Categoria: Artigos

  • Réveillon do milênio

    Réveillon do milênio

    RéveillonNós, o Ano Novo, passamos os três. Ceiamos em casa e depois fomos ver os fogos na praia. Do céu despencou um dilúvio. Adivinhei que havia chegado a hora do Juízo Final. Do mar bateu uma ventania de cortar os ossos encharcados. Vanda estava com uma manta roxa, e a tintura escorria em gotas roxas que tingiram o vestido ex-branco e as sandálias ex-brancas dela, pintaram a minha calça ex-branca e a roupa ex-branca da Marina. Fui jogar umas flores ao mar e Iemanjá arrebatou-as de minhas mãos com uma rajada fria. Durante trinta minutos tiritamos na umidade semigélida, os cabelos pingando ao vento, esperando dar meia-noite. De repente o céu explodiu em clarões. No susto percebi que havia chegado a hora: É agora! Pedi perdão pelos meus pecados, pelos que pecara e pelos que ainda pecaria se me sobrasse tempo, e apertei as pálpebras temendo o pior. A multidão gritava agitada. Enchi-me de coragem e abri os olhos para ver os Cavaleiros do Apocalipse ? por incrível que pareça, era só um show de fogos de artifício para saudar não se sabe bem se o fim de um milênio ou o começo do outro. Quando me dei conta, já estávamos no século XXI. Vanda e Marina, abraçadas, fundiam-se num voluptuoso beijo de língua. Ei, também quero, reivindiquei. Meti-me entre as duas e enlaçamo-nos os três com sofreguidão. Vivido o momento, ensaiamos a volta à casa. A multidão se comprimia nas ruas que desaguavam na praia e tentava em vão remar contra a maré. Ficamos entalados no meio da turba compacta. A nossa vingança foi tingir de roxo todos os que esbarravam em nós: a maldição da manta roxa! Aquilo devia ser um sinal de Iemanjá. Quem sabe, a deusa do mar achasse que ainda era cedo e quisesse mais festa. Resolvemos voltar à praia. Mas não dava para nadar contra um mar de pessoas que insistia em avançar contra uma muralha de gente imóvel ? adultos, velhos, crianças esmagados uns contra os outros. Finalmente, como por milagre, conseguimos escapar por uma brecha na compacta massa humana. Esperamos um bocado à beira do mar; a multidão foi descompactando, e pudemos retomar o caminho de casa. Chegando ao apartamento, fomos correndo pro chuveiro lavar a tinta roxa que já impregnara até as unhas dos nossos pés. Esfregamo-nos, com lascívia, uns nos outros. Esfregamo-nos, com vigor, uns aos outros. Esfregamos e não conseguimos remover o tingimento. De modo que acordamos roxos no dia primeiro.

    Pois é, que coincidência… Diziam os babalorixás que o ano seria regido por Omulu, o orixá que cuida da saúde e da morte. Não foi à toa a cor roxa. Sinal de que as flores foram bem aceitas e de que nós, roxos, receberíamos proteção o ano inteiro. Que bom!

    Virei-me para as duas e pontifiquei: Este milênio, anotem o que estou dizendo, este será um milênio roxo. Acreditem. O tempo se conta em mil anos. E tem cor.

    Ao que Vanda e Marina ripostaram uníssonas: Um feliz milênio roxo para todos nós!
    Estávamos de férias. Comprei uma sunga roxa, elas compraram biquines roxos, e fomos tocando os dias, alegres e distraídos, na praia de Copacabana.

    No dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, sob um sol escaldante, no mesmo ponto da beira onde Iemanjá arrancara a oferenda das minhas mãos, as ondas devolveram à areia os nossos três corpos roxos.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).

     

  • A aliança

    A aliança

    AlinaçaEspreguicei na cama e, ao voltear a cabeça, revelou-se para mim a aliança sobre a mesinha de cabeceira. A visão escabrosa acarretou-me o mal-estar das apostas perdidas, das desilusões amargadas, do passado traído, do sonho despedaçado.

    Aquela argola de ouro com o nome dela gravado, aquele anel de compromisso custara-me os olhos da cara. Ela fora pudica, dizendo-me que dispensava algemas. Eu insistira, cego que não enxerga senão o que quer ver. Ela me disse que então comprasse umas baratinhas. Mas comprei umas caras, não as mais caras, mas bastante caras para o tamanho do meu bolso; desvario, romantismo que me fazia imaginá-la esfuziante no aconchego arcaico de um minueto naftalênico.

    Ela aceitara a aliança em seu dedo de casada, resignada, ainda que pouco à vontade. Disse-me que eu desperdiçara dinheiro. Eu não queria ouvi-la, mas a frase forte impressionara minhas células cerebrais. Mal pagara, melhor, recém assinara a fatura da compra a prazo, quer dizer, ainda não a pagara, já me arrependia da compra. Mas resistia a encarar o fato que afrontava o meu desejo. Disse-lhe que só me importava vê-la feliz. E perguntei se ela estava feliz. Ela olhou pela primeira vez o anelar esquerdo com a aliança de ouro que levava o meu nome e me respondeu que era bonita. Coloquei a outra aliança em mim e, estendendo a mão para exibi-la, indaguei se ficava bem no meu dedo. Olhou e disse, hesitante, que sim. Perguntei se meu dedo não era muito gordo para o anel. Respondeu que não, que ficara bem.

