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  • BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    Editorial – Socialismo & Liberdade n.30

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Nesta edição da revista Socialismo e Liberdade, nº 30, aproximamo-nos das eleições de 2020 e já iniciamos a primavera no Brasil, porém no lugar de flores nascendo e decorando as estradas, campos e matas, encontramos a ameaça a vida com doenças e mortes. Sementes do poder que assolam o mundo com o capitalismo e seus genes autoritário deste governo do Brasil.

    Os números disponíveis já ultrapassam 146 mil pessoas mortas. Fruto desta política que mata, onde o vírus é apenas o gatilho do momento. Nossa tarefa é de construir espaços para o conhecimento e a formação de uma inteligência coletiva potente com compromisso de estourar a bolha que impede o acúmulo da ciência, da filosofia e dos conhecimentos ancestrais. Precisamos aguçar e construir olhares e sensibilidades críticas abolindo o senso comum. São essas tarefas fundamentais para superar o capitalismo. Por isso seguiremos firmes e com práticas solidárias para espalhar na maioria do nosso povo – que é o agente – as mudanças necessárias que precisamos.

    Nesta revista apostamos em apresentar informações e conhecimentos sobre o momento atual e apontamos abordagens críticas para os ataques que sofremos, coletivamente. Conseguir se manter vivo nesta descompostura da política com o tempo é um desafio para que nossa ação de revolucionários e insurgentes ganhe a dimensão de qualificar e melhorar a vida contra o individualismo decrépito.

    Estamos próximos de duas eleições importantes no mês que vem, a dos E.U.A e a do Brasil, das quais os resultados eleitorais serão decisivos para fortalecer as mudanças ou para nos fragilizar ainda mais como sujeitos. Somos seres da política, quem decide e pode decidir pelo mundo que queremos com toda multiplicidade, diversidade, complexidade, e quem vive da venda da força de trabalho para sobreviver.

    Para além de mostrar que o trabalho também pode ser ação criativa e coletiva, precisamos avançar para que a mercadoria “força de trabalho” seja garantida para todas as pessoas e sustente a vida com dignidade. São desafios de todos os tempos que no momento pesa ainda mais forte com a pandemia.

    É nesse sentido que cada artigo, cada contribuição e cada imagem, aqui apresentados, possui o grande desfecho de apontar e construir um outro mundo. Para nós, Socialismo e Liberdade traz a síntese de um mundo pleno, criativo, democratizante e que semeia a vida com dignidade. As variações e apresentações dos defensores da política de Estado contra os explorados, conhecida como necropolítica, em nosso tempo, assumem portes devastadores com esse (des)governo que nos oprime.

    As eleições mostram-se um desafio de debater e conscientizar as pessoas para a defesa da vida, analisando o sistema transversalizado no mundo, e o que nos espera e, assim, apostamos em subsídios que nos ampliem como sujeitos singulares e coletivos em nosso tempo.

    O importante da nossa revista do PSOL é sempre fazer dela um instrumento de aprendizagem, e para isso vamos conversar com cada companheira e companheiro e construir leituras coletivas e unidade que nos façam sempre mais que um indivíduo para que a vida seja mais que mercadoria. Na busca do conhecimento que defende a vida e a dignidade humana, é hora de divulgar, ler, estudar e compartilhar em debates e formação para nos deixar mais fortes e potentes na defesa da maioria das pessoas, além de fazer uma grande propaganda do nosso Partido.

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  • Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida . Por Francisvaldo Mendes

    Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida . Por Francisvaldo Mendes

    Nas eleições disputamos a política, o projeto e a vida

    O PSOL vai lutar, em cada local deste país, pelo direito de se viver plenamente nas cidades, com projetos, práticas e ações que ampliem espaços e serviços públicos e que redirecionem o papel do Estado em favor das maiorias

    Por Francisvaldo Mendes

    Francisvaldo Mendes

    A disputa nessas eleições, para nós do PSOL, é a disputa de um projeto político. Ou seja, ocupar espaço para criar as condições no Estado para favorecer e valorizar a vida. No capitalismo, esse sistema econômico que toma o mundo, o Estado vive disputas na política para ampliar o lucro e favorece somente os grandes empresários, os banqueiros, e alguns serviçais do sistema.

    Nós queremos e faremos diferente, a política que organizamos com as pessoas é para transformar o modo de vida, arquitetando um ambiente no qual o ódio, o preconceito e a ignorância sejam superados por meio do conhecimento, da solidariedade, com outra organização sociopolítica.

    A política que organizamos com as pessoas é para transformar o modo de vida, arquitetando um ambiente no qual o ódio, o preconceito e a ignorância sejam superados por meio do conhecimento, da solidariedade, com outra organização sociopolítica

    Queremos estar no parlamento ou no executivo para ampliar o fôlego de vida e ampliar as forças contrárias à política de extermínio imposta pelos governantes aos mendigos, aos LGBTQI e às mulheres. Violência imposta a todas as pessoas que foram empobrecidas pelo capitalismo, pessoas que vivem da venda da força de trabalho e só isso possuem viver. Atualmente, a necropolítica predomina nas variadas dimensões do Estado, seja pelo poder de polícia, seja pela elaboração de leis para retirar direitos de trabalhadoras e trabalhadores em favor do “mercado”, seja por meio da espada da justiça que só corta contra aqueles que já são massacrados na sociedade.

    Nos dias atuais, principalmente com a pandemia, as políticas impostas ampliam a devastação da vida de forma volumosa, haja vista a preocupação com a aglomeração nas praias. Porém, essa indignação não atinge quem é obrigado a se submeter a ônibus, trens ou metrôs lotados. Não é por menos que um país que tem 1/38 da população mundial possui 1/7 das mortes pelo vírus no planeta. Isso é a maior demonstração das desigualdades nos dias de hoje e comprova que as mortes são produtos de uma política aplicada e não de um “inimigo invisível” que circula nos corpos, nas coisas e no ar. O nosso desafio é enfrentar e superar essa ordem que predomina na vida contra a maioria das pessoas.

    Mudar o Estado

    O PSOL, portanto, não pode ocupar a administração do Estado para gerenciar os interesses de alguns como já foi feito em administrações passadas. O que disputamos é a mudança da forma de ação do Estado, outra organização nos aparelhos estatais, inclusive no judiciário que é uma aberração na democracia atual. Devemos nos amparar e nos combinar na auto-organização popular e criar espaços para fortalecer a ideia de público. Dessa forma, ampliar o controle da sociedade com a finalidade de acompanhar os investimentos dos recursos centralizados e controlados pelo Estado, para que todo o dinheiro seja destinado à coletividade e que possamos diminuir, ao máximo, os ladrões que se aproveitam do cargo e desviam dinheiro em benefício próprio.

