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  • TEMPO DE ELEIÇÕES: HORA DE LEVANTAR MULTIDÕES

    TEMPO DE ELEIÇÕES: HORA DE LEVANTAR MULTIDÕES

    TEMPO DE ELEIÇÕES: HORA DE LEVANTAR MULTIDÕES

    Por Francisvaldo Mendes

    O desafio colocado para nós, socialistas, defensores da radicalização da democracia e da liberdade humana, é a ampliação da consciência. Convictos que somos que ninguém ou nenhum grupo faz para os coletivos e que são justamente os grupos sociais que devem se tornar sujeitos da política e da vida, construir a consciência de classe é um dos grandes desafios nas eleições. O PSOL é um instrumento da classe, com toda a diversidade e multiplicidade que tem e, portanto, o debate sobre projeto político e humano deve nos orientar todo o tempo, ainda mais nesse tempo das eleições.

    O que marca nossa disputa? Não há dúvidas e não pode haver para nós que somos psolistas: disputamos uma vida com dignidade em todos os sentidos e nas múltiplas dimensões. Uma disputa eleitoral que coloca a cidade em questões e a parcela do Estado que comanda esse espaço, mais próximo da vida das pessoas, com muitos desafios. Que fique evidente e o mais esclarecido possível: disputamos sim espaços no Estado para garantir e ampliar direitos; disputamos sim o comando jurídico institucional das organizações na cidade para que a vida seja mais importante que quaisquer lucros; disputamos sim condições para avançar na consciência de classe, coletiva, criativa e múltipla, para superar todas as mazelas do capitalismo: o machismo, o sexismo, o racismo e avançar contra as múltiplas dominações desse capitalismo tardio e anacrônico que nos é imposto.

    Já é comprovado e não há mais dúvidas que a mobilidade física na cidade, nos transportes que a multidão utiliza, precisa respeitar o meio ambiente, nesse meio, a vida humana, e ser sustentado pelo Estado. Não se trata de estatizar ou não as empresas. Estado, estatização, sociedade, são questões profundas para a revolução, alterando o processo de produção, circulação e a manutenção da natureza que precisamos transformar, mas não podemos esgotar. Assim, uma proposição como passagens em ônibus, trem e metro sustentadas pelo Estado é possível, realizável e necessária. São os transportes das multidões e a cidade é o espaço para olhar diretamente.

    Assim é também importante quando pensamos em SAÚDE E EDUCAÇÃO. Todas as pessoas com casa, todas as pessoas com água, todas a pessoas com saneamento, são medidas possíveis e necessárias. Tão necessário e possível é a garantia de todas as pessoas nas escolas. Todo o território das cidades precisam, podem e devem ter o investimento do Estado em condições equânimes, democráticas, com participação e atuação como sujeitos da polis em todas as suas dimensões. Sim, são ações que potencializam a consciência e fazem com que o trabalho coletivo seja uma ação criativa e não uma corrida de mercado para a sobrevivência, como hoje predomina.

    Certamente há vários exemplos de ações a serem avançadas, pois, se há vida precisa haver sustentação para viver e não política de morte. As vidas são diminuídas pela guerra permanente que é imposta pelo poder do lucro. As vidas são diminuídas pela saúde impedida e pela educação que não é disponível para todas as pessoas. A vida é diminuída pelo trabalho que oprime, existe para garantir a sobrevivência e é impedido de ser instrumento de criação pelos poderosos. Portanto uma proposição evidente, assertiva e comprometida como a RENDA BÁSICA INCONDICIONAL E UNIVERSAL é mais que necessária, além de ser possível. Para isso taxar as grandes fortunas e os altíssimos lucros é mais que necessário em escala internacional e nacional.

    Mas agora, no tempo atual, o que precisamos fazer é respirar o oxigênio dos ventos potentes que surgem na América. A maioria das pessoas no Chile derrubaram a constituição autoritária e querem nova embalada pela democracia. A maioria das pessoas na Bolívia escolheram quem tem a cara do povo, inclusive com um senado que tem maioria de mulheres indígenas. A maioria nos EUA barrou a pior faceta do capitalismo e trouxe energia para amaciar a política de morte que é feita pelo Estado Imperialista, decadente e decrépito que força a maioria das pessoas no mundo a viverem menos. Então vamos nos embalar nessa mesma energia e força.

    É sim simbólico, estrutural e materialmente para as pessoas em São Paulo viverem melhor, ter Boulos e Erundina no segundo turno. Uma resposta que amplia os ventos positivos da América. Uma resposta que anima multidões a se organizarem e se sentirem sujeitos da vida. Uma resposta que altera com dignidade, potência e criatividade a correlação de forças no país. A resposta Boulos e Erundina impacta diretamente de forma favorável para a maioria das pessoas que vivem na cidade de São Paulo. Mas é fundamental que tenhamos profunda nitidez que o impacto é favorável na consciência e na vida da grande maioria das pessoas que vivem no Brasil. Essa multidão de explorados, oprimidos e dominados que são sujeitos e como tal precisamos coletivamente nos construir.

    Esse é o desfecho de uma campanha que disputa as cidades: vamos garantir, coletivamente – em uma grande unidade pela vida, pela dignidade humana e pelos direitos – que Boulos e Erundina disputem o segundo turno. Isso será um processo coletivo, amplo, é fundamental que não temos dúvida, com essa resposta favorável, o dia 15 de novembro terá outra marca. A conquista da dignidade e de transformações radicais a favor da vida é necessária e possível!

  • AMPLIAR A EXPLORAÇÃO: OS PODEROSOS QUEREM O BANCO CENTRAL

    AMPLIAR A EXPLORAÇÃO: OS PODEROSOS QUEREM O BANCO CENTRAL

    AMPLIAR A EXPLORAÇÃO: OS PODEROSOS QUEREM O BANCO CENTRAL

    Por Francisvaldo Mendes, presidente da FLCMF

    No Brasil, a tragédia de doação do Banco Central para o setor privado, esta em movimento. Verdade, não é de hoje que os poderosos do capital com seus subalternos do Estado querem fazer essa devastação na vida das pessoas. O ataque feito a Constituição Brasileira, aprovada logo após o Regime militar – sua ditadura assassina – já virou uma colcha de retalhos com mais de cem emendas, para atender aos “poderosos”, e impor a necropolitica sobre a maioria das pessoas. Agora centram o processo destrutivo no sistema jurídico para permitir pisar sobre aquilo que foi talhado como consenso possível em um prazo de só 32 anos, até os dias atuais. Seguem então transformando conquistas e vidas em mercadoria, imposta por quem organiza o poder do Estado; cria-se também um grande mercado. Mercado de tudo, da vida, das eleições, das condições humanas, e agora o Banco Central está nas propagandas para ampliar ainda mais as bases estruturais para os capitalistas. O segundo ato, dessa novela decadente, foi a aprovação no Senado, no dia 3 de novembro de 2020, da autonomia do Banco Central.

    O Senado no Brasil nunca agiu como defesa de uma república, tendo em vista que a tão falada “Res Pública”, a tal coisa do povo, nunca existiu e transformam o povo em coisa, utilizando-se criminosamente do termo. Essa casa, que era para defender e assegurar a república nos discursos mais repetidos, pesa na cronologia do tempo como um instrumento que sustenta o devastador patrimonialismo institucional, racista e machista, que toma a formação social brasileira. Mas agora o Senado foi mais fundo, aprovou e enviou para a Câmara continuar destroçando fragmentos, após a iniciativa da autonomia do Banco Central ter se “apoderado” do atual Governo Central, a tal casa presidencial. A votação no Senado, pode-se dizer, foi simples, afinal com 68 dos 81 senadores, se aprovou mais essa tragédia, com um placar arrasador de 56 votos a favor e 12 contra. Apenas duas, das 16 siglas partidárias que possuem representação no Senado decidiram votar não neste ato de desastre e apenas 3 siglas partidárias votaram não com todos os seus representantes presentes. Eis o Brasil, um país que possui 33 siglas partidárias legalizadas como exigido pelo Estado, com 16 dessas no Senado, apenas representantes de três disseram não para essa devastação da vida.

    Muitas cenas precisam seguir nessa trágica novela brasileira. E mesmo nesse tempo, que poderíamos vibrar por um senado de mulheres, com maioria de mulheres indígenas na Bolívia ou por sinais inspiradores no Chile derrubando a Constituição da ditadura chilena. Seria possível, até mesmo, seguir apreensivos com a onda da COVID e com as eleições nos Estados Unidos da América, imperialismo decrépito no planeta. Mas nessa reta precisamos sim organizar para dizer não a retirada de direitos do povo.

    Não somos mercadoria, não somos objetos, somos, nós povo brasileiro, essa maioria diversificada e múltipla de pessoas que vivem da venda da força de trabalho e só isso possuem para viver. Ou mesmo, nessa condição de pré-história, seguimos como a grande multidão e podemos sim barrar unificados mais essa aposta de devastação imposta pelos poderosos.

    Estamos sim em processo eleitoral nas cidades. No próximo dia 15 de novembro, poucos dias temos pela frente, haverá o momento de votar em executivos e legislativo das cidades. Não é o voto na Câmara, no Senado, no presidente, em deputados estaduais ou governadores. Mas é sim um voto muito importante e que faz muita diferença para a vida das pessoas. Principalmente as pessoas que precisam de direitos para viver e que as escolhas são limitadas pelas condições de não vida imposta pelos donos do capital e a maioria que organiza o poder no Estado.

    O que está em questão, portanto em nosso tempo? Precisamos sim de grande unidade para barrar todos os adeptos do governo central e da necropolitica que ele carrega. Precisamos sim de unidade para fazer com que governos e parlamentos nas cidades construam bases de vida digna em todo o Brasil e os sinais no processo eleitoral, com solidariedade e sabedoria coletiva, são mais que necessários. Precisamos sim de uma grande unidade para que os deputados não sigam as ondas que afogam em morte a grande maioria de brasileiras e brasileiros com a doação do Banco Central, um rabisco indiscriminado da Constituição pós ditadura que foi possível consolidar em 88.

    Vale lembrar que o Banco Central é citado nas letras constitucionais e no ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. E tal processo devastador nessa tragédia de novela, que esmaga tudo que foi possível conquistar e construir em conquistas, após anos de massacre e do formato mais cruel da ditadura, que hoje faz sombra no samba da ignorância, temos que superar unificadamente.

    Nossa unidade ampla, com toda a diversidade e multiplicidade em defesa da vida, grita nas esquinas. Precisamos juntos, todas e todos nós, que somos seres que fazem o trabalho existir como potência, fazer unidades que ampliem e desenhem, em favor do viver, a inteligência coletiva. Em unidade com parlamentares do Congresso Nacional, com organizações da sociedade civil, será possível impedir o seguimento dessa trágica novela e não deixar que o Banco Central do Brasil seja esmigalhado a favor do lucro. Somos potentes, com nossa organização nos tornamos pessoas mais fortes, e com sinais nas eleições e na construção de unidades perenes, vamos fazer com que a marcha das pessoas seja a favor da vida. Este é o nosso grande desafio e que podemos realizar, com consciência e organização, sairemos vencedores dessa estratégica disputa, e manteremos o Banco Central sob o controle do Estado e não dos Bancos.

  • O mundo pós-pandemia se decide agora . Por Gilberto Maringoni

    O mundo pós-pandemia se decide agora . Por Gilberto Maringoni

    O mundo pós-pandemia se decide agora

    A oposição brasileira perdeu duas chances de ouro, mas é possível recuperar o terreno

    Está em curso um enfrentamento entre duas concepções de sociedade. A do mercado representa o aprofundamento do neoliberalismo, com redução de investimentos e a sacralização do darwinismo social. A outra via é a de uma reorientação do papel dos Estados nacionais para que tenham uma intervenção pública e democrática mais efetiva nos rumos da sociedade. A disputa se dá em temas muito concretos na vida do povo

    Por Gilberto Maringoni

    Boa parte da oposição brasileira subestimou dois imensos flancos abertos pelo governo Jair Bolsonaro ao longo de 2020 e buscou atalhos que se mostraram infrutíferos. No primeiro semestre, diante do avanço acelerado do contágio pela pandemia do novo coronavírus – e dos graves prejuízos causados à população – poucas foram as vozes a colocar o combate à doença como centro da tática. O segundo é não ver importância em uma conquista na qual essa mesma oposição teve papel decisivo, a manutenção até o fim da pandemia do auxílio emergencial de R$ 600. Há exceções, claro.

    Os dois temas – doença e dinheiro – tocam o dia a dia e o desespero das maiorias, muito mais do que cinco dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, ou brados de “Fora Bolsonaro” feitos quando o negacionista eleva os índices de popularidade.

    Tanto a denúncia do descaso oficial com a pandemia, quanto a extensão do auxílio emergencial são temas concretos e compreensíveis por todos. A adoção efetiva derruba o principal pilar do modelo econômico fiscalista do governo, o teto de gastos estabelecido por meio da Emenda Constitucional 95. Mais do que tudo, essas batalhas assinalariam a contradição fundamental em pauta no Brasil e no mundo de 2020, as opções entre Estado e mercado. Detalhemos.

    O lugar comum

    Em tempos de pandemia, alguns conceitos têm se tornado ocos de significados, de tão repetidos que são. É o caso de novo normal, utilizado à larga nas análises sobre a realidade pós-2020. O isolamento social, o confinamento e a necessidade de distanciamento pessoal têm gerado modificações comportamentais entre quem pode e quem não pode permanecer em casa, numa atitude defensiva diante de uma enfermidade sem cura conhecida. O apelo à solidão e ao relacionamento remoto tem como principal consequência um forte estancamento da atividade econômica, com crise nas duas pontas da atividade produtiva, a demanda e a oferta. A queda na qualidade de vida é denominada de novo normal, como se fosse destino inevitável para a maior parte da humanidade. O novo normal seria um mundo mais pobre, mais resignado e mais triste.

    A pandemia é e será, por tempo ainda indefinido, o principal problema político do país e do mundo. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço e o recuo da doença dependem de ações humanas

    A doença atinge quase todas as esferas da sociedade. A propagação é rápida, radical e profunda e coloca para a coletividade, acima de tudo, a oposição entre alternativas individuais e coletivas, ou privadas e públicas ou, ainda, soluções de mercado e de Estado.

    No caso brasileiro, estabeleceu-se a banalização da tragédia (veja “Naturalizamos o horror?”, de Maria Rita Kehl, nesta edição), assimilada como parte da paisagem após meses de informações e orientações desencontradas. Algo semelhante ocorre com a violência que se tornou fenômeno aparentemente insolúvel. O país é um dos mais perigosos do planeta e os indicadores chegam a ser superiores aos de regiões em guerra. A brutalidade, assim como o novo coronavírus, tem aqui a dramática PPP. Ou seja, atinge preferencialmente pobres, pretos e periféricos. Apesar do drama humano, são tristezas com reduzida influência em círculos de poder e dinheiro de uma sociedade estupidamente desigual. Pandemia e violência geram estatísticas mais do que lágrimas e indignação.

    A naturalização – ou banalização – do horror marca em cheio o mundo político-institucional. Apesar da abnegação de profissionais de saúde pública e de poucas e honrosas exceções, a naturalização atinge o poder central, com o inesquecível brado “E daí?”. A indiferença alcança ainda instituições de Estado, partidos políticos e a grande mídia. Assistimos cada vez mais o noticiário sobre a saúde ser deslocado para o rodapé dos veículos de comunicação e a perder importância na agenda nacional.

    Tanto a denúncia do descaso oficial com a pandemia, quanto a extensão do auxílio emergencial são temas concretos e compreensíveis por todos. A adoção efetiva do auxílio derruba o principal pilar do modelo econômico fiscalista do governo, o teto de gastos estabelecido por meio da Emenda Constitucional 95. Mais do que tudo, essas batalhas assinalariam a contradição fundamental em pauta no Brasil e no mundo de 2020, as opções entre Estado e mercado

    Por que isso acontece? Difícil saber ao certo, mas há algumas pistas. A dimensão quase totalizante da doença parece intimidar o comando de instituições, partidos, associações e organizações sociais.

    Durante a crise de 2008, dizia-se nos EUA que certos bancos seriam “grandes demais para quebrar”. Diante dos pesos definidores na economia, o Estado não poderia deixá-los falir. Parece haver agora, face à pandemia, a sensação de que esta seria “grande demais para se enfrentar”, gerando uma impotência que forçaria todos a se desviarem do tema em busca de tarefas tangíveis para seguirem “fazendo alguma coisa”.

    A pandemia é e será, por tempo ainda indefinido, o principal problema político do país e do mundo. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço e o recuo da doença dependem de ações humanas. Em outras palavras, depende de movimentações não naturais. Defesa do isolamento social, dinheiro nas mãos das pessoas, financiamento para empresas, injeção maciça de dinheiro no SUS, testagens em massa e outras são iniciativas de Estado. Sublinhando, iniciativas de Estado e não de mercado.

    “Estamos em guerra”

    Em 16 de março, o presidente francês Emmanuel Macron fez um pronunciamento televisivo de pouco mais de 20 minutos. Por seis vezes, a pontuar o ritmo da fala, o chefe do palácio do Eliseu repetiu: “Estamos em guerra”.

    O mote guerra, a partir daí, disseminou-se pela Terra, sendo repetido não apenas por políticos, como por sanitaristas. Até mesmo o ministro da Defesa do Brasil, general Fernando Azevedo e Silva, afirmou, em 16 de abril: “Estamos em uma guerra e o Exército está nela”. Bravata, como se sabe. As Forças Armadas brasileiras entraram na guerra por meio de uma polêmica intervenção no ministério da Saúde, que prima pela inoperância, pelo empreguismo e por não traçar nenhuma estratégia sanitária nacional. O Exército brasileiro demonstra não ter a menor noção do que signifique um conflito de grandes proporções. Seus generais sabem do que se trata por meio de filmes de Quentin Tarantino ou Steven Spielberg.

    O combate a uma pandemia para a qual não existe vacina ou cura tem de ser pensado, antes de mais nada, como disputas de tempo, espaço e território. Só se enfrenta a Covid-19 se o conhecimento do deslocamento geográfico presente e futuro for o mais detalhado possível

    Apesar disso, a metáfora lançada por Macron tem razão de ser. Em termos formais, uma pandemia é muito diferente de uma guerra. Nesta, o objetivo é matar pessoas, na pandemia, a meta é salvar pessoas. No entanto, só se pode combater infecções de larga expansão territorial por meio de um tipo de mobilização política e social semelhante à de uma união nacional contra agressão externa.

    Em ambos é necessário um comando nacional único e centralizado, capaz de mobilizar e coordenar ações de três níveis do Estado – nas áreas de informação, crédito, financiamento, redes de saúde, educação, pesquisa, assistência social e forças armadas – e da iniciativa privada – comércio, indústria e serviços, com destaque para transportes -, além de entidades associativas.

    A maneira mais eficiente de se combater o coronavírus é encará-lo como um exército invasor contra o qual uma multiplicidade de forças nacionais pede comando centralizado, ofensivas convergentes, emulação popular e unidade de ação

    O vírus se move geograficamente, ocupando espaços e territórios. Embora o atendimento médico na fase aguda da doença seja individualizado, o controle do ataque viral demanda ação pública e coletiva. O isolamento social e territorial só pode ser aventado mediante operações de compensação e transferência de renda que supram necessidades básicas da população em períodos de suspensão de atividades econômicas. Secundariamente, o confinamento físico apenas é factível por meio da adoção de táticas e logísticas militares, eficientes campanhas de esclarecimento popular e dinheiro nas mãos das pessoas.

    Disputas de tempo, espaço e território

    Ressalte-se: o combate a uma pandemia para a qual não existe vacina ou cura tem de ser pensado, antes de mais nada, como disputas de tempo, espaço e território. Só se enfrenta a Covid-19 se o conhecimento de seu deslocamento geográfico presente e futuro for o mais detalhado possível. Dessa maneira se traçam normas de isolamento.

    O conhecimento e o domínio do espaço geográfico se mostram essencial para uma ação integrada no combate à doença, que só é factível por meio de iniciativas estatais coordenadas. No Brasil e nos Estados Unidos – países nos quais a Covid-19 fugiu de controle – as soluções adotadas foram descentralizadas, desiguais e com uma multiplicidade contraditória de procedimentos. Em síntese, nos dois países, uma lógica análoga à anarquia de mercado se sobrepôs às necessidades da saúde pública. No mercado vigora a concorrência sem regras, na ação pública, ao contrário, a matriz pode ser cooperativa.

    Voltemos ao paralelo bélico. A maneira mais eficiente de se combater o coronavírus é encará-lo como um exército invasor contra o qual uma multiplicidade de forças nacionais pede comando centralizado, ofensivas convergentes, emulação popular e unidade de ação.

    Tentar vislumbrar o mundo pós Covid-19 em meio à propagação incontrolável – no caso brasileiro – é um exercício de alta abstração. Como os conflitos sociais estão em curso, é difícil realizar análises prospectivas confiáveis. Projeções do FMI avaliam que o resultado imediato será a maior recessão global em um século

    O mapeamento da ocupação só pode ser realizado por uma rede pública e nacional de saúde fortalecida. No caso concreto do Brasil, a ação estatal teria a vantagem de contar com a decisiva atuação da rede pública e capilarizada do Sistema Único de Saúde (SUS).

    A tática de defesa precisa envolver, ademais, recursos ilimitados e a fundo perdido (em especial para que se garanta o funcionamento da economia, com dinheiro nas mãos das pessoas e créditos para as empresas), campanhas educativas e restrições à mobilidade, para garantir o isolamento social. As intervenções demandam ação militar e sanitária, além de investimentos emergenciais em pesquisa, compra de equipamentos, montagens de hospitais, pronta resposta, transparência de decisões entre outros. A difusão da ideia de agressão externa e de Pátria em perigo, típica de conflitos bélicos, torna-se fundante. Sem mobilização e engajamento social não se enfrenta a pandemia. O clima de new deal mais economia de guerra é essencial para uma empreitada desse tipo.

    O exemplo chinês

    Foi com iniciativas desse quilate que a China obteve êxito em mitigar a propagação da Covid-19. Pode-se alegar que o país é governado por uma ditadura há 70 anos, motivo pelo qual uma dinâmica articulada nos moldes acima enunciados é factível. O mesmo não seria possível em um regime de liberdade.

    A alegação é enganosa. Grandes democracias enfrentaram guerras cruentas sem perder a pluralidade política. Vamos repetir mais uma vez: a questão a ser colocada não é entre ditadura e democracia, mas entre mercado e ação estatal.

    No Brasil, sem nenhum planejamento ou controle centralizado e com um discurso negacionista por parte do presidente da República – que contamina a sociedade -, o contágio obedece um roteiro de manual de luta de classes. Das zonas urbanas de remediadas a peste migra e se consolida entre regiões pobres, bairros de periferia e favelas, numa escalada devastadora.

    Como ficará o mundo do trabalho pós-pandemia, quando os trabalhadores e empresários do setor de serviços descobrirem ser possível estabelecer o home office como modalidade permanente? É possível que num futuro breve, segmentos da atividade industrial – a partir da chamada revolução 4.0 e do desenvolvimento da internet das coisas – possam também ser desenvolvidos a partir de casa

    A doença colide com a economia internacional como força externa a ela e põe em questão parâmetros da globalização neoliberal estabelecidos nas últimas quatro décadas. Se o surgimento da Covid-19 faz parte das condições objetivas da realidade, o desenvolvimento, o deslocamento e o contágio estão subordinados – impulsionados ou bloqueados – por condições subjetivas, as ações humanas. É aqui que a doença se insere na esfera política e funciona como ferramenta para se alterarem regras estabelecidas, acelerando o desenlace de tensões que estavam em andamento. Nos últimos quarenta anos, espalharam-se pelo mundo políticas de cortes de orçamentos públicos como um fim em si e como passaporte seguro para que um dia, quem sabe, os países voltem a crescer. Com a Covid-19, a urgência de políticas anticíclicas e investimentos maciços em saúde torna a ideia de rigidez fiscal e contração monetária um contrassenso total.

    No caso do Brasil, o vírus colhe em cheio uma economia fragilizada por sucessivas decisões ultraliberais tomadas desde, pelo menos, 2015. Todas tiveram como métrica a cantilena privatizante e antiestatal, com a elevação dos ajustes fiscais à categoria de eixos estruturantes da sociedade.

    O resultado para o país é a mais profunda depressão da história republicana, o maior aumento da taxa de desemprego em um curto espaço de tempo – ela praticamente dobra entre dezembro de 2014 e março de 2016 – e a mais lenta recuperação econômica em mais de um século. A economia passa a funcionar num cenário de semiestagnação, desemprego de dois dígitos, baixo ativismo estatal e desindustrialização perene. Consolida-se a alta produtividade do setor agroexportador como polo dinâmico da economia, numa volta à situação pré-1930, quando o país exibia uma economia predominantemente rural. A essa anomalia planejada também se denominou novo normal.

    Aumento de gastos

    Tentar vislumbrar o mundo pós Covid-19 em meio à propagação incontrolável – no caso brasileiro – é um exercício de alta abstração. Como os conflitos sociais estão em curso, é difícil realizar análises prospectivas confiáveis. Projeções do FMI avaliam que o resultado imediato será a maior recessão global em um século.

    O governo Bolsonaro coloca na mesa uma escolha de Sofia como alternativas à crise, a oposição entre salvar vidas ou salvar a economia, como se economia não precisasse de seres vivos e estes, daquela.

    Mesmo assim, o governo foi forçado a adotar o chamado orçamento de guerra, por meio de emenda constitucional promulgada no início de maio. A medida na prática acabou com restrições orçamentárias no combate à doença e permitiu que se rompesse o chamado teto de gastos, definido a partir de 2017.

    Qual tem sido a solução generalizada para manter a demanda efetiva ao redor do mundo? Aumento dos gastos, investimentos públicos e emissão monetária sem preocupação imediata com déficits são a norma, mesmo em países governados pela direita neoliberal. No início de junho, o Banco Central Europeu anunciou um gigantesco programa de desembolsos da ordem de 1,35 trilhão de euros, algo próximo a 80% do PIB brasileiro. No final do mês seguinte, líderes da União Europeia chegaram a um novo acordo para um programa de recuperação econômica de mais 750 bilhões de euros.

    Formou-se um aparente consenso entre especialistas de variadas correntes: “Até economistas tidos como falcões do fiscalismo tendem a apoiar gastos emergenciais agora e alguns querem mesmo ampliá-los”, afirmou a Economist, em 24 de abril de 2020.

    Na crise de 2008, os cofres dos tesouros nacionais da maioria dos países também foram escancarados para salvar as economias. Ao longo da década seguinte, tendências protecionistas no mercado internacional ganharam forte apelo político-eleitoral. Reapareceu um discurso antiliberal de direita em defesa dos negócios e dos empregos, como não se via desde a II Guerra.

    Sairemos da pandemia com a adoção de práticas keynesianas e anticíclicas por parte dos Estados, com planejamento e investimentos públicos em alta? Ou deixaremos a superação das múltiplas crises em andamento aos imponderáveis desígnios da mão invisível do mercado? Teremos um novo normal? Ou teremos novos normais como possibilidades múltiplas, a depender dos enfrentamentos em curso? Estamos num ponto incerto do turbilhão, sem conhecer o ciclo vital de um vírus que avança com velocidade inusitada. Teremos a volta a algum tipo de regime de substituição de importações e consequente reconversão industrial? Ou seja, de volta ao Estado indutor, planejador e financiador?

    O exercício de se prever o mundo pós-pandemia tem muito de achismo. Depende dos rumos e ritmos da luta política entre partidários da ação estatal e mercadistas, já comentados. A fragilidade do mercado como organizador social fica evidente, mas tal disfunção por si só não engendra a superação. É difícil vislumbrar a existência de força política capaz de construir tal ultrapassagem.

    O trabalho pós-pandemia

    Como ficará o mundo do trabalho pós-pandemia, quando os trabalhadores e empresários do setor de serviços descobrirem ser possível estabelecer o home office como modalidade permanente?

    É possível que num futuro breve, segmentos da atividade industrial – a partir da chamada revolução 4.0 e do desenvolvimento da internet das coisas – possam também ser desenvolvidos a partir de casa. O que o insulamento perene dos trabalhadores implicará para o convívio social?

    Várias modalidades de trabalho não necessitam mais de lugar fixo. O exemplo pioneiro vem das empresas de call center, que montaram bases em regiões marcadas por incipiente organização sindical, o que lhes permitiu pagar salários muito baixos, com vínculos flexíveis de emprego. Agora, percebe-se que um sem número de atividades prescinde de funcionários baseados em uma única cidade ou mesmo um único país. Uma verdadeira guerra pela redução dos custos do trabalho pode se estabelecer de forma ainda mais acentuada do que na atualidade.

    Não é mais necessário exportar capitais na forma de escritórios ou centros de prestação de serviços em busca de mão de obra e preço da terra mais baratos. Um laptop e conexão estável de internet resolvem tudo. Claro que as empresas deverão externalizar os custos de energia, comunicação e espaço físico para milhares de lares espalhados ao redor do planeta. O trabalho absorverá custos até aqui de responsabilidade do capital.

    Sairemos da pandemia com a adoção de práticas keynesianas e anticíclicas por parte dos Estados, com planejamento e investimentos públicos em alta? Ou deixaremos a superação das múltiplas crises em andamento aos imponderáveis desígnios da mão invisível do mercado?

    Edifícios inteiros podem ser esvaziados, bairros comerciais tendem a se tornar zonas fantasmas, com evidentes impactos deflacionários sobre o preço da terra. As empresas de transporte – urbanas, interurbanas e internacionais – terão menos demanda, assim como grandes espaços desenhados para convenções e encontros. Os deslocamentos serão reduzidos, o raio de ação das pessoas poderá ser menor, as viagens serão cada vez menos urgentes. A globalização das coisas – parafraseando Robert Kurz – se imporá em detrimento da globalização humana.

    O novo normal do mercado teria assim o condão de reconfigurar também o espaço de forma radical. A encruzilhada aponta dois caminhos. O do mercado – descrito linhas atrás – representa o aprofundamento do neoliberalismo, com maior redução de custos de produção e de trabalho, eliminação de ramos inteiros de atividades e a eternização da precariedade, do aumento das desigualdades e do caos social.

    A outra via é a de uma reorientação tectônica do papel e da função dos Estados nacionais num mundo pós-catástrofe. Essa opção abre esperanças para as maiorias. A escolha resultará de um profundo conflito no terreno da política.

    A possibilidade de os setores progressistas terem voz e vez nesse imenso enfrentamento demanda fazer escolhas corretas, como mencionado no início. Implica abraçar pautas que toquem a vida das maiorias, como a centralidade política da pandemia e a continuidade do auxílio emergencial.

    Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).

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  • A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    Em breve teremos a disputa jurídica mais importante do ano. Não haverá muito espaço para “jeitinho” nesse processo no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos ministros daquela Corte. Se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato

    Por Valério Arcary

    Antes do anúncio da aposentadoria de Celso de Melo, parecia que o julgamento do Habeas Corpus de Lula na segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deveria acontecer até o final de outubro. Agora, ninguém sabe.

    Será o julgamento político mais importante do ano. Há muitas tecnicalidades jurídicas em disputa, mas, em traços gerais, dois desenlaces possíveis. Ou Lula perde o HC e não poderá ser candidato em 2022, ou Lula recupera os direitos políticos e, se quiser, passa a ser pré-candidato. Portanto, esse julgamento remete à questão do poder e consiste, do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sérgio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do HC de Lula corresponde à anulação das sentenças, e o desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto.

    O julgamento consiste do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sérgio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do Habeas Corpus de Lula corresponde à anulação das sentenças e ao desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto

    O desfecho sempre foi imprevisível, porque as consequências são imensuráveis. Depois de tudo que aconteceu no Brasil, depois do golpe institucional, seria ingenuidade imperdoável subestimar a pressão da fração majoritária da classe dominante para manter a condenação de Lula.

    Depende da iniciativa de Gilmar Mendes colocar em pauta. Considerando uma provável antecipação dos votos na segunda turma, o julgamento estaria, neste momento, empatado, o que significaria que a sentença seria pró-réu. Toffoli deve substituir Celso de Melo na segunda turma. O que poderia sugerir um resultado ainda melhor, menos contestável. Mas a máxima gravidade desse desenlace exige considerar a possibilidade que a decisão seja levada ao Plenário. A indicação do substituto de Celso de Melo por Bolsonaro introduz ainda mais incerteza.

    Há, portanto, uma possibilidade, mas nada será assim tão simples.

    Posição na classe dominante

    Se Lula não fosse ainda um candidato competitivo nas eleições de 2022, a possibilidade de recuperação plena de seus direitos políticos seria muito maior. A interdição dele é uma posição majoritária na classe dominante, mesmo nos círculos que admitem os abusos de poder da operação Lava-Jato. Ela obedece, neste momento, a um cálculo de que a candidatura de Lula tornaria um segundo turno contra Bolsonaro uma grande possibilidade.

    Ainda que qualquer um dos cinco ministros da segunda turma possa, eventualmente, mudar os votos, a decisão parece estar nas mãos de Toffoli, porque já se sabe que Lewandowsky e Gilmar Mendes, em princípio, votarão a favor do HC, e Carmem Lúcia e Edson Fachin votarão contra.

    O PSOL defende os direitos democráticos de Lula, mas não aprova nem defende o balanço dos governos liderados pelo PT, portanto, não apoiará Lula. Em 2022, o partido voltará à disputa com candidatura própria. Não há qualquer contradição nessa localização, porque compreendemos que Sérgio Moro liderou uma perseguição política, não um julgamento

    Se Toffoli desempatar a favor do HC de Lula, não é impossível que uma decisão final possa ser transferida, hipoteticamente, para o Plenário do STF, com Luís Fux, um defensor da operação LavaJato, na presidência do STF. No plenário há alguma incerteza, porque cinco dos onze ministros já votaram no passado, criticamente, face à Lava-Jato, embora sobre temas menos controversos: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, e Dias Toffoli. Incerto, duvidoso e até improvável, porque o substituto de Celso de Melo foi nomeado por Bolsonaro.

    A incerteza resulta da ruptura de Bolsonaro com Sérgio Moro. Assistimos, depois da posse de Augusto Aras na Procuradoria Geral da República (PGR), a um esvaziamento do poder do núcleo de Curitiba.

    A operação e seu contexto

    A operação LavaJato só pode ser compreendida em contexto histórico. Há na esquerda, essencialmente, duas posições sobre o seu significado.

    Há a interpretação de que foi uma operação progressiva no combate à corrupção, impulsionada pelo engajamento republicano de uma nova geração de procuradores e juízes, ainda que tenha cometido excessos na exploração de delações premiadas, e transgredido os limites de procedimentos com conduções coercitivas e prisões preventivas.

    Quem defende essa análise secundariza o impacto da LavaJato na ofensiva reacionária que passou pelo impeachment de Dilma Rousseff, posse de Temer, condenação de Lula, e que culminou na eleição de Bolsonaro. Essa posição tem representação minoritária no PSOL e, surpreendentemente, até no próprio PT. Ela traduz o grau de adaptação política e ideológica à institucionalidade do regime democrático-eleitoral, e a pressão da maioria das camadas médias.

    Há a interpretação de que foi uma operação política orientada, desde o início, no contexto aberto pelas mobilizações abertas em junho de 2013, e da disputa eleitoral de 2014, por uma estratégia de deslocamento do sistema de partidos consolidado na Nova República, e de uma perseguição à direção do PT, e criminalização de Lula.

    Quem defende essa interpretação sublinha que sem a LavaJato teria sido muito difícil, senão impossível, o alcance de milhões das mobilizações pelo impeachment, e o caminho aberto para a extrema direita em 2018. Essa posição é majoritária no PT, PSOL e PCdoB e revela um mínimo instinto de classe, e até de sobrevivência política diante do que foi o golpe institucional de 2016 e o deslocamento das camadas médias para a extrema direita, que se expressou na vitória eleitoral do neofascista Bolsonaro.

    Sem jeitinho

    Não haverá muito espaço para um “jeitinho” para esse julgamento no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos juízes do STF, pois se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato.

    A ruptura de Sérgio Moro com o governo teve como consequência um processo no STF em que Bolsonaro é acusado de tentar intervir na Polícia Federal, portanto, abuso de poder. Não devemos diminuir, tampouco, a censura que Dallagnol recebeu no Conselho Nacional de Justiça. Mas as divergências de projetos políticos colocaram a judicialização da luta política em outro patamar com a iniciativa de Aras de concentrar na PGR em Brasília todas as operações contra a corrupção, esvaziando Curitiba.

    Ensina a sabedoria popular, não se fazem omeletes sem quebrar ovos. O PSOL, quando sua candidatura não alcançar o segundo turno, estará firme e ao lado da postulação de esquerda melhor colocada. Assim, como esperamos que o restante da esquerda esteja ao nosso lado, quando for necessário

    A percepção de que a “Lava-Jato já fez o que deveria ser feito” e foi até longe demais, ou uma combinação de pressão do bolsonarismo e malestar no centrão vem crescendo no Congresso. PSDB, MDB e DEM já foram atingidos pela Lava-Jato e continuam acossados porque Serra e Alckmin voltaram às manchetes e terão dificuldades de escapar, junto a Aécio, de uma condenação, pelo menos de formação de caixa dois, senão enriquecimento pessoal ilícito, o que é mais grave.

    O próprio bolsonarismo assumiu um questionamento aos procuradores da LavaJato, pela iniciativa da PGR sob o comando de Aras. O que sinaliza que Bolsonaro prefere um segundo turno em 2022 contra Lula, e não contra Sérgio Moro ou Dória.

    A sobrevivência de Bolsonaro

    A classe dominante está dividida, mas parece incontornável que, se Bolsonaro conseguir sobreviver até 2022, deverá chegar ao segundo turno. Uma maioria da burguesia trabalha, portanto, para evitar que a esquerda possa chegar ao segundo turno.

    Naquelas frações que apostam em uma candidatura de Sérgio Moro ou de Dória, ou de outro como Luciano Huck, prevalece a perspectiva de que a gravidade da crise social, assim que o colchão do auxílio emergencial for suspenso, mesmo se for substituído pelo Renda Brasil, impede que a esquerda, em especial, se Lula puder ser candidato, seja excluída de um segundo turno. Portanto, liquidaria a possibilidade de uma candidatura liberal contra Bolsonaro, porque o lugar de Moro e Dória, diante da polarização, seria semelhante ao de Alckmin. Logo a interdição de Lula é estratégica.


    Foto:Francisco Proner

    O PSOL defende os direitos democráticos de Lula, mas não aprova nem defende o balanço dos governos liderados pelo PT, portanto, não apoiará Lula. Em 2022, o PSOL voltará à disputa com candidatura própria. Não há qualquer contradição nessa localização, uma vez que compreendemos que Sérgio Moro liderou uma perseguição política, não um julgamento. O que foi feito pela LavaJato em Curitiba contra Lula foi uma aberração jurídica. Se fizeram contra Lula, podem fazer contra qualquer um.

    Apresentamos Boulos no primeiro turno, em 2018, e estivemos, no segundo turno, na primeira linha da campanha de Haddad. Discordamos da estratégia que o PT, quando esteve no governo federal, desenvolveu e que, finalmente, fracassou quando foi necessário medir forças contra o impeachment. Ensina a sabedoria popular, não se fazem omeletes sem quebrar ovos.

    Mas, apesar das diferenças com o PT, o PSOL – quando sua candidatura não alcançar o segundo turno – estará muito firme ao lado da candidatura de esquerda melhor colocada. Assim, como esperamos que o restante da esquerda esteja ao nosso lado, quando for necessário. Estamos em um mesmo campo de classe.

    Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP e Doutor em história pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98 e, desde 2016, é membro da Coordenação Nacional do MAIS/PSOL. É autor de O martelo da história, entre outros livros.

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  • CONSTRUIR A CONSCIÊNCIA DE CLASSE NAS ELEIÇÕES

    CONSTRUIR A CONSCIÊNCIA DE CLASSE NAS ELEIÇÕES

    CONSTRUIR A CONSCIÊNCIA DE CLASSE NAS ELEIÇÕES

    Por Francisvaldo Mendes, presidente da FLCMF

    O período das campanhas eleitorais é sempre um grande desafio para as organizações socialistas. De um lado fazer da campanha um grande espaço de participação e formação política para ampliar a consciência, de outro assumir espaço no Estado para conquistar fissuras que ampliem as contradições do capitalismo e melhorem as condições de vida das pessoas. Essas pessoas são justamente as que vivem da venda da força de trabalho e só a venda da força de trabalho possuem para sobreviver. Ou seja, são pessoas que precisam dos salários, na maioria das vezes insuficientes, e contam com condições de vida na cidade que não sustentam estruturalmente A VIDA. Nos setores populares, em toda grande periferia do Brasil, vive-se falta de esgoto, água potável, moradia, além de condições absurdas de transporte, de empregos e baixo acesso (ou quase nenhum) para o tratamento das doenças e para a formação escolar. Esse é o quadro predominante da maioria dos locais. O olhar para essas pessoas, o grupo social ao qual fazemos parte, que nós do PSOL devemos estar dedicados politicamente, inclusive nas eleições.

    O PSOL, como partido comprometido com o projeto político socialista e libertário, atuante e fortalecedor da democracia popular, possui grandes desafios. Com a pandemia aparece facilmente informações que atingem diretamente os setores mais fragilizados estruturalmente na sociedade. Enquanto os lucros dos grandes afortunados aumentam, são também ampliados o desemprego, que em julho deste ano chegou na maior taxa desde 2012 com 13,8, atingindo mais de 13 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Afinal, essas pessoas, na grande maioria negras, que vivem todos os tipos de discriminação socio cultural, são as mais impactadas. O racismo e o machismo que em nosso país possui contornos estruturais e institucionais e desenha a fisionomia do capitalismo dependente, tardio e concentrador do país, predominam sim com peso de morte em nosso povo.

    Não há dúvidas que negras e negros, indígenas, nordestinos, sofrem impactos dos mais duros na condição de classe, assim como é evidente que as mulheres são as mais impactadas pelo avassalador sexismo, que com força de preconceito voraz, e pelo machismo que massacram todas as singularidades humanas. E, nesse sentido, nos é evidente e não podemos deixar de perceber, entender e sentir que as pessoas que socio historicamente construíram as identidades LGBTIQIA+ sofrem os impactos autoritários da discriminação e dos preconceitos que tomam toda a superestrutura brasileira. Os desafios do nosso partido com essa realidade, impactada por variadas formas de opressão, que impõem às pessoas viverem as múltiplas formas de dominação organizadas pela superestrutura do Estado capitalista, são de grande vulto para serem superadas coletivamente na sociedade atual.

    Não temos dúvidas que nesse contexto a construção da consciência de classe, com toda a diversidade que costura nosso povo, com liberdade e participação ativa na práxis política é nosso caminho. O grupo social de milhões e milhões de pessoas que vivem da venda da força de trabalho, impedidas de fazer do trabalho a expressão da potência humana e forçadas a vender a força de trabalhar como mercadoria, é o que nos faz existir, o que nos sustenta e quem precisa estar entre nós dirigindo e conduzindo os rumos dessa história. Para isso, também não há dúvidas, que investir na formação e organização da consciência de classe costurada por toda as singularidades humanas é a nossa esteira para construir uma sociedade socialista, libertária e profundamente democrática no Brasil.

    Nós vamos sim mudar essa história e esse é o projeto político do PSOL. Não temos dúvidas, durante as disputas eleitorais, que as campanhas que unificam a formação de classe e apostam no crescimento da consciência e na unidade de classe, para enfrentar e superar toda a diversidade impostas pelas opressões superestruturais que amargamos, são elementos fundamentais em nosso projeto coletivo. Assim afirmamos que essa vocação, na esteira da formação e ampliação da consciência de classe, é, e deve ser, fundamental em todas as candidaturas do PSOL, com as várias contribuições singulares que cada pessoa ou sub grupo social possui. São justamente as que já almejam esse patamar de superação de todas as formas de exploração e opressão, com um projeto político que supera o capitalismo, os pilares para nosso crescimento como partido e para que possamos acumular forças para a superação do capitalismo. Nós atuamos – e vamos seguir atuando – para que todas as campanhas construam o acolhimento e a unidade com formação política e compreensão de que nossa formação em classe, com consciência e atuação revolucionária, é o vetor de mudança que precisamos para a vida superar as políticas de morte que tomam o mundo, a América Latina e o Brasil. Vamos fazer das eleições mais um portal de elevação e consciência e conquistar, nas disputas e nos exercícios de mandatos futuros, um novo tempo com dignidade na vida.

  • A eleições nos EUA e a crise: resultado terá reflexos globais . Por Carlos Eduardo Martins

    A eleições nos EUA e a crise: resultado terá reflexos globais . Por Carlos Eduardo Martins

    A eleições nos EUA e a crise: resultado
    terá reflexos globais . Por Carlos Eduardo Martins

    Donald Trump lançou nos últimos anos um imperialismo unilateral e chauvinista, que descartou a articulação do consenso neoliberal e as políticas de hegemonia. Ele lançou mão do poder do Estado norte-americano para desmontar as pressões competitivas da globalização. Usou a força não apenas contra adversários, como China e Rússia, mas também contra aliados, como os países da União Europeia, México e Canadá. Com resultados econômicos pífios, em boa parte, devido à pandemia, pode ser derrotado pela oligarquia financeira democrata. Um sério golpe para a direita global

    Por Carlos Eduardo Martins

    Desde a pós-guerra, em 1945, a reeleição presidencial foi a norma nos Estados Unidos. Apenas quatro vezes um presidente estadunidense não conseguiu a reeleição. O primeiro foi Richard Nixon, eleito em 1972, que sofreu o impeachment numa conjuntura crítica de derrota no Vietnã, ascensão dos movimentos sociais e escândalo de Watergate. O segundo foi Gerald Ford, o vice e sucessor de Nixon, derrotado em 1976. Jimmy Carter, que vencera Ford, perdeu para Reagan em 1980, no contexto das revoluções iraniana, nicaraguense e da elevação dos preços internacionais do petróleo. Por fim, George Bush pai, eleito em 1988, foi superado por Bill Clinton em 1992, beneficiado pela candidatura antiglobalista e conservadora do multimilionário Ross Perot, que atingiu 18,9% dos votos.

    A globalização neoliberal já vinha em acelerado processo de desgaste nos anos 2010. A recuperação econômica da crise de 2008-09 foi medíocre nos Estados Unidos e na União Europeia. O comércio internacional não se projetou à frente do crescimento do PIB, e os fluxos internacionais de capitais entraram em declínio a partir de 2015

    Todavia, o colapso da globalização neoliberal, disparado pela pandemia da Covid-19, atinge em cheio a economia estadunidense, criando um novo cenário na conjuntura política, social e ideológica dos Estados Unidos. Isso se manifesta no decrescimento agudo do comércio e dos fluxos internacionais de capital, do produto mundial, e no abandono das políticas de austeridade e em favor das políticas sociais e de sustentação do setor produtivo. Tal colapso, que pode ser provisório, é o resultado, entretanto, de movimentos profundos. Nossa hipótese é a de que expressa a combinação entre o esgotamento da fase A, do ciclo de Kondratiev, iniciada em 1994; a entrada numa fase aguda da crise de hegemonia dos Estados Unidos; e a crise ambiental, função de sua incapacidade para desenvolver uma nova etapa da revolução científico-técnica, centrada num paradigma biotecnológico, intensivo em saúde pública, preservação e regeneração ambientais.

    Sobreposição de crises

    A globalização neoliberal já vinha em acelerado processo de desgaste nos anos 2010. A recuperação econômica da crise de 2008-09 foi medíocre nos Estados Unidos e na União Europeia. O comércio internacional não se projetou à frente do crescimento do PIB, e os fluxos internacionais de capitais entraram em declínio, a partir de 2015, sem alcançar os níveis de 2007.

    A eleição de Donald Trump representou a reação à estratégia neoliberal de inserção dos Estados Unidos na economia mundial que acelerou a desindustrialização, os déficits comerciais, o endividamento público com estrangeiros, a desigualdade, a pobreza e o desemprego. Sua pretensão é a de reverter o declínio industrial e tecnológico dos Estados Unidos, em especial, em favor dos novos polos de poder como a China, no plano econômico, e a Rússia, no plano militar. Para isso, lançou um imperialismo unilateral e chauvinista, que descartou a articulação do consenso neoliberal e as políticas de hegemonia e reivindicou a força do Estado norte-americano para desmontar as pressões competitivas da globalização, usando-a não apenas contra adversários, como China e Rússia, mas também contra aliados, como os países da União Europeia, México e Canadá, ou organismos multilaterais como a OMC e a OMS.

    Guerra comercial

    Trump abriu uma guerra comercial contra a China, impôs sanções contra suas empresas, pressionando outros Estados a replicarem-nas para isolá-la na disputa sobre a fronteira tecnológica. Ao fazê-lo aproximou-a da Rússia, a quem impôs dezenas de sanções, para conter seus projetos geopolíticos, fortalecendo indiretamente as aspirações de um projeto eurasiano. Todavia, ele não rompeu com a globalização financeira e nem com diversas dimensões do neoliberalismo: removeu parte das regulações estabelecidas no governo Obama sobre o setor financeiro e os rentistas, reduziu a carga tributária sobre as grandes corporações, ampliou os gastos militares, elevou as taxas de juros e ampliou o déficit público.

    O alto nível de endividamento do Estado norte-americano e de suas empresas contrastam com o baixo nível do chinês e suas empresas estatais, o que amplia o espaço de atuação e a eficiência do regime de acumulação sinocêntrico em relação ao estadunidense

    Os resultados alcançados por Trump foram muito limitados. Ele não impediu que avançasse a deslocalização das empresas estadunidenses, que as chinesas as superassem na lista das 500 da revista Fortune e que a pequena redução do déficit comercial norte-americano se desse às custas de um profundo desgaste de sua liderança mundial e de uma escalada de conflitos internos com o segmento mais transnacional do setor produtivo.

    Todavia, a diminuição do desemprego, iniciada no segundo mandato de Obama, apesar de um leve crescimento na desigualdade, dava-lhe a dianteira nas pesquisas eleitorais e um protagonismo político centrado em torno do eleitorado branco conservador e da defesa violenta de suas prerrogativas contra a competição exercida pelo imigrante e pelo multiculturalismo sobre os postos de trabalho e a hegemonia cultural norte-americana. Tal cenário foi suplantado pela Covid-19 que transformou os Estados Unidos no novo epicentro de uma crise mundial, evidenciando as debilidades estruturais de sua economia, a gestão desastrada e a liderança incauta política de Trump, acelerando o declínio de seu poder no sistema mundial.

    Alto endividamento

    O alto nível de endividamento do Estado norte-americano e de suas empresas contrastam com o baixo nível do chinês e suas empresas estatais, o que amplia o espaço de atuação e a eficiência do regime de acumulação sinocêntrico em relação ao estadunidense, cada vez mais pressionado pela contradição da desproporção da expansão entre os ativos financeiros e o PIB. Tal desproporção foi financiada, desde o giro neoliberal dos Estados Unidos, nos anos 1980, com expansão do endividamento público e privado internacional, o que se manifestou no crescimento mais que proporcional dos pagamentos ao resto do mundo que das receitas, reciclados em novas entradas pela financeirização.

    Senador por Delaware, de 1973 a 2009, Joe Biden representa a tradicional oligarquia centrista democrata tendo apoiado o bombardeamento do Kosovo e a guerra contra o Iraque. Buscará cooptar os movimentos sociais para aceitarem a política do establishment liberal

    Entretanto, se é correta a hipótese de que estamos em um ponto de inflexão para uma fase B de um ciclo de Kondratiev, que atingirá especialmente os Estados Unidos, a eventual ruptura desse esquema de financiamento pode colocar em questão o protagonismo do dólar, principal cidadela de um poder cada vez mais parasitário. Um novo período longo de recessão provavelmente impulsionará o aumento secular do gasto público em relação ao PIB no mundo, o que deverá reduzir o volume das reservas internacionais, ampliar o controle do balanço de pagamentos e expandir o investimento interno sob a pressão dos movimentos sociais.

    Além disso, a liderança militar dos Estados Unidos está cada vez mais sendo desafiada pelos constrangimentos que o endividamento coloca para a expansão dos seus gastos militares, que em 2000 representavam 6,5 vezes o orçamento de Rússia e China juntos, mas em 2019, apenas 2,2 vezes.

    Estado e planejamento no Oriente

    A China parece muito mais capacitada para enfrentar o novo período recessivo que os Estados Unidos. A forte presença do Estado, do planejamento central e de suas empresas estatais permite a manutenção de altas taxas de investimento com baixas taxas de lucro. A liderança no desenvolvimento de tecnologias limpas, o papel central nas tecnologias de saúde, que produzem 80% dos componentes ativos dos antibióticos fabricados nos Estados Unidos, a nova orientação estratégica da política de Estado para uma sociedade de serviços de alta tecnologia e o consumo interno, bem como a política internacional de projeção do arco de desenvolvimento para a Eurásia e o Sul Global via BRICS, a colocam como vértice da construção de um novo eixo geopolítico, que prioriza espaços territoriais e demográficos deprimidos pelo desenvolvimento desigual imposto pelo imperialismo anglo-saxão e europeu.

    As eleições estadunidenses se dividirão em dois projetos:

    A) O DE TRUMP E DA EXTREMA DIREITA ESTADUNIDENSE, que se lança em rumos cada vez mais neofascistas, buscando a utilização da força do Estado norte-americano para reverter o declínio. Esse projeto aumenta o nível de tensões e conflitos internacionais, tende a retomar a médio e longo prazo o complexo industrial-militar como centro do gasto público em alternativa à financeirização e a proposta de repatriação do capital estadunidense só pode se viabilizar sob brutal repressão da classe trabalhadora norte-americana para restabelecer internamente a taxa de lucro que se alcança fora. Essa política se projeta sobre a América Latina ameaçando relançar a Doutrina do Destino Manifesto, de intervenções militares diretas ou indiretas, e golpes de Estado. Aparentemente, derrotado nas eleições, apesar da gestão desastrosa da pandemia da COVID-19, Trump foi beneficiado pelos programas anticrise de ajuda social que combinados à queda intensa do PIB, reduziram a desigualdade e a pobreza nos Estados Unidos, o que pode lhe dar combustível e competitividade nas eleições de novembro.

    B) O DOS DEMOCRATAS, LIDERADOS POR JOE BIDEN e Kamala Harris, que, caso vitoriosos, tenderão a retomar o consenso universalista neoliberal estadunidense, por meio das bandeiras do livre-comércio e livres fluxos de capitais por meio de acordos hemisféricos, multilaterais e organismos internacionais. Eles terão, entretanto, o objetivo de conter a China e a Rússia, e não desmontarão completamente o nível de agressividade apresentado por Trump.

    Para a América Latina esse projeto pode retomar processos inovadores como o de desmonte do embargo a Cuba. Evitará intervenções militares diretas, mas estará articulando guerras híbridas e cercos, com o qual pretenderá impor sua hegemonia sobre a região e tomar controle da Venezuela. A indicação de Kamala aponta a intenção de atrair o apoio dos movimentos sociais, afroamericanos e latinos mas, dificilmente, colocará as políticas sociais acima das de financeirização.

    Oligarquia bélica

    Senador por Delaware, de 1973 a 2009, Joe Biden representa a tradicional oligarquia centrista democrata tendo apoiado o bombardeamento do Kosovo e a guerra contra o Iraque, e buscará cooptar os movimentos sociais para aceitarem a política do establishment liberal. Trata-se de um importante limite de mobilização social, uma vez que o êxito da política antirracista depende do enfrentamento da superexploração dos trabalhadores que se desenvolve nos Estados Unidos desde os anos 1980. Como demonstram Adolph Reed Junior e Walter Been Michaels (2020), 77% das disparidades de renda entre brancos e negros estão entre os 10% mais ricos de cada segmento e apenas 3% entre os 50% mais pobres. Tal contradição fragiliza essa ofensiva e os resultados eleitorais. Porém, a crise da democracia norte-americana é profunda. Os vínculos históricos com o racismo, resultado das relações de longa duração com o imperialismo, com o colonialismo e com a escravidão, tornam o seu êxito muito vinculado à ideologia da prosperidade, que tende a ser desafiada pela recessão e pelo declínio.

    A crise da democracia é profunda nos EUA. Os vínculos históricos com o racismo, com o imperialismo, com o colonialismo e com a escravidão, tornam o seu êxito muito vinculado à ideologia da prosperidade, que tende a ser desafiada pela recessão e o declínio industrial e tecnológico do país

    Provavelmente, assistiremos nos próximos anos a forte atuação dos movimentos sociais em busca de formas de expressão política e influência sobre o Estado norte-americano que unifiquem a classe trabalhadora em sua diversidade étnico-racial e de gênero contra o imperialismo e brutal expansão da desigualdade, que limitaram a expansão da renda dos 50% mais pobres a 3% do crescimento econômico entre 1980-2014 (Piketty et alli, 2018).

    Carlos Eduardo Martins é professor associado do IRID/UFRJ e PEPI/UFRJ. Pesquisador do Clacso e Coordenador do LEHC/UFRJ.

    ¹Para uma análise mais detalhada do assunto veja-se o nosso Globalização, dependência e neoliberalismo na América (2011), publicado pela Boitempo, que foi ampliado e atualizado na versão em inglês publicada pela Brill em 2020. Os ciclos de Kondratiev se vinculam ao surgimento de novos paradigmas tecnológicos e crise dos obsoletos e dividem-se em fases A e B, de aproximadamente 25 a 30 anos de expansão ou recessão, entendida não necessariamente como decrescimento, mas principalmente como uma taxa de expansão significativamente abaixo da média da longa duração. Surgem nos países mais industrializados europeus na primeira metade do século XIX e passam a afetar o os ritmos da economia mundial desde 1870.
    Referências bibliográficas . Martins, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo, Boitempo, 2011. Michaels, Walter Been e Reed, Adolph (2020) The trouble with despair. Acesso em nonsite.org/the-trouble-with-disparity/Piketty, Thomas et alli (org) (2018) World Inequality Report. Acesso em ir 2018.wid.world/files/download/wir2018-summary-english.pdf
  • Impulsionar a democracia para forçar a transformação

    Impulsionar a democracia para forçar a transformação

    Impulsionar a democracia para forçar a transformação

    Por Francisvaldo Mendes, presidente da FLCMF

    Em pleno período eleitoral a maioria das pessoas se sente tomada pela angustia do modelo de participação política por representação, que está atingindo o ápice do esgotamento. Forma de atuação política que não atende os anseios e desejos das pessoas.

    Inovar e criar outras formas de atuação política é um grande desafio para todos nós que defendemos a vida e a dignidade humana. Há sim ventos pela democratização e precisam ser ampliados urgentemente para colocar o ar, ainda mais, em movimento favorável à dignidade humana. Um olhar para o contexto atual pode perceber nas eleições ventos pelas possibilidades de mudanças. Há exemplos que mostram o foco dos cenários com destaque para as candidaturas progressistas, rompendo com as versões autoritárias que investem nos múltiplos modelos da necropolítica.

    São produtos das ações humanas transformadoras que se precisa apoiar e ampliar nessas eleições, antes que passem quase que despercebidos para a maioria. Há vários movimentos positivos ocorrendo, e sem perder o compromisso com a análise objetiva do presente, faz-se necessário dar eco para vários militantes que constroem o futuro e, para isso, mudanças e transformações são necessárias e possíveis.

    Na Nova Zelândia o exemplo favorável coloca lenha em uma fogueira que amplie o calor humano pela vida e enfrente a exploração desenfreada que toma o mundo sendo possível compartilhar os impulsos trabalhistas que ganham terreno com Jacinda Ardern na Nova Zelândia. A América Latina, para além de vitórias importantes como no México, apresenta sopros animadores com Luis Arce Catacora, do Movimento para o Socialismo, que grita que a Bolívia recuperou a democracia. Sentir a temperatura e os ventos do socialismo na democracia em tempos atuais cria temperatura para ampliar a potência de ações pela vida e que construam a dignidade humana.

    Esses potentes e inspirados sopros do mês de outubro precisam chegar com ainda mais força no mês de novembro, fazendo que as eleições sejam favoráveis para uma estrada de transformação do atual cenário desanimador, tanto no dia 3 de novembro nos Estados Unidos, como no dia 15 de novembro no Brasil no rumo da defesa dos direitos e condições múltiplas de vida nos seus múltiplos territórios.

    Em Belém do Pará, espaço tomado pela luta da Cabanagem, que plantaram sementes da protagonismo dos explorados e dominados contra o poder autoritário, há esperanças reais. Mais do que necessário, é um sopro pela ampliação dos sujeitos das transformações, ampliar os 39% que aparecem com Edimilson do PSOL. Os mesmos ventos que podem ampliar a presença que faz diferença em São Paulo. São os mais de 14% de Boulos e Erundina que provocam o incomodo das elites dominantes, segundo as pesquisas. Há, portanto, tanto ventos inspiradores e que reforças as ações por socialismo e liberdade, assim como processos múltiplos de democratização que ampliam os impulsos de transformação nessa devastadora realidade imposta pelo capitalismo.

    Esses indicativos de pesquisas são mais que números, que soluções por meio de vitórias eleitorais ou de ilusões que podem chegar neste tempo por meio de esperanças tão necessárias. Trata-se do afloramento da recuperação das forças de pessoas que sempre lutaram pra sobreviver, por meio da venda de sua força de trabalho e que vem nessas representações nomes comprometidos com a transformação.

    A defesa da dignidade humana deve apontar a unidade para todos os setores sociais organizados que apostam em democratização e um olhar amplo que energizam as forças para crescer em organização e ações transformadoras. Os ventos que chegam de vários países do mundo precisam ser saudados e reforçados no Brasil a favor da vida e da dignidade humana. Para tanto precisamos de cidades com braços abertos para os direitos, para as organizações populares e para o crescimento de todas as organizações sociais.

    Apostar nos focos de democratização é muito mais que apostar em eleições ou em um só momento do nosso tempo. E, nas condições que estamos na política, é também um investimento em uma unidade cada vez mais fecunda e transformadora que os blocos favoráveis para as necessárias jornadas progressivas de formação, organização e ação possam trazer para todos que vivem da venda da força de trabalho. Somos sim múltiplos, diversos, mulheres, negras, indígenas, LGBTQI, todos explorados pela devastadora ação do capitalismo que só juntos, unificados e com mais consciência, poderemos superar e vencer.

    Possível sim com atuação coletiva modificar as condições. Mostrar que estamos ativos em unidade para tirar do poder do Estado, em seus vários níveis, os asseclas do capitalismo. Assim ampliamos os ecos de um grito qualificado e potente pela transformação em favor da vida. E mais que isso, fazer dos ventos da democratização mudanças que tenham sentidos e significados perenes e que sigam para além das eleições é mais do que fundamental e importante nesse momento que a exploração amplia suas guias. Vamos então multiplicar nossos espaços, com ações conscientes e coletivas, mandando uma mensagem que fortaleça o projeto político por um mundo socialista, com liberdade e que siga na esteira da democratização. Nossa unidade na diversidade, o que somos e temos, fará que o registro desse tempo seja mais que vitórias ou derrotas eleitorais. Será, com unidade e ação transformadora, uma vitória política muito importante para crescer com força transformadora nos tempos atuais. Vamos fazer nossa história!

  • Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Plebiscito chileno: que está em jogo?

    Por Vitor Hugo Tonin [1]

    No próximo domingo, dia 25, o povo chileno irá às urnas responder duas perguntas: 1) se quer ou não ter uma nova constituição e 2) que tipo de órgão deve escrevê-la. Essa consulta popular foi uma das principais vitórias do povo chileno que se rebelou em 18 de outubro de 2019 e ocupou durante semanas as ruas de todo país. No auge das manifestações, o presidente direitista Sebastián Piñera disse que o país estava em guerra, apenas poucos meses depois de ter afirmado que o Chile era um oásis de paz e prosperidade na América Latina.

    Nesta guerra contra seu próprio povo Piñera mobilizou todo o aparato repressivo do Estado para reprimir as manifestações e tentar assustar os manifestantes: mais de 30 pessoas foram mortas, 460 tiveram trauma ocular, muitas delas ficaram cegas já que a polícia mirava as balas de borracha na altura dos olhos dos manifestantes, mais de 2 mil pessoas presas e 5 mil vítimas de violações e abusos por parte da polícia. Mesmo assim o povo não deixou as ruas.

    Sem nenhuma legitimidade, restando-lhe apenas o apoio da alta elite chilena e das forças repressivas, Piñera ameaçou elevar ainda mais o nível da repressão se os partidos não chegassem a um de pacificação do país. Este “Acordo pela paz”, feito por cima, no congresso, propôs ao povo chileno decidir sobre a realização de uma convenção constituinte para finalmente substituir a constituição escrita em 1980 e atualizada em 1988 durante a ditadura de Augusto Pinochet. Afinal, as manifestações não eram somente pelos 30 pesos de aumento no transporte público, mas por 30 anos de abuso, como afirma a principal palavra de ordem da rebelião popular.

    Assim originou-se o plebiscito, que deveria ter se realizado em 26 de abril, mas foi adiado para o domingo próximo em virtude da pandemia. Abaixo elenco as principais possibilidades de resultado e seus desdobramentos para o futuro.

    • Tende a ser a maior participação eleitoral da história do Chile, apesar da pandemia;
    • Até a maior parte das classes dominantes estão apoiando a realização da convenção constituinte, portanto, a vitória eleitoral do “sim” deve ser grande;
    • As disputas começam mesmo na segunda pergunta do plebiscito que se refere ao “como” será a constituinte. As classes dominantes querem uma convenção mista, com apenas metade eleita pelo povo e a outra metade indicada pelo congresso atual, profundamente deslegitimado. Com isso, as classes dominantes querem restringir a participação popular. Os setores populares fazem campanha por uma “convenção constitucional” totalmente eleita, com paridade de gênero e cotas de representação para os povos originários.
    • Os resultados em relação a essa segunda pergunta expressarão a correlação de forças do processo constituinte. É provável que o povo vença essa segunda pergunta, mas com que margem?
    • Esse resultado é importante indicador sobre o futuro do processo. Após o plebiscito o povo será chamado a eleger “deputados” constituintes no dia 11 de abril de 2021. Esta eleição será decisiva, pois uma das regras colocadas para a convenção constituinte é o quórum mínimo qualificado de dois terços para qualquer aprovação. Este alto quórum tem objetivo de bloquear mudanças mais radicais exigidas pelo povo chileno.
    • Além disso, alguns temas como os Tratados de Livre Comércio (TLC), o regime “democrático” e até o nome do país foram proibidos de serem debatidos pela assembleia constituinte (artigo 135 do acordo de paz). O que é uma grave limitação ao poder originário constituinte. Os TLCs, por exemplo, são os principais responsáveis pela manutenção e aprofundamento do modelo econômico primário exportador em vigência no Chile desde Pinochet. Logo, se os TLCs não forem revistos, o modelo econômico tende a seguir sendo o mesmo. Não se parte, portanto, de um livro completamente em branco.
    • Para fazer frente a esses desafios o povo chileno precisa de forças e organização para: i) garantir com ampla margem uma assembleia constituinte totalmente eleita para este fim no próximo domingo; ii) eleger mais de dois terços de representantes constituintes no próximo 11 de abril; e iii) pressionar para reverter no atual Congresso, na Convenção Constitucional ou na Corte Suprema, as ilegítimas limitações impostas ao poder constituinte pelo artigo 135.

    Depois de derrotarmos Macri na Argentina e  o golpe na Bolívia é hora de derrotar a direita também no Chile.

    [1] Doutorando em Desenvolvimento Econômico, pesquisa questão urbana no Chile. Agradeço os comentários de Nicolás Valenzuela Paterakis e Marcela Vera que obviamente não são responsáveis pelas opiniões aqui expostas.

     

  • Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso

    Os problemas causados pela pandemia impactaram profundamente todas as áreas da economia. Uma delas foi a dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus, que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a Covid-19 também serviu para escancarar as distorções das políticas de mobilidade

    Por Lúcio Gregóri

    Vivemos um momento que pode provocar muitas mudanças nos modos de mobilidade urbana: trabalho remoto, automação do setor de serviços, possibilidade crescente de reuniões serem realizadas a distância, uso de aplicativos para contratação de viagens urbanas, entre outros fatores são sinais dessa nova situação. A pandemia da Covid 19 aguçou essa questão, evidenciando os vários problemas que envolvem o transporte coletivo e a mobilidade em geral.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas, e em nossa sociedade escravagista e preconceituosa – justamente para com os de menor renda, negros e mulheres e que são os que mais dependem dos transportes coletivos – desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade e, quem tem menos só tem, quando tem, para as “viagens dos deveres” e não para as “viagens dos prazeres”.

    Disputas no deslocamento

    Como vivemos num sistema capitalista, ainda que atrasado e cartorial, as disputas em torno dos ganhos propiciados pela mobilidade urbana se fazem sentir. Cada um dos interessados procurando “vender o seu peixe” como sendo o melhor, mais inteligente, mais limpo, etc.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas. E numa sociedade escravagista e preconceituosa como a nossa, desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade

    Não foi diferente quando o automóvel surgiu, sendo o “resolvedor” da mobilidade, omitindo-se, é claro, seu papel como possível causador de problemas. Com a produção em série e associação com a indústria petroleira, o automóvel com motor a explosão surgiu como “a grande solução”. Claro está que todos os problemas advindos desse modo de locomoção – enorme uso de espaço viário, acidentes, poluição etc. – foram devidamente “não identificáveis” por anos a fio.

    O mesmo acontece atualmente com os aplicativos, que abrirão caminho para carros pequenos sem motoristas etc. As vantagens são promovidas como absolutas, mas não é difícil de se imaginar o que poderá ser uma quantidade astronômica de pequenos carros elétricos a ocuparem, freneticamente, as ruas da cidade em manobras fugidias de congestionamentos, tal como já é realidade com os aplicativos. Nesse sentido, mais uma vez a lógica indica que os transportes coletivos continuarão sendo absolutamente fundamentais.

    Capitalismo cartorial

    Os problemas causados pela pandemia da Covid-19 impactaram profundamente todas as áreas da economia, mas alguns setores foram mais duramente afetados. Um deles foi o dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus – o mais demandado – que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a pandemia também serviu para escancarar os enormes equívocos que vêm sendo cometidos por anos a fio nesse setor.

    Desde tempos imemoriais, o capitalismo brasileiro tem nos serviços públicos uma forma de “encosto”, ou como dizia Hélio Jaguaribe, mostra-se um capitalismo cartorial. Assim, como nos cartórios, não há riscos envolvidos. Mais do que isso, o “encosto” chamado concessão do sistema de transporte público inclui distorções gigantescas que visam tornar a cessão desse serviço público, uma espécie de “esquema de ganhos” seguros.

    Nas concessões clássicas, aplicadas na esmagadora maioria das cidades brasileiras, o serviço de transportes coletivos por ônibus é remunerado por passageiro transportado – como se passageiro fosse custo – quando passageiro em sistema de transportes é receita! Tal como num táxi, dado um certo percurso, o taxímetro mostrará o mesmo preço da corrida, independentemente do número de passageiros transportados, pois o que é cobrado é o deslocamento realizado.

    Atualmente, na maioria das cidades, a remuneração do transporte coletivo é feita por passageiros. Quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Isso acarreta um efeito cruel: havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso

    Com a remuneração do transporte coletivo sendo feita por passageiros, quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Com um efeito cruel de que, havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso.

    Com as gratuidades, a compensação precisa ser realizada com subsídios cruzados, quando o passageiro pagante tem um adicional de tarifa para compensar aquele passageiro que usa do serviço em regime de gratuidade, criando uma animosidade entre os usuários, pois os pagantes se sentem prejudicados quanto mais direitos de gratuidades forem sendo atribuídos a determinados grupos de usuários – idosos, estudantes, etc.

    Lotação e infecções

    Com ônibus superlotados o serviço tende a apresentar problemas sanitários como o aumento da quantidade de infecções, viroses entre outras adquiridas. Seis passageiros por metro quadrado é o altíssimo índice permitido, que na prática se transforma em até dez, doze passageiros por metro quadrado.

    Se passageiro fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é sim anti-higiênico, fora a limpeza do veículo e um permanente agente propagador de contaminação.

    No “encosto” nas parcerias público-privadas, o Estado entra com a maior parte dos custos (caso dos custos fixos dos metrôs) e o setor privado tem prioridade no rateio das receitas com direito assegurado de reajuste anual de tarifas independentemente de qualquer coisa (vide exemplo do que é praticado na linha amarela do metrô em São Paulo).

    Automóveis e poluição

    O isolamento social em decorrência da Covid-19 retirou os carros de circulação das ruas das cidades e ficou explícito o quanto o modelo de mobilidade centrado no automóvel é o responsável pela poluição atmosférica. Em São Paulo, a mancha escura de poluição que cobria a cidade foi drasticamente reduzida, quase desaparecendo. O mesmo fenômeno pode ser observado ao redor do mundo todo. A indústria automobilística contra-ataca com a ideia de que deslocamento por automóvel será mais higiênico.

    Porém, alguns dados ajudarão a entender a escala do problema representado pelos transportes coletivos urbanos e o quanto eles representam a verdadeira face desse capitalismo à brasileira.

    Em mais de 2.900 municípios brasileiros, os transportes coletivos atendem a 70 milhões passageiros/dia. De acordo com a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 1800 empresas privadas com 107 mil ônibus transportam 60 milhões de passageiros/dia, gerando mais de 400 mil empregos diretos (motoristas, cobradores, pessoal de manutenção e demais profissionais).

    O transporte sobre trilhos – metrôs e ferrovias metropolitanas – congrega 15 operadoras, num total de 1.105 km de linhas, 10,9 milhões de passageiros/dia. Considerados todos os modos, o transporte público coletivo responde por 50% das viagens motorizadas realizadas diariamente no país. Apesar dessa importância dos ônibus, eles vêm perdendo passageiros ao longo do tempo, seguramente pela má qualidade dos serviços, mas fundamentalmente pelo alto preço da tarifa, que se torna cada vez mais inacessível.

    Contratação distorcida

    A insolvência das empresas não é um risco causado pela Covid-19, que apenas aguçou a questão do modelo de contratação dos serviços, inclusive por não possuir cláusulas contratuais para caso de hecatombes, pandemias entre outros.

    Nos últimos 20 anos, os ônibus perderam 35,6% dos usuários. Só em 2017, 9,5%. O crescente uso dos modos individuais motorizados, carros e motos, que ocupam 70% do espaço viário e transportam cerca de 25% das pessoas em circulação, causaram uma diminuição da velocidade do ônibus de 25km/h para 15km/h e ilustra a desigual distribuição do espaço público para uso das pessoas, que privilegia mais espaço para carros particulares.

    Para se enfrentar os problemas da mobilidade urbana e fortalecimento dos transportes coletivos, inclusive com garantia de higiene e segurança, será necessário mudar radicalmente a forma de contratação dos serviços e determinadas especificações de desempenho, aí incluído o número de passageiros em pé por metro quadrado.

    E para garantir que o transporte coletivo não seja um inibidor e segregador do uso e acesso à cidade por parte dos mais pobres, tendo na tarifa o elemento chave nessa inibição, há que se formular políticas robustas de subsídio tarifário e, no limite, o subsídio total (tarifa zero). Aí sim o transporte será um direito social como diz a Constituição desde setembro de 2015, como a saúde, via SUS. Isso significa que é necessário criar recursos para o subsídio tarifário e reequacionar inteiramente o modo de contratar tais serviços com o setor privado, bem como as especificações de desempenho.

    Curiosamente, foi aprovado pela Câmara Federal o projeto 3364/20, que prevê auxílio de R$ 4 bilhões às empresas de transportes coletivos sem exigir, por exemplo, a transformação dos contratos para custos operacionais e não mais as clássicas concessões de remuneração por passageiro e a inclusão de cláusulas relativas a hecatombes e epidemias.

    Tirar da letra morta em um papel o transporte como direito social nos termos da Constituição desde 2015, e transformá-lo em direito real, envolve um debate ampliado sobre a questão tributária no país e das formas de contratação dos serviços públicos, especialmente os de mobilidade urbana.

    Tributação injusta

    No capitalismo brasileiro, diferentemente do resto do mundo, tributa-se pouco a renda e o patrimônio. Na Dinamarca, esses dois itens, em conjunto, representam 67% da arrecadação total de impostos; nos EUA, 60%; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação sobre o consumo com seus 50%. A média da OCDE é de 32,4%; e nos EUA, 17%.

    E para finalizar essa enorme farsa nacional, os dividendos para os donos de ações de empresas não pagam imposto de renda e jatinhos e iates não pagam IPVA.

    No Brasil, os direitos e serviços públicos são sustentados pelos mais pobres, os que pagam proporcionalmente mais impostos, via consumo.

    A agenda hegemônica da Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional está desconectada dessa realidade e não enfrenta a principal anomalia da tributação brasileira que é o seu caráter regressivo, não reduz e pode ampliar a desigualdade. Além disso, é profundamente insuficiente, por não fortalecer financeiramente o Estado para que cumpra o papel dele exigido em crises dessa envergadura.

    Se o usuário fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é anti-higiênico

    Se essa agenda já era inócua e tímida, tornou-se anacrônica após a crise agravada pela Covid-19. E nem se diga do teto de gastos…

    Além disso, é fundamental evitar propostas equivocadas como pedágio urbano, que transforma a rua em mercadoria escassa e é regressivo. Há também a chamada municipalização da Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), posto que a esta é uma medida conjuntural e pode ser mudada até por decreto.

    Em resumo, sem uma disputa e reforma ampla sobre questões tributárias, mudanças radicais na forma de contratar serviços de transportes coletivos e da cobrança de contribuição (e não pedágio) pela apropriação do espaço viário pelos automóveis dentre outras questões, o que se poderá ter como resultado das mudanças apontadas no início do texto e das consequências e problemas desnudados pela Covid-19, é aquilo que é uma recorrência em nosso país: “tudo mudar para que tudo permaneça como sempre foi”. Podendo piorar…

    * Lúcio Gregori é engenheiro pela Escola Politécnica da USP, foi Secretário Municipal de Transportes no governo de Luiza Erundina (1989-93), quando propôs o projeto da Tarifa Zero.