    Eu já estava desesperado com o meu fiasco e não sabia mais a que recorrer: que frase, que artifício… O silêncio tombou sobre nós com a frieza de uma lâmina de guilhotina, instalando-se a abissal distância que só a rejeição pode cavar.

    Ela baixara a vista. Eu não poderia me render sem mais nem menos; e ansiava, desesperadamente, por uma saída honrosa. Percorri a galeria de lojas com o olhar vago até vislumbrar um restaurante japonês. Ela adorava comida japonesa. Pensei rápido e convidei-a para comemorarmos as alianças com um saquê. Ela assentiu com um sorriso pálido.

    Sentamos à mesa; uma que dava a vista para o mar. O ar condicionado aliviava o calor e a paisagem me trazia a sensação aprazível da brisa marinha, mas os goles de saquê afogavam-me o espírito numa enxurrada de tristeza. As lágrimas foram brotando, primeiro em meus olhos, depois nos dela. E o peixe cru foi sendo salgado por nosso pranto incontido, até ficar intragável.

    Ela assoou o nariz no guardanapo. Quis recriminá-la, mas não tive ânimo. Ela assoou o nariz com mais força. Eu peguei o meu guardanapo e assoei o nariz também.

    Perguntei se ela chorava por algum amor não correspondido. Ela não respondeu que sim nem que não. Não admitiu que o outro só a queria para fazer sexo. Nem revelou que ele era casado. Perguntei desde quando ela me traía. Ela não me confessou que desde sempre. Com quantos? Não me segredou que com muitos, com todos que souberam despertar os instintos que trazia à flor da pele e que a arrebatavam. Tampouco disse que queria que eu soubesse que me amara e que se martirizara a cada traição, mas que agora, não sabia como havia acontecido, agora se perdera nesta nova paixão.

    A sua expressão magoada me dizia que o amante a desenganara com a afirmação de que jamais se separaria da sua mulher. Perguntei se ele tinha filhos. Emudecida dizia que não, que ele amava a mulher dele. E com a intensidade de seu olhar desamparado exclamava que não suportaria me perder.

    As lágrimas sulcavam-lhe o rosto em testemunho da sinceridade de suas emoções. O garçom protestou conosco que estávamos inundando o restaurante. Pensei em matá-la em legítima defesa da minha integridade afetiva. Ela me disse que queria morrer. Soluçava. Decidi puni-la, deixando que experimentasse o fel da frustração. Saí sem pagar a conta. Ela me chamou. Minha alma quis voltar, meu coração quis ficar, mas as pernas seguiram em frente com pisadas trôpegas no chão encharcado que, à minha passagem, respingava lágrimas enlameadas nas mesas em volta.

    Hoje, faz dez anos que esta aliança, relíquia indecorosa, está sobre a mesinha de cabeceira. Estamos no mesmo apartamento, na mesma cama. Ela dorme tranqüila, aliança no anelar esquerdo, luxuriante ao meu lado, seios lascivos, mamilos voluptuosos, bicos crapulosos. Nossa filha dorme no outro quarto. Nossa filha?! Peguei a aliança da mesinha de cabeceira. Encaixei-a no dedo. Resolvi estrangulá-las.

     

    * Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS(Record, 1996).

  • Uma partida para o Egito

    Uma partida para o Egito

    EsfingeÚnico aprovado entre quinze candidatos no teste para a Rádio Cairo , em 1971, fiquei sabendo no consulado que o contrato como redator-locutor-tradutor seria de dois anos renováveis e que o salário era bem razoável, considerando-se o baixo custo de vida da capital egípcia.

    O momento crítico levou à dúvida: ir com minha mulher Linda ou deixá-la com a família, já que tão bem se reintegrara a ela. Não havia eu de certo modo cumprido a minha missão, o meu dever de ampará-la e recolocá-la de cabeça erguida e com os pés firmes junto aos seus parentes? O Egito, cujo passado deslumbrava por causa dos Faraós, das Pirâmides e da Esfinge e cujo presente atemorizava por causa de Nasser (já assassinado) e sua independência, não seria país muito estranho para brasileiros? O Cairo, sempre evocando filmes de espionagem, não seria perigoso? Essas indagações foram absolutamente em vão e inclusive o argumento segundo o qual dois anos passariam rápido e eu voltaria com uma reserva de grana para uma vida mais folgada. Nada removia Linda da decisão de me acompanhar, a qualquer lugar que fosse. Ademais, era uma chance difícil de obter nas nossas condições financeiras, de conhecermos a Europa – especialmente Paris.

