Categoria: Política

  • Impeachment, o descarte dos peões?

    Impeachment, o descarte dos peões?

    Impeachment, o descarte dos peões?

    A vulgarização do impeachment, a sua naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usado impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.

    José Luís Fevereiro

    A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação politica de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que este mecanismo tem servido á burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.

    A analise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, esses voláteis em cenários de crise.

     

    Concertação oligárquica

    Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações desta ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira ás tentativas de se derrubar Vargas, de se impedir a posse de Juscelino, de se bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente seu sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.

    Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez. Mas, pela natureza da sua base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, seu destino estava traçado.
    No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises politicas da burguesia.

     

    Impeachment de Bolsonaro

    Quando escrevo este texto, 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do seu governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do seu ministério minam seu apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.

    As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário politico pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital politico de peso. O sucesso destas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que pelo seu lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.

     

    Tempos acelerados

    Os tempos da politica estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas a se confirmar um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, e a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar seus seguidores mais fieis, com a crescente dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro deixam claro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.

    Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi esta mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os caso,s atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise politica decorrente do recurso a outsiders empoderados.

    Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e se necessário descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.

     

    Novas eleições

    O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise politica por parte da elite. Sempre que esta falou em pacificação da politica foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou suas forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.

    A vulgarização do impeachment, a sua naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usado impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.

    No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na politica e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise politica devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.

    Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo.

  • Impeachment: o povo é quem mais ordena?

    Impeachment: o povo é quem mais ordena?

    Impeachment: o povo é quem mais ordena?

     

    Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema-direita, acelere essa questão

     

    Chico Alencar [1]

    “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”

    Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brazil’, 1630

     

    Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre de seu mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações.  A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.

    A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.

    O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.

    E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos de seus cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram suas derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista –  a de Dilma, em 2016.

    Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militare.

     

    Maioria rara

    É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar sua base de sustentação, com base no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão subrepresentadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.

    Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), e Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram seus mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.

     

    Cerco popular

    Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.

    “Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda  progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo esses é que acabam governando.

    Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.

    A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).

    A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria através de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para este fim.

    Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema-direita, acelere essa questão?

     

    Espírito de submissão

    Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ ( no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.

    No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.

    Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços!

     

    [1] Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)

     

  • A esquerda deve investir na campanha do impeachment?

    A esquerda deve investir na campanha do impeachment?

    Uma prévia da próxima edição de Socialismo e Liberdade

    A esquerda deve investir na campanha do impeachment?

    Com a agudização da crise econômica e institucional, a grande imprensa e setores do mundo político começam a ventilar abertamente a possibilidade de impeachment do Presidente da República.

    O impeachment – ou impedimento – entrou na cena pública brasileira pela primeira vez na Constituição de 1946, em seu Capítulo III, artigo 79. A lei complementar que concretiza a norma constitucional é a de número 1.079, sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 10 de abril de 1950. Segue em vigor.

    Trata-se de uma transposição do voto de desconfiança dado a um primeiro-ministro, num regime parlamentarista, para um chefe do Executivo, no regime presidencialista. Assim, o processo de impedimento sempre se situa na fronteira entre medida legal e iniciativa política. A perda de maioria congressual qualificada – no caso brasileiro – sempre coloca o mandatário dos três níveis de governo sob o risco de impedimento.

    Diante da tensa conjuntura que o país enfrenta, Socialismo e Liberdade convidou o ex-deputado federal e professor de História Chico Alencar e o economista e membro do DN-PSOL para comentarem o polêmico tema. E decidimos antecipar aqui na página da Fundação a publicação dos artigos, que estarão nas páginas da próxima edição da revista.

  • Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Um balão de ensaio para a barbárie

    Por Francisvaldo Mendes

    A contínua marcha militar brasileira deve ser abolida o quanto antes. A determinação de Michel Temer em decretar a Intervenção Militar no Rio de Janeiro – ainda que possa ser uma densa cortina de fumaça para demonstração de força e busca de apoio dos setores mais reacionários da população – é a possibilidade do consórcio do golpe de 2016 em instalar um nível de excepcionalidade e de violência estruturante do sistema penal e do Estado brasileiro ainda mais intenso no comportamento da vida cotidiana da população. Principalmente e tão somente para os de baixo. Hoje, nas comunidades do Rio de Janeiro. Amanhã e depois, estendendo-se para onde quer que se queira.

    A primeira análise – acertada – logo após o anúncio da intervenção fez crer que esse decreto seria apenas “uma jogada” de Michel Temer para tirar o foco e camuflar as articulações para a aprovação da inescrupulosa Reforma da Previdência. Ventilou-se até que tendo os votos necessários, a intervenção seria interrompida por um dia, voltando a valer logo após a reforma passasse pela Câmara dos Deputados. Não será possível! O cão de guarda de Temer, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, extinguiu a possibilidade de votar a reforma – ao menos nos próximos meses. A matilha do golpe faz seus rearranjos. Tenta achar brechas, mecanismo, ações e enganações junto a mídia para dar resposta ao “mercado”. Não está conseguindo graças a forte reação e rejeição popular, demonstrada nas ruas e, também, no carnaval carioca. Significativo!

    Se em 2018 a reforma não sai, o que se está pretendendo, agora, é intensificar o estado penal e brutal dos próximos anos. Utilizando a intervenção até o dia 31 de dezembro como um grande balão de ensaio da barbárie. Não é que a intervenção militar vai criar um estado de exceção nas comunidades do Rio. Isso já existe há tempos. Temer moderniza tragicamente o que Rodrigues Alves fez – junto com Francisco Pereira Passos – com o povo dos cortiços do centro do Rio de Janeiro no início do século XX, quando se construiu a Av. Rio Branco e enxotou os egressos do fim da escravidão e o todo povo do centro da cidade com a justificativa de trazer a “paz e o progresso” para o Brasil.

    Discurso parecido. Mas, dessa vez, a tentativa não é só varrer o povo para outro lugar. É varrer o povo! O aumento da política de polícia ostensiva – agora, pela polícia do exército – será cada vez mais capilarizada e capitalizada para todos os espaços da sociedade e para a subjetividade do dia a dia dos de baixo. É a fachada. Igual às fachadas dos novos casarões da recém construída Av. Rio Branco – no início, os prédios da avenida só tinham a fachada mesmo, não tinha aposento, nem gente morando atrás. Eles querem matar, ainda mais, em qualidade e quantidade, nós, o povo.

    Não é à toa que circula, pelas redes, recomendações de que jovens, negros e negras, de comunidades do Rio de Janeiro comecem a andar, por exemplo, com a nota fiscal dos seus celulares junto consigo, que não esqueçam de jeito nenhum a identidade ou a carteira de trabalho quando saírem à rua – dentro de casa também -, que não usem bermudas de táctil, cabelos pintados, toucas, agasalhos com capuz. Eles – os ostensivos – é que escolhem quem é criminoso. Eles, que agindo com toda liberdade “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, é que terão ainda mais liberdade para exaurir de vez qualquer tipo de proteção de direito (à vida). A nossa saída é a unidade na ação política conjunta, organizada, num programa mínimo na defesa dos direitos fundamentais para a dignidade humana e para garantir o direito do nosso povo de viver. Precisamos demonstrar que a nossa força é a força coletiva.