    O PSOL não pode ocupar a administração do Estado para gerenciar os interesses de alguns como já foi feito em administrações passadas. O que disputamos é a mudança da forma de ação do Estado. Devemos nos amparar e nos combinar na auto-organização popular

    A vida das pessoas só melhorará se for fruto de um movimento político, coletivo, amplo e inspirado por um projeto de transformação social organizado e debatido por meio do conhecimento acumulado com a participação ativa com a sustentação das pessoas. Esse é um elemento fundamental para que o Estado seja um ambiente da esfera pública e não um ambiente da esfera privada, como ocorre nos governos atuais. Essa participação ativa e democrática empurrará a política para a transformação e permitirá que a maioria social se torne também a maioria política e cultural.

    Defesa dos serviços públicos

    Somos nós, a maioria que procura o acolhimento nas religiões, nos jogos, na família, no trabalho, na amizade e na sobrevivência. Vivemos a falta de recursos e as piores consequências dos desvios desses montantes. Esses recursos são criados por nós e precisam chegar à maioria da população e para as principais organizações que podem defender e ampliar a vida, como hospitais, postos de saúde, escolas, creches, e para as políticas afirmativas que garantam remédios, alimentações, água e saneamento básico. Não se pode seguir sofrendo com enchentes, com a poluição e com o descaso das autoridades. Posto isso, estamos desafiados a superar essa ordem e a organizar um sistema fundado na prática da democratização sem perder o objetivo estratégico de transformação social, afim de que as pessoas organizem a economia para se sustentar em todas as dimensões da vida.

    O nosso objetivo, que brilha forte no sol do socialismo e da liberdade, certamente traz um desafio de não apenas ganhar as eleições, mas nessas eleições termos uma capacidade de comunicação com as pessoas. Dessa forma, ser um processo de formação, criação de consciência crítica e capacitação política para podemos, por meio da participação política, não depender apenas das vitórias eleitorais, mas criar condições de direcionar as políticas do Estado ocupando cargos ou ampliando a organização popular para dar volume às contradições. Passo fundamental para alterarmos os desmandos que assolam a nossa vida.

    Sujeitos políticos

    No período eleitoral de brasileiras e brasileiros que votam a cada dois anos, infelizmente convivemos com uma política rasa, que cultua o lucro e amplia a morte, o que causa desgosto coletivo, e faz com que muitas pessoas não gostem de eleições, e não concebam o voto como uma conquista e, progressivamente, afastem-se da política. Isso é um processo que já começa a mudar, pois, faz-se necessário que a maioria das pessoas se aproxime da política e se reconheça como sujeito político, sujeito de sua vida e com condição de conquistar outra realidade. Essa é a grande tarefa de todas as candidatas e de todos os candidatos do PSOL – que se apresentam em todo o Brasil – de aproximar as pessoas da política e unificar forças para coletivamente mudar o país. E é na cidade que esse processo de mudança ganha vulto imediato na vida das pessoas, onde podemos alterar as condições objetivas de morar, ter saúde, estudar, vender a força de trabalho e aglutinar mobilidade plena, tanto no corpo quanto simbólica, para crescer como sujeitos múltiplos de uma mudança coletiva e solidária.

    PSOL nas cidades

    Em São Paulo a capacidade de aglutinação e o desprendimento com que Guilherme Boulos construiu sua história, lutando ao lado daqueles despossuídos que alimentam a perspectiva de realizar o sonho da casa própria, o capacita para a empreitada na prefeitura de São Paulo ao lado de Luiza Erundina, que contrariou interesses de muitos poderosos quando esteve na prefeitura.

    A capacidade de aglutinação e o desprendimento com que Guilherme Boulos construiu sua história o capacita para a empreitada em São Paulo ao lado de Luiza Erundina, que contrariou interesses de poderosos quando esteve na prefeitura

    No Rio de Janeiro, Renata Souza joga sua dedicação na luta contra a discriminação racial, e contra o machismo e acumulou experiência na luta em defesa dos direitos humanos ao lado de Marielle Franco, no gabinete do então deputado estadual Marcelo Freixo, que se destacou na luta contra as milícias no Rio de Janeiro.

    Áurea Carolina, com o sorriso espontâneo, garra voraz na luta contra a desigualdade social e uma ativista cultural em defesa do povo pobre de Minas Gerais atua para colocar a experiência que tem em defesa da maioria do povo pobre e desfavorecido de Belo Horizonte.

    Em Belém, o sempre lutador Edmilson Rodrigues, já administrou a cidade e fez a diferença atendendo aos interesses daqueles que mais precisam, enfrentando as oligarquias locais. Acumulou a posição de extremo conhecedor da cultura e do sofrimento de seu povo. Dispor-se a retornar a prefeitura significa apostar na ampliação da organização popular na defesa dos direitos do povo belenense.

    Fernanda Melchiona simboliza a jovem que quer fazer a transformação social em defesa do fim da acomodação do status quo para que Porto Alegre irradie sua particularidade de povo lutador e aguerrido nas reivindicações em defesa da maioria contra os interesses privados.

    Em São Luís, no Maranhão, o representante das ideias de transformação é Franklin Douglas, professor e advogado que atua na defesa dos direitos humanos.

    Em Campo Grande, onde uma dupla de mulheres disputa a vaga da prefeitura da cidade, Cris Duarte e Val Ely lutam contra uma sociedade local machista e lgbtfóbica. A dupla é o espelho de garra e alegria para tornar uma sociedade mais justa e humana e, principalmente, na defesa dos povos indígenas. Val Eloy é uma indígena terena, com garra de defesa dos interesses da maioria do povo de Campo Grande.

    Em Belém, o sempre lutador Edmilson Rodrigues já administrou a cidade e fez a diferença atendendo aos interesses daqueles que mais precisam, enfrentando as oligarquias locais. Acumulou a posição de extremo conhecedor da cultura e do sofrimento de seu povo

    Em Fortaleza, o nosso representante é Renato Roseno, formado em Direito e funcionário público federal. Há muito atua nos movimentos sociais contra as desigualdades de classe, gênero, etnia, e orientação sexual e na luta por moradia e melhores condições de vida para população Fortalezense.

    Hilton Coelho é historiador e defende a cultura baiana e soteropolitana e luta contra a discriminação de maneira geral, mas tem enfrentado a discriminação que se agudizou com o governo federal, contra o preconceito com as religiões de matriz afrodescendente.

    Valéria Correia, professora universitária e funcionária pública federal, foi exemplo de reitora na Universidade Federal de Alagoas, investindo na melhoria do campus e dando ênfase na aproximação da universidade com a comunidade maceioense, além de lutar na defesa do SUS, sendo uma das coordenadoras dessa frente nacional.

    Em Cuiabá, Gilberto Lopes é funcionário da saúde e defende o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele terá o desafio de enfrentar os barões do agronegócio da soja e do gado que se encastelaram no Estado para defender os interesses privados.