    Tínhamos mais ou menos dois meses para preparar a partida, o que significava desfazer o lar que com tanto carinho e tanta dificuldade fora montado há três anos e meio numa cobertura da Buarque de Macedo.

    Vendemos móveis, eletrodomésticos e alguns livros. Dos primeiros lá se foi a belíssima poltrona de couro da Oca, presente de um amigo; dos segundos, a televisão comprada à vista na rua Uruguaiana; e dos terceiros, edições preciosas no original desejadas por um poeta, amigo meu: as obras completas de Baudelaire da Pléiade, as “Crônicas Italianas”de Stendhal e a “Volta ao dia em 80 mundos” do Cortázar.

    Linda teve que preparar seu guarda-roupa de inverno e me lembro de um belo casaco – foi pago? não sei – da butique Vison, o qual a acompanhou durante todo o período no exterior. Porém, houve algo esdrúxulo: a compra de uma peruca então na moda e que Linda, apesar de seus belos, finos e macios cabelos, fazia questão de usar.

    Me lembro aqui do Professor, criado por Antonio Bulhões no “Elogio da Corrupção”, ao dissertar sobre a moda: “(…) A sedução da moda também se verifica em extensa gama de atividades outras; do livro à revista, do filme ao programa de televisão, do must ao esporte do momento, da gourmandise ao drinque de classe, dos lugares públicos aos endereços privados, dos passeios turísticos às admirações estéticas, do candidato à eleição ao melhor carnavalesco, do ator ou atriz preferidos ao maestro temperamental ,do objeto cult à griffe em voga, dos óculos extravagantes às lapiseiras requintadas, ia quase dizendo – tão extenso é o elenco a que me poderia ater, se quisesse – do talismã ideal ao bandido mais romântico. Ou do pensamento à linguagem. (…) O individualismo está agonizante. O efêmero, adotado insensivelmente como valor permanente, impõe-se. A célula social erigiu em padrão exemplar a aparência publicitária.”

    Afinal, embarcamos do verão austral para o inverno boreal: Linda, com a dispensável peruca e o casaco da Vison; eu, com um blazer usado cedido pelo pai de Linda. No bolso, os cheques de viagem em dólares comprados com a venda da desmontagem do lar. Não muito polpudos: duas semanas antes o dentista de Linda exigiu que ela fizesse uma pequena intervenção periodôntica que me comeu alguma grana. (Tenho quase certeza de que certas doenças podem entrar na lista de sedução da moda feita pelo Professor citado há pouco.)

    Dissemos adeus aos parentes de Linda e a alguns meus.

    Eu particularmente disse adeus ao governo militar de Médici, adeus a três ou quatro prestações de jóias e de móveis, adeus aos juros do agiota (ah! minha porção dostoievisquiana!), adeus ao desemprego, adeus ao sufoco financeiro, adeus à crise conjugal, adeus ao púbis preto-peludo e ao cheiro forte de Helena, adeus aos quatro anos de vida doce, terna, angustiante, realizada, instável, crítica, adeus.

     

    Flávio Pinto Vieira , jornalista e escritor, é autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres (7Letras).

  • A obra de Morales

    A obra de Morales

    TatuagemOs olhos escuros de Eva encontraram os olhos claros de Ricardo. Aos 15 anos a menina pesava 45 quilos e a sua pele era formosa. O corpo ágil chamou a atenção de Ricardo. Ele jamais olhava por olhar. Sua mirada sempre significava. Eva não sabia.

    Eva brincava na praia vazia, sob a luz matinal. Ele pensou em como a menina se prestava aos seus intentos.

    Eva era filha do caseiro de Crane, que hospedava Ricardo. Tudo ali era de Crane: a casa, a praia onde ficava a casa e a ilha em que se localizava a praia.

    Os cabelos fartos e os profundos olhos azul-acinzentados de Ricardo encantaram a menina. Eva também gostou do leve sotaque castelhano. Ele falou de flores, da luz da manhã e até recitou um poema de Kávafis. Finalmente, a convidou para tomar sorvete com cassis que trouxera do continente na bolsa de gelo.

    Sentaram na varanda e Eva falou dos roedores que viviam no jardim, dos pássaros que comiam em sua mão, e dos ventos que envergavam as árvores. Ricardo se confessou encantado com o Oceano Pacífico. Ele pediu licença e entrou na casa. Voltou com um estranho aparelho. Assemelhava a uma arma. “A sua pele é perfeita” ele disse. Ela apenas sorriu.

    Eva completara 18 anos quando o homem representando Crane desembarcou na ilha. Era formal. Usava terno e gravata. Eva nunca vira alguém assim. O homem falou com seu pai e depois a chamaram. Seu pai a fez cobrir o busto acentuado e mostrar a tatuagem. O homem a examinou durante alguns minutos, depois sacou uma pequena câmera e fotografou a obra. Ele chamou a tatuagem assim: a Obra de Ricardo Morales.