  • Porquê o sistema ainda vencerá

    Porquê o sistema ainda vencerá

    Brexit, vitória de Trump, movimentos populistas na Europa: o Ocidente está protestando, à direita e à esquerda, contra as ortodoxias neoliberais e globalistas dos últimos 40 anos.

    por Perry Anderson*

    O termo “movimentos antissistêmicos” era comumente usado há 25 anos (1) para caracterizar forças de esquerda em revolta contra o capitalismo. Hoje, ainda que não tenha perdido relevância no Ocidente, seu significado mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram ao longo da última década já não se rebelam contra o capitalismo, mas o neoliberalismo – fluxos financeiros desregulamentados, serviços privatizados e crescente desigualdade social, variante específica do reinado do capital estabelecido na Europa e na América desde os anos 80. A ordem econômica e política resultante foi aceita de maneira quase indistinguível por governos de centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central de la pensée unique, a sentença de Margaret Thatcher de que “não há alternativa”. Dois tipos de movimento estão agora dispostos contra este sistema; a ordem estabelecida estigmatiza-os, à esquerda e à direita, com a ameaça do populismo.

    Não é por acaso que esses movimentos surgiram primeiro na Europa que nos EUA. Sessenta anos depois do Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum de 1957, resultado da comunidade do carvão e do aço do Plano Schuman – concebido tanto para evitar qualquer reversão de um século nas hostilidades franco-germânicas quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa ocidental – foi o produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, o enraizamento da democracia representativa e o desenvolvimento dos sistemas de bem-estar social.  Seus arranjos comerciais incidiram pouco na soberania dos Estados-nação que o compunham, os quais foram fortalecidos ao invés de enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio foram determinados internamente, pelos parlamentos responsáveis perante os eleitores nacionais, nos quais políticas politicamente contrastantes foram vigorosamente debatidas. As tentativas da Comissão em Bruxelas de formar um grupo foram acentuadamente rejeitadas por Paris. Não só a França sob Charles de Gaulle, mas, na sua forma mais silenciosa, a Alemanha Ocidental sob Konrad Adenauer perseguiu políticas externas independentes dos EUA e capazes de desafiá-los.

    O fim dos trinta anos gloriosos trouxe uma grande mudança nessa construção. A partir de meados da década de 1970, o mundo capitalista avançado entrou em uma longa desaceleração, analisada pelo historiador americano Robert Brenner (2): taxas de crescimento menores e aumentos mais lentos da produtividade, década a década, menos emprego e maior desigualdade, pontuadas por recessões acentuadas. A partir da década de 1980, começando no Reino Unido e nos EUA, e gradualmente se espalhando para a Europa, as direções políticas foram revertidas: os sistemas de assistência social foram reduzidos, as indústrias e serviços públicos foram privatizados e os mercados financeiros desregulamentados. O neoliberalismo havia chegado. Na Europa, isso veio ao longo do tempo para assumir uma forma institucional excepcionalmente rígida: o número de Estados membros daquilo que se tornou a União Europeia multiplicou-se por quatro, incorporando uma vasta zona de baixos salários do Leste europeu.

    Austeridade draconiana

    Da união monetária (1990) para o Pacto de Estabilidade (1997), depois o Ato do Mercado Único (1991), os poderes dos parlamentos nacionais são anulados numa estrutura supranacional de autoridade burocrática protegida da vontade popular, tal como o economista ultraliberal Friedrich Hayek profetizou. Com este mecanismo, a austeridade draconiana poderia ser imposta sobre os eleitores desamparados, sob a direção conjunta da Comissão e de uma Alemanha reunificada, agora o estado mais poderoso da União, onde os principais pensadores abertamente anunciam sua vocação para a hegemonia continental. Externamente, durante o mesmo período, a UE e seus membros deixaram de desempenharam qualquer papel significativo no mundo, em desacordo com as diretivas vindas dos EUA, fazendo com que o avanço das políticas da “neo-guerra fria” em relação à Rússia fosse estabelecido pelos EUA e pago pela Europa.

    Assim, não é de surpreender que as castas cada vez mais oligárquicas da UE, desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e incorporando diktats nas constituições, deveriam gerar muitos movimentos de protesto contra elas. Qual é o panorama dessas forças? No núcleo pré-ampliação da UE, a Europa ocidental da Guerre Fria (a topografia da Europa ocidental é tão diferente que se pode ser abandonada para propósitos presentes) , os movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Front National), na Holanda (Partido para a Liberdade, PVV), na Áustria (Partido Liberdade da Áustria), na Suécia (Democratas Suecos), na Dinamarca (Partido do Povo Dinamarquês), na Finlândia (Os Verdadeiros Finlandeses), na Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e na Grã-Bretanha (UKIP).

    Na Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda têm predominado: Podemos, Syriza e Sinn Fein. A exclusividade é a Itália que tem tanto um forte movimento antissistêmico de direita na Lega e um movimento ainda maior na divisão direita/esquerda do Movimento 5 Estrelas (M5S); sua retórica extra-parlamentar sobre impostos e imigração o coloca à direita, em contraste com sua atuação parlamentar à esquerda, de oposição consistente às medidas neoliberais do governo de Matteo Renzi (particularmente sobre educação e desregulamentação do mercado laboral), e seu papel central na derrota da tentativa de Renzi de enfraquecer a constituição democrática da Itália (3). A isso pode ser adicionado o Momentum, que emergiu na Grão-Bretanha por trás do inesperada eleição de Jeremy Corbyn para a direção do Labour Party. Todos os movimentos de direita, à exceção do AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que remontam a década de 1970 ou datas mais antigas. A decolagem do Syriza e o nascimento do M5S, Podemos e Momentum são resultados diretos da crise financeira global.

    O fato central é o maior peso global dos movimentos de direita em relação aos de esquerda, tanto em número de países onde eles chegaram ao governo quanto em força eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que encontra sua expressão mais marcante e mais concentrada na atual UE, com sua ordem fundada na redução e privatização dos serviços públicos; a revogação do controle democático e da representação; e desregulamentação dos fatores de produção. Todos os três elementos estão presente em nível nacional na Europa, como em qualquer outro lugar, mas são de um grau maior de intensidade no nível da UE, tal como atestam a tortura da Grécia, o atropelamento dos referendos e a escalada do tráfico humano.  Na arena política, eles são as questões primordiais de interesse popular, dirigindo protestos contra o sistema em relação à austeridade, soberania e imigração. Os movimentos antissistêmicos são diferenciados pelo peso atribuído a cada um – a qual cor na paleta neoliberal eles direcionam a maior hostilidade.

    Movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde cedo fizeram a questão imigratória um assunto de sua propriedade, apostando nas reações xenófobas e racistas para ganhar mais apoio entre os setores mais vulnerável da população. Com a exceção dos movimentos na Holanda e na Alemanha, que acreditam no liberalismo econômico, eles são tipicamente ligados (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) não à denúncia, mas à defesa do estado de bem-estar social, ao mesmo tempo que reclamam que a chegada de imigrantes minam este estado. Mas seria errado atribuir toda sua vantagem a essa carta; em exemplos importantes – a Front National (FN) na França é o mais significativo –  eles também têm uma vantagem sobre outras frentes.