    Em Florianópolis, o professor Elson Pereira é o candidato do PSOL, ao qual conseguiu aglutinar o maior número de partidos e de esquerda para a prefeitura em defesa de uma cidade mais humana e acolhedora para a própria população. Ele luta contra o racismo e o preconceito que predominam de forma geral na sociedade e, também, quer colocar a prefeitura para amparar os mais humildes.

    Vamos disputar em cada local deste país o direito de viver plenamente nas cidades, com projetos, práticas e ações que fazem valer a pena fazer política neste imenso e múltiplo país que é o Brasil.

    Reconhecemos e apostamos na sabedoria e na potência criativa do nosso povo, que é explorado todos os dias e em todas as dimensões, que possui, na maioria, mulheres, pessoas negras e indígenas, para construirmos um projeto de país que respeite a vida em todas as dimensões.

    *Francisvaldo Mendes é advogado e diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

  • LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    LOUVADAS SEJAM TODAS AS CRIATURAS!

    Por Chico Alencar

    No dia de São Francisco de Assis, que transvivenciou em 4 de outubro de 1226, o papa Francisco lançou nova encíclica, a “Fratelli tutti” – sobre a fraternidade universal e a amizade social. Na linha da “Laudato Sì”, sobre o cuidado da Casa Comum, Francisco de Roma inspira-se no de Assis. Despojado, condena a ganância de lucro do sistema capitalista e propõe uma outra sociedade, fundada na cooperação e na solidariedade. Onde ninguém seja descartado, invisibilizado, destituído de dignidade e direitos.

    São Francisco viveu seus 43 anos em comunhão com a natureza, sabendo-se irmão de todas as coisas criadas. Seu Cântico das Criaturas (Canticum Solis, título do manuscrito mais antigo, considerado o fundador da literatura italiana) é um jubiloso reconhecimento da beleza da vida – da formiguinha do caminho às estrelas mais distantes. Somos parte desse pluriverso, não seus donos! Somos todos chamados a participar da “divina alegria da Criação” (escrevi um livro sobre isso: ‘Cântico das Criaturas, ecologia e juventude do mundo’ – Editora Vozes, 2000)

    Francisco – inventor da recriação da cena do presépio, para celebrar o Natal – deixou esse mundo há 794 anos mas continua atualíssimo. E nos interpela, junto com sua amada Clara, sobre nosso modo de produzir, distribuir e consumir, injusto e tóxico, que devasta o planeta!

    Dele disse Alceu de Amoroso Lima (1893-1983): “No meio de uma vida em que se perdera a memória das coisas simples, veio mostrar o sabor da luz do fogo, da água, do ar, do som, da palavra. No meio de uma sociedade áspera no ganho, veio mostrar a delícia de não possuir. No meio do furor de todas as violências, veio mostrar o milagre da paz e da fraternidade. No meio de uma era complicada, raciocinadora, cheia de hierarquias e preconceitos, veio mostrar a originalidade da natureza, a eloquência das resoluções intuitivas, a coragem de agir sem medo por uma causa mais alta que os mesquinhos interesses da terra. São Francisco de Assis revolucionou a história. Com a fé de uma criança, renovou a alma do mundo”.

    “A melhor maneira de homenagear as pessoas a quem admiramos, e que partiram, é fazer o que elas fizeram”, recomendou o ‘Poverello’ de Assis.

    Façamos assim, sejamos diligentes cuidadores da ameaçada Casa Comum, a Terra. E praticantes, desde já, de gestos que prenunciam uma nova sociedade, fraterna, justa, solidária. Além de defensores de políticas públicas que coloquem o cuidado da natureza e respeito às pessoas e ao trabalho em primeiro lugar. Na “Fratelli tutti”, o papa Francisco nos convoca: “sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos acolhe a todos, cada um com a riqueza de sua fé ou de suas convicções, cada um com sua própria voz, todos irmãos!”.

  • Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    O golpe de 2019 tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição com impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região

    Por Igor Fuser e Fábio Castro

    Na lista recente das reviravoltas políticas em países latino-americanos, com a substituição de governantes de esquerda ou “progressistas” por políticos a serviço das oligarquias locais e dos interesses dos EUA, a mudança de rumo que ocorreu na Bolívia em 10 de novembro de 2019 foi, entre todas, a mais claramente golpista – e também a mais violenta, acompanhada pelas tenebrosas sombras do fascismo e do racismo.

    Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória. Consumava-se o golpe

    Em contraste com a discreta conduta dos militares nos golpes em países vizinhos (Paraguai, Brasil), na Bolívia quem deu a cartada decisiva para a derrubada do presidente Evo Morales foi um general, Williams Kaliman, a principal autoridade militar do país.

    Em meio a um cenário de caos em La Paz e outras cidades importantes, com as forças policiais amotinadas contra o governo e milícias de extrema direita tocando o terror, espancando integrantes da esquerda e incendiando casas, caberia a Kaliman, como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, pôr as tropas na rua, em cumprimento ao dispositivo constitucional que atribui aos militares a missão de garantir a ordem em situações extremas, como aquela. Mas não. Em vez disso, o general apareceu diante dos principais meios de comunicação rodeado por um grupo de outros altos oficiais para “sugerir” ao presidente que apresentasse a renúncia.

    Risco de assassinato

    Um conselho difícil de recusar. Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória, todos eles integrantes do partido governista, o Movimento ao Socialismo (MAS). Enquanto isso, os policiais disparavam balas de verdade contra manifestantes pró-governo em diversos pontos do país (no total, cerca de 60 bolivianos morreram enfrentando os golpistas).

    O Palácio Quemado foi invadido pelo líder da extrema direita racista de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, que ingressou no gabinete presidencial com uma bíblia na mão, enquanto, nas ruas, os partidários queimavam a Whipala – bandeira indígena multicolor adotada na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um símbolo tão importante quanto a bandeira nacional.

    Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, até então conhecida apenas pelas posições fundamentalistas cristãs, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas. Ela assumiu o poder de forma interina, com o pretexto de que sua função seria apenas a de convocar novas eleições. Tornou-se “a primeira ditadora da história do continente”, conforme escreveu Renaud Lambert no Le Monde Diplomatique.

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado. O que mais se discutiu no país foram os perversos processos de corrupção institucional que se estabeleceram, entre os quais o escândalo da compra, pelo ministro da Saúde, Marcelo Navajas, de 170 respiradores espanhóis superfaturados que jamais chegaram aos pacientes da Covid-19 aos quais se destinavam. Mesmo assim, Áñez entrou na disputa eleitoral, com a clara estratégia de ganhar tempo para inviabilizar a candidatura do MAS por meio de lawfare. Foram três prorrogações da data do pleito. A última delas provocou uma gigantesca mobilização de camponeses favoráveis ao MAS, que bloquearam as estradas bolivianas em centenas de pontos ao mesmo tempo, exigindo a imediata realização das eleições, marcadas finalmente para 18 de outubro.