    Um mês depois o homem voltou, acompanhado de dois outros. Eram formais, bem barbeados, e também examinaram a tatuagem. Eva pensou que não eram atraentes como Ricardo. O pai de Eva a convidou para um passeio na praia e contou tudo. O rico Crane os queria na cidade.

    Eva e seus pais foram instalados numa casa pequena, dentro do parque onde ficava outra casa, enorme. Lá morava Crane. Seu pai assinou papéis e uma costureira preparou um vestido para Eva. Havia um grande decote nas costas onde ficava visível a tatuagem. Logo abaixo, na altura da bunda, estava gravado no vestido: tatuagem sobre pele. 12 X 16 cm. Ricardo Morales.

    Crane oferecia jantares num enorme salão onde as paredes eram cobertas de quadros de todos os tipos, com variados motivos. Também havia esculturas, as mais estranhas e em todos os materiais. Durante esses jantares, Eva ficava parada, em pé, entre outras estátuas e quadros assinados por Ricardo Morales. Eva ficou sabendo que ele havia praticado suicídio um ano depois de tatuar as suas costas.

    Eva conversava com os empregados da casa. Não havia nenhum como Ricardo, de olhos tão claros e voz tão inesquecível, mas Eva gostou de Roberto. Ele dirigia os carros de Crane. Eram muitos modelos e ainda havia outro motorista. Eva era impedida de sair da área da mansão, mas Roberto a escondeu no banco traseiro da Mercedes e saíram para passear. Roberto a tentou beijar. Ela consentiu. Ele quis tirar suas roupas. Ela quis mostrar a tatuagem, mas ele não estava interessado. Até xingou a tatuagem. Tentou beijar seus seios, e ela deixou. Finalmente, Eva perdeu a virgindade com Roberto. Gostaria que houvesse sido com Ricardo, mas…

    Aos poucos, Eva aprendeu a amar Roberto. Ele queria ficar com ela. Declarou sua vontade. Eva aceitou, mas o rapaz impôs uma condição. Conhecia um tatuador que cobriria a tatuagem da noiva com outra. Eva contou para seu pai, que contou para o advogado, que contou para Crane. Roberto foi dispensado e Eva nunca mais o viu.

    Quando Eva completou 48 anos, seu pai e mãe haviam morrido. Ela passou a morar num quarto dentro da mansão. Fazia pequenos serviços para matar o tempo. Era solicitada poucas vezes a mostrar a tatuagem. Se tornara amante de um dos jardineiros. Sua felicidade consistia nos bons momentos que passava com ele, embora o homem não lembrasse nem um pouco Ricardo. Estava ajudando seu namorado a preparar um canteiro quando a governanta saiu porta afora anunciando: Crane havia morrido.

    Dois meses depois, todos os empregados foram chamados à presença do advogado dos novos proprietários. Eva não tinha função específica. O homem sorriu quando ela contou o que fazia na casa. Alguns dias depois ela recebeu um envelope com algumas notas. Assinou um recibo e foi dispensada. Saiu na avenida com uma pequena mala. O movimento a assustou um pouco. O mundo era um tumulto incompreensível.

    * Flávio Braga é romancista, roteirista e editor. Este ano publica pela ed. Record 68, o romance.

  • A finada

    A finada

    Os vivos sabem: morrerão; mas os mortos não sabem coisa alguma. Para eles já não há recompensa, pois sua memória é esquecida. Seus amores, seus ódios, seus ciúmes já pereceram; não mais tomarão parte em quanto se faça sob o sol.

    Ecl 9,5-6

    FinadaIsmênio Prado andava ausente, alheio, distraído… Isso causava estranheza porque era normalmente um sujeito regular, responsável no trabalho e solícito no trato social. Mas é que ele estava obcecado por um enigma: o de si mesmo. E, em seu cérebro, passava em revista as teorias que colecionara a respeito. Não se tratava da célebre dilemática shakespeariana tu-bi-or-not-tupy. Não, ele assuntava a unicidade de seu próprio ser. Bem, talvez não exatamente a unicidade, mas o seu contrário: a multiplicidade.

    Não saia por aí pensando que ele fosse filósofo. Não, não era. Nem filósofo, nem psicanalista – que é uma espécie de filósofo do inconsciente. Era relações-públicas de uma multinacional. E competente no que fazia.

    Se a alguém assalta a dúvida sobre o que seja o trabalho de um relações-públicas de uma multinacional, pois, que fique sabendo, é o mesmo que faz qualquer relações-públicas. Só que ele tinha um diferencial: Ismênio Prado era especialmente habilidoso para tratar com as autoridades e resolver casos do interesse da empresa em que trabalhava. E mais não se pode revelar.

    Mas aqui o que importa é o enigma íntimo que o absorvia: sou um ou vários?