    A união monetária é o exemplo mais óbvia. A moeda única e o banco central, concebido em Maastricht, fizeram a imposição da austeridade e da negação da soberania popular num único sistem. Movimentos de esquerda deveriam atacar isso tão veementemente quanto qualquer movimento de direita, se não mais. Mas as soluções que eles propõem são menos radicais. À direita, a FN e a Lega possuem remédios claros para as tensões da moeda única e para a imigração: sair do euro e parar os fluxos migratórios. À esquerda, com exceções isoladas, nunca se fizeram exigências tão inequívocas. No máximo, os substitutos são ajustes técnicos na moeda única, complicados para ter maior apelo popular e vagas alusões embaraçosas às cotas; nem chega perto de ser tão inteligível para os eleitores como as proposições diretas da direita.

    O desafio da crescente imigração

    A imigração e a união monetária criaram dificuldades especiais para a esquerda por razões históricas. O tratado de Roma foi fundado sobre a promessa de livre movimentação de capitais, commodities e mão-de-obra dentro de um mercado comum europeu. Enquanto a Comunidade Europeia estava confinada aos países da Europa ocidental, os fatores de produção onde a mobilidade mais importava foram o capital e as commodities: a imigração pelas fronteiras dentro da comunidade era geralmente bastante modesta. Mas, no final da década de 1960, o trabalho imigrante de ex-colônias africanas, asiáticas e caribenhas, e de regiões semi-coloniais do ex-Império Otomano, já foi significativo em números. A extensão da UE para a Europa oriental aumentou então consideravelmente a imigração dentro do bloco. Finalmente, as aventuras neo-imperais nas ex-colônias mediterrâneas – a blitz militar na Líbia e a propaganda na guerra civil na Síria – levaram grandes ondas de refugiados para a Europa, juntamente com o terror de retaliação por parte de militantes da região onde o Ocidente permanece acampado como senhor supremo, som suas bases, bombardeiros e forças especiais.

    Tudo isso acendeu a xenofobia: os movimentos anti-sistêmicos da direita se alimentaram dela, e os movimentos da esquerda a combateram, leais à causa de um internacionalismo humano. Os mesmos apegos subjacentes levaram a maioria da esquerda a resistir a qualquer pensamento de acabar com a união monetária, como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes passadas da Europa. O ideal da unidade europeia permanece para eles um valor cardinal. Mas a atual Europa de integração neoliberal é mais coerente do que qualquer uma das alternativas hesitantes que até agora propuseram. Austeridade, oligarquia e mobilidade dos fatores de produção formam um sistema interligado. A mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia: historicamente, nenhum eleitorado europeu foi consultado sobre a chegada ou a escalada do trabalho estrangeiro; isso sempre ocorreu por detrás de suas costas. A negação da democracia, que se tornou a estrutura da UE, excluiu desde o início qualquer posição na composição da sua população. A rejeição desta Europa por movimentos da direita é politicamente mais consistente do que a rejeição pela esquerda, outra razão para a vantagem da direita.

    Níveis recordes de descontentamento dos eleitores

    A chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento popular na Europa. As pesquisas agora registram níveis recordes de insatisfação com a UE. Mas, à direita ou à esquerda, o peso eleitoral dos movimentos anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três resultados mais bem sucedidos para a direita – UKIP, FN e Partido Popular Dinamarquês – foram cerca de 25% dos votos. Nas eleições nacionais, o valor médio na Europa Ocidental para todas as forças de direita e esquerda combinadas é de cerca de 15%. Essa percentagem do eleitorado representa pouca ameaça ao sistema; 25% pode representar uma dor de cabeça, mas o ‘perigo populista’ do alarme midiático permanece até hoje muito modesto. Os únicos casos em que um movimento anti-sistêmico chegou ao poder, ou parecia que poderia fazê-lo, são aqueles em que um deliberado super-ganho de assentos, através de um prêmio eleitoral destinado a favorecer o establishment, teve um efeito reverso; ou como na Grécia ou na Itália, esses movimentos arriscaram-se a participar desse jogo.

    Na realidade, há uma grande diferença entre o grau de desilusão popular com a UE neoliberal do presente – no último verão, maiorias na França e na Espanha expressaram sua aversão a ela, e mesmo na Alemanha, apenas a metade dos questionados apresentam uma visão positiva sobre o bloco – e a extensão do apoio às forças que se posicionam contra ela. A indignação e o desgosto com o que se transformou a UE é comum, mas há algum tempo o determinante fundamental dos padrões eleitorais na Europa tem sido e continua a ser o medo. O status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente ratificado nos pleitos com a reeleição dos partidos responsáveis por essa situação, por temores de que perturbar o status e alarmar os mercados traria ainda mais miséria. A moeda comum não acelerou o crescimento na Europa e ingligiu graves dificuldades aos países do sul. Mas a perspectiva de uma saída aterroriza mesmo aqueles que sabem até agora o quanto eles sofreram com isso. O medo supera a raiva. Daí a aquiescência do eleitorado grego na capitulação do Syriza em Bruxelas, os reves do Podemos na Espanha, as dificuldades do Parti de Gauche na França. O sentido subjacente é o mesmo em todo lugar. O sistema está mal. Afrontá-lo é arriscar-se a uma represália.

    O que, então, explica o Brexit? Imigração massiva é outro temor em toda a UE, e foi explorado no Reino Unido na campanha pelo Leave, no qual Nigel Farage foi um porta-voz e organizador hábil, juntamente com os proeminentes Conservadores. Mas a xenofobia por si só não é suficiente para compensar o medo de crise econômico. Na Inglaterra, como em toda a parte, a aversão aos imigrantes tem crescido à medida que governos sucessivos mentiram sobre as escalas da imigração. Mas se o referendo sobre a UE tivesse apenas sido uma disputa entre esses medos, como o establishment político pretendia que fosse, o Remain teria vencido indubitavelmente por uma margem considerável, como ocorreu em 2014 com o referendo sobre a independência escocesa.

    Havia outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica recusou a camisa de força do euro, apenas para perseguir um neoliberalismo nativo mais drástico do que qualquer outro do continente: primeiramente, a arrogância financeirizada do New Labour, mergulhando a Inglaterra numa crise bancária antes de qualquer outro país europeu e, depois, um governo Liberal-Conservador com uma austeridade mais drástica do que qualquer outra gerada sem constrangimento externo da Europa. Economicamente, os resultados dessa combinação são peculiares. Nenhum outro país europeu ficou tão polarizado por regiões, entre uma metrópole cheia de bolhas e bolsões de alta renda em Londres e no sudeste, e um norte e nordeste desindustrializado e empobrecido onde os eleitores sentiram que tinham pouco a perder se optassem pelo Leave (crucialmente, uma perspectiva mais abstrata que abandonar o euro), seja lá o que acontesse com a City e os investimentos estrangeiros. O medo contou menos que o desespero.

    Politicamente, também, nenhum outro país europeu tem tão flagrantemente manipulado um sistema eleitoral: UKIP foi o maior partido britânico individual em Estrasburgo sob representação proporcional em 2014, mas um ano depois, com 13% dos votos, ganhou apenas uma cadeira simples no Westminster, enquanto o Partido Nacional Escocês (SNP), com menos de 5% dos votos, ficou com 55 assentos. Sob os regimes intercambiáveis dos Trabalhistas e dos Conservadores, produzidos por esse sistema, os eleitores da base da pirâmide desertaram das urnas. Mas de repente concedida, uma vez, uma real escolha num referendo nacional, eles retornaramo com força para proferir seu veredito sobre as desolações de Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

    Finalmente, e de forma decisiva, veio a diferenção histórica separando o Reino Unido do continente. Por séculos, o país não foi somente um império que abteu qualquer rival europeu culturalmente, mas ao contrário da França, Alemanha, Itália ou a maioria do restante do continente, não sofreu derrota, invasão ou ocupação em qualquer guerra mundial. Logo, a expropriação dos poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atritos que em qualquer outro lugar: por que deveria uma estado que por duas vezes rejeitou o poder de Berlim se submeter a uma intromissão de Bruxelas ou Luxemburgo? Questões de identidade poderiam superar as questões de interesse mais facilmente que no resto da UE. Assim, a fórmula normal – medo de uma represália econômica supera o medo de uma imigração massiva – falhou, deformada por uma combinação de desespero econômico e amor-próprio nacional.

