Categoria: Política

  • “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         No dia 20/06 ocorreu mais uma reunião do Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, com mesas pela manhã e à tarde. Coordenado por Gilberto Maringoni, foi a primeira atividade realizada na nova sede da fundação após a inauguração, ocorrida na sexta-feira (17/06).

         Pela manhã, o tema foi “A politização do Judiciário”. Compuseram a mesa Eloísa Machado de Almeida (FGV-SP), Silvio Almeida (Mackenzie) e Alysson Mascaro (USP).

       A professora de direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado de Almeida, centrou sua fala na caracterização e atuações do Supremo Tribunal Federal para avançar no debate sobre o tema proposto, buscando uma “análise mais pragmática da politização do judiciário, que vem se acentuado nesses últimos oito meses”.

          O Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Poder Judiciário, tem a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não é constitucional, inclusive negando qualquer alteração na Constituição que, por sua leitura, possa ferir seus princípios. Se isto, nos últimos anos, representou o avanço de algumas pautas, como a permissão para o aborto do feto anencéfalo, o casamento e a união estável homoafetivas, entre outras pautas (em ações denominadas como contra-majoritária – já que não passariam pelo sistema político conservador como o nosso) por outro lado, ressaltou a pesquisadora, há a necessidade de se refletir sobre essa forma de atuação do STF.

     

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    (Parcela dos participantes da reunião do Coletivo de Conjuntura)

           “Se isto pode ser visto com uma função positiva para o país, por outro lado o tribunal vem sendo usado, desde 1988, como um grande tutor do sistema político”, atestou Eloísa. Os partidos perdedores do debate político acabam levando suas questões para o Judiciário, se valendo deste para mudar a lógica das votações, mesmo em questões que pertencem exclusivamente à esfera política. “Todas as reformas políticas, por exemplo, foram corroboradas pelo Judiciário. E aqui eu posso falar de ‘verticalização’, da proibição da doação empresarial para campanhas e também a ação que permitiu a existência do PSOL, que é a ação sobre a ‘cláusula de barreira’”, e continuou “o que é relevante nesse espaço de debate da Fundação, de formação, é refletir o quanto que isso é favorável a um partido fazer, ou seja, não fazer de uma forma ingênua, porque quando você desloca o tema que originariamente deveria se dar nas arenas do sistema político para as arenas do Judiciário você está certamente alterando a lógica de se tratar determinada decisão”, o que pode acarretar num processo de deslegitimação de seu próprio espaço de atuação, que é o espaço político, como se dissesse que “eu prefiro que onze juízes decidam do que eu comprar essa briga na arena política”.

         A grande participação do Judiciário no sistema político não é uma característica brasileira, sendo comum a provocação de Cortes Constitucionais por partidos em países que possuem uma “Constituição tão audaciosa”, informou, o que muitas vezes contribui para que o sistema político, sobretudo o Poder Legislativo, caia em descrença frente ao conjunto da população: “quando analisamos os índices de confiança do Judiciário, é impressionante que a população acaba confiando mais no Judiciário do que no sistema político; o que não faz nenhum sentido, porque temos um judiciário que atua de maneira seletiva, que serve a pessoas e a grupos muito específicos, sobretudo aos interesses financeiros. E isso é um grande problema do ponto de vista democrático, porque a população confia em um Poder que é pouco transparente, seletivo e não representativo”, alertou a professora.

         Do ponto de vista da seletividade, por exemplo, Eloísa foi tachativa ao afirmar que no Brasil as violações aos Direitos Humanos só se perpetuam porque o Judiciário participa para perpetuá-las. “Nós temos ainda um país misógino, racista, que mata as pessoas, que tortura os presos porque o Judiciário é o grande poder que renova e permite que essas violações continuem. Por isso é importante pensar para que serve o Judiciário no Brasil ao invés de dotar nossas esperanças em um Poder tão seletivo e pouco transparente”.

     

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    (Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL-CE, faz seu questionamento à mesa)

       O debate teve sequência com a intervenção de Sílvio Almeida, professor do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, que logo de início questionou: “quando é que o Judiciário não foi politizado?”. Só é possível começar a falar em Poder Judiciário a partir das revoluções liberais que começam a fazer a separação entre Estado e Sociedade Civil. Assim, o Judiciário “sempre foi o fiador da ordem liberal”, e para entendê-lo é fundamental compreender três aspectos: como o liberalismo e o judiciário estão conectados de uma maneira que não permite compreender um sem compreender o outro; como a atuação do Poder Judiciário e as suas mudanças devem ser compreendidas por meio das transformações das atividades econômicas historicamente; e ver que os juízes são o produto mais bem acabado daquilo que eles mesmos dizem conter: da ideologia, e da ideologia liberal, da ideologia do capital – comprometendo seu discurso de imparcialidade.

       “Não existe golpe de Estado sem a participação do Judiciário, historicamente não existe isso”, lembrou o professor: “o Poder Judiciário sempre chancelou todos os golpes de Estado que ocorreram, inclusive aqui no Brasil”.

       Citando três exemplos históricos ocorridos no Judiciário dos Estados Unidos, Sílvio de Almeida lembrou de como essas transformações foram fundamentais para garantir a estabilidade política, lembrando que por estabilidade política deve ser entendido o bom funcionamento da ordem liberal. No caso brasileiro, voltando a Era Vargas, o professor lembrou da sua medida de aposentar compulsoriamente 100 juízes, além de reduzir o poder do Supremo Tribunal Federal.

       Sobre a chamada “independência do Judiciário”, Sílvio de Almeida afirma que essa bandeira esconde a orientação de que este Poder deve ser “independente em relação ao povo, e não às outras forças que atuam fortemente sobre ele”. E, por fim, atestou que “é uma ilusão liberal acreditar no Judiciário” e, assim, é necessário avançar “num debate político que estabeleça uma conexão com as questões do povo e com os anseios populares.”

     

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     (Armando Boito, professor da Unicamp, também participou do debate)

          Encerrando a mesa da manhã, Alysson Mascaro, professor de Direito da USP, foi claro ao dizer que não é a força que garante a propriedade, mas o Direito: “o mundo do Direito é exatamente o mundo que garante o capital e a propriedade privada, e ele só serve para isto. E como só serve para isto, e isto é chocante, não pode nem sequer ser contado assim, também não pode ficar nisto que é o fundamental: ele tem que ser salpicado de coisas que pareçam ser o contrário”.

         O professor apontou o que, na visão dele, seria uma contradição da esquerda em “defender mais direitos e nenhum retrocesso”, citando as bandeiras da preservação da CLT, criada na Era Vargas, e do FGTS, instituído durante o Regime Militar. A contradição residiria no fator de que “se nós defendermos os direitos, nós somos obrigados a defender a ordem”. E continuou, referindo-se ao PSOL, pedindo para que “um partido que tem socialismo no seu nome, precisa desta reflexão de que o Direito é um horror, e não que a atual fase do Direito é um horror”; e por isso que vivemos num momento no qual devemos “dobrar a aposta em uma luta política de esquerda: nossa luta é contra o capital e contra a ordem”, e de que “não devemos sacralizar o Estado de Direito”, já que o Estado é a forma do capital.

         Encerrando, Alysson afirmou que vivemos numa sociedade na qual o direito é hiperlouvado e a política hipercombatida, porque o direito deixa de permitir a existência de uma luta aberta e passa a permitir a existência de uma luta modulada. “E isto resultou numa geração de juristas, que é a geração que temos hoje, de pessoas absurdamente mal formadas, lixos intelectuais, mas que sabem muito bem procedimentos jurídicos mas são burríssimas em termos de horizontes políticos”. E, concluindo, afirmou que nós não devemos opor ao “direito” outro “direito”, ou “ao fim de tais direito, mais direitos. Nós devemos opor o contraste: o direito é o que é por causa do capital, então a nossa luta é contra o capital”. E assim, portanto, “a nossa luta tática do presente é desmontar este horror liberal que fala que é imparcial, mas imparcial nunca foi, nunca é e nunca será. Esta é a fórmula pela qual nós temos a pedra na mão no dia de hoje”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

     

     

  • Mohamed Abdelaziz, presente!

       Filho de um suboficial do exército marroquino, foi ao final dos anos de 1960 que Mohamed Abdelaziz encontrou os primeiros militantes nacionalistas saarauis que frequentavam as universidades de Casablanca e de Rabat. Depois de fazer suas primeiras atuações políticas no meio universitário, ele se engaja na luta armada primeiramente de forma clandestina, depois abertamente.

    Em maio de 1973, junto com Mustafá Sayed El-Ouali, se torna um dos membros fundadores da Frente Polisario, criada pelo conselho constitutivo reunido em Zouerat, na Mauritânia, sendo também um dos principais chefes militares do movimento.

    Três anos mais tarde, em 1976, é eleito secretário geral da Frente, que proclama a República Árabe Saarauí Democrática, ainda que este Estado nãos seja amplamente reconhecido pela comunidade internacional. Continua exercendo suas atividades como líder militar do movimento até se consagrar inteiramente às funções políticas, com sua eleição à presidência da República Saaraui em 1982.

    Depois de um primeiro encontro com o rei do Marrocos Hassan II, em 1989, as negociações prosseguem até a conclusão de um cessar-fogo em 1991. Um referendo sobre a autodeterminação da região, sob a égide da ONU, também está previsto. Entretanto, após 27 anos, Mohamed Abdelaziz morreu sem que este referendo fosse realizado, pois sofre a resistência do Marrocos que busca manter a região sob seu domínio, ainda que dando algum grau de autonomia. “O povo saaraui seguirá o combate”, prometeu Mohamed Keddad, dirigente da Polisário, e prossegui: “as qualidades de Mohamed Abdelaziz vão iluminar o caminho à conclusão da liberação do Saara Ocidental”.

    A Fundação Lauro Campos lamenta a morte do companheiro Mohamed Abdelaziz e se solidariza com a luta do povo saaraui pela sua independência.

    (Fontes: RFI Afrique, France24, AFP. Tradução: Rodolfo Vianna)

  • Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    por Rodolfo Vianna

    Ocorreu no último dia seis de maio em Salvador, Bahia, mais uma etapa do ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa”. Promovidas pela Fundação Lauro Campos, as atividades têm como objetivo incentivar as discussões e dar subsídios à formulação dos programas municipais a serem apresentados pelo PSOL nas eleições deste ano. Na etaparealizada na última sexta-feira, o tema foi “Cidades Negras: racismo, territorialidade e identidades no contexto urbano” e teve o apoio do Setorial de Negros e Negras e do diretório estadual do PSOL-BA.

    A mesa foi composta por Dennis de Oliveira, professor da USP e militante da Rede Quilombação; pelo advogado e professor da UFBA Samuel Vida e pela professora da UESF, Linesseh Ramos. Os trabalhos tiveram a coordenação de Fábio Nogueira, pré-candidato à prefeitura de Salvador neste ano. Militantes de nove estados brasileiros participaram do debate, assim como o vereador de Salvador Hilton Coelho e o candidato ao senado em 2014, o professor Hamilton Assis.

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    Primeiro a usar a palavra, Dennis de Oliveira frisou a necessidade de compreender os três aspectos centrais da constituição do Estado brasileiro. O primeiro, é o de ser um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, na qual a violência não é episódica. Apesar de vivermos em uma sociedade com um regime democrático institucional, Dennis de Oliveira lembrou que nas periferias ainda existe uma prática característica dos regimes autoritários: “você tem invasões de domicílios sem mandato de busca, você tem execuções extrajudiciais, prisões ilegais e tortura nas delegacias. Isso significa o quê? Isso significa que você tem ainda o contexto de um regime autoritário”.

    Retomando as três características do Estado brasileiro, Dennis de Oliveira entende que o “racismo é a ideologia que vai estar de forma transversal nesses três elementos. O racismo vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa crivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”. Esses elementos acabam por colocar a população negra na “franja da sociedade”, e essa posição acarreta aos negros e negras a perda do direito à cidade. “O conceito de periferia tem uma dimensão espacial, mas também uma dimensão simbólica: o que é periferia? Periferia é estar excluído do centro da política”, atestou o professor, “e essa periferia é para a gente a reconstrução simbólica da senzala”.

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    Na sequência, o professor Samuel Vida fez a sua contribuição. Para ele, há três questões importantes para se abordar o tema das “cidades”, como também para discutir o país e a sociedade brasileira. O primeiro é o “racismo institucional”, que apesar de ter sido formulado há quase 50 anos pelos jovens ativistas dos Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, na obra “Black Power: The Politics of Liberation”, “vem enfrentando um rebaixamento conceitual e interpretativo em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o de dizer que o racismo institucional é o fracasso do provimento de serviços equânimes do ponto de vista racial e étnico pelos organismos de serviços públicos e privados”. Essa compreensão para o professor é equivocada por vários aspectos, dos quais ele destacou dois: “primeiro, ao falar em fracasso presume que essas instituições são neutras e estão aptas a operar políticas de diversidade, o que é um grande equívoco: essas instituições nunca foram concebidas para operar políticas de diferença. Segundo, pressiona o enfrentamento do racismo institucional em torno dos funcionários, dos servidores” sendo que a solução muitas vezes proposta restringe-se à programas de reeducação de servidores. “Não é esta a questão principal”, afirma Samuel Vida.

    O segundo aspecto é 0 da necessidade de se dialogar mais com os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”. “Há a necessidade de se aprofundar o entendimento sobre o porquê que algumas vidas, alguns corpos, algumas culturas persistem como vulneráveis”. E, como terceiro aspecto, a importância de se dialogar com o conceito de “Estado de exceção”, com o reconhecimento de que, para além das experiências formais de ditaduras ou de autoritarismo, há uma funcionalidade excludente dirigida focalmente contra certos setores “e que foi amplamente acolhida por todas as experiências de gestão de todos os matizes, inclusive as dos matizes de esquerda, e que se traduz numa normalização da exceção”. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

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    Encerrando as contribuições dos convidados da mesa, a professora Linesseh Ramos centrou sua fala na luta antiproibicionista que desenvolve, especialmente como repercute para as mulheres negras. A política de guerra à drogas tem um marco histórico no Brasil que coincide com uma política internacional de contenção de grupos que é o período da Lei Áurea, fator que é fundamental para compreender que a política da guerra à drogas “é uma política essencialmente racista”. A professora lembrou que muitas drogas, especialmente a maconha e alguns chás, tinham um papel simbólico e ritualístico na cultura negra, e por isso sofreram uma política de estigmatização e de construção de uma relação negativa ao uso feito pelos negros.

    Lançando mão de dados do Ipea, Linesseh Ramos informou que o Brasil é o quinto país que mais encarcera mulheres negras, e o principal motivo para isso é a política de guerra às drogas, que serve de cobertura para a utilização do aparato repressivo do Estado de forma a violentar as mulheres negras, invadir seus espaços e matar seus filhos. “Muitos de nós, e falo de nós da esquerda em geral, inclusive muitos dos companheiros brancos, não assumem ou não podem assumir que fumam maconha por uma diversidade de estigmas, e não assumem também esse debate porque ele é colocado como um tabu. E, reparem, a gente trata na sociedade como um tabu uma política que mata jovens todos os dias”.

    Continuando, a professora deixou claro que “o empoderamento da mulher negra é algo que não volta mais atrás: a questão de colocar que nós podemos assumir espaços de poder na academia, na política e na própria vida não volta mais atrás, e isso é fundamental na luta democrática”, e atestou: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”.

    Encerrada as falas da mesa, a palavra foi aberta aos participantes do evento que deram prosseguimento ao debate com diversas intervenções sobre o tema. Encerrada a discussão, todos foram convidados para a inauguração da nova sede do PSOL estadual da Bahia, já apelidada pela militância de “Casa Amarela”, que fica na Avenida Sete de Setembro, em frente ao antigo Hotel da Bahia, no bairro de Campo Grande.

    Em breve a Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro da atividade na integra.

  • A crise no Brasil

    A crise no Brasil

    Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os dínamos do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior crise financeira e recessão econômica desde a Grande Depressão, mas agora eles se tornaram a principal fonte de preocupação nos quartéis-generais do FMI e do Banco Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia global: produção desacelerada e um Himalaya de dívidas. A Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A África do Sul: em queda livre. As tensões políticas emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma é jogado na lama junto com seu próprio partido. Todavia, em nenhum outro lugar as crises política e econômica se fundiram de forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.

    Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com uma maioria esmagadora de votos. Quatro anos depois ela foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente, Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste lhe dando uma vantagem ainda maior do que em 2010, com 72%. Mas, ainda assim, foi uma vitória definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior, para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma – e nesse ponto vamos abandonar os sobrenomes, como os brasileiros costumam fazer – começou sua segunda presidência.

    Em três meses, grandes manifestações lotaram as ruas das principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões de pessoas que exigiam sua saída. No Congresso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo fato de que as pesquisas mostravam a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, se movimentaram para conseguir seu impeachment. No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem mesmo dar seu discurso tradicional transmitido pela televisão a todo o país. Anteriormente, quando seu discurso no dia Internacional da Mulher foi transmitido, as pessoas começaram a bater suas panelas e fazer buzinaços, numa forma de protesto que ficou conhecida como panelaço. Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular do país. Confidencialmente, Lula teria lamentado: ‘Nós vencemos a eleição. No dia seguinte, nós a perdemos’. Muitos militantes se questionaram se o partido iria sobreviver a tudo isso.

    Como a situação chegou a esse ponto? No último ano do governo Lula, quando a economia global estava ainda se recuperando da primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7,5%. Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controle contra o superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista, naquilo que parecia ser uma política semelhante a que Lula teve durante o início de seu primeiro mandato. Mas tão logo o crescimento experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram sombrias novamente, o governo mudou seu prumo, criando um pacote de medidas que visavam priorizar os investimentos em desenvolvimentos subsidiados. As taxas de juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos da energia elétrica foram reduzidos, a moeda se desvalorizou e foi imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.[1] No embalo de todo esse estímulo, durante a primeira metade de sua presidência, Dilma desfrutou de um índice de aprovação de 75%.

    Mas, ao invés de decolar, a economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para mero 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da “nova matriz econômica” de Guido Mantega, o ministro da Fazenda. Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de protestos de massas cuja origem estava nas passagens de ônibus em São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram sua dimensão tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os serviços públicos e, estimulados pela mídia, também de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a aprovação do governo caiu para a metade. Em resposta, ele bateu em retirada, dando início a reduções caucionárias nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O crescimento caiu ainda mais – ele seria praticamente zero em 2014 – mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim de seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para reeleição ao assegurar a seus eleitores que ela continuaria priorizando as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, assim como atacando o seu oponente do PSDB por planejar reverter os acúmulos sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico sofrido contra ela pela imprensa, ela conseguiu chegar à vitória.

    Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade se fazia necessária. O arquiteto da nova matriz econômica foi então dispensado do ministério da Fazenda e quem assumiu foi alguém orientado em Chicago, o diretor da gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir a inflação e restaurar a confiança. Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para 14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa recessão generalizada – queda nos investimentos, salários diminuindo e o desemprego dobrando. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração econômica. Mas a crise da popularidade de Dilma não foi resultado apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas condições de vida do povo. Ela também foi, ainda que seja mais dolorido admiti-lo, o preço a ser pago por ela ter abdicado das promessas pelas quais ela foi eleita. De forma generalizada, a reação de seus eleitores foi de que sua vitória poderia ser qualificada como ‘estelionato’, ou seja: ela enganou seus apoiadores ao cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não gerou apenas desilusão, mas também raiva.

    Ainda que ocultas, as raízes dessa debacle vingaram justamente no solo do próprio modelo petista de crescimento. Inicialmente poderia se dizer que seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento nos preços das commodities e um boom do consumo doméstico. Entre 2005 a 2011, os ganhos comerciais do Brasil aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das suas principais exportações, assim como o volume de retorno fiscal para gastos sociais. No final do segundo mandato de Lula, a fatia correspondente da exportação de bens primários dentre as exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais da metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os preços das principais mercadorias comercializadas pelo país entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 dólares para 55 dólares a tonelada, a soja caiu de aproximadamente 40 dólares a saca para 18 dólares, o petróleo cru despencou de 140 dólares para 50 dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio exterior, o consumo doméstico também entrou em declínio. Durante seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a demanda interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi possível não apenas com o aumento do salário mínimo e com transferências de renda para os pobres – o ‘Bolsa Família’ – mas também por uma massiva injeção de crédito aos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93% do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do nível dos países vizinhos. Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam absorvendo mais de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Junto com a exaustão do boom das commodities, a época de gastança também não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

    Em 2011, o alvo da nova matriz econômica de Mantega foi estimular a economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram a aumentar gradualmente sua quantidade de empréstimos, indo de um terço para metade de todo crédito – o portfólio do banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar em sete vezes seu valor desde 2007. Ao ofertar taxas preferenciais de juros para as grandes companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as famílias pobres, a ‘Bolsa Empresarial’ passou a custar ao tesouro nacional o dobro do que custava a ‘Bolsa Família’. Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez mais violento anti-PT, com a mídia nacional – amplificada pela imprensa financista de Nova York e Londres – fazendo vitupérios sobre os perigos do estatismo. Assim, ao mudar de direção, Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso impactou na redução dos investimentos nas estruturas públicas do país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à indústria brasileira foram em vão. Estruturalmente, as finanças são uma força muito maior no país. A capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de juros de longo prazo do mundo – um horror para os investidores, mas verdadeiro maná para os rentistas – e com um abissal spread bancário, com mutuários pagando de cinco a vinte vezes mais pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a esse quadro, há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma verdadeira constelação de fundos de cobertura e de private equity.

    Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao força-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo, a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras em apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industrialistas ficaram felizes em colher os frutos de altos rendimentos durante o período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente cada grupo social viu sua posição melhorar. Mas quando isso terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, eles não tiveram qualquer compaixão por quem lhes favorecera anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em holdings financeiros que eram afetados negativamente por conta das políticas rentistas – e por essa razão, não poderiam dar às costas totalmente aos bancos e fundos de investimento –, mas o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos empresários era formado por uma alta classe média que tornara-se mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de empresários, manifestando assim maior capacidade de comunicação e coesão ideológica perante a sociedade em geral. A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente seguida também pelos industrialistas. Tanto os banqueiros do andar de cima e os profissionais do andar de baixo, ambos estavam comprometidos a derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos autonomia.

    Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres seguiram sendo beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educa-los ou organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais – dos sem-terra e dos sem-teto – foram mantidos distantes do governo. Intelectuais acabaram sendo marginalizados. Mas não houve apenas uma ausência de potencialização política das energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de renda: a infame estrutura tributária regressiva legada de Fernando Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos intocados, foi mantida. Houve, de fato, alguma distribuição que acabou melhorando consideravelmente as condições de vida dos mais miseráveis, mas isso foi feito de forma ainda individualizada. Com o ‘Bolsa Família’ tomando forma de recompensa para mães de filhos em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário mínimo significaram também um aumento no número de trabalhadores com ‘carteira assinada’, o que lhes garantiria acesso aos direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com a chegada do ‘crédito consignado’ – os empréstimos bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários – o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais cara de estimular a economia. A compra de eletrônicos, bens de consumo e veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu incentivos fiscais), enquanto o suprimento de água, pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem ideológica e nem prática. Logo, junto com a tão necessária melhoria nas condições de vida doméstica, o consumismo em sua forma mais deteriorada se espalhou nas camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe média se deslumbrava, ainda que por padrões internacionais, com revistas e shopping centers.

    O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através da questão da moradia, onde necessidades individuais e coletivas mais visivelmente se intersectam. Nela, a bolha de consumo se transformou cada vez mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam nas grandes cidades e cerca de um décimo da população não tinham acesso a moradias adequadas. Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Somente no ano de 2010, os aluguéis em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou construtoras privadas para construírem condomínios mediante um belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando aluguéis mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao mesmo tempo que ele apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em ocupações. Diante de tudo isso, os movimentos sociais ganharam fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas sim contra o PT.

    Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para que, após sua apertada reeleição, ao bater em retirada economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante a que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, ela poderia então reproduzir o mesmo tipo de virada de mesa. Mas as condições externas impediram qualquer comparação possível. A dança dos commodities já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier, parece não ter sustentação. Pode se argumentar, observando esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve ser exagerada. O país está passando por uma severa recessão, com o PIB caindo 3,7% no último ano e provavelmente a mesma coisa acontecerá esse ano. Por outro lado, o desemprego ainda está longe de atingir os níveis da França, o que dirá da Espanha. A inflação é ainda mais baixa do que os anos de FHC e o país possui mais reservas. O déficit público é metade do déficit da Itália, ainda que com os juros brasileiros o custo de reduzi-la seja bem maior. O déficit fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo econômico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise a qual o PT está agora envolto, que não é apenas econômica, mas também política.

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    Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os países da América Latina, presidências inspiradas pelo modelo estadunidense coexistem com parlamentos aos moldes europeus: ou seja, Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um sistema proporcional de representação – e não no modelo distorcido de past-the-post, tal qual nos sistemas anglo-saxões.

    O resultado típico desse modelo, ainda que não seja invariável, é uma presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no fato de que nenhum partido consegue ter uma maioria parlamentar com poder significativo. Todavia, em nenhum lugar o Executivo se separou tanto do Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país possui o mais frágil sistema partidário do continente. No Brasil, a representação proporcional toma forma de um sistema de lista aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais que dois milhões de votos. As consequências dessa configuração são duais. Na maioria dos casos, eleitores escolhem um político que eles conhecem – ou acham que conhecem – ao invés de escolherem um partido do qual eles pouco ou nada sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam obter uma grande quantia de dinheiro para financiar suas campanhas e garantir que os eleitores se identifiquem com eles. A grande maioria dos partidos, cujos números aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, o que dirá disciplina política. O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição de seus correligionários, oferecendo aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.

    Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais. Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema é também sua massiva desproporção geográfica. Todo os sistemas federais exigem algum tipo de equalização dos pesos de cada região, geralmente envolvendo uma sobrerepresentação das áreas menores e rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do sistema brasileiro, no qual a proporção dessa sobrerepresentação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1). E o problema não é apenas o fato de que as três mais pobres e atrasadas regiões controlam 3/4 dos assentos do Senado e contam com cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos mais tradicionais ‘caciques’ que dominam as clientelas mais submissas). Mas de forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados. Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a democratização o aumentou, criando inclusive novos estados com população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.

    Nesse cenário, ao contrário de outros países da América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos 1980, nenhum partido político significativo do período anterior à ditadura sobreviveu. Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas forças derivadas das invenções dos generais: o partido da oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e seu partido de situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – ridicularizados por serem vistos como os partidos do ‘sim’ e do ‘sim senhor’. O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo se transformou em Partido da Frente Liberal (PFL). Com a saída dos militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de uma dissidência do PMDB que ele ajudara a criar, nominalmente social-democrática, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu construir uma grande maioria no Congresso, agindo a serviço daquele que se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso – tomado pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações – recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer seus amigos. O custo relativo de suas campanhas, num país mais pobre, foi maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo, FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do Congresso – embora exista pelo menos uma notável exceção nessa afirmativa – pois sua coalizão com os clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa parceria natural para objetivos comuns. O acordo foi estável e, nos anos recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos países anglófonos, considerado um modelo de ‘presidencialismo de coalizão’, tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano raramente conseguem vingar.

    Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam ‘limpos’ no sentido dos financiamentos americanos, onde os Super PACs compram votos, e sua coalizão era ideologicamente sólida, já que uma vez eleito, nem seus objetivos e tampouco os de seus aliados poderiam ser atingidos por outros meios. Tanto seu vice-presidente, Marco Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, Antônio Carlos Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no Nordeste – ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito tão logo eles apoiaram a derrubada do regime democrático em 1964 – e sem nenhuma intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como gostava de ser chamado, bravateava: ‘Eu ganho eleições com um saco de dinheiro na mão e um chicote na outra’. Seu filho, Luís Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim apontado para sucedê-lo e assim seria se não tivesse morrido precocemente. O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entrega-la, mudou de ideia tão logo chegou no Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era revisar a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito para um segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou democratizar a ordem política, ele presidiu – e para isso, sim, foi necessário – uma campanha direta de subornos a deputados para comprar uma super-maioria no Congresso requerida para passar a emenda da reeleição.

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    Quando Lula foi finalmente eleito em 2002, o PT estava numa posição diferente. Assim que ele passou a reassegurar que não atacaria bancos e empresas, e tão logo pareceu que sua vitória era certa, essas companhias passaram a financiá-lo, ainda que numa escala menor do que a de seu predecessor. Mas dentro do Congresso ele não possuía aliados naturais que tivessem muita expressão. O PT, apesar de toda a moderação da campanha de Lula na presidência, era visto – e ainda é – como um partido radical, posicionado à esquerda do verdadeiro pântano que domina o Legislativo. Lá, ele nunca conseguiu mais do que 1/5 dos deputados, somando uma votação três vezes menor do que a do próprio Lula. Como garantir algum tipo de maioria funcional para apoiá-lo em meio a esse verdadeiro marais? O método tradicional, concretizado numa escala heroica durante a primeira presidência civil após a Ditadura – a de José Sarney, outro antigo lacaio dos generais –, era o de comprar apoios distribuindo ministérios e cargos de confiança para aqueles que tivessem interesse e pudessem trazer consigo a maior quantidade de votos. Inicialmente isso ocorreu dentro das facções de seu próprio partido, o PMDB, a maior e mais fisiológica entidade política do país e que, uma década depois, tornara-se a fossa na qual desaguavam todas os riachos da corrupção política. O caminho clássico para o PT era então fazer acordos com essa criatura, alocando para eles uma boa parte de seus ministérios e agências estatais. Todavia, essa solução fora rejeitada pelo partido – há uma disputa sobre quem, dentro da cúpula, estava a favor e quem estava contra – pois havia receio de que as consequências seriam criar um peso-morto ideológico dentro do governo que poderia neutralizar o momentum progressista que se criara. Ao invés disso, a decisão foi de costurar um grupo de apoiadores de uma densa camada de partidos pequenos, sem conceder assim muito terreno para um deles em específico, mas pagando-os com dinheiro em troca de apoio na câmara num esquema de propina. De fato, o PT tentou compensar a falta de parceiros naturais (algo que FHC não teve que lidar) e sua recusa em retomar o sistema concebido por Sarney, criando assim um sistema de estímulos materiais para cooperações dentro do Congresso e por uma moeda de troca mais barata: ou seja, usando de mesadas para não usar de lugares específicos dentro do governo.

    Quando esse esquema veio à tona em 2005, o chamado escândalo do ‘Mensalão’ (ou seja, de pagamentos mensais aos deputados) fez com que Lula perdesse o apoio do eleitorado de classe média e por muito pouco não terminou precocemente com sua primeira presidência. Tão logo ele sobrevivera e fora triunfantemente reeleito no ano seguinte, o PT não teve outra escolha senão recuar e aceitar a solução que tanto temia em abraçar: o PMDB então entrou no bloco do governo, garantindo assim alguns importantes ministérios e postos centrais no Congresso, e assim permaneceu até o primeiro mandato de Dilma e no primeiro ano do segundo mandato. Contudo, isso não significa que a corrupção tenha diminuído e sim que ela aumentou drasticamente. Isso não apenas porque o PMDB era o campeão do saque dos recursos públicos em âmbitos municipais e estaduais (por décadas o partido inclusive abandonara as disputas presidenciais), mas também porque um gigantesco pote de mel, maior do que tudo que se podia imaginar, estava se concretizando com a expansão da Petrobrás, a empresa de petróleo estatal cujas atividades equivalem a 10% do PIB nacional; nesse momento, uma capitalização a tornaria a quarta mais valiosa empresa do mundo. A construção de novas refinarias, petrolíferas, poços, plataformas, complexos petroquímicos oferecia vastas oportunidades para retribuições e logo um esquema acabou sendo estabelecido. Leilões seriam tomados por um verdadeiro cartel composto pelas principais empreiteiras do país, mas os contratos eram cobrados a partir de grandes somas de dinheiro que iam direto para os bolsos dos diretores da Petrobrás e para os partidos políticos que estivessem envolvidos – calcula-se cerca de 3 bilhões de Dólares em subornos. Esse tipo de prática não era novidade na história da companhia, sendo que FHC preferiu fingir que ela não acontecia, e até a primavera de 2013, a companhia desfrutou da costumeira impunidade oriunda da riqueza e do poder no Brasil.

    O que mudou nisso tudo foram três efeitos pós-Mensalão. A delação premiada foi introduzida no Brasil; a prisão cautelar, um antigo poder judiciário usado para lotar as cadeias do país com pobres, tornou-se pela primeira vez um instrumento aceitável para dobrar aqueles de classes superiores; e as sentenças na primeira instância não podiam mais ser deferidas por intervenção do Supremo, o que permitia apressar as prisões. Os dois primeiros efeitos foram as mesmas armas que os magistrados italianos utilizaram para derrubar a classe política e empresarial italiana nos escândalos da Tangentopoli, nos anos 1990. Mas o terceiro efeito eles nunca conseguiram. Inclusive no Brasil foi criada uma forma de extrair confissões daqueles sob prisão preventiva: ameaçar a estender o mesmo tratamento à esposas e filhos. Em 2013, gravações feitas num caixa de uma empresa de lavagem de carros (um ‘lava-jato’) em Brasília levou à prisão de um contrabandista com longa ficha criminal. Mantido em Curitiba, na região Sul, para proteger sua família, esse ‘doleiro’ passou a revelar a escala do sistema de corrupção da Petrobrás, na qual ele havia sido um dos principais intermediários na transferência de recursos entre contratantes, diretores e políticos dentro e fora do país. Num primeiro momento, as acusações caíram sobre nove das principais construtoras e empreiteiras do Brasil, com seus famosos chefes e diretores sendo presos, junto com outros três diretores da Petrobrás, em investigações que atingiram ainda mais de cinquenta políticos, tanto deputados e senadores como até mesmo governadores.

    Os três principais partidos envolvidos – eles eram sete no total – foram o PMDB, o Partido Progressista (PP, um partido oriundo da Ditadura) e o PT. Quem ganhou mais no esquema ainda não está claro. Mas já que não existiam ilusões sobre os dois primeiros, foi a exposição do terceiro que realmente ganhou relevância política. O ‘Mensalão’ foi somente uns trocados em comparação com a enormidade do ‘Petrolão’, enquanto o primeiro não teve nenhum benefício privado para políticos do PT, o segundo, por sua vez, apagou completamente os limites entre fundos de campanha e enriquecimento pessoal. Dentre outros detalhes, veio à tona que o próprio chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu (o arquiteto por trás da formação do PT enquanto partido), que havia sido afastado por conta de seu envolvimento no ‘Mensalão’, havia insistido que uma parte do ‘Petrolão’ fosse dirigida para suas próprias contas bancárias. Se o grosso dessas retribuições eram utilizadas para financiar as campanhas e o aparato do partido, a presença contínua de grandes somas de dinheiro clandestino não tinha como não corromper aqueles que botavam suas mãos nele. O sociólogo Chico de Oliveira alertara, antes mesmo do ‘Petrolão’ ter sido descoberto, que o PT estava caminhando a passos largos para um processo de transfiguração numa aberrante espécie taxonômica de vida política, algo que não mais podia ser visto como uma metáfora. (O autor refere-se aqui ao ensaio “O ornitorrinco”, de Chico de Oliveira, publicado no volume da Boitempo Crítica à razão dualista/O ornitorrinco).

    Liderando o ataque ao ‘Petrolão’, a equipe investigativa de Curitiba se tornou, assim como os juízes e policiais de Milão que os inspiravam, verdadeiras estrelas midiáticas. Jovens, de cara limpa, queixos quadrados, beneficiando-se de seu treinamento legal em Harvard, o juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol pareciam saídos direto de um desses seriados americanos de tribunais. Sobre o seu zelo no combate à corrupção e o valor do choque que aplicaram nas elites políticas e empresariais do país, não havia dúvidas. Mas assim como na Itália, objetivos e métodos nem sempre coincidiram. A delação premiada e a prisão preventiva sem acusações combinaram induzimento e intimidação: instrumentos obtusos em busca da verdade e da justiça, mas no Brasil eles estavam dentro da lei. Contudo, o vazamento de informações, ou às vezes até de suspeições, por parte dos investigadores para a imprensa, não é: eles são claramente ilegais. Na Itália, eles foram constantemente utilizados pela equipe de Milão e foram usados ainda mais ostensivamente pela equipe de Curitiba. Desde o início os vazamentos pareciam seletivos: eles almejavam o PT e, persistentemente, – ainda que não exclusivamente, pois os estilhaços se espalhavam – aparecendo nas principais revistas da bateria anti-governo, como a semanal Veja, que após semanas de exposição fez uma edição a ser lançada poucas horas antes da eleição de 2014 com as imagens de Lula e Dilma sob uma sinistra meia-luz com tons de vermelho e negro com a exclamação “Eles sabiam de tudo!”, alertando os eleitores para quem eram as verdadeiras mentes criminosas por trás do ‘Petrolão’.

    Mas será que o fato dos magistrados terem alimentado a mídia com vazamentos significa que seus objetivos eram os mesmos, ou seja, que eram fruto – tal como o PT sustentou – de uma operação comum? Pode-se dizer que o judiciário brasileiro, assim como seus colegas de promotoria e Polícia Federal, compartilha muito da identidade de classe média brasileira, cujas camadas eles pertencem, com suas preferências e preconceitos de classe típicos. Nenhum partido operário, por mais emoliente que seja, consegue atrair simpatia particular desse meio. Mas será que os vazamentos contra o PT são resultado de uma aversão militante, ou fruto de uma ideia de que não há melhor forma de enfatizar os horrores da corrupção do que pegar aquela que é a principal força política do país por mais de uma década, que inclusive é justamente aquela que a mídia, por suas próprias razões, estaria mais disposta a divulgar as revelações? Histórias que atingissem o PMDB seriam banais e o PSDB poderia ser poupado, em âmbito nacional, pois sendo um partido de oposição teria menor acesso aos cofres públicos, independente do seu domínio dentro dos estados.

    O escândalo da Lava Jato estourou de fato na primavera de 2014 e sucessivas prisões e acusações chegaram às manchetes durante a corrida presidencial no outono. A virada econômica de Dilma, tão logo eleita, pode ser vista em parte como conduzida pela esperança de aplacar a opinião neoliberal o suficiente para que a mídia moderasse seu discurso sobre o PT, que estava sendo tratado como uma gangue de ladrões. Mas se foi isso de fato, ela foi em vão. Superando até mesmo o PSDB na virulência de seus ataques, uma nova direita passou a ganhar proeminência nas manifestações massivas contra Dilma em março de 2015. No Brasil, o slogan tradicional da direita era “Deus, Família e Liberdade”, verdadeiros banners do conservadorismo que clamou pelo golpe militar que gerou a Ditadura de 1964. Meio século depois, os gritos dos manifestantes mudaram. Recrutados a partir de uma geração mais jovem de militantes de classe média, uma nova direita – e geralmente com orgulho de afirmar-se assim – passou a falar menos em termos de religiosidade, menos ainda em termos de família e reinterpretou o sentido de liberdade. Para eles, o livre mercado era a base necessária para todas as outras liberdades, concebendo assim o Estado como uma espécie de hidra de muitas cabeças. Essa política se iniciou não nas instituições da ordem decadente, mas sim nas ruas e nas praças, onde cidadãos poderiam se reunir contra um regime de parasitas e ladrões. Surfando na onda das manifestações massivas contra Dilma, os dois principais grupos dessa direita radical – ‘Vem Pra Rua’ e ‘Movimento Brasil Livre’ – modelaram suas táticas assimilando elementos do ‘Movimento Passe Livre’, um movimento de extrema-esquerda que desencadeou os protestos de 2013, inclusive com o MBL deliberadamente fazendo um acrônimo com o MPL. Ambas organizações da direita eram pequenas, mas dependiam de um intenso trabalho de mobilização de massas por meio da internet. O Brasil possui mais viciados em Facebook do que qualquer outro país, perdendo somente para os Estados Unidos, e tanto o ‘Vem Pra Rua’ como o ‘MBL’ e outros grupos da direita – o ‘Revoltados On-Line’ (ROL) é outro movimento proeminente – vem conseguindo mobilizar a população com muito mais sucesso do que a esquerda, embora seja importante levar em consideração o previsível perfil de classe de quem adentra na rede social de Zuckerberg. Até então, o efeito multiplicador desses grupos de direita tem sido muito maior.

    No horizonte de toda essa situação, há também a ambígua nébula de uma nova religião. Mais de 20% dos brasileiros atualmente são convertidos a alguma variedade de protestantismo evangélico. Seguindo o padrão da Igreja da Unificação do Reverendo Moon, muitas delas – certamente as maiores – são verdadeiros balcões de negócios que ficam ordenhando o dinheiro de seus fiéis para erigir verdadeiros impérios financeiros para os seus fundadores. A fortuna de Edir Macedo, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo gigantesco ekitsch Templo de Salomão na região do Brás em São Paulo – próximo do menos grotesco, mas ainda impressionante templo da rival Assembleia de Deus, numa espécie de Wall Street religiosa – onde ocorrem performances de melodramáticos exorcismos nos telões e em que os fiéis cantam e oram, ultrapassa mais de 1 bilhão de Dólares. Parte desse império se associa também ao controle da segunda maior rede de televisão do país. Atualmente bastante próspera nas periferias, a organização de Macedo prega uma “teologia da prosperidade”, prometendo sucesso material na Terra, ao invés de mera salvação celestial. Diferente dos evangelistas americanos, as Igrejas Evangélicas no Brasil não possuem perfis ideológicos muito específicos além de assuntos como aborto e direitos LGBT. Macedo chegou a apoiar FHC como uma forma de impedir o comunismo, mas nas eleições seguintes apoiou Lula e desde então vem criando sua própria organização política. Mas muitas dessas igrejas operam no descrédito dos partidos brasileiros: elas são veículos a serem contratados, trocando votos por favores, com a diferença de que elas apoiam candidatos de qualquer partido – a bancada evangélica no Congresso, cerca de 18% dos deputados, inclui congressistas de 22 partidos. Seus principais interesses residem em garantir concessões de rádio e televisão, evasão fiscal para igrejas e acesso à zoneamento urbano para a construção de monumentos faraônicos.

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    Ao mesmo tempo, ainda que mais passivas e promíscuas do que seus iguais nos Estados Unidos, essas Igrejas formam um reservatório conservador para os agressivos líderes da direita no Congresso. Sintomaticamente, o presidente da Frente Evangélica é um musculoso pastor e ex-policial que senta na bancada do PSDB. Ali também se encontra o Presidente da Câmara dos Deputados, eleito em fevereiro de 2015 – esse sendo o cargo mais importante do Congresso e o terceiro da linha sucessória depois do vice-presidente –, o deputado Eduardo Cunha, um corretor da bolsa evangélico do Rio e líder da bancada do PMDB. Geralmente identificado como o mais perigoso inimigo de Dilma – ela inclusive tentou impedir sua eleição – seu jeito garboso e modos imperturbáveis escondem um excepcionalmente talentoso e cruel político, um mestre nas artes obscuras da manipulação parlamentar e na administração, uma pessoa a quem grandes números do chamado “baixo clero” do Congresso tornaram-se dependentes de seus favores desde que assumiu o cargo, enquanto outros vivem acuados diante de sua força sem conseguir enfrenta-lo. E tão logo as manifestações nas ruas clamaram pelo impeachment de Dilma, ele logo tornou-se o ponta de lança dentro do Legislativo que garantiria a saída da presidente, sob o pretexto de que antes das eleições ela havia transferido, de forma imprópria, fundos dos bancos estatais para contas federais.

    Atingindo um crