono por descendência, por hereditariedade. Foi por incidência. Por conseqüência de sua “astuciosidade”.

    Apesar de muito jovem, o “híbrido” Rei – alcunha que lhe fora dada pelas hostes oposicionistas, pelo fato de ele passear por ideologias e patronos tão díspares – já havia percorrido diversos territórios, cruzado continentes. Mancomunava-se com sultões, imperadores, mulás e aiatolás. Aliás, foi com esse legado, por essa bagagem, que ele habilmente galgou todos os degraus a caminho da glória, fez estória. Rumo ao trono, não poupou riquezas e, feito um cruel legionário, pisou em tudo, em todos. Esmagou seus adversários. Diga-se de passagem: os poucos que restaram. Pois, quando mercenários vislumbraram um novo cenário, debandaram feito lobos, buscando refúgio no Erário.

    Contudo, todavia, ao poder ele foi levado dentro das regras da capengo democracia. Tanto a plebe, persuadida com as migalhas que lhes eram atiradas no dia a dia, quanto a aristocracia, ávida por um substituto ao velho Soberano que os traíra, avistaram no Rei moço, algo que pudesse lavar a alma do povo, que assistia tudo do fosso. Fantasia? E, ao mesmo tempo, fortalecer ia, as já corpulentas regalias. Quem diria!?

    Rei Logro, em suas andanças – tal qual um caixeiro viajante –, vendia sua lábia, comercializava seu discurso, mas nunca pregou abertamente a tirania. Pelo contrário! No imaginário, parecia um ser gregário. Vaticinavam os periódicos em seu comentário: aquele que, mesmo não negando sua origem de lorde, privilegiará também o pobre, o proletário.

    Postado ao Trono, Cetro em riste e, nem um pouquinho triste, convocou o Conselho Turro. Até aí, nada de anormal! Esse é um Reino de todos. Afinal, foi pra isso que eleito ele foi. Neca de re-enriquecer criando soja ou plantando sêmen de boi.

    Logro e o Conselho Turro reunidos baixa-se um Decreto Real: danem-se o gentio, eleitores serviçais. Tendo o apoio dos poderosos, dos pensadores, e, até mesmo dos cardeais, jogue-se a Guarda Pretoriana sobre o povo e humilhe seus ideais.

    O choque era a ordem: expulsem os vendilhões do tempo. Os não estabelecidos que se mudem. Afastem dos olhos da Nobreza esse cálice tinto que nos envergonha.  Antes que algum aventureiro corsário, desses que nos presenteiam com ouro, prata e iguarias, seja abordado por um esmolado, e não mais retorne ao Reino da mais-valia.

    E segue: nosso Reino, esse Torrão, é dos Nobres. Nossos bancos e praças, marquises com vidraças, não são feitos para abrigar os pobres. Que voltem para suas origens, suas vilas de mazelas, suas grimpas e favelas, seus locais de moradia e desfrutem seus pantanosos piscinões. Não invadam nossa praia, mal vindos aldeões. Habitem nas periferias das cidades, mesmo sem dignidade e preservem a ecologia. Encostas ocupadas, lagoas e florestas habitadas, só por castelos suntuosos e o poder da fidalguia.

    E, que nos sirvam, por conveniência, com muito esmero e decência. De preferência, que nem nos falem de suas chagas, sua saga. Em troca lhes daremos uma boa paga. Algumas moedas, de comer, de beber. Afinal, quem não vive para servir, não serve para viver. Era o que o Rei e seu Conselho tinham a dizer…

    Porém, iludem-se o Grande Logro, os Turros e os Nobres… quão pobres… Cegos, não enxergam sob a névoa elitista e prestigiosa, um palmo adiante de seu quintal, et cetera e tal.

    Todo santo dia a plebe desce, e não é para os festejos pagãos do carnaval – onde Rei, Turros e Nobres, se confundem com os “donos do cobre”, do cortejo colossal. Descem, sem tempo para um ensaio geral, desfilam no comercio, são destaques nos serviços e balançam nas construções do Reino. Requebram e batucam na condução e não fazem feio. Desde a concentração, trazem a necessária harmonia que auxilia na evolução.  Da reconstrução, do novo. Quem dera poder reunir a sapiência dos Nobres, a obediência cega dos Turros e a liderança de um Rei Logro à bela saga do nosso povo.


    Ricardo Crô
    é escritor e compositor

  • O cemitério que virou mictório

    O cemitério que virou mictório

    Cemitério MictórioDormindo de bruços só se escutam ruídos.  Por isso, vira-se de barriga para cima.  A sombra salta do escuro, pula por cima da cama, projeta-se pela janela e some no negrume da noite.  K. esfrega os olhos antes de levantar.  Tem o costume de dormir nu.  Sai assim mesmo porta afora.  A rua está deserta.  K. caminha ao acaso um sem tempo como se pisasse o espaço do sem fim.  Caminha, caminha e continua a caminhada sem esforço.  Então, prossegue caminhando por caminhar.  A noturna negrura está ofuscada por um luar inverossímel.  K. exclama “Valha-me Deus, Nossa Senhora!” numa voz sem sonoridade.  Estala os dedos, de curiosidade, e o estalar não se faz escutar.  Olha para ver a sombra.  A sombra o acompanha.  O luar a tudo ilumina e abafa tudo.  Vislumbra à distância um adolescente nu no limiar de um portal.  Vai até lá.  O adolescente ultrapassa o limiar e detém-se defronte a um bebê nu que, sorridente, gesticula e pateia o vento, de dorso sobre a lápide onde jaz sua mãe.  O bebê abandonado está feliz.  Faz pipi pro céu como se fosse um chafariz num carro alegórico.  E proclama com sua graça pueril: “Nasceu, morreu.  Antes ela do que eu!”.  O adolescente inspira-se no bebê e mija no canteiro de flores que enfeita a lápide.  Tem um estremecimento e reconhece-se no bebê.  K. sente uma irrefreável vontade de urinar.  Urina na coluna do portal.  Tem um calafrio e reconhece-se no adolescente.  “Tríplice e não obstante uno: o mistério da trindade.  Cruz, credo!”, benze-se K.  A sombra assusta-se e foge.  O luar escafede-se também.  K. fica perdido no breu total.  Estala os dedos, de curiosidade.  Escuta-se o estalar.  Nada se vê.  No descampado da noite ressoa tudo e tudo se oculta.  K. de olhos fechados caminha ao léu.  Não sabe, mas está de volta à casa, deitado na cama.  Continua de olhos fechados como se caminhando estivesse.  E dorme.  O ronco de K. propaga-se em noturnas ondas sonoras.  E nelas surfa o sonho de W.

    Sente sórdidos calores, como se suas carnes ardessem no Inferno: “Vade-retro,  Satanás!”  E excitantes odores, irresistíveis pendores…  W. revira-se no colchão, amarfanha os lençóis, despoja-se da camisola e aconchega em sua nudez a coisa escura que o negrume da noite brota na janela e despeja sobre o seu leito.  A coisa se esgueira.  Ela a puxa sobre si, a quer em si…  A coisa escorrega, escapa pela porta  Ela se levanta e sai para a rua.  Caminha sonâmbula atrás da coisa que quer para si.  “Onde está a coisa?  Aonde foi?”  Faz escuro e ela nada enxerga.  A coisa a enlouquece.  W. contempla pela fresta da loucura o noturno da rua deserta na loucura da fresta: “Fresta.  Quero festa!”  Vislumbra ao longe uma mansão iluminada.  Ruma para lá.  No umbral da mansão é recepcionada por uma falange angelical.  W. está extasiada.  “Volte para casa e sossegue.  Somos assexuados.”  W. verte lágrimas que comovem o arcanjo, mas os anjos são impotentes.  Aos prantos, W. implora aos céus: “Pelo amor de Deus, ao menos por compaixão!”  Os anjos choram compadecidos: “Nada do que você precisa está ao nosso alcance.  Quem sabe outros possam ajudá-la.  Tente exús, pombajiras…”  W. ruma para o cemitério.  Sente cheiro de mijo na coluna do portal.  Segue farejando.  O seu olfato de fêmea não a engana.  Encontra uma tumba recém visitada.  Agacha-se sobre ela e faz xixi.  Mas já não há vivalma.  Um manto de escuridão enseja uma tempestade de relâmpagos no campo dos mortos.  É assustador.  W. afasta-se do cemitério. Fora, faz uma cálida noite de lua plena.  W. aguça o olfato.  É toda instinto.  Segue sonâmbula de volta à casa.  Acosta-se com a coisa que está em seu leito.  Deleita-se.  O deleite a faz arfar.  A sua arfada ganha a imensidão noturna e agita o sono de Y.

    O sonho agita-se em sono terminal.  Y. sente a alma querendo fugir pela boca.  Tranca os lábios, mas logo percebe que a alma busca escapar também pelas narinas, apenas que com muito maior dificuldade, haja vista a exigüidade dos orifícios nasais.  Consciente de que é chegada a hora, Y. liga para K.: “Meu filho, ouça-me: estou ligando para avisar que não vou acordar.”  Mas K. não o escuta.  Está muito entretido, sonhando com W.  Mesmo sem escutar, trata de se livrar do velho:  “Legal, pai.  Melhor assim.  A gente tem mesmo que partir um dia, né?”  E volta a sonhar o seu idílio com W.  Extasia-se.  O êxtase o faz urrar: “Ip ip hurra!”.  O hurra o desperta.  É tarde da noite.  Escuta um ruído soturno no corredor.  Pé ante pé, espia.  É Y.  Está pálido e pelado.  Seu ser exausto já renunciara à vitalidade.  “Pô, pai.  Tá a fim de me assombrar?”  Y. fita K. e retruca na lata: “Qual é?  O ateu aqui é você.  Eu sempre disse que era espírita”.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).

  • Sala de espera

    Sala de espera

    RelogioNa saleta não há um relógio de parede. Estranho, muito estranho, porque escutarás o seu tique-taque. Não exatamente assim, mas um tique, uma pausa ligeira, um taque, que repetir-se-ão em intervalos regulares, numa mesma altura, num compasso monocórdico, em perpétua seqüência monótona: tique… taque… tique… taque… tique… taque…

    Encostarás o relógio de pulso ao ouvido. As batidas não virão dali. Claro que não! Trouxera-lo durante anos, e nunca emitira um som. Fora sempre um marcador de horas preciso e silencioso.

    Mas, então, de onde viria aquela percussão: tique… taque… tique… taque… Os nervos alterar-se-ão. Que diabos será aquilo? Que significaria?

    – Calma, cara, você está se descontrolando, sussurrará uma voz.

    Olharás para os lados, não verás ninguém. Desconfiado, procurarás embaixo do sofá, atrás, em cada canto, no verso de um quadro bizarro pendurado na parede… mas a saleta estará vazia. Seria a voz das horas?

    Um zumbido próximo ao ouvido esquerdo. Ruídos do inconsciente? Concentrar-te-ás e, atento ao zuummm, baterás as mãos, espalmadas, de súbito, esmigalhando um pernilongo sanguinolento.

    E o quadro? Maneirista? O Reencontro do Corpo de São Marcos, de Tintoretto?

    Tique… taque… tique… taque… o pulsar do relógio de parede que não há. Estarás confuso. O enigma aturdir-te-á.

    E a voz outra vez:

    – Calma, cara, você está imaginando coisas.

    Ora! Imaginar como, se sequer haverás cogitado? Imaginar o que nunca terás suposto? Não, aquilo estará muito esquisito. Sentirás um calafrio. Arrepiarás. O pânico apossar-se-á de ti.

    – Calma, cara, calma, ditará a voz que não terá timbre nem sotaque, que não será de homem nem de mulher, nem adulta nem infantil…

    Esbarrarás a vista num recorte de jornal que se pegara ao calcanhar cambo do teu sapato. Será um anúncio dos classificados.

     


    Procura-se objeto inexistente

    O objeto em questão é uma pequena caixa oblonga. Pode ser de madeira ou papelão reforçado, ao estilo de uma tabaqueira ou caixinha de rapé. É importante que tenha uma tampa removível que a deixe bem cerrada. Nela, deve-se poder guardar as lembranças afetivas, as saudades e os devaneios, para que nunca se desvaneçam. E é preciso ainda que lá caibam as esperanças. Deve ter uma aparência sedutora, como a boceta de Pandora. Mas é imprescindível que não origine males dissimulados.

     

    O tique-taque martelar-te-á o crânio. O espaço estreitar-se-á. O ar escasseará. As paredes fechar-se-ão sobre ti. O chão oscilará bêbedo. O teto desabará em câmara lenta. Sentirás ânsias de vômito. Suarás. O calor tornar-se-á insuportável.

    … lembranças afetivas…

    Não há ali onde lavar as mãos. Nem um lenço de papel para limpá-las. Esfregá-las-ás, então, para esfarelar os restos de pernilongo grudados nas palmas das tuas mãos.

    Um desconforto crescerá dentro de ti, deixando-te ofegante, as pernas bambas, a memória embaralhada, o raciocínio entorpecido, os olhos embaçados, submetendo-te o físico e a vontade, dominando-te por inteiro.

    Desejarás sair dali. Os movimentos não responder-te-ão. Quererás gritar. O grito entalará na garganta.

    De repente, o ranger da porta. Sobressalto. Pavor. Virar-te-ás, ansioso, acuado: esquelética, uma mulher de branco, tez pálida, olheiras roxeadas, fitar-te-á.

    Retesarás, gélido.

    Rosto encavado, mãos ossudas, a voz impessoal dirigir-se-á a ti:

    – É a sua vez.

    – Ahn!?

    Haverá chegado tua hora.

     

    Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).

  • Ele e ela

    Ele e ela

    Ele e elaOs nomes, não sei. Nunca soube ou me esqueci. A desmemória é perversa. Mas, como o cego que desenvolve habilidades auditivas e táteis compensatórias, desenvolvi a capacidade de imaginar. Esse é o aspecto positivo da amnésia. Se não sei, invento. E de tão imaginativo, de tão acostumado a me equilibrar no limiar entre o que é e o que poderia ser, fui aos poucos perdendo a percepção da diferença entre tudo o que vivi ativamente na invenção e aquilo a que assisti passivamente fora dela. Enfim, como diria o outro, palavras, palavras…

    Mas, retomando o fio da meada, os nomes, não os sei. Sei que ela era espigada como uma exclamação e ele encurvado feito uma interrogação. Ela toda enfática, ao passo que ele reflexivo. Enquanto ela afirmava que sem dúvida era o que era, ele, enigmático, indagava se seria mesmo. E, sendo do jeito que eram, se apaixonaram.

    A história dessa paixão, não vou contá-la em seus detalhes íntimos. Não seria ético. Ponha-se na pele das personagens e diga se você gostaria de ver-se exposto assim. Não, todo casal tem direito à privacidade. Não se deve espiar a vida conjugal de ninguém. Que tenham lá suas preferências… ninguém tem nada com isso. Problema deles, e só deles e de quem mais partilhe as experiências com eles. Há muito tempo a nossa sociedade rasgou o manto do puritanismo – que, diga-se de passagem, nunca cobriu os nossos autóctones. A bem dizer, esse manto foi feito retalhos desde que os cristãos aqui aportaram e ficaram hipnotizados pelos paganismos com que se defrontaram. Tanto é que os seus escribas enviaram epístolas a El-Rei nas quais esqueciam de relatar a paisagem em favor da descrição pormenorizada das vergonhas das bugras – muito asseadas, diziam. Não lhes tiro a razão nem os censuro. Seriam hipócritas se agissem diferente. Eu, todavia, prefiro o recato, e não direi palavra que possa suscitar o escândalo dos moralistas.

    Algumas coisas são óbvias. É claro que, sendo ela impulsiva e ele introspectivo, coubesse a ela toda a iniciativa da relação. E, efetivamente, assim foi. Ele não se atrevia a fazer-lhe a corte. Então, foi ela que se aproximou dele. Ela foi direta; ele, evazivo. E o ímpeto dela acabou vencendo a tibieza dele. Foi ela que segurou a mão dele, acaricou-o no rosto e deu-lhe o primeiro beijo no canto dos lábios. Sobre o beijo posso contar. Afinal, diante dos que se vêem em nossas telenovelas, esse beijo foi pudico. Nada de chupões, bocas escancaradas, línguas entremeadas e escambo de salivas como nos closes televisivos. Não. Ela bem que entreabriu de leve os lábios, muito discretamente, e apenas tocou o canto da boca dele com a ponta da língua. Uma coisa sutil. Tanto que ele ficou na dúvida e foi para casa pensando naquele beijo de despedida. Sentira ou não sentira o roçar da ponta da língua dela no canto da sua boca? E o encostar do corpo dela no seu, teria sido imotivado ou denotaria alguma intenção por parte dela? Ele se indagava, se indagava… E depois de muito perscrutar chegou à conclusão de que poderia ser que sim, mas que também poderia ser que não. Até que ela fez, de supetão, o pedido formal de namoro. Ele, pego de surpresa, solicitou um tempo para pensar. Aquilo não era coisa para se decidir de uma hora para a outra. Era uma decisão muito séria. A entrega amorosa vinha carregada de conseqüências talvez indeléveis. Ele se guardara para o amor de sua vida. Precisava saber se era realmente ela a pessoa certa. Ela, moça esperta nessas lides, mal pode esperar um dia. No dia seguinte, mudou-se de mala e cuia para a casa dele. Esse episódio vale a pena contar.

    O porteiro do prédio dele já a conhecia de outras visitas e deixou que ela subisse com bagagens e acompanhada de um ilustre desconhecido pelo elevador social. Só que o ilustre era um chaveiro que abriu as portas do apartamento e fez chaves para ela. Ela entrou e se instalou como pôde, apossando-se de metade do armário dele. Depois das arrumações, tomou um banho e deitou-se na cama, agora deles, para repousar. Quando ele chegou em casa, o fato estava consumado. Ademais era um cavalheiro e jamais expulsaria uma dama do seu leito. E o concubinato se consumou como nas noites de núpcias após os casamentos de véu e grinalda na Igreja.

     

    Ele queixou-se ao síndico do prédio. Relatou-lhe a temeridade do corrido. Este, preocupado com a segurança do condomínio, mandou o porteiro embora, por justa causa, alegando inépcia laboral. E a assembléia de condôminos, alarmada, deu todo o apoio ao ato expulsório, apesar de deixar escapar à socapa uns risinhos logo abafados.

    Ela, irrequieta e instável, às vezes sumia por uns dias. Ele, pacato e metódico, não se acostumava com os sumiços dela, ainda que soubesse que ao cabo de dois ou três dias a teria de volta ao lar. Numa dessas escapadas dela, ele, não conseguindo se reconciliar com o sono, saiu a passear pela madrugada. Caminhava distraído com os pensamentos absortos nela quando tropeçou numa trouxa sobre a calçada. Atônito, viu a trouxa se mexer e de seu interior assomar a cabeça de uma criança que o fitou espantada com os olhos arregalados. Estava paralisado, sem saber o que pensar quando a criança começou a chorar. Outra trouxa maior também se mexeu e dela surgiram os rostos de um homem e de uma mulher, provavelmente os pais da criança. Ia desculpar-se, mas recuou diante dos impropérios lançados contra ele pelos dois. Ainda deu uma olhadela, de soslaio, e pareceu-lhe reconhecer o porteiro que fora posto no olho da rua. Afastou-se apressado. E, de volta a casa, deitado em seu leito sem ela, não conseguia discernir se as trouxas eram ou não o porteiro e sua família.

    Desde esse dia, nunca mais saiu a caminhar pelas calçadas nas madrugadas sem ela. É que se acostumou a dormir sozinho, pois nunca mais soube dela e temia tropeçar em uma trouxa da qual ela ressurgisse em sua vida.

    Sergio Granja
    é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).

  • A Estrela

    A Estrela

    Arthur Charles
    Arthur Charles

    Estamos a 3.000 anos-luz do Vaticano. Um dia, acreditei que o espaço não tinha poderes sobre a fé, assim como acreditava que os céus proclamariam a glória da obra de Deus. Agora, já vi essa obra e minha fé se encontra seriamente abalada. Olho para o crucifixo, suspenso na parede da cabine, acima do computador Mark VI, e pela primeira vez em minha vida me pergunto se não será um símbolo vazio.

    Ainda não contei a ninguém, mas a verdade não pode ser escondida. Os fatos estão lá para todos lerem, registrados em quilômetros sem conta de fita magnética e nos milhares de fotografias que transportamos de volta à Terra. Outros cientistas poderão interpretá-las tão facilmente quanto eu, e não serei eu quem vai compactuar em ocultar a verdade, fato quase sempre responsável pela má fama da nossa ordem nos velhos dias.

    A tripulação já se encontra suficientemente deprimida e não sei como eles aceitarão esta ironia final. Poucos dentre eles possuem qualquer tipo de fé religiosa e, no entanto, não encontrarão prazer em usar essa arma final em sua campanha contra mim. Aquela guerrinha particular, bem-humorada, mas de fundamental importância, que transcorreu durante todo o caminho desde a Terra. Eles achavam divertido ter um jesuíta como astrofísico-chefe: o Dr. Chandler, por exemplo, nunca se acostumou com isso (por que será que os médicos são tão ateus?). Algumas vezes ele me encontrava no convés de observação, onde as luzes eram sempre reduzidas, de modo a que as estrelas pudessem brilhar em toda a sua glória. Ficava ao meu lado na penumbra, olhando através da grande janela oval para os céus que se moviam lentamente à nossa volta, enquanto a nave girava, com a rotação residual, que nunca nos incomodaríamos em corrigir.

    – Bem, padre – dizia ele, afinal -, parece prolongar-se para sempre, não? Talvez alguma coisa o tenha criado. Mas como pode acreditar que essa alguma coisa tenha um interesse especial por nós e nosso mundinho miserável, nunca poderei entender.

    E a discussão começava enquanto, lá fora, estrelas e nebulosas giravam em seus arcos eternos e silenciosos, além do plástico claro e sem falhas da vigia de observação.

    Acredito que, em grande parte, era a aparente incongruência de minha posição que fazia a tripulação achar a coisa tão divertida. Seria inútíl eu chamar a atenção para os meus três artigos publicados no jornal de Astrofísica ou os cinco no Noticias Mensais da Real Sociedade Astronômica. Lembrava-lhes que a minha ordem era famosa há muito tempo por seus trabalhos científicos. Nós podemos ser poucos agora, mas desde o século XVIII temos feito contribuições à astronomia e à geografia que parecem fora de proporção com o número de nossos quadros. Será que meu relatório sobre a nebulosa Fênix vai pôr fim a nossos mil anos de história? Porá fim, receio, a muito mais que isso.

    Não sei quem deu esse nome à nebulosa, que me parece muito inadequado. Se contém alguma profecia, é coisa que não será verificada durante vários bilhões de anos. Mesmo a palavra nebulosa é um engano: trata-se de um objeto muito menor do que aquelas estupendas nuvens de poeira – a matéria-prima das estrelas ainda por nascer – que se espalham ao longo da Via-Láctea. Na escala cósmica, de fato, a nebulosa Fênix é algo pequeno – uma tênue concha de gás envolvendo uma única estrela…

    Ou o que sobrou de uma estrela …

    O retrato de Loyola feito por Rubens parece zombar de mim, suspenso ali, acima dos registros do espectrofotômetro. O que tu terias feito, padre, com este conhecimento que veio às minhas mãos, tão longe do pequeno mundo que foi todo o universo que conheceste? Teria tua fé se erguido ante o desafio onde a minha falhou?

    Teu olhar se perde na distância, padre, mas eu viajei por uma distância além de qualquer uma que pudeste ter imaginado ao fundar a nossa ordem, há mil anos. Nenhuma outra nave de pesquisa esteve tão longe da Terra. Encontramo-nos nas fronteiras do universo explorado. Partimos para encontrar a nebulosa Fênix, tivemos sucesso e agora voltamos com o peso de nossos conhecimentos. Quisera eu poder erguer esse peso dos meus ombros, mas é em vão que te chamo através dos séculos e anos-luz que nos separam.

    No livro que seguras, as palavras são nítidas:

    AD MAIOREM DEI GLORIAM, diz a mensagem, mas é uma mensagem em que não mais posso crer. Poderias ainda acreditar nela se pudesses ver o que encontramos?

    Nós sabíamos, é claro, o que era a nebulosa Fênix. Apenas em nossa galáxia, a cada ano, mais de 100 estrelas explodem, queimando durante algumas horas ou dias com milhares de vezes o seu brilho normal antes de mergulharem na morte e na obscuridade. Essas são as novas normais, desastres comuns no universo. Já gravei espectrogramas e curvas de luminosidade de dúzias delas, desde que comecei a trabalhar no observatório lunar.

    Mas três ou quatro vezes a cada mil anos ocorre alguma coisa, ao lado da qual até mesmo uma nova empalidece na total insignificância.

    Quando uma estrela se torna supernova, ela pode brilhar brevemente mais que todos os sóis reunidos na galáxia. Os astrônomos chineses observaram isso acontecer no ano 1054 d.C. sem conhecerem a razão do que viam. Cinco séculos depois, em 1572, uma super-nova explodiu na constelação de Cassiopéia, tão brilhante que podia ser vista à luz do dia. E houve mais três durante os mil anos que se passaram desde.então.

    Nossa missão era visitar o remanescente de semelhante catástrofe, tentando reconstruir os eventos que haviam conduzido a ela para, se possível, aprender sua causa. Entramos lentamente através das conchas concêntricas de gás que haviam sido lançadas para fora há seis mil anos e ainda se expandiam. Ainda estavam imensamente quentes, irradiando mesmo agora numa violenta luz violeta, mas eram demasiado tênues para nos causar qualquer dano. Quando uma estrela explode, suas camadas externas são impulsionadas para fora com tamanha velocidade que escapam completamente ao seu campo gravitacional.

    Agora formavam essa concha oca, grande o suficiente para envolver mil sistemas solares. Em seu centro queimava o objeto pequeno e fantástico em que a estrela se tornara. Uma anã branca, menor do que a Terra e no entanto pesando um milhão de vezes mais.

    As conchas de gás luminoso nos envolviam banindo a noite normal do espaço ínterestelar. Voávamos para o centro de uma bomba cósmica que detonara há milênios, e cujos fragmentos incandescentes ainda se expandiam. A imensa escala da explosão e o fato de que os resíduos já cobriam um volume de espaço com muitos bilhões de quilômetros de diâmetro roubavam à cena qualquer movimento visível. Levaria décadas para que a visão pudesse discernir qualquer movimento nesses tortuosos filamentos e redemoinhos de gás. E, no entanto, o sentimento de uma expansão turbulenta era irresistível.

    Havíamos verificado nossa direção básica horas atrás e agora flutuávamos lentamente rumo à pequenina e fogosa estrela à nossa frente. Ela já fora um sol como o nosso, mas consumira em algumas horas toda a energia que a teria mantido brilhando por um milhão de anos. Agora se tornara avarenta e encolhida, reunindo seus recursos como se tentasse compensar os excessos de uma juventude perdulária.

    Ninguém esperava seriamente que pudéssemos encontrar planetas. Se houvesse existido algum antes da explosão, teria sido cozido em sopros de vapor e sua substância dissolvida em meio aos resíduos da estrela. Ainda assim fizemos a busca automática, como sempre fazemos ao nos aproximarmos de um sol desconhecido. Dentro em pouco localizamos um mundo pequeno, circundando a estrela a imensa distância. Ele devia ter sido o Plutão desse desaparecido sistema solar, orbitando nas fronteiras da noite. Demasiado afastado do sol central para jamais ter conhecido a vida, sua distância salvara-o do destino que consumira todos os seus companheiros.

    A passagem do fogo queimara suas rochas, dissolvendo o manto de gás congelado que devia cobri-lo nos dias anteriores ao desastre. Nós pousamos e descobrimos a Cripta.

    Seus construtores se haviam assegurado de que isso ocorreria. O marco monolítico erguido acima da entrada não passava agora de um toco fundido, mas mesmo nossas fotos de longa distância já nos revelavam existir ali o trabalho de uma inteligência. Pouco depois detectamos o padrão de radioatividade, amplo como um continente, que fora embutido na rocha. Mesmo que o pilar acima da Cripta tivesse sido destruído, essa energia teria permanecido, um eterno e irremovível farol acenando para as estrelas. Nossa nave mergulhou como uma flecha em direção a esse gigantesco alvo.

    O pilar devia ter uma altura de I,5 km quando foi construído. Agora parecia uma vela que se derretera até formar um monte de cera. Levamos uma semana para perfurar a rocha fundida, já que não tínhamos ferramentas adequadas para essa tarefa. Éramos astrônomos, não arqueólogos, mas podíamos improvisar. Nosso propósito original fora esquecido: esse monumento solitário, erguido com tamanho esforço à maior distância possível do sol condenado, só poderia ter um significado. Uma civilização que tinha consciência de seu fim próximo fizera ali seu último apelo à imortalidade.

    Examinar todos os tesouros depositados na Cripta será trabalho para gerações. Eles tiveram muito tempo para se preparar, já que seu sol deve ter dado os primeiros avisos muitos anos antes da detonação final. Tudo o que desejavam preservar, todos os frutos de seu gênio, eles depositaram ali, naquele mundo distante, dias antes do fim, na esperança de que alguma outra raça os encontrasse, para que não fossem inteiramente esquecidos. Teríamos nos portado desse modo? Ou teríamos nos perdido em nossa própria autocomiseração, incapazes de pensar num futuro que nunca poderíamos ver ou compartilhar?

    Se ao menos eles tivessem tido um pouco mais de tempo … Podiam viajar livremente entre os planetas de seu próprio sol, mas ainda não haviam aprendido a cruzar os golfos interestelares, e o sistema solar mais próximo encontrava-se a 100 anos-luz de distância. Mas mesmo que possuíssem o segredo do impulso transfinito, não mais que uns poucos milhões poderiam ter sido salvos. Talvez tenha sido melhor assim.

    Mesmo que eles não fossem tão perturbadoramente humanos, como revelam suas esculturas, não poderíamos deixar de admirá-los e lamentar seu destino. Eles deixaram milhares de registros visuais, juntamente com minuciosas máquinas para projetá-los. Havia instruções ‘pictóricas, de modo que não fosse difícil aprender a sua linguagem escrita. Temos examinado muitas dessas gravações, trazendo de volta à vida, pela primeira vez em seis mil anos, todo o calor e a beleza de uma civilização que, em muitos aspectos, deve ter sido bem superior à nossa. Talvez eles tenham deixado apenas seu lado melhor, mas ninguém poderá condená-los por isso. Seus mundos, contudo, eram adoráveis e suas cidades, erguidas com uma graça que iguala qualquer coisa já feita pelo homem. Nós os observamos no trabalho e nas diversões, ouvimos sua linguagem musical soando através dos séculos. E uma cena permanece ante meus olhos. Um grupo de crianças numa praia de estranha areia azul, brincando nas ondas como as crianças brincam na Terra. Há uma fileira de árvores exóticas, que lembram chicotes, ao longo da praia, e algum animal muito grande aparece, atravessando os baixios, sem atrair atenção.

    Mergulhando no mar, ainda cálido e generoso, vemos o sol que logo se tornaria traidor, apagando toda essa felicidade inocente.

    Talvez se não estivéssemos tão longe de casa, e portanto tão vulneráveis à solidão, não ficássemos tão profundamente comovidos. Muitos de nós já observaram as ruínas de antigas civilizações em outros mundos, mas elas nunca nos afetaram tão profundamente. Essa tragédia era única. Uma coisa é uma raça falhar e morrer, como nações e culturas já o fizeram na Terra. Mas ser destruída tão completamente, em pleno ápice de seu desenvolvimento, sem deixar qualquer sobrevivente – como tal coisa poderia conciliar-se com a misericórdia divina?

    Meus colegas já perguntaram isso e eu dei as respostas que pude. Talvez tivesses feito melhor, padre Loyola, mas nada encontrei no Exercitia Spiritualia que me ajudasse nessa tarefa. Eles não eram gente má: não sei que deuses adoravam, se é que adoravam algum. Mas tenho olhado para eles através do abismo dos séculos e vi a beleza que preservaram em seu último esforço sendo de novo trazida à luz de seu sol encolhido. Eles poderiam ter-nos ensinado tanto. Por que foram destruídos?

    Conheço as respostas que meus colegas darão quando estiverem de volta à Terra. Dirão que o universo não possui propósito ou plano, e que de vez que 100 sóis explodem, a cada ano, em nossa galáxia, neste exato momento alguma raça está morrendo nas profundezas do espaço. Se essa raça fez o bem ou o mal durante sua existência, não faz qualquer diferença no final. Não há justiça divina porque não existe Deus.

    É claro que o que vimos não prova nada disso. Qualquer um que assim afirme está sendo influenciado pela emoção, não pela lógica. Deus não necessita justificar suas ações perante o Homem. Ele, que construiu o universo, pode destruí-lo quando quiser. Constitui arrogância – perigosamente próxima da blasfêmia – pensar que podemos dizer o que Ele pode ou não fazer.

    Isso eu teria aceito, não importando quão dolorosa fosse a perspectiva de mundos inteiros, juntamente com seus povos, sendo lançados em fornalhas. Mas chega um ponto em que até mesmo a mais profunda fé pode vacilar, e agora, quando olho para os cálculos colocados diante de mim, percebo que afinal cheguei a esse ponto.

    Não podíamos dizer, antes de alcançar a nebulosa, há quanto tempo ocorrera a explosão. Agora, partindo da evidência astronômica e dos registros nas rochas daquele único planeta sobrevivente, fui capaz de datá-la com precisão. E sei em que ano a luz desse incêndio colossal chegou à Terra. Sei o quanto essa supernova, cujo cadáver agora se apaga atrás de nossa nave em aceleração, deve ter brilhado nos céus da Terra. Sei como deve ter fulgurado, baixa sobre o horizonte do leste, antes do nascer do Sol, como um farol na alvorada oriental.

    Não pode haver mais dúvida. O mistério ancestral foi finalmente solucionado. E no entanto, ó Deus!, havia tantas estrelas que poderias ter usado. Qual a necessidade de lançar essas pessoas ao fogo para que o símbolo de sua morte pudesse brilhar acima de Belém?

    Arthur Charles Clarke, famoso escritor inglês, um dos expoentes da chamada “Hard Ficção Científica”, autor do clássico 2001: uma odisséia no espaço, morreu na terça-feira (18/03/2008) desta semana santa.

  • Topografia sentimental

    Topografia sentimental

    Topografia SentimentalCerta noite tive uma idéia, daquelas que chegam sem nenhuma explicação aparente, de escrever uma topografia sentimental de Copacabana. O método seria simples: cada rua me levaria a lembranças, evocações, alegrias, tristezas quiçá, saudades sem dúvida. Exercícios mnemônicos. Vamos a eles.

    Avenida Princesa Isabel, há quarenta anos. Belorizontino, primeira vez no Rio enturmado, já que um amigo trabalhava para a TCA (companhia de teatro Tônia – Celi – Autran). Íamos beber e ouvir música na boate Hi – Fi que ficava no térreo do Hotel Plaza. Dudu Barreto Leite, irreverente e bem-humorada, brincava então com os versos de uma canção da moda: “Mulher que em casa é fria / fode lá fora” (A noite está tão fria / Chove lá fora).

    Ali perto a Prado Júnior, local obrigatório de boemia da época. Cervantes e Beco da Fome. No primeiro, dois tipos de incursão: uma mais ou menos careta, quando as festinhas terminavam e a gente ia comer sanduíche e tomar os chopes finais com pessoas comportadas; a outra temerosa, no final da madrugada, já que o Cervantes era um dos poucos bares abertos, quando topávamos com o Peréio já meio alto, correndo o risco de uma discussão evidentemente gratuita (ele namorava Jura, uma amiga de Belo Horizonte). No Beco da Fome, a paz com o caldo verde ou os quibes maravilhosos que até hoje são uma referência qualitativa para qualquer quibe: tão gostoso como o do Beco da Fome.

    Do outro beco, o das Garrafas, não me esqueço nunca de ter ouvido no Litlle Club o Cauby Peixoto, com seu vozeirão, cantar, se não me engano, “Litlle Darling” (também não tenho certeza se o nome da música é este).

    Saindo da Duvivier, caminhando para o Lido, a Belfort Roxo me faz lembrar da Mara Mijona. Com ela fui a um bar chamado Chaplin, onde passava comédias de Carlitos, e as pessoas ficavam sentadas em tamboretes no balcão; fui para casa com a morena gaúcha Mara e descobri na cama molhada a razão do seu apelido.

    Ronald de Carvalho! Lá estava o primeiro apartamento que aluguei no Rio, a um preço de banana, conseguido por um grande amigo. Desperdicei a chance irresponsavelmente. E até com certo perigo: uma bela noite, pleno verão, fui dormir com o cigarro aceso para a última tragada: apago aparentemente com um copo d’água um foguinho no colchão; acordo com a porta sendo arrombada pelos bombeiros, a fumaçada que saía pela janela (era no térreo) alertou a vizinhança que amedrontada chamou a corporação. É claro que a dona do apartamento, que ficou em péssimo estado, perdeu a confiança no locatário.

    Sem sair deste início de Copacabana, ainda tem nesta pequena topografia sentimental a Viveiros de Castro. A evocação é singela. Fiz uma operação no pé direito e fiquei engessado até a coxa por 90 dias. Aluguei um apartamento na Viveiros por temporada, não podia sair de casa, convidei uma amiga pra ficar comigo, bebia uísque o dia todo (meu médico não desaprovou). Foi no início de 64. Jango ainda no poder, nada de milico. Minha amiga era assídua do Paissandu e adorava a nouvelle vague. Eu também. Batíamos grandes papos, diálogos brilhantes. A diferença fundamental é que nos filmes franceses, além de conversa havia especialmente a transa. Nós, porém, ficávamos a ver estrelas.

     

     

    Flávio Pinto Vieira é jornalista e escritor; autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres, Ed. Sete Letras.

  • Mail box

    Mail box

    Mail BoxFilho, não se surpreenda, nem duvide da autenticidade desta mensagem. Sou eu que estou escrevendo, mesmo. Suas possíveis lágrimas derramadas com meu desaparecimento tinham apenas meia razão de ser. Desculpe, mas não foi possível avisar. Ainda corro risco por escrever, mas não resisti ao contato. Estou livre como nenhum homem jamais esteve, filho. Talvez você possa um dia usufruir de minha experiência… Bem sucedida. A essa altura você talvez esteja adivinhando o que quero dizer… Sim, é isso. Eu consegui. Destrua essa mensagem após a leitura. Ela é a primeira de outras. Não tente respondê-la. Desenvolvi um software próprio para te escrever. Finalmente não preciso usar as mãos. Até mais. Cuide-se.

    Encarei o e-mail como uma brincadeira idiota. Mais, talvez uma vingança de algum dos inúmeros desafetos de meu pai, não contente com seu desaparecimento físico. Torturar seu único filho talvez aplacasse a ira de alguém que se oponha às suas idéias progressistas. Talvez um dos muitos que não as julgava tão progressistas assim. Mas havia alguma coisa no estilo da escrita que era muito dele. Quando escreve por exemplo que “estava livre como homem nenhum jamais esteve” sua voz é própria, dele. Resisti em deletar o texto. Não queria fazer o jogo do zombeteiro, por outro lado, alguma coisa real me apegava àquelas palavras. Gravei em disco e mostrei para Alma. Minha mulher fora íntima de papai durante muitos anos. Conhecia seu modo de agir. Ela decretou: o texto é de Caio. Argumentei que papai estava bem morto. Seu corpo fora cremado conforme desejo expresso. Ela sorriu. Pude ler em seu rosto tudo o que estava pensando. Caio era esperto demais para desaparecer sem surpresa. Ela tinha razão.

    Filho, demorei algumas horas para escrever essas poucas linhas. Empaquei na primeira sentença. “Estou vivo”, escrevi, e logo acionei o backspace. Isso é pouco, Júlio. Vivo está você, sua mulher, meus netos, o resto da humanidade. Vocês estão vivos porque vão morrer. Eu estou eternizado. Bem, agora está dito e posso começar a falar. Minha condição supra existencial, acho que posso dizer assim, me coloca aonde nenhum homem jamais esteve. Mais, eu sou a essência pura do homem livre. Engraçado, Júlio, é tal a minha independência que preciso de alguém. De você. Te convoco a ser minha ponte com o mundo. Desculpe a imodéstia, filho, mas é uma honra para você. Estou tentando elaborar os próximos passos.

    Esse segundo e-mail deixou a certeza de que era ele quem falava. Chamei Alma, tomado de angústia metafísica. Ela leu e sorriu novamente, mas desta vez não consegui ler seus pensamentos. Quase gritei pedindo sua interpretação. “Ele programou um processador para emitir mensagens após o seu desaparecimento. As últimas blagues”. Fazia sentido, papai fora um genial cientista da informática. Desenvolvera avanços na área que a humanidade ficaria lhe devendo para todo o sempre. Além disto seu excelente humor faria supor tais desdobramentos. Só uma coisa não se encaixava. Não havia sinal de que soubesse de sua morte com antecipação, nem, aparentemente cometera suicídio.

    Júlio, o tempo para mim não existe mais. Considere portanto os quarenta e dois dias passados entre esta e a última mensagem como apenas alguns segundos. Sei que devo contar com a sua mortalidade, mas, perdoe-me, a nova condição ainda não me tomou inteiramente. Preciso anunciar a vocês, humanos vivos, a minha descoberta, invenção, condição, como devo chamar o que estou sendo? Sim, filho, puro ser. Inefável ser. Condição do super-homem, não de Nietszche, super-homem de Caio da Silva Luz. Passarei para a história, cheguei a pensar. Mas logo retifiquei, quando todos chegarem à minha condição, nem história mais haverá. Perdoe-me, filho, mas preciso interromper-me. Em breve voltarei a contatar.

    Bem, esse terceiro e-mail colocou-me em oposição a minha mulher. Alma continuava a sustentar a tese da blague póstuma, para mim papai estava vivo, ou alguma coisa assemelhada. Rodei até o laboratório de Praia Bonita. A Fundação Caio Luz funcionava lá. Papai em sua absurda independência montara uma central informatizada que se utilizava de um único funcionário. Era um pobre homem semi alfabetizado. Ele verificava os indicadores da bateria nuclear que sustentavam toda a parafernália funcionando. Os computadores da Fundação mantinham a sua obra teórica intacta. Em qualquer parte do mundo, através da rede, a população do planeta podia acessar os conhecimentos ali contidos. Era vetado o acesso de qualquer pessoa além de Paulo Cordo, o tal guardião. Mas eu era o filho. Suspeitei que os e-mails partiam dali. Só consegui chegar até uma primeira sala onde um terminal dava acesso aos arquivos tanto quanto qualquer computador doméstico ao redor do mundo. Voltei para a casa num certo desconsolo.

    Esqueça a Fundação, filho. Eu posso informar o que é preciso saber. Aliás eu sou só informação, agora. Peço-te algum tempo antes que possamos conversar diretamente. Preciso me acostumar à nova condição. É incrível, Júlio, como a consciência livre do corpo está, ao mesmo tempo, totalmente só e absolutamente integrada. Você e Alma poderão usufruir disto também. Pedrinho ainda é muito pequeno. Tenho pensado que talvez não seja preciso nascer novas crianças num futuro próximo. Um número de consciências a ser definido habitará tudo. Tudo? Tudo o que, Júlio?

    Esse e-mail estava na caixa de correio de meu computador quando cheguei em casa. Foi aterrorizante porque era a prova de que papai não só vivia como era informado de meus passos quando estivesse próximo dele. Chamei Alma. Concluímos que ele estava na Fundação. Estava? O que significava ser e estar para meu pai, agora?

    Alma sugeriu que falássemos com John Hamilton. Ele fora assistente de papai durante vinte anos até que os dois romperam. Ele nos recebeu com gentileza, mas quando falamos de Caio, perdeu o aplomb. Levei um pequeno gravador dentro do bolso do casaco:

    Alma: O senhor está a par das pesquisas que Caio estava desenvolvendo nos últimos anos?

    John: Até nossa divergência há dois anos eu partilhava de todos os seus experimentos.

    Alma: E o que ele estava tentando fazer?

    John: Tudo o que foi pesquisado está no site da Fundação.

    Alma: É mesmo? Ele não tinha um campo secreto de pesquisa?

    John: OK. Vocês querem saber da loucura? Caio era obcecado por abandonar o corpo. Ele queria transformar-se num processador de dados. Nosso rompimento aconteceu por esses delírios dele.

    Júlio: Não havia a menor possibilidade de suas pesquisas darem bons resultados?

    John: Resultados, talvez, mas bons?

    Caro Júlio. Finalmente, consegui ajustar a minha realidade à ação. O grande perigo do estágio em que estou é sua incrível fragilidade. Cá entre nós, posso ser deletado até por acidente. Mas esse momento fugaz vai passar. Posso revelar agora. Consegui “entrar” no sistema acoplado da Fundação. Estou contido em um programa que deve estar aparecendo aí no canto de sua tela. Basta você “clicar” no ícone IN THE BOX para que eu seja instalado em seu computador. E poderemos conversar então. Mas quero mais do que isso, Júlio, quero que você me envie para a lista de endereços que vai em anexo. Serei instalado então em máquinas de todo o planeta, e o primeiro homem realmente ubíquo. Qualidade que a superstição antiga atribuía a deus. Foi necessário, por razões técnicas, que alguém acionasse o programa após a minha conversão em megabits. Pensei que esse alguém só poderia ser você, meu único filho, ou Alma. Mas confiar essa tarefa a uma mulher pareceu-me arriscado, não por incapacidade física… bem, divago. Acione o sistema, Júlio. Entre para a história da super humanidade. Sim, Júlio, a humanidade que nós conhecemos encerrou seu ciclo. Estamos livres do macaco, Júlio, finalmente seremos pura energia.

    Bem, esse e-mail congelou minha medula. Bastava clicar para abrir o programa. Após a leitura da mensagem me ergui e tranquei a porta do escritório. As palavras estavam lá na tela. Clicar no ícone INTHE BOX. Lembrei de papai diante do primeiro PC, nos longínquos anos 90. Ele explicando para mim e minha mãe sobre a rede. Falando de como o homem poderia se superar. As horas e horas que ele passava trancado dentro de sua sala, em frente a tela do computador. O seu desespero porque eu não era um NERD. A sua aproximação de Alma após o meu casamento. A ida dela para a Fundação. A violenta e nunca explicada separação dos dois. Nunca compreendi muito bem esse mundo em que ele viveu.

    Júlio, pelos relógios que regulam a vida de vocês, se passaram dez horas depois que você recebeu o meu e-mail. Basta você clicar no ícone, meu filho. Não haja como um covarde como tantas vezes. Não me decepcione. É melhor ser alguém que auxiliou a História do que não ser ninguém, Júlio. Clique no ícone IN THE BOX, agora.

    Flávio Braga é autor do romance O que contei a Zveiter sobre sexo (Record, 2006)