    O pulo dos EUA no escuro

    Essas eram também as condições nas quais um candidato presidencial dos Republicanos dos EUA de antecedentes e temperamento inéditos – abominável para opinião bipartidária mainstream, sem qualquer disposição de se conformar com códigos aceitos de conduta civil e política, odiados por muitos de seu atual eleitorado – poderia apelar para os suficientemente desconsiderados trabalhadores brancos do cinturão da ferrugem a fim de vencer a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a apreensão em regiões proletárias desindustrializadas. Aí também, muito mais crua e abertamente, num país com uma história mais profunda de racismo nativo, imigrantes foram denunciados e barreiras, físicas e processuais, foram demandadas. Sobretudo, o império não era uma memória distante do passado mas um atributo vívido do presente e uma reclamação natural ao futuro, mas tinha sido descartado por aqueles no poder em nome de uma globalização que significou ruína e humilhação para seu país. O slogan de Donald Trump foi “Fazer a América Grande Novamente” – próspero ao descartar os fetiches do livre movimento de mercadorias e de trabalho, e vitorioso em ignorar os obstáculos e as crenças do multiletarismo: ele não estava errado ao proclamar que seu triunfo foi um grande Brexit. Foi muito mais que uma revolta espetacular, uma vez que não ficou confinado a uma questão única (para a maioria do povo, simbólica), e esteva desprovida de qualquer respeitabilidade do establishment ou bênção editorial.

    A vitória de Trump colocou a elite política europeia, centro-direita e centro-esquerda unidos, em uma consternação ultrajada. Quebrar as convenções estabelecidas sobre imigração é ruim o suficiente. A UE pode ter tido poucos escrúpulos na transferência de refugiados para a Turquia de Recep Tayep Erdogan, com suas dezenas de milhares de prisioneiros, tortura policial e suspensão do que se passa dentro do Estado Democrático de Direito; ou na colocação de arames farpados na fronteira norte da Grécia para manter os imigrantes trancados nas ilhas do Egeu. Mas a UE, respeitando seu decoro democraico, nunca glorificou suas exclusões. A falta de inibição de Trump nesses assuntos não afeta diretamente a UE. A sua rejeição à ideologia do livre trânsito de fatores de produção, seu aparentemente desrespeito desaberto pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante com a Rússia são o que causa uma preocupação muito mais séria. Se qualquer um daqueles elementos é mais do que um gesto que logo será esquecido, como muitas das suas promessas domésticas, permanece algo a ser comprovado. Mas sua eleição cristalizou uma diferença significativa entre um número de movimentos antissistêmicos de direita ou de centro ambíguo e partidos da esquerda do establishment, rosa ou verde. Na França e Itália, movimentos de direita têm consistentemente se oposto às políticas de uma “nova guerra fria” e às aventuras militares aplaudidas pelos partidos de esquerda, incluindo a blitz na Líbia e as sanções à Rússia.

    O referendo britânico e a eleição dos EUA foram convulsões antissistêmicos da direita, embora flanqueadas por surtos antissistêmicss de esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn no Reino Unido), menores em escala, quando não menos esperados. Quais serão as consequências de Trump ou do Brexit é algo que permanece indeterminado, embora sem dúvida mais limitado que predições correntes. A ordem estabelecida está longe de ser batida em qualquer país e, como a Grécia mostrou, é capaz de absolver e neutralizar revoltas de qualquer direção com velocidade impressionante. Entre os anticorpos já gerados estão os simulacros yuppie dos avanços populistas (Albert Rivera, Emmanuel Macron na França), atacando os bloqueios e corrupções do presente, e prometendo uma política mais limpa e mais dinâmica do futuro, para além dos partidos decadentes.

    Para as movimentos antissistêmicos do esquerda em Europa, a lição dos anos recentes é clara. Se eles não quiserem ser ultrapassados pelos movimentos de direita, não podem ser menos radicais no ataque ao sistema e devem ser mais coerentes em sua oposição. Isso significa enfrentar a probabilidade da UE estar agora tão firmemente no caminho da dependência, enquanto uma construção neoliberal, que reformá-la não é algo mais seriamente concebível.  Teria de ser desfeita antes que qualquer coisa melhor fosse construída, seja rompendo com a atual UE, seja reconstruindo a Europa em outros marcos, lançando Maastricht às chamas. A menos que haja uma crise econômica muito mais profunda, é pouco provável qualquer uma das alternativas.

    * Perry Anderson leciona história na UCLA e publicou recentemente The H-Word: Peripetia of Hegemony, ed.Verso, Londres, 2017.

     

     

    NOTAS

    (1) Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros.

    (2) Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, New York, 2006.

    (3) Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde diplomatique, Edição Inglesa, January 2017.

    Fonte: Le Monde Diplomatique Inglesa (https://mondediplo.com/2017/03/02brexit)

    Tradução do original (em inglês) para o português: Charles Rosa – Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos

  • Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    por Juliano Medeiros*

     

        O resultado das eleições municipais deste ano ensejou, nos últimos dias, diversas análises sobre os rumos da esquerda. De todos os lados, analistas buscam compreender as razões que levaram à acachapante vitória eleitoral dos partidos associados ao golpe que conduziu Michel Temer à Presidência da República. A ideia de que o terreno perdido nos últimos meses exigirá uma necessária reconfiguração das forças progressistas parece encontrar eco em muitas vozes. No entanto, a “reorganização da esquerda” pode ter distintos significados a depender de como se interpreta a derrota que o impeachment e as eleições municipais deste ano representaram.

        Parece consenso que é chegada a hora de um profundo ajuste de contas na esquerda brasileira. O fim do ciclo do PT – que se anunciava desde junho de 2013 e se concretizou tragicamente com o impeachment de Dilma Rousseff – abriu um período de definições estratégicas para as forças populares. Um claro processo de reconfiguração da esquerda está em curso, dentro e fora das organizações tradicionais como partidos, sindicatos e entidades estudantis. No âmbito das organizações partidárias esse movimento é mais nítido. No PT, o movimento “Muda PT” representa para seus integrantes a derradeira batalha para salvar o simbolismo e a representatividade que o partido ainda detém entre parcela cada vez menor dos trabalhadores. Na Rede Sustentabilidade, as divisões internas chegaram a um limite insuportável, opondo lideranças de esquerda ao indecifrável projeto de Marina Silva. No PSOL, o crescimento do partido, que ocupou parte do espaço deixado pelo PT nas eleições municipais deste ano, exige definições sobre seu papel no novo ciclo que se abre para a esquerda brasileira. E até o pequeno e monolítico PSTU sofreu os efeitos da pressão em favor da reorganização: uma dissidência de centenas militantes deixou a legenda, rejeitando a tática do “fora todos” levada a cabo pelo partido durante o impeachment.

        Mas esse processo de reconfiguração da esquerda não se resume aos partidos. Aliás, é possível afirmar que é precisamente fora da vida partidária que essa reconfiguração se processa de forma mais dinâmica. O esgotamento do ciclo do PT – que nada mais é que o esgotamento de uma tática que envolveu centenas de organizações políticas e sociais em favor do chamado “pacto de classes” – já se nota no âmbito dos movimentos sociais há algum tempo. O surgimento de novas lutas, sobretudo nas grandes cidades, novos ativismos e formas de intervenção política, expressam também um novo momento para a esquerda social. Movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento Passe Livre (MPL), as ocupações de escolas em todo o país, o fortalecimento do movimento de mulheres contra o machismo e a violência, os novos movimentos de contracultura e o ativismo digital de coletivos como o Mídia Ninja, marcam o início de um novo ciclo na política brasileira. Isso não significa, é claro, que as formas “tradicionais” de organização política, como sindicatos, organizações de bairro ou entidades estudantis estão superadas. Significa apenas que esses instrumentos terão de ceder espaço a novas formas de ação política surgidas das transformações que o Brasil e o mundo vivenciaram nos últimos vinte anos, reinventando suas práticas e formas de organização para recuperar a legitimidade perdida.

    O impeachment como fim de um ciclo

        Afirmamos que o impeachment de Dilma marca o fim de um ciclo. Mas poderíamos ir além. Na verdade, o golpe que levou Michel Temer à presidência representa ao mesmo tempo o fim de dois ciclos. O primeiro é um ciclo mais geral da política brasileira, que começa com a Constituição de 1988. O golpe representa a ruptura do pacto que permitiu, ao longo de quase trinta anos, algum nível de estabilidade política e a garantia mínima da progressiva ampliação das políticas sociais. Mesmo no auge do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) direitos foram ampliados, apesar do retrocesso representado pela reforma do Estado promovida naquele período. Apesar de favorável às forças do conservadorismo, esse pacto permitiu o fortalecimento político e social do campo democrático-popular durante os anos 1990, a livre organização dos movimentos sociais e a vitória eleitoral da esquerda em 2002, mesmo que sob circunstâncias que se mostrariam fatais anos depois. Ao congelar os investimentos públicos por 20 anos, destruir o já insuficiente sistema que regulava a exploração do petróleo e retomar um agressivo ajuste no sistema de previdência, Temer implode o pacto que garantiu a estabilidade ao regime político brasileiro nas últimas duas décadas e encerra o clico instituído pela Constituição de 1988, abrindo um período de luta aberta pelos rumos do Estado.

        Por outro lado, na esquerda também se encerra um ciclo. A hegemonia do PT e do bloco histórico que o sustentou desde os anos 1980 chegou definitivamente ao fim. O historiador Lincoln Secco, em livro sobre a história do PT,1 afirma que o partido viveu três momentos em sua história. O primeiro foi marcado por um partido radical que liderava a oposição social à ditadura militar. O segundo momento é aquele em que o PT se consolida como oposição parlamentar ao neoliberalismo, quando o partido se institucionaliza e passa a viver a experiência de governar importantes municípios. O terceiro momento, que se inicia com a vitória de Lula em 2002, é aquele caracterizado pela ascensão do PT à condição de “partido de governo”. Nessa terceira e última etapa do processo de aggiornamento2 do partido à dinâmica do sistema político brasileiro, o PT incorpora plenamente a estratégia do pacto de classes, isto é, de uma aliança reformista assentada no crescimento econômico com distribuição de “dividendos” para todas as classes. Com o processo de impeachment e a implosão do pacto que o PT mantinha com diferentes frações da burguesia brasileira, o partido e seu campo de aliados tende a perder definitivamente a hegemonia sobre a esquerda brasileira. É o fim desse outro ciclo que exige definições urgentes sobre os rumos da reorganização das forças populares.

    Três tarefas urgentes para a reorganização da esquerda no Brasil

        Nossa situação política é inédita. Diferente de outros momentos da história, quando a esquerda foi coagida fisicamente pelas forças do conservadorismo e da reação, o que vemos hoje é um processo de “demonização” das organizações de esquerda que alcançou níveis inéditos desde a redemocratização. Combinando o desgaste promovido pela crise econômica e seus efeitos sobre os mais pobres com as denúncias de corrupção envolvendo altos dirigentes do governo e do PT, a mídia monopolista construiu com relativo sucesso uma associação quase automática entre “esquerda” e “corrupção/ineficiência”. Os partidos que compuseram o governo, como PT e PCdoB, sentiram mais fortemente os efeitos dessa narrativa no recente processo eleitoral. Mas ela não poupou nem aqueles partidos que jamais mantiveram qualquer envolvimento com atos de corrupção e nunca compuseram o governo Dilma, como o PSOL. A luta que se trava em torno das responsabilidades sobre a recessão econômica e a corrupção atingiu em cheio a esquerda.

        Quais seriam, então, as tarefas para contornar essa situação? Evidentemente, não há um “manual de reorganização da esquerda brasileira”. Mas há alguns elementos indispensáveis para enfrentar esse gigantesco desafio, que podemos sintetizar no tripé balanço / renovação programática / promessa. Vejamos como se apresentam cada uma dessas tarefas:

        a) Balanço:A mais urgente das tarefas para a reorganização da esquerda brasileira refere-se ao balanço da experiência dos governos petistas. Por mais de uma década, a esquerda brasileira se dividiu entre aqueles que apoiavam ou não o projeto liderado por Lula e Dilma. Por vezes, essa divisão tomava formas absurdas, onde uns se tornavam incapazes de ver os flagrantes limites dos governos de conciliação, enquanto outros fechavam os olhos para os inegáveis avanços que foram promovidos na expansão de alguns direitos sociais. Com o fim do ciclo do PT à frente do governo federal, torna-se possível desenvolver um balanço crítico e honesto dos avanços e limites que os governos petistas produziram. Exemplos não faltarão. Se por um lado é evidente que o crescimento econômico de quase uma década proporcionou uma melhoria nas condições de vida de parte expressiva da população mais pobre, com acesso a crédito, aumento real do salário mínimo e mais políticas sociais, por outro, não se pode esconder que a natureza do projeto de conciliação de classes não permitiu avanços mais profundos, manteve o país vulnerável à dinâmica do capital financeiro, fortaleceu o agronegócio predatório e deixou intocado o controle da informação nas mãos da mídia monopolista. Além disso, o mito conservador da “governabilidade” se impôs de tal forma sobre as iniciativas de participação direta da população sobre a política, favorecendo o fisiologismo e as alianças pragmáticas, que muitos terão dificuldades em admitir que o governo foi enredado em acordos que jamais deveria ter firmado. Por isso um balanço crítico e desapaixonado é indispensável para extrair as lições dos limites da conciliação de classes. Sem isso será impossível pensar um novo projeto político independente e comprometido com os interesses populares.

        b) Renovação programática:O bloco histórico surgido com o PT na luta contra a ditadura militar representou uma grande novidade na cena política brasileira. Aquela esquerda, renovada pelos novos atores políticos que entraram em cena no final dos anos 1970, construiu um programa ao mesmo tempo radical e inovador para enfrentar os séculos de atraso e exploração que marcavam nossa formação social. Ele estava muito à frente do reformismo que caracterizava, já naquela época, os partidos comunistas no Brasil. O chamado “Programa Democrático-Popular”, aprovado no 5º Encontro Nacional do PT, em 1987, reunia um conjunto de tarefas anti-monopolistas, anti-imperialistas e anti-latifundiárias que conferiam à estratégia do partido um caráter profundamente anti-capitalista e radicalmente democrático. Esse programa, rompendo com a tradição que fora hegemônica na esquerda até então, apresentava uma nova interpretação do estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e preconizava uma tática de fortalecimento das organizações de base do campo popular, rechaçando a conciliação de classes em favor da independência política dos trabalhadores e trabalhadoras. O abandono desse programa por parte do PT e sua relativa desatualização deixaram a esquerda brasileira, no século XXI, com um enorme “déficit programático”. Ao mesmo tempo em que foram incorporadas novas demandas à agenda política da esquerda nos últimos anos, especialmente no campo dos direitos civis, pouco se avançou na correta interpretação das mudanças que o Brasil viveu durante as últimas três décadas. A consolidação do processo de urbanização do capital e suas contradições trouxeram novas formas de dominação política e econômica que ainda precisam ser incorporadas à análise da esquerda. Essa renovação programática – econômica, política, social, cultural, ideológica – é uma condição indispensável para “reconectar” a esquerda ao Brasil real.

        c) Promessa: Os efeitos da derrocada do PT terão efeitos de longo prazo. Uma geração inteira de militantes, desiludida com as inaceitáveis concessões feitas pelo partido ao longo de quase catorze anos, já não acredita que outro instrumento partidário possa responder à tarefa histórica de liderar a reorganização da esquerda brasileira. Isso é natural. A decepção é profunda, tanto quanto a indignação pelos erros cometidos – em especial em relação à corrupção e à retirada de direitos dos mais pobres, marca do último ano de governo Dilma. Por isso, além de realizar um balanço crítico da experiência petista no governo federal e promover uma profunda atualização programática, a esquerda deverá lançar mão de uma promessa: a de que é possível construir um caminho diferente no futuro. Numa de suas principais obras,3 Hannah Arendt afirma que é a promessa que valida o perdão; isto é, apenas o compromisso de que algo novo está sendo construído no lugar do velho é que permite expiar os pecados do passado. Mesmo aqueles que nada tiveram a ver com os erros cometidos terão de consignar seu compromisso com a promessa de que nada será como antes. O perdão, que exime a esquerda das consequências dos erros cometidos, só pode ser validado pela promessa do novo. E esse novo que é reclamado pela nova geração de lutadores e lutadoras que está nas ruas não pode ser nada menos que uma esquerda horizontal, pluralista, radicalmente democrática e profundamente comprometida com os interesses dos explorados e oprimidos. Uma esquerda anticapitalista, socialista e classista, mas também feminista, negra, jovem, disposta a combater qualquer tipo de opressão. Perdão e promessa: eis o binômio do qual a reorganização da esquerda não pode fugir.

    Os atores da reorganização

        Consideramos que as tarefas que mencionamos – balanço / renovação programática / afirmação do novo – não poderão ser bem-sucedidas sem atores dispostos a encará-las como indispensáveis à reorganização da esquerda brasileira. Para isso será necessário um amplo processo de diálogo entre aqueles dispostos a enfrentar o momento de defensiva estratégica que os setores populares vivem e dar um novo sentido à luta em favor de um amplo instrumento político que unifique os que lutam contra a opressão e a exploração.

        Mesmo que os efeitos da ofensiva conservadora tenham sido devastadores, há diversos atores discutindo os rumos da reorganização da esquerda brasileira. No PT e na Rede Sustentabilidade há setores dispostos a debater a construção de uma nova síntese política “pós-PT”. Outras organizações políticas não partidárias também iniciam essa discussão. No âmbito dos movimentos sociais, novos atores já se apresentam como expressão concreta de um novo ciclo político que rechaça como limitadas as promessas do lulismo.4 Há ainda uma grande quantidade de intelectuais críticos que reivindicam uma profunda reflexão sobre os rumos do campo popular e democrático no Brasil, em favor de uma “nova esquerda” que se apresente como tal já a partir das eleições presidenciais de 2018. No meio desse turbilhão está o PSOL.

        O PSOL é hoje o polo mais dinâmico da reorganização da esquerda brasileira e o partido mais bem localizado politicamente para enfrentar esse desafio. Isso se deve a algumas razões específicas que garantem a ele uma posição privilegiada nesse processo. O primeiro e mais evidente é o fato do partido ter mantido, ao longo de seus onze anos de vida institucional, uma profunda crítica à estratégia de conciliação de classes levada a cabo pelo PT. Por essa razão o PSOL é visto como um partido coerente, capaz de arcar com as pesadas consequências de ser oposição de esquerda aos governos petistas para conservar suas posições. Além disso, a tática que o partido assumiu durante o impeachment, quando sua militância e suas figuras públicas se engajaram plenamente na luta contra o golpe, permitiu ao PSOL conectar-se com o mais importante movimento de massas ocorrido no país desde junho de 2013. Para os milhares de lutadores e lutadoras que tomaram as ruas contra o golpe, o PSOL foi visto como um partido capaz de deixar as diferenças de lado para unir forças em favor de um objetivo maior: a defesa da democracia. Por fim, vivendo toda a sua existência fora da dinâmica do Estado, o partido compreende melhor os novos atores sociais que emergiram na última década. Esses lutadores e lutadoras têm uma forte empatia com o partido e muitos concorreram pelo PSOL nas eleições deste ano. Portanto, se o partido tiver a sabedoria política necessária para se colocar à altura do momento histórico, ele pode se tornar a expressão “natural” de uma nova síntese política para essa nova esquerda que está se formando no Brasil. Mas para isso, será necessário responder às inadiáveis tarefas que mencionamos neste ensaio.

    * Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.

     

    1 Lincoln Secco. História do PT – 1978-2010. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.

    2 Termo em italiano que signfica atualização ou adaptação.

    3 Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2000.

    4 Para saber mais sobre o lulismo como expressão da política de pacto de classes nos governos petistas ver André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

     

  • A esperança que vem do Norte

    A esperança que vem do Norte

    por Juliano Medeiros *

         Durante o primeiro turno das eleições municipais deste ano, enquanto os principais meios de comunicação do país privilegiavam a cobertura da disputa eleitoral em São Paulo e Rio de Janeiro, uma verdadeira guerra era travada no norte do país. Durante todo o primeiro turno o candidato do PSOL à prefeitura de Belém, Edmilson Rodrigues, liderou as pesquisas de intenção de voto. Com apenas 42 segundos no horário eleitoral gratuito e duas inserções diárias de rádio e televisão, o ex-prefeito e atual deputado federal conseguiu superar adversários de peso e ir ao segundo turno contra o atual prefeito, Zenaldo Coutinho (PSDB).

         Numa recuperação impressionante, o candidato tucano venceu a disputa contra o delegado Eder Mauro (PSD) por uma vaga no segundo turno. O também deputado federal, famoso por suas posições de extrema-direita contra a comunidade LGBT e em favor de penas mais duras para menores infratores, perdeu a segunda posição na última semana de campanha, sendo ultrapassado pelo atual prefeito que agora enfrenta Edmilson Rodrigues.

         Belém é uma das três cidades em que o Partido Socialismo e Liberdade disputa o segundo turno. As outras duas são Sorocaba (SP) e Rio de Janeiro (RJ). Mas diferente destas, a disputa na capital paraense já toma o contorno de uma batalha épica.

         De um lado, o candidato do PSOL, ex-prefeito por oito anos, professor doutor, arquiteto e ex-sindicalista, defensor dos povos indígenas e do meio ambiente. Um crítico implacável do que chama de “dinâmica perversa do capital” que amplia as desigualdades sociais e econômicas. De outro, um típico representante da velha casta política que vive dos privilégios do Estado: o tucano Zenaldo Coutinho é político profissional desde a adolescência, jamais trabalhou e aposentou-se aos 44 anos. É um filho das elites paraenses, um produto de marketing produzido com esmero pelos tucanos no Pará durante os anos 90.

         Em 2012, na disputa que travou contra Edmilson Rodrigues no segundo turno, Zenaldo levou a melhor. Mas hoje chega desgastado ao segundo turno após quatro anos de completo abandono das políticas sociais, aumento da criminalidade e caos nos serviços públicos.

         O primeiro turno acabou com leve vantagem para Zenaldo: o candidato tucano alcançou 241.166 votos (31%) contra 229.343 votos de Edmilson (29,5%). Uma pequena diferença de pouco menos de 12 mil votos. No segundo turno, os candidatos de oposição declararam seu apoio a Edmilson.

         O primeiro foi o deputado estadual Lélio Costa (PCdoB), que obteve 0,76% dos votos no primeiro turno. Em seguida foi a vez de Ursula Vidal (Rede Sustentabilidade), uma das grandes surpresas da eleição. Ela alcançou 10,3% dos votos e declarou apoio a Edmilson na última semana. A candidata do PT, Regina Barata, que obteve 1,71% dos votos, também se manifestou nas redes sociais a favor do candidato do PSOL. O candidato do PMDB, o ex-reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Carlos Maneschy, fez questão de declarar seu apoio a Edmilson.

         O PMDB divulgou nota pública declarando neutralidade no segundo turno, mas Maneschy, um professor que jamais havia disputado uma eleição e conquistou supreendentes 9,7% dos votos, fez questão de manifestar-se em favor do candidato do PSOL. Até o delegado Eder Mauro, terceiro colocado na eleição, que optou por não apoiar nenhum candidato, fez questão de expressar seu repúdio à candidatura tucana numa coletiva de imprensa na semana passada, o que pode facilitar a conquista de seu eleitorado, crítico da gestão tucana, por parte de Edmilson. Esses apoios deram resultado: na pesquisa Ibope divulgada na semana passada, o candidato do PSOL lidera com 46% das intenções de voto, contra 43%.

         Para além da corrida eleitoral, há outras questões em jogo nesta disputa eletrizante entre PSOL e PSDB em Belém. Desde o impeachment de Dilma Rousseff e o aprofundamento da crise do Partido dos Trabalhadores, a esquerda brasileira passa por um processo de reconfiguração. Como é comum depois de um tsunami, o cenário devastador que o campo progressista encontrou nestas eleições também permitiu o surgimento novas alternativas.

         O PSOL, após onze anos de legalização, tem se tornado o polo mais dinâmico num processo de renovação da esquerda brasileira que pode levar alguns anos. Por não ter feito parte dos governos petistas, rejeitando a tática de conciliação de classe que marcou a política do PT nos últimos anos, o PSOL é o partido que detém as melhores condições para liderar este processo de renovação. E esse fenômeno, evidentemente, não se resume a Belém, mas ocorre também em outras cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Recife e Cuiabá.

         Mesmo em cidades onde os resultados eleitorais das chapas majoritárias não foram tão expressivos, como São Paulo e Belo Horizonte, o processo de oxigenação política da esquerda se faz sentir, com o surgimento de novas lideranças e a afirmação de uma agenda política de independência frente aos velhos partidos que se expressa mais claramente no PSOL.

         Mas a experiência de Belém é ainda mais emblemática. Isso porque na capital do Pará o candidato do PSOL representa ele próprio uma intersecção histórica. Edmilson Rodrigues foi prefeito pelo PT entre 1997 e 2004, mas deixou o partido em 2005, no auge do escândalo do mensalão. Foi um dos raros políticos com experiência administrativa e reconhecimento público a ter a ousadia de romper com o partido de Lula. Tem ampla penetração em bairros populares de Belém, contrariando a realidade do PSOL em outras capitais, onde o partido ainda não alcançou essa capilaridade.

         No entanto, a ruptura, que marca a rejeição da tática petista de conciliação com as classes dominantes, não significou a negação das boas experiências nascidas com as primeiras administrações petistas, que democratizaram a gestão do Estado, inverteram prioridades e enfrentaram poderosos interesses para assegurar a ampliação de direitos. Nessas experiências, onde se destacam os governos de Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992) e os dezesseis anos de governos populares em Porto Alegre, Belém surge como a primeira tentativa de implementar um programa democrático e popular no coração da Amazônia, com todas as suas particularidades históricas, sociais e culturais.

         Se os outros candidatos do PSOL que disputam o segundo turno no Rio de Janeiro e Sorocaba representam uma saudável e necessária renovação da esquerda (Marcelo Freixo tem 49 anos e Raul Marcelo tem 37), na candidatura de Edmilson se fundem o melhor daquilo que se produziu desde a redemocratização na forma de experiências de governos democráticos e participativos com a resistência daqueles que não aceitaram o vale-tudo da “governabilidade” e optaram por recomeçar praticamente do zero, criando o PSOL.

         Se estivesse no Sudeste, Edmilson sem dúvida seria um dos mais badalados políticos da esquerda brasileira. Isso porque ele representa o encontro entre passado e futuro, materializado na promessa de um presente de renovação e esperança. Mesmo que muitos não consigam ver, na batalha que se trava em Belém, também está em jogo o processo de reorganização da esquerda brasileira.

    *Juliano Medeiros é presidente da Fundação Lauro Campos

    (artigo originalmente publicado na página da Carta Capital em 19/10/2016)

  • Pela esquerda, de olhos abertos

    Pela esquerda, de olhos abertos

    por Cid Benjamin *

        Sou de esquerda. E desconfio de quem diz não existir mais esquerda e direita. Enquanto houver desigualdades sociais, haverá quem lute para eliminá-las. E haverá quem diga que elas são naturais. Os primeiros são de esquerda; os outros, de direita. Quando discuto política, me preocupo em sensibilizar quem não pensa como eu. Não me seduz falar para quem pensa igual. E assim como tento levar outras pessoas à reflexão sobre minhas razões, trato de ter a cabeça aberta.

        Essas preocupações estão presentes num livro que lancei recentemente, ‘Reflexões rebeldes’, com artigos variados. A maior parte combate teses sustentadas pela direita. Mas outros criticam posições equivocadas defendidas por gente de esquerda.

        As posições do presidente interino, Michel Temer, são duramente criticadas. A maioria retira direitos dos trabalhadores e favorece ainda mais quem já é favorecido. É o caso da “modernização” das leis trabalhistas, que cortam direitos previstos na CLT.

        Os cortes de recursos para as áreas sociais também não podem ser aceitos. Vão piorar a qualidade dos serviços públicos, prejudicando os mais pobres.

        Mas há teses defendidas por gente de esquerda que são criticadas no livro. Um exemplo: a tarifa zero nos transportes. Em 2013 o povo foi para as ruas por não aceitar o aumento das tarifas, sentido no bolso. Mas, se não se abrir a caixa-preta das empresas de ônibus, a implantação da tarifa zero fará com que as prefeituras reajustem o valor pago aos empresários sem que a população se dê conta. E, sabemos, há prefeitos muito dóceis no trato com os empresários de transporte. O do Rio, por exemplo. Basta ver que, aqui, a prefeitura calcula o valor das tarifas a partir das informações de receita e despesa que recebe dos empresários. Ela não fiscaliza esses números. Tudo é em confiança. Mas, pelo menos, quando há um reajuste, a população fica sabendo. Isso não acontecerá com tarifa zero.

        Este é um exemplo de como nem tudo o que é apoiado pelo movimento popular deve ser encampado acriticamente. Há outros exemplos. É preciso manter o compromisso com os mais pobres, mas não se deixar levar por aparências que significam um tiro no pé. Chamar a atenção para isso é um dos objetivos do ‘Reflexões rebeldes’.

    * Cid Benjamin é jornalista

    (Texto originalmente publicado no jornal O Dia – 16/08/2016)

  • O legado revolucionário de Fidel Castro

    O legado revolucionário de Fidel Castro

    por Juliano Medeiros*

     

       Fidel Castro não é apenas o principal líder de uma das mais extraordinárias páginas da história universal – a Revolução Cubana – ou o longevo líder de um povo que resiste há quase sete décadas às investidas do imperialismo contra sua liberdade. Fidel é o símbolo de um tempo: o tempo em que homens e mulheres enfrentavam corajosamente a morte em busca da liberdade, como fizeram antes dele Martí e Bolívar, como fizeram depois dele milhares de revolucionários em todo o mundo. Mas Fidel é também um homem do nosso tempo. O século XXI é pródigo naquilo que as enciclopédias antigamente chamavam de “vultos da humanidade”. E Fidel é um dos poucos nomes da envergadura de nomes como Lenin, Mao Tsé Tung, Ho Chi Min, Mandela e Gandhi, que chegaram aos dias de hoje.

       Neste 13 de agosto Fidel Castro completa 90 anos. E diante desta data extraordinária para qualquer ser humano, estive pensando, nos últimos dias, que tipo celebração a data mereceria. Já li muito sobre Fidel e aprendi a admirá-lo desde meus primeiros dias de militância política. Mas se tratando do líder cubano, sempre há formas de nos surpreender. Buscando algumas declarações recentes de Fidel, me deparei com seu breve discurso na sessão de encerramento do VII Congresso do Partido Comunista de Cuba. Nele, do alto de seus quase 90 anos, Fidel reafirma seu compromisso histórico com o socialismo, a revolução e a luta contra as opressões. Quantos chegaram a essa altura da vida sem renegar tais compromissos? Quantos não teriam deixado se levar pelo caminho fácil da conciliação? Quantos não teriam se curvado ante as promessas do inimigo?

       Em seu discurso, Fidel lembrou o lugar da história na luta pela transformação. Citou os exemplos dos pais da luta contra o imperialismo em Cuba: Maceo, Gómez e Martí. Com eles Fidel conclamou a revolução cubana a “melhorar com a máxima lealdade e força unida”. Citou, ainda, Lenin. E afirmou que seria inimaginável ver a obra do grande revolucionário de outubro ultrajada setenta anos depois, numa referência à restauração capitalista na Rússia no início dos anos 90. Mais do que isso, disse que “não devem transcorrer outros 70 anos para que ocorra outro evento como a Revolução Russa, para que a humanidade tenha outro exemplo de uma grande Revolução Social”, numa clara exortação à revolução como direito inalienável dos povos, tal como defendera em 1953 durante sua defesa no tribunal que o processara pelo fracassado assalto ao Quartel Moncada.

       Mas seu discurso não foi uma ode ao passado. Fidel dispensou uma atenção especial ao presente e ao futuro. Ele mencionou a necessidade da humanidade repensar sua relação com a natureza, sem a qual todos estaremos condenados à aniquilação. Peguntou Fidel: “como alimentar os milhares de milhões de seres humanos cujas realidades inevitavelmente colidem com os limites para a água e os recursos naturais que necessitam?” Ora, do alto de seus 90 anos, o líder da revolução cubana não deixa de adicionar preocupações a seu repertório.

       Estas palavras demonstram a grandeza de Fidel, que segue reafirmando sua fé na humanidade, na revolução e no marxismo. Por isso considero Fidel Castro um exemplo de revolucionário: nunca cedeu às tentações do voluntarismo ou da conciliação, como fizeram muitos outros líderes políticos de seu tempo; manteve a unidade do povo e da revolução através do exemplo revolucionário; apoiou a luta dos oprimidos em todos os continentes, mesmo sendo Cuba uma pobre ilha que teve que reorganizar completamente seu sistema econômico depois da revolução; apostou na transformação cultural do povo para construir o que Guevara chamou de “o novo homem e a nova mulher”; não se curvou jamais aos ditames do imperialismo e seus aliados; lutou pela paz mundial sem abrir mão da defesa ao direito inalienável dos povos à insurgência contra seus governos; construiu um modelo socialista que, apesar de suas limitações, alcançou conquistas inimagináveis. É claro que Fidel não é perfeito e, como qualquer líder político, cometeu seus erros. Mas até nisso ele é diferente de outros revolucionários: a autocrítica é uma de suas marcas mais impressionantes, que o diferencia não só de outros líderes mundiais, mas da maioria dos seres humanos.

       Ser “castrista” no século XXI, portanto, não significa defender a tomada do poder por uma pequena guerrilha mal equipada e inexperiente, mas cheia de disposição revolucionária e idealismo. Ser castrista significa, ao contrário, compartilhar dos valores da solidariedade internacional, da paz mundial, da luta pela construção de uma cultura de fraternidade. Ser castrista é acreditar na revolução como um processo historicamente possível, é ser radicalmente anti-imperialista, é buscar uma visão crítica dos demais processos revolucionários sem julgá-los. Ser castrista é reconhecer que o processo iniciado por Fidel e seus camaradas em Cuba é parte de um movimento continental que ainda não se concluiu historicamente e do qual todos os socialistas latino-americanos fazem parte, gostem ou não.

       Como escreveu Florestan Fernandes, pela passagem do 25º aniversário do triunfo revolucionário liderado pelos homens e mulheres do Movimento 26 de Julho: “A revolução cubana desvenda o futuro da América Latina. Uma nova civilização já começou a ser criada, em uma sociedade nova e por homens novos, libertos das servidões do colonialismo e do neocolonialismo. O que está em jogo não é mais o que se imaginou, na década de sessenta, ser a ‘via cubana’ para a revolução e o socialismo – a guerrilha. Após vinte e cinco anos de vitória e aprofundamento da revolução, Cuba dá uma lição de humildade, de firmeza e de determinação, inclusive que a revolução possui vários caminhos na América Latina. (…) Ela é um dos países socialistas mais autênticos e o único que imprimiu vida estuante própria ao princípio da liberdade igualitária”. Não por acaso o artigo de Florestan Fernandes levou o título de 25 anos de castrismo. A extraordinária obra a qual o grande sociólogo brasileiro se refere não é mérito de Fidel Castro, mas de todo o povo cubano. No entanto, ela dificilmente teria chegado tão longe sem a determinação, a firmeza e o compromisso revolucionário de Fidel Castro. Por isso ele é, sem sombra de dúvidas, o maior revolucionário americano do século XX e merece todas as homenagens na passagem de seus 90 anos.

     

    *Presidente da Fundação Lauro Campos e dirigente do PSOL.