    A primeira teoria que aleatoriamente lhe ocorria era a de Machado de Assis. O bruxo do Cosme Velho especulava que teríamos duas almas, identidades, personalidades ou seja lá o que for. Uma seria privada, secretíssima, ensimesmada, e não se revelaria por inteiro nem para nós mesmos. A outra, pública, se daria a apreciar socialmente e perseguiria a aprovação alheia, embora muitas vezes a desaprovássemos intimamente.

    Em seguida, ocorria-lhe a teoria de Antonio Tabucchi, que não acreditava que tivéssemos uma alma, e sim uma legião delas. De acordo com essa segunda maneira de ver as coisas, conforme as circunstâncias se apresentassem, lançaríamos mão da alma mais conveniente para o momento e descartaríamos as demais, colocando-as em disponibilidade numa zona de estocagem de almas reservas; até que as circunstâncias, sendo outras, requeressem um novo remanejamento.

    A idéia de que somos um ser duplicado era interessante, entre outras razões, porque permitiria distinguir o humano de todos os outros seres; mas, sobretudo, porque nos daria a conhecer a tensa ambigüidade que constituiria a nossa essência. Carecia, entretanto, de dinamismo: nos aprisionava em uma estrutura dada para sempre.

    Já a idéia de que somos possuidores – talvez fosse melhor dizer: possuídos por uma legião de almas, essa era fascinante pela noção de movimento interativo, ou seja, pela dialética da transformação do ser como um processo de adaptação às circunstâncias; todavia, deixava escapar a percepção do ser duplicado.

    Ismênio Prado, embora não fosse filósofo, tinha lá suas sofisticações intelectivas. Percebia que entre as duas teorias mediava uma diferença de enfoque; ou metodológica, como se queira. A teoria das duas almas adotara um ponto de vista sincrônico, ao passo que a teoria da legião de almas abraçara uma perspectiva diacrônica. E ele se dispunha a fundi-las numa formulação original, eclética talvez, mas que permitisse uma concepção mais abrangente.

    Estava nessa labuta cerebrina, que consumia suas energias psíquicas e o fazia negligenciar as tarefas profissionais e as relações humanas, quando lhe ocorreu uma terceira hipótese: nasceríamos com muitas e contraditórias possibilidades de ser, mas ao longo da vida, ao optarmos por ser alguma coisa, éramos levados a descartar definitivamente o que de outro modo poderíamos ser. E, assim, íamos deixando de ser o que poderíamos vir a ser, ao mesmo tempo que constituíamos o que seríamos. Isso se daria simultaneamente em dois planos: no daquele nosso íntimo secreto que mal conhecemos, e no das relações sociais a que estamos subsumidos. Esta seria a causa das nossas angústias: para ser precisávamos deixar de ser, mas o que somos e deixamos de ser num plano não coincide com o que abandonamos e nos tornamos no outro. Esse descompasso entre vida interior e vida exterior era o que explicava o indefinível mal-estar da civilização freudiano.

    Que não nos ouça o Cardeal! – a imagem dessa legião de almas bipartidas sendo cinzelada pela existência ocupava com exclusividade o pensamento de Ismênio Prado. Mas, na qualidade de relações-públicas de uma multinacional, ele sabia de cor e salteado a lição do Millôr Fernandes: livre pensar é só pensar.

    E ele só pensava quando foi interrompido por Iara, sua mulher:

    – Amorzinho.

    Escutou a voz da mulher e achou que ela falava com o gato da casa. É que o felino se chamava Amorzinho, nome ridículo dado por ela. Como ele não suportasse gatos, ela se havia sozinha com o bichano.

    Ledo engano, ela falava com ele.

    – Amorzinho, não está me escutando?

    Olhou para a mulher, mas não disse nada. Ficou imaginando de quantas almas ela seria constituída, de quais já se descartara, e que correlação de forças vingara entre os planos interior e exterior dela.

    – Ei, eu estou aqui.

    – Estou vendo. Pensei que falasse com o gato. Você nunca me chama de amorzinho.

    – O que há com você. De um tempo pra cá parece que me ignora.

    Inadvertidamente, respondeu:

    – Eu estava pensando…

    – Em quê? Diz pra mim. Pode se abrir.

    Ismênio Prado procurou sossegar a curiosidade da mulher.

    – Nada, não. Estratégias de trabalho. Tenho uma reunião agendada com o Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Preciso ver a melhor forma de abordar algumas questões do interesse da empresa. É só isso.

    – Coisas rotineiras?

    Ele gostou da expressão empregada pela mulher. Ia dizer “coisas sigilosas”, mas “coisas rotineiras” caía melhor.

    – É. Coisas rotineiras – repetiu.

    – Amorzinho, preciso que você me resolva o problema da mamãe.

    – Que problema?!

    A surpresa de Ismênio Prado era mais que justificada. A sogra morrera há quatro anos.

    – É preciso exumar a mamãe. Eu não tenho condições. Sou filha… É uma coisa muito macabra pra mim.

    Ele coçou a careca. Iara sabia que esse era um tique nervoso do marido. O que ela não sabia é que entre genro e sogra ficara um segredo não compartilhado com ela.

    Não fazia muito que Ismênio Prado se casara com Iara, quando dona Clotilde, a sogra, enxotou o marido. Ela o flagrara em adultério com a empregada na cama do casal. Desde então enclausurara-se no lar e mantivera uma atitude de austera castidade.

    Naquela época, dona Clotilde era uma jovem senhora que chamava a atenção pela dignidade de sua postura discreta, mas que também atraía olhares pela formosura de sua plástica. Ninguém sabe ao certo o que se passa na cabeça de uma mulher privada do contato íntimo com o sexo oposto, mas o genro especulava com o grau de carência da sogra e isso estimulava as suas fantasias.

    Entre os atributos da atraente senhora, havia um belo par de rótulas que era o fetiche mais recorrente de Ismênio Prado. Os joelhos da sogra invadiam os seus intercursos maritais com a filha. E o assaltavam nos momentos mais impertinentes. Mas ele nunca deu motivos para que alguém alimentasse suspeitas, vagas que fossem

    Um dia Ismênio Prado foi se encontrar com a mulher na casa da sogra. Eram umas nove e meia da noite. Tocou a campainha e esperou. A sogra abriu a porta.

    – A Iara foi visitar o pai. Mandou te avisar que, como ficou tarde pra voltar pro Rio, vai dormir lá.

    O pai morava em Petrópolis e, às vezes, acontecia dela dormir lá.

    Antes que o genro desse meia-volta, a sogra o convidou a entrar.

    – Mas não vai embora. Entra que eu tenho umas coisas pra te dizer.

    Ismênio Prado foi entrando distraído e ficou surpreso ao ver a sogra de camisola. Como a surpresa se estampasse em sua cara, ela se explicou prontamente:

    – Me desculpa, eu estava me aprontando pra dormir. Mas você veio a calhar. Estou sem sono.

    O genro foi entrando e os seus olhos não conseguiam despregar-se dos seios da sogra. É que ela usava uma camisola que tinha um corpete de crochê no qual os seus perturbantes mamilos ficavam espetados.

    Pela primeira vez ele esquecera as rótulas em favor dos seios da formosa dama. E tropeçou no tapete, tão atarantado ficou com a luxuriante visão.

    Dona Clotilde, solícita, o amparou nessa dificuldade e o ajudou a sentar-se no sofá. Sentou ao lado e puxou conversa, falando amenidades.

    Ismênio Prado, boquiaberto, mal conseguia gaguejar uns sim-senhora e uns grunhidos de hâ hã. Através das transparências da camisola, desvelava a nudez da mãe de sua mulher.

    A sogra olhou fundo nos olhos dele e o inquiriu:

    – Eu era feliz com meu ex-marido. Até hoje não me entra na cabeça que ele me tenha traído com aquela lambisgoia. Olha pra mim, Ismênio. Você acha que ela era mais atraente do que eu?

    – É claro que não – respondeu de supetão.

    Mas as suas palavras foram menos eloqüentes do que o seu olhar. Se dona Clotilde ainda nutrisse qualquer dúvida sobre a intensidade com que o genro a cobiçava, nesse momento recolheria toda a certeza que uma mulher possa reunir sobre o desejo de um homem.

    – Sei que você aprecia as minhas pernas. Percebo como olha pra elas – disse, enrugando a longa camisola até a metade das coxas.

    Ismênio Prado estava hipnotizado.

    – Enfim, o que eu queria saber é se você seria capaz de trair a sua mulher.

    Ismênio Prado pressentiu que caíra numa armadilha. A sogra o estaria testando?

    – Sinceramente, dona Clotilde, acho que não.

    – Aprecio sua idoneidade, Ismênio. Acho que você não seria capaz de trair a sua mulher com uma empregadinha qualquer.

    – Isso, nunca! – balbuciou o genro.

    – Mas… e com uma mulher que fosse muito especial pra você?

    Ismênio Prado calou a resposta.

    – Pergunto porque eu jamais traí meu marido. E, mesmo agora, não me entrego a homem nenhum. Mas isso não quer dizer que eu não tenha provado privações. Toda a virtude reside na nossa capacidade de resistir às tentações. Aconteceram ocasiões durante o meu casamento em que precisei de todas as forças para escapar do resvalão no adultério. Lembro-me de uma vez em que não decaí por um triz. E agora, então, que estou a tanto tempo sem tocar num homem… Sinto uma carência muito grande. Tem dias que o ar me falta. Você não faz idéia do sacrifício que é.

    – Imagino, sim senhora.

    – Será que imagina mesmo? Me diga uma coisa, Ismênio. Eu vejo como você me olha. Estes meus seios, pode olhar, você gostaria de tocar neles?

    Ismênio Prado enrubece.

    – É uma tentação muito grande, dona Clotilde. Confesso que tenho acionado todos os freios para me conter.

    Dona Clotilde sorriu, complacente.

    – Pois sei, sim. E eu tenho feito o mesmo, porque desde que me separei nunca me passou pela cabeça entregar-me a outro homem que não fosse você.

    Por um instante, os dois se contemplaram mudos.

    – Você já leu a Bíblia? – indagou a sogra.

    – Não. A senhora sabe que eu não sou muito ligado nessas coisas de religião.

    – “Quem olha para uma mulher com cobiça já adulterou com ela.” Está escrito na Bíblia.

    Dona Clotilde fez uma pausa, como se o estudasse, antes de prosseguir.

    – Você seria capaz de avançar o sinal e me faltar com o respeito que um genro deve à sua sogra?

    Ismênio Prado protesta enfático.

    – Isso nunca, Dona Clotilde; a senhora pode ficar descansada.

    A sogra esboça um meio sorriso escarninho.

    – Não sejamos hipócritas, Ismênio. Sou mulher e espero que você não me tenha esse tipo de respeito.

    E, em seguida, persuasiva:

    – Queria tanto que acariciasse os meus seios… – falou e encaminhou as mãos do genro aos seus mamilos.

    Ao tocá-la, ele sentiu nela um estremecimento que o arrebatou: em algum lugar remoto do planeta, um vulcão entrara em erupção.

    Pensando bem, a metáfora da erupção vulcânica talvez não seja a forma mais apropriada de dar conta do ocorrido. De fato, pode-se interpretá-la de variadas maneiras…

    Fiquei dubitativo. Finalmente, após muito matutar, resolvi-me: conto tudo como foi. E foi assim. Ao encostar na sogra, o genro, num átimo, foi ao ápice. E a coitada da mãe de Iara, frustrada, ficou a ver navios.

    Ismênio Prado contemplava Iara enquanto essas imagens passavam como num filme em sua memória.

    A mulher estava esperando que ele dissesse algo. Sabia o quanto o marido era impressionável com esses afazeres de cemitério. Tinha consciência de que não fizera um pedido que ele pudesse atender com facilidade. E ficou perplexa com a pronta disposição que ele demonstrou.

    – Está bem. Vou amanhã mesmo. De manhã cedo – Ismênio Prado disse com toda a naturalidade do mundo.

    No dia seguinte, ele foi ao cemitério.

    Acompanhado de dois coveiros, dirigiu-se à campa onde jaziam os restos mortais da sogra. Virou-se de costas, enquanto os coveiros abriam o caixão. O cheiro era insuportável. Ele tirou o lenço do bolso e tampou as narinas.

    – Não dá, não, senhor. Ainda tem muita pele.

    Ismênio Prado virou-se e viu a defunta. Tinha cabelos. A pele estava feito fruta seca, enrugada, de uma coloração castanho escuro. Os cabelos também pareciam muito ressecados e apresentavam a mesma tonalidade da pele.

    Ele olhara rápido, de relance, e voltara-se de costas. Autorizou os coveiros a repor o caixão na cova.

    Feito o serviço, dispensou-os com uma gorjeta, e permaneceu no local.

    Lembrava-se vagamente da teoria platônica. Segundo suas lembranças, os espíritos abandonavam os corpos mortos e retornavam à região das essências. De lá voltavam para reencarnar. Nesse vai-e-vem, atravessavam o rio que separa os vivos dos mortos. As águas desse rio lavavam a memória. Por isso, os espíritos que se banhassem muito nessas águas, quando retornassem ao mundo dos vivos, aqui chegariam embrutecidos. Os homens superiores, os que podiam ser filósofos, tinham espíritos que conservavam muita sabedoria porque pouco tinham mergulhado naquelas águas do esquecimento.

    Ismênio Prado meditou e concluiu que havia semelhança entre a teoria platônica dos espíritos e a dialética hegeliana da objetivação da Idéia. Afinal, a objetivação hegeliana era uma espécie de esquecimento. Mas logo ressalvou que recordava a dialética hegeliana de uma forma apenas superficial, fragmentária.

    Ismênio Prado olhou pros lados e achou que não havia mais ninguém. Estivera muito tempo junto ao túmulo da sogra. Quando percebeu, já entardecia no cemitério. Sentiu medo. Fez menção de partir, mas voltou. Olhou novamente pros lados e não viu viva alma, ou melhor, ninguém. Queria perguntar sobre as almas. E então, existiria mesmo o rio que Platão nos deixou notícia? Quer dizer, a pergunta não era bem essa. O que ele queria saber é se a sua teoria sobre as almas estava no prumo.

    – Dona Clotilde, dona Clotilde. Sou eu, o Ismênio. A senhora está aí?

    Foi de tal monta o esforço que despendeu para evocar a sogra, que sentiu um cansaço acachapante. Recostou-se sobre a campa e descansou.

    A finada fez-se escutar.

    O passamento faz-se como um constrangimento em ato. É uma denegação das energias, uma elisão dos sentidos, um debater-se da matéria até deixar de ser. Realiza-se através da falência geral dos órgãos. E aí há o defrontar-se com o seu não-ser na dimensão intangível do Ego que se esvaiu. É o nada. Onipotência. E o desencarnado tende a rarefazer-se no infinito. Já não há tempo nem espaço. É o absoluto. Onipresença. E a esfera da idéia desgarrada do corpo então se manifesta. Imaterialidade, não-pensar. É o vazio. Onisciência.

    Falta-me (soçobra-me) – não poderia ser o tempo nem a experiência – densidade (vá lá!) para revelações mais elucidativas: o perpétuo dissipamento do espírito na imensidão do infinito. Ver, não se vê. Nem se escuta. Nem se apalpa. Mas sei o que sei e o que eu pensei e o que vós pensais ou já pensastes um dia. Não há sofrimento, não há alegria onde não-sou. Isso faz-me lêr os pensamentos sem ofensa, embora haja tanta maleficência neles: nos vossos e nos que foram meus. Lêem-se os pensamentos, todos, porque estes se perpetuam no vácuo da imaterialidade.

    Se vós soubésseis dos meus pensamentos como sei dos vossos, escandalizar-vos-íeis. Sem razão. Fui uma atormentada mulher de um tempo amargo. Vivi a frustração dos sonhos românticos que acalentei. E os levei comigo até o umbral do passamento. Estive no abismo à mercê do monstro, qual secreta Andrômeda à espera do seu Perseu. Sucumbi não à brutal realidade do penhasco em que me atei, mas à irrealidade do herói que invoquei. Ninguém consegue despregar-se de seu tempo, como não poderia desfazer-se de seu corpo em vida.

    Não fui compreendida. E agora sei o quanto não fui compreendida por aqueles que eu achava que poderiam me entender. Eu era uma mulher simplória. Mas também sei o quanto não soube ser receptiva aos que mais próximos quiseram estar de mim. Afastamo-nos mutuamente. Eu, querendo a vossa compreensão. Vós, desejando a minha. Na orfandade afetiva, sem que aprendêssemos a ler uns aos outros, analfabetos emocionais.

    Há tempo de tudo. Mas cada um encontra-se com o seu ou nele se perde. A época passa como as modas, só o tempo fica onde calou fundo. Pode-se viver muitas vidas, mas vive-se sempre um único tempo mudo. Porque a ninguém é dado saltar por cima de si mesmo.

    Vivi um mundo de horizontes mesquinhos. Minha filha, minha família, minhas amigas, meus sonhos ocos… Muitos anos antes de morrer, morri tragada pelo vazio interior que me consumia a alma e me inchava a carne com gazes pútridos.

    Não sei se fui uma boa filha. Não fui boa esposa. Criei minha filha com mimos; mas não fui boa mãe.

    Empanturrei-me de chocolate. Chocolates finos, caros, em grandes quantidades. Comia até fartar-me. Quanto mais infeliz me sentia, mais comia. E passava mal. Trancava-me no banheiro e, sentada na privada, arrotava e peidava. Às vezes, cagava como se me liqüifizesse pelo ânus. Outras, contorcia-me de cólicas, vomitava. Recuperava-me tomando chá com torradas. Passada a crise, retomava a comilança sem remorso. A gula foi o meu pecado. O único, não; mas o mortal.

    O Céu e o Inferno são inabordáveis toporamas infindos. Mas uma coisa é certa: fomos predestinados ao Purgatório da vida.

    Ismênio Prado não tinha as respostas que queria, mas estava assombrado. Olhou o relógio e viu que o cemitério ia fechar. Se arrancou numa carreira desabalada. Quando chegou à saída, o portão estava sendo fechado. Ofegante, gritou para que não o deixassem lá. O porteiro, amuado, mandou que se apressasse, pois já era hora.

    Ismênio Prado transpôs o pórtico. Ia atravessando a rua quando olhou para trás. A distração atrai o desastre. Vinha um carro em alta velocidade. De reflexo, saltou de banda como o ágil capoeira que fora na adolescência. E, por um beiço de pulga, escapa de ser atropelado. Mas se desequilibrou e estourou os miolos de encontro à quina do meio-fio.

    Por um desses milagres que contrariam todos os prognósticos médicos, não morreu; ficou tetraplégico.

    Malgrado a desgraça, Ismênio Prado era um sujeito de sorte: recebeu um prêmio multimilionário do seguro contra acidentes pessoais que comprara um mês atrás.

    Com o passar do tempo e muita fisioterapia, recuperou parcialmente os movimentos.

    Hoje, Ismênio Prado dispõe de dois lenitivos para a sua desdita: a companhia de sua mulher, Iara, que lhe é dedicadíssima e nunca o desamparou; e as lascivas saudades da sogra, que o enlevam nas horas solitárias.

    Quanto a Iara, sente-se muito próxima do marido. E tem a delicadeza de ocultar dele o caso que mantém com o filho do vizinho do apartamento ao lado.

    Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).