    Candidato amplo

    Nesse cenário, a estratégia do MAS foi fortalecer a candidatura de Luis Arce, que em quase todo o período Morales foi o ministro da Economia. A percepção de que Arce é um excelente administrador sinaliza a aposta em um nome que, além de agradar aos militantes do MAS, tem o potencial de disputar o voto de eleitores centristas, atraídos a votar no principal candidato opositor, Carlos Mesa, um neoliberal que impulsionou a escalada golpista de 2019 sem se comprometer com o extremismo de Áñez e de Camacho. Dono de uma empresa de comunicação de massa, Mesa era o vice em outubro de 2003 quando o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada fugiu para os Estados Unidos após massacrar manifestantes que reivindicavam a nacionalização das jazidas de gás natural. Assumiu o governo, mas renunciou dois anos depois, em meio a uma crise provocada pela recusa em assinar uma lei, votada em plebiscito e aprovada pelo Congresso, com essa mesma medida.

    Abriu-se, à época, uma crise institucional que culminou com a realização das eleições antecipadas em que se saiu vitorioso o principal líder dos movimentos sociais, Evo Morales, com 53% dos votos. Atualmente, Morales comanda a campanha masista a partir do seu exílio na Argentina. Tentou disputar uma vaga de senador pelo departamento (província) de Cochabamba, mas teve sua candidatura bloqueada pela justiça eleitoral, por pressão do governo golpista.

    Contra e a favor

    As eleições estarão marcadas mais uma vez pela polarização entre os que estão a favor e contra o MAS. As pesquisas mais confiáveis apontavam, na segunda metade de setembro, que Arce tinha apoio para alcançar os 40% de votos suficientes para ganhar a eleição no primeiro turno, uma vez que o oponente mais próximo, Mesa, contava com apenas 26%. Pela lei boliviana, um candidato que obtenha 40% dos votos válidos é declarado vencedor, sem a realização de um segundo turno, caso alcance uma diferença de, no mínimo, 10% em relação ao segundo colocado.

    A divulgação dessa pesquisa levou Áñez a se retirar da disputa, em 17 de setembro, quando estava em quarto lugar nas intenções de votos, com cerca de 10%, e em queda. Em discurso pelas redes sociais, conclamou os bolivianos a se unirem ao redor do candidato que tiver mais chances de derrotar o MAS. “Se não nos unirmos, Morales volta”, alertou. Nesse momento, Camacho já se posicionava em terceiro lugar, com 14%, e não demonstrava a mínima vontade de desistir em favor de Mesa.

    Outras figuras da direita boliviana também estão (ou ainda estavam) na disputa, entre as quais o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e o pastor evangélico Chi Hyung Chung (de origem sul-coreana), ambos com índices magros de intenções de voto, em torno dos 3% a 4%, mas não totalmente desprezíveis. Nas eleições do ano passado, Chi obteve o terceiro lugar, com 9% dos votos.
    A unificação eleitoral das forças políticas conservadoras que se aliaram no golpe de 2019 é, de fato, indispensável para impedir que a esquerda reconquiste nas urnas o poder que lhe foi tirado pelo golpe. Na prática, essa é uma tarefa complicada, seja pelas ambições políticas envolvidas, seja pela rivalidade regional que divide a Bolívia entre a região andina marcada pela forte presença indígena, no oeste, onde se situa La Paz, e as planícies do leste, a região da Meia Lua, onde se destaca a cidade de Santa Cruz, reduto da elite branca do agronegócio e da direita mais agressiva.

    Mesa, com sua força concentrada no oeste, principalmente entre a classe média urbana, desponta como o herdeiro potencial dos votos de Áñez, o que o habilitaria a chegar em segundo lugar com uma diferença inferior a 10%, levando a eleição a um segundo turno em que a aliança da direita lhe daria grandes chances de derrotar o candidato do MAS. Para isso, no entanto, será necessário um acordo com Camacho, que lidera as pesquisas em Santa Cruz e está utilizando as eleições para fortalecer sua posição como líder regional e para ampliar o número de parlamentares sob seu comando.

    Nova liderança

    Seja qual for o resultado das eleições, uma provável consequência é o deslocamento de Morales da posição que vinha exercendo desde a primeira eleição presidencial, em 2005, como o líder incontrastável e absoluto de um amplo leque de atores da esquerda boliviana que se agregou politicamente com a criação do MAS, no final da década de 1990. Uma vitória de Arce consagrará uma nova liderança no país e no partido e, certamente, um novo estilo de ação política.

    A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018

    A conduta de Evo (como é chamado pelos simpatizantes), tanto no período anterior ao da crise em que foi derrubado quanto nos meses transcorridos desde então, é fator de discórdia no interior do MAS, conforme aponta Katu Arkonada, um militante de esquerda que emigrou do País Basco para se engajar nas fileiras masistas, onde se tornou uma referência no debate político. “É grande o descontentamento das bases”, escreveu recentemente. “Aconteça o que aconteça, mas sobretudo se ocorrer uma derrota, o MAS de Evo Morales deverá enfrentar um processo de reflexão e de autocrítica para não repetir os erros cometidos nos últimos tempos, tanto no governo como no exílio, um processo de renovação de dirigentes que vá bem mais além das burocracias”.

    Morales é o único, entre os integrantes do grupo de presidentes sul-americanos que simbolizavam o chamado “progressismo” – figuras como Chávez, Lula, Correa e o casal Kirchner, além dele próprio –, a ter a liderança questionada pelas próprias bases após o início da maré direitista na região. A relativa fragilidade política no pós-golpe tem a ver com um traço peculiar da inversão política ocorrida na Bolívia em 2019.

    Lá, a derrubada do governo progressista não foi antecedida por uma crise econômica nem por denúncias devastadoras de corrupção, como ocorreu no Brasil. A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018. Os casos de corrupção apresentados na mídia empresarial – alguns verdadeiros; outros, inventados – estiveram longe de causar o impacto verificado em outros países. Morales escorregou foi na política.

    Mobilização em queda

    Uma sublevação contra Evo Morales não estava no horizonte de ninguém. Mas, nas três semanas decisivas entre outubro e novembro de 2019, a oposição mobilizou-se com mais firmeza que as bases “evistas” que, depois de quase 14 anos no poder, foram perdendo capacidade de mobilização enquanto o Estado ia substituindo as organizações sociais como fonte de poder e burocratizando o apoio ao “processo de mudança”. Em poucas horas, aquele que foi o governo mais forte da Bolívia nos últimos 100 anos desmoronou por completo.

    Cinco anos antes, em 2014, Evo foi reeleito para um terceiro mandato com mais de 60% dos votos. Esse era um indicador de que, apesar das contradições e das dificuldades em avançar o “processo de mudança”, o líder indígena e camponês ainda possuía muita legitimidade entre a população. A direita não conseguiu propor um nome que pudesse vencer as eleições ou ao menos polarizar radicalmente o cenário político nacional, como aconteceu, respectivamente, na Argentina (com Mauricio Macri, eleito em 2015) e no Brasil, com a Operação Lava-Jato e a campanha do impeachment.

    Foi uma avaliação otimista do prestígio de Evo Morales, juntamente com a preocupação diante do cenário de avanço das forças de direita nos países vizinhos e de uma contraofensiva dos EUA em escala continental, o que levou o MAS, em 2016, a submeter a uma consulta popular a possibilidade de reeleição indefinida, o que viabilizaria a candidatura de Morales para um quarto mandato.

    O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino de nome Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A 18 dias do referendo, provou-se que era tudo mentira. Era tarde

    Pela Constituição boliviana, é permitida apenas uma reeleição para cargos executivos – e a primeira eleição de Morales foi excluída da contagem porque ocorreu nos marcos de uma legislação anterior. A cientista política Soledad Valdivia Rivera relembra que o presidente fechou o ano de 2014 com 75% de aprovação e o de 2015 com 65%, o que pavimentaria a chance de concorrer às eleições de 2019.

    Derrota no referendo

    Ao contrário do que esperava o governo, o referendo em 2016 foi a pedra de toque para a radical polarização do país. No dia 21 de fevereiro, o famoso 21F, a população decidiu pelo “Não”, ou seja, Evo Morales não poderia concorrer às eleições de 2019. Um resultado estreito, por uma diferença de 2,6%, pouco mais de 130 mil votos. Foi a primeira derrota de Morales. A interpretação de Rivera é bastante elucidativa sobre o que estava em jogo no referendo e quais as armas foram usadas. A autora indica que, entre outras coisas, ocorreu a participação ativa da mídia nas redes políticas que influenciaram os resultados do pleito, com a manipulação da opinião pública no chamado Caso Zapata.

    Tal episódio colocou em xeque a integridade da liderança política de Evo Morales por meio da montagem de um cenário novelístico moralista que envolvia sexo, abandono de filho e corrupção internacional, entre outras coisas. O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista da TV comercial apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino chamado Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A essa notícia, agregou-se em seguida uma outra de que Zapata teria utilizado sua ligação com o presidente para reivindicar vantagens em contratos do governo com uma empresa chinesa, para a qual (segundo dizia) teria trabalhado como lobista.

    Era tudo mentira. A criança jamais existiu, conforme a própria Zapata confirmou mais tarde, e a denúncia de corrupção não tinha pé nem cabeça.

    O fato é que o presidente e sua equipe não foram capazes de montar uma defesa adequada perante as acusações. Em suas declarações Morales (que é solteiro) se atrapalhou, não foi capaz de negar a existência de um filho abandonado e chegou a afirmar que recebeu a notícia de que o menino tinha morrido pouco depois do nascimento. A suposta mãe se recusou a apresentar a criança, alegando que fazia isso para proteger sua privacidade. Enfim, uma confusão dos demônios, que só se esclareceu quando, meses mais tarde, o próprio jornalista que fez a denúncia confessou que a certidão de nascimento era falsa.

    Em vez de aceitar a derrota no referendo, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”

    Aí, o estrago já estava feito. O timing da acusação, a apenas 18 dias do referendo, foi determinante para que a oposição fortalecesse a campanha e manipulasse a opinião pública a favor do Não.
    Não havia tempo para uma investigação adequada checar a veracidade das acusações. O papel da mídia no Caso Zapata foi decisivo para a vitória do Não. Antes da explosão do escândalo, as pesquisas ainda indicavam vitória do Sim, mesmo com toda a oposição articulada ao redor de um projeto comum: derrotar Morales.

    Interferência da mídia

    Soledad Valdivia Rivera, em livro sobre a política boliviana naquele período, conclui que o Caso Zapata demonstra como a mídia atua politicamente em favor da direita e, por outro lado, refuta as acusações frequentes de que Morales era um ditador e que impunha restrições à liberdade de expressão. Em seguida ao resultado positivo para a oposição, o Caso Zapata foi quase esquecido pelos meios de comunicação. Já tinha cumprido seu papel na cena política.

    Em vez de aceitar o resultado do referendo de 21F, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira política. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial, recorrendo ao Judiciário com o argumento de que o bloqueio a uma nova candidatura era uma violação aos direitos humanos, já que todos os cidadãos devem ter iguais possibilidades de concorrer aos cargos públicos. No final de 2017 o Tribunal Constitucional aprovou o recurso do presidente, numa decisão cujo efeito prático foi invalidar o resultado do 21F.

    Desde o ano anterior, um único tema já dominava completamente a agenda política do país: uma discussão interminável em torno da alternância ou da perpetuação no poder. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”.

    No campo da esquerda, hegemonizada pelo MAS, não houve espaço para discutir a possibilidade da indicação de um candidato alternativo para a sucessão. Sendo o partido um instrumento político dos movimentos sociais, a pressão das organizações camponesas e a força política de Morales, amparado em dois mandatos de forte crescimento econômico e distribuição de renda, além de uma política anticíclica que manteve a estabilidade, ofuscaram qualquer discussão sobre uma possível renovação no poder. O presidente negava a intenção de se perpetuar no palácio, indicando que esse seria o último mandato do binômio Morales-Linera e que despontavam nomes de jovens possíveis candidatos à sucessão em 2025: a já mencionada senadora Adriana Salvatierra e o líder cocalero Andrónico Rodríguez.

    Milícias violentas

    Entretanto, a insistência na candidatura de Morales promoveu uma mudança qualitativa na polarização política do país. Há indícios da formação de milícias violentas em todo período entre o 21F e as eleições de 2019, fenômeno explícito em algumas demonstrações antidemocráticas, de ódio, contra Morales e o MAS. O foco dessa oposição se situou na região de Santa Cruz, mais exatamente no Comitê Cívico, que se aglutinava sob a liderança de Camacho.

    Há ainda outro fator importante nessa história. A Bolívia apostou suas fichas do futuro na estratégia de industrialização do lítio no país, tendo como fundamento a vantagem comparativa de possuir as maiores reservas dessa matéria-prima no mundo. Apesar de o projeto avançar lentamente e ainda constar da esfera das perspectivas, o lítio entrou de vez no contexto da polarização política, quando outro comitê cívico, o de Potosí (ComciPo), imprimiu um tom de desafio às reivindicações ao redor do tema dos royalties da exploração de lítio para a região, acusando o governo de entreguista pela associação da estatal boliviana YLB com a empresa alemã ACISA. Marco Pumari, o líder do Comcipo, iniciou uma greve de fome justamente 20 dias antes das eleições do ano passado (mais uma vez, o timing perfeito).

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos e uma pequena vantagem acima dos 10% de diferença sobre o segundo colocado, Carlos Mesa. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano. Os movimentos de classe média ocuparam as ruas e começaram a organizar paralisações ao redor dos comitês cívicos, sob a liderança de Camacho. Agitou-se a denúncia de fraude nas eleições.

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da OEA foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano

    Morales se viu pressionado, pois, além da capilaridade, os protestos foram marcados por uma escalada de violência. Quando, acuado, o presidente se dispôs a aceitar a anulação do resultado e a concorrer em novas eleições, já era tarde. A oposição, sentindo a fraqueza do presidente e a ausência de mobilizações significativas em seu apoio, partiu para o golpe, com uma brutalidade e audácia que deixaram o campo masista em estado de choque.

    Encruzilhada eleitoral

    Agora o golpe boliviano tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição que terá um impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região. Aliás, a presença da liderança “progressista” no país vizinho é uma mudança qualitativa no cenário que rodeia a eleição boliviana e pode ser um elemento determinante para a afirmação dos resultados do pleito em caso de vitória do MAS, muito diferente do que aconteceu em 2019, quando o país estava cercado pelo véu Bolso-Macri. Isso, se os chefes políticos da oligarquia, assessorados de perto por operadores estadunidenses ligados à gestão de Donald Trump, não deflagrarem um “golpe dentro do golpe” (desconfia-se que o governo de Áñez esteja conspirando para declarar a ilegalidade do MAS), o que transformaria a Bolívia na primeira ditadura sul-americana ostensiva e escancarada no século 21.

    *Igor Fuser é professor no Bacharelado em Relações Internacionais e nos programas de pós-graduação em Energia e em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
    *Fábio Castro é economista, doutorando em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor no ensino superior.

  • ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    ENTRISMO DOS BANQUEIROS

    Por Everton Vieira

    É de uma ingenuidade, de uma imaturidade, de uma falta de compreensão abissal do que é e como funciona a luta de classes, acreditar que um banqueiro faz doações eleitorais “sem querer nada em troca”.

    Camaradas, vamos ao ponto, sem rodeios: eles já estão conseguindo o que queriam. Primeiro, tentar quebrar a nossa narrativa histórica de independência política e de classe. Nossa denúncia firme, contundente da farra dos bancos de como esses canalhas colocam nossa classe de joelhos para sofrer a miséria e a fome.

    Já estão nos dividindo mais uma vez, cooptando setores que estão protagonizando as lutas de massa de nossos tempos, setores que embora não sejam majoritariamente marxistas, estão influenciados por direções socialistas.

    Esse debate não é sobre Wesley ser ou não um traíra, não se trata de uma discussão de moralismos vazios. Trata-se de um debate profundo sobre a política, sobre o potencial político de uma narrativa firme contra banqueiros, sobre a disputa de influência de setores fragilizados da nossa classe que podem ser cooptados para uma prática política conciliadora.

    Não é uma política simples de compra de votos e eleição de parlamentares, é mais complexa, a “contra proposta” não é aceitar essa ou aquela votação, é desarmar militantes abnegados para enfrentar o capital. É esvaziar nossos discurso e desmoralizar nossas denúncias. Infelizmente, estão conseguindo.

    O estatuto do PSOL proíbe financiamento de banqueiros, quem acha que isso é esquerdismo, há muitos partidos no campo da esquerda que não acham que essas práticas são um problema. O PSOL sabe que é um problema, e até que uma disputa interna mude essa concepção histórica do partido – e espero que isso não aconteça, ela precisa ser respeitada.

    Banqueiro não dá ponto sem nó. Entrismo para enfraquecer nossa narrativa, cooptar setores fragilizados e com potencial explosivo, esvaziar nosso conteúdo político, desmoralizar nossas denúncias e domesticar a ação política através de aparelhos muito bem planejados de disputa de hegemonia.

    É uma boa oportunidade para fazer política grande: ir na imprensa e dizer que a luta contra o racismo passa também por recusar dinheiro arrancado do nosso povo com reformas que trouxeram mais miséria, fome e desespero. É possível construir uma narrativa política contundente, firme e que dialogue com amplos setores. Isso ajuda mais do que alguns trocados de banqueiro para fazer anúncios no facebook.

    Para mim, importante não são os que vão, são os que ficam e os que virão.

  • Naturalizamos o horror? Por Maria Rita Kehl

    Naturalizamos o horror? Por Maria Rita Kehl

    Naturalizamos o horror?

    Sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa. Não olhar para o que se passa além da porta é um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos

    Por Maria Rita Kehl

    É noite. Sinto que é noite/
    não porque a treva descesse/
    (bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/
    no fundo de mim, o grito/
    se calou, fez-se desânimo//

    Sinto que nós somos noite/
    que palpitamos no escuro/
    e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/
    E de que adianta uma lâmpada?/
    E de que adianta uma voz?…

    Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo (1943-45)

    Nós, humanos, nos acostumamos com tudo. Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.

    Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.

    O Brasil tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E, depois da abolição, naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados, jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer

    Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.

    Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.

    Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.

    Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.

    Tolerantes, mas nem tanto

    Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais. Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no antigo programa Praça da Alegria.

    Achamos normal que um capitão reformado tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período

    Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladas fiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.

    Também achamos normal que o melhor presidente que o país já teve tenha sido preso – por que, mesmo? Ah, um pedalinho num sítio em Atibaia. Ah, um apartamento no Guarujá, calma lá!

    Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…

    Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.

    Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.

    Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de Monteiro Lobato.

    Então, em 2018…

    … naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fake news contra ele e sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista! Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.

    Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora

    Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.

    E os que não têm pão? Que comam bolo…

    E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.

    E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo

    Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. Os R$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua. Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?

    Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936:

    Viva la muerte!

    P.S. Uma pergunta, para terminar: por que o Queiroz depositou 89 mil na conta de Michele Bolsonaro?

    Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e crítica literária. Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-14).

     

  • PAULO FREIRE CENTENÁRIO, ETERNO!

    PAULO FREIRE CENTENÁRIO, ETERNO!

    PAULO FREIRE CENTENÁRIO, ETERNO!

    Por Chico Alencar

    O educador Paulo Freire, nascido em 19 de setembro de 1921, é o brasileiro com mais títulos Doutor Honoris Causa: 41, entre esses o de universidades como Harvard, Oxford e Cambridge. É reconhecido no mundo por sua pedagogia da leitura crítica e amorosa da vida, expressa em 19 livros (alguns traduzidos inclusive em coreano e russo): Paulo frère, Paulo free!

    O professor Paulo Freire dá nome a 302 escolas municipais, estaduais e particulares no Brasil, em todos os estados. 31 praças e ruas do país também têm seu nome, além de muitos assentamentos de Sem Terra e ocupações dos Sem Teto. Paulo é símbolo de justiça social. Foram também 31 as escolas que inaugurou, junto com a admirável prefeita Luiza Erundina (gestão 1989-1991), como Secretário de Educação do município de São Paulo.

    Paulo repetia que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: as pessoas se libertam em comunhão”. Paulo sabia que “a educação não transforma o mundo; ela transforma as pessoas, e as pessoas mudam o mundo”. Paulo, atento aos outros e à cultura popular, nunca pretendeu ser dono da verdade: “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”.

    Paulo Freire consolidou, com sua obra, uma mudança na concepção da educação brasileira, iniciada com os pioneiros da Escola Nova, nos anos 30 do século passado, sob a liderança de Anísio Teixeira. Para que ela se tornasse mais crítica e não repetitiva, de reflexão e não mera memorização, mais vinculada à vida real, e não à idealizada. No lugar de “Ivo viu a uva”, entrava “Maria cozinha o feijão” ou “João assenta o tijolo”. Uma educação que questiona tanta coisa de “não”: privação, desigualdade, exploração, opressão. Uma educação que, ensinando a olhar para fora e para dentro, objetiva e subjetivamente, gera conscientização. No Brasil, os anacrônicos, obscurantistas e estúpidos querem banir Paulo e apagar sua obra. Não conseguirão. Nós, educador@s que tanto aprendemos com ele, seguiremos, em sua memória, vivendo “docentemente”. Os autoritários, os opressores passarão. Paulo Freire passarinho!

  • PSOL, UM PARTIDO NECESSARIO PARA CONQUISTAS DEMOCRATIZANTES

    PSOL, UM PARTIDO NECESSARIO PARA CONQUISTAS DEMOCRATIZANTES

    PSOL, UM PARTIDO NECESSARIO PARA CONQUISTAS DEMOCRATIZANTES

    Por Francisvaldo Mendes, presidente da FLCMF

    O Partido Socialismo e Liberdade aprovou os critérios de distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha- FEFC para todo o país. Espera-se assim fortalecer as campanhas, a militância e as pessoas filiadas ao PSOL. Convictos de que há muitos desafios a serem superados, vamos enfrentar coletivamente as dificuldades e produzir reflexões em toda a base partidária para superar a mesmice hegemônica na política do país.

    O FEFC é um financiamento do Estado, mas simboliza um fundo público, pois é o mais próximo que a correlação de forças atual permitiu avançar contra o financiamento privado. Com essa conquista democrática, ainda que não como desejávamos e queríamos, ficamos menos distante de campanhas profundamente desiguais sustentada no capital e ampliadas pela força do dinheiro. Assim que enxergamos a Lei 9.504/97, regulamentada pela Resolução do TSE, número 23.605 de 2019, que cria e organiza o FEFC. No Brasil há 33 partidos legalizados com suas siglas e números disponíveis para disputar as eleições em 2020. Ou seja, a verba contempla todas essas siglas legalizadas na justiça eleitoral, mas com divisões distintas, impactando de forma diferenciada em cada uma delas.

    O Recurso Público tem sofrido ataques daqueles que vivem da desigualdade existente na sociedade e daqueles que veem o Estado como meio de tirar vantagem. Nós que apoiamos a luta para superar as desigualdades e apostamos na democratização queremos – e de tudo faremos – para diminuir progressivamente as desigualdades nas disputas políticas. Conquistar fundo público, com controle dos setores organizados e com distribuições menos desiguais é uma disputa que está em movimento e apostamos que avançaremos ainda mais. Enquanto os setores que defendem o financiamento privado querem acabar com o fundo existente, nós queremos avançar para um fundo público, democrático e participativo. Não se pode ter dúvidas que, mesmo a disputa eleitoral de 2020 se limitando aos municípios, essa é uma das questões que estará na roda e pintará as diferenças políticas em movimento.

    O Dinheiro disponível para o FEFC será dividido por 33 partidos que poderão ter candidatos e candidatas para disputar as prefeituras e a vereança por todo o Brasil. O valor total disponibilizado em 2020 é de R$ 2.034.954.824 e será dividido da seguinte forma:  R$ 40.699.096,48 serão distribuídos igualmente para todos os partidos, já os outros R$ 1.994.255.727,52 seguirão outros critérios de distribuição. Ou seja, o valor de R$ 976.778.315,52, 48% do total, será dividido entre os partidos na proporção do número de representantes na Câmara dos Deputados conquistado na última eleição geral; 712.234.188,40, 35% do total,  serão divididos entre os partidos na proporção de votos válidos obtidos pelas siglas que tenham pelo menos um representante na Câmara; e 305.243.223,60, 15% do valor total, serão divididos entre os partidos na proporção do número de representantes no Senado. Ou seja, o poder político existente hoje tem peso fundamental para o poder político que existirá amanhã.

    Notem, a parte igual para todos os partidos será a menor, ou seja, todos os partidos receberão do Estado 1.233.305,95 que terá como acréscimo ou não as equações como colocadas acima, o que, sendo apenas assim, possui um vetor para perpetuar a desigualdade existente na representação política. Ou seja, os partidos grandes e tradicionais serão privilegiados, assim como os tais caciques políticos. Reforça-se assim a prática de garantir mais para aqueles que já são mais fortes em detrimento dos mais fracos, afinal essa é a lógica que predomina em uma sociedade capitalista e desigual.

    O PSOL é um partido socialista e libertário, democrático em sua raiz, desde a fundação e se coloca com o compromisso da ação mais próxima da verdade possível da ação democrática que acumulamos para exercer o poder coletivamente. O PSOL, de índole socialista como o nosso, deve defender a distribuição mais próxima da igualdade e equidade, com controle público apostando nas organizações e avançar para criar formas de auto sustentação revolucionarias de financiamento, como faz os próprios partidos/igrejas no Brasil, se sustentando pelos seus próprios filiados e filiadas. Um partido que conhece a realidade do Brasil, não pode ficar submisso ao ver as siglas partidárias de direita insurgir contra a democracia e fazerem o uso dos valores recebidos contra o povo e, por essa razão, disputaremos cada centavo do Estado para disputar e fazer valer a democracia.

    Nós devemos fazer o uso dos recursos controlados pelo Estado para avançar nas conquistas e para o avanço da democracia no mundo e no país, lançando candidatas e candidatos no máximo de cidades possíveis comprometidos com a construção solidária e humana da sociedade e com a construção partidária. Apostaremos principalmente na transformação da nação para que mais direitos, mais democracia e mais participação sejam conquistas de cada dia, valorizando cada militante que carregam o orgulho de pertencer a esse partido referência contra o capitalismo e a injustiça social. Não somos e não podemos ser complacente com a logica do sistema!

    O Estado, no Brasil principalmente, atua para que os poderosos do capital sejam cada vez mais poderosos, os lucros sejam intocáveis e os poderosos do Estado administrem a seu próprio favor o patrimonialismo institucional existente. Não há dúvida que frestas para avançar em ambientes, práticas e legislações a favor do público e da democratização são tarefas centrais das pessoas que são candidatas e parlamentares pelo PSOL. Assim como o empenho para acumular forças, com a mais ampla unidade de classe, para que as pessoas tenham mais vida e sempre com dignidade. Para isso, por sua vez, se faz necessário construir o partido, os movimentos, apostar nos setores organizados e na mais comprometida solidariedade.

    Todas as pessoas do PSOL precisam estar comprometidas com isso e fazer desse compromisso uma grande onda para acumular forças, criar frestas no Estado a favor da vida e potencializar o viver coletivo nas cidades.  Vamos mudar e superar esse modelo predatório que assola a multidão no país com exploração, racismo e machismo. Vamos, unificados, construir a democracia e a participação popular em todo território nacional.

  • O AUXÍLIO EMERGENCIAL QUE NÃO SUSTENTA A VIDA DIGNAMENTE:

    O AUXÍLIO EMERGENCIAL QUE NÃO SUSTENTA A VIDA DIGNAMENTE:

    O AUXÍLIO EMERGENCIAL QUE NÃO SUSTENTA A VIDA DIGNAMENTE

    Por Francisvaldo Mendes, presidente da FLCMF

    Essa semana foi mais uma das que marcam a vida, pois desde o dia 2 de abril desse ano, com o início dos efeitos da pandemia no Brasil, o Congresso Nacional aprovou a lei 13.982 que garante o auxílio emergencial. Mesmo quando a presidência da república falava em 200 reais, vindo do Congresso se chegou a 600 reais graças a pressão dos partidos de oposição, em especial o PSOL. Mas os três meses que estão na lei passaram e agora, o AUXÍLIO EMERGENCIAL, que quase acabou, será de 300 reais.

    O salário mínimo no Brasil é hoje de 1.045 reais, enquanto o DIEESE comprova, por meio de seus estudos, que deveria ser de 4.420,11. Isso, pasmem, o salário mínimo que as pessoas recebem para viver é menos que ¼ do salário mínimo necessário. Isso seria suficiente para mostrar que a vida da grande maioria das pessoas que existem no Brasil pouco importa para os “donos do poder”.

    O salário mínimo atual, esse que é um quarto do salário mínimo necessário, passa a ser também 3,5 vezes maior que o auxílio emergencial de 300 reais. E que se registre e não se deixe passar ou esquecer, quem recebe o salário mínimo, teve a sorte de uma carteira assinada ou quaisquer contratos de trabalho, não tem direito aos 300 reais. Isso é só um auxílio, não é perene, está longe do necessário, apenas uma emergência e nada significa a necessária renda básica universal e incondicional, essa sim com ar de perene, que por nós, trabalhadoras e trabalhadores, precisa ser conquistada.

    E tudo isso ocorreu em um período que a semana anterior já havia ampliado o peso do sistema nas nossas vidas e criado ainda mais confusões na cabeça das pessoas. Nas semanas anteriores o que se viveu foram complicações contraditórias que apontam para o fim da vida e não para a continuidade, muito menos com dignidade.

    O judiciário, o parlamento e o executivo apareceram no foco principal das câmeras da vida como protagonistas ou antagonistas sociais. As notícias variadas sobre os principais espaços de poder do Estado podem causar confusões ou apresentar suspiros de melhores tempos. Afinal, o senado aprovou consensualmente o FUNDEB, o STF firmou posição que o presidente não pode vigiar e punir os servidores, o TSE decidiu que tempo de TV e fundo eleitoral deve ser proporcional para candidaturas negras a partir das próximas eleições (não nessa de 2020); a confusão do público e privado ampliou na cabeça de brasileiras e brasileiros com a notícia de que a esposa do presidente recebeu grande escala de dinheiro de Queiroz. Enquanto isso tudo ocorre, a pandemia continua e os especialistas de saúde afirmam que o fardo está se a vacina vai funcionar e não quando funcionará. Ou seja, ainda não há previsão de fim e, tudo indica, vacina só para meados do ano que vem. Esse é o tempo que vivemos.

    Momento oportuno para aprender, pois, cabe fazer diferente para conquistar a vida roubada. Um dos aprendizados no tempo atual muito necessário está na mitologia grega, que pode ajudar com a diferença entre Chronos e Kairos, já que há a sensação de amargor no próprio tempo. Mas os desafios colocados exigem que, como sujeitos, sejamos capaz de construir a oportunidade no tempo e a intensidade necessária para que nós, os ´possíveis sujeitos das mudanças, sejamos capazes de transformar o tempo contínuo.

    Nós, pessoas que vivemos da venda da força de trabalho, com as múltiplas opressões de gênero e raça, para além da opressão da exploração do trabalho, temos o grande desafio de criar as frestas oportunas no tempo. Para isso, de um lado precisamos apostar na mais saudável e empática convivência entre todos os nós que vivemos da venda da força de trabalho e só isso temos para sustentar a vida. Por outro lado, construir a mais profunda unidade com força para ultrapassar as barreiras de impedimento para a mais profunda dignidade humana. Grandes desafios, mas não se pode fugir, esse é o tempo.

    Os poderosos do Brasil, na raia da ideologia populista que nos tomou de uma forma destrutiva, apostando em dependência e nos empurrando para objetos e criando barreiras para que não sejamos os sujeitos que podemos ser, continuam com suas malversações. No tempo atual somos empurrados para a morte em vida ou a morte do próprio corpo para deixar de existir. É hora da vida tomar o lugar da morte em todas as dimensões. Não se pode conviver com os acontecimentos como se fossem naturais e não basta cobranças ou denuncias sem saber e construir o que fazer. Precisamos assumir o papel de quem pensa e faz e para isso, ousamos repetir, se faz necessário formação, organização e ação.

    Precisamos levantar a cabeça e investir em formação, organização e ações qualificadas que possam garantir a vida e com dignidade. Esse é mais do que sempre foi, o momento de conquista uma renda básica incondicional e universal para todas as pessoas. A maioria sentirá o vento do viver com ações que apontem para reforçar o papel do sujeito e tenha no conhecimento o instrumento de mudança das pessoas para garantir a existência. Por isso é hora das ações, com solidariedade, compromisso e superação da bagunça de ordem que nos toma neste tempo impregnado de tristeza. Vamos fazer do tempo a intensa força de transformação para a vida existir e melhor do que até hoje existe em nossos corpos. Vamos transformar e garantir conquistas para viver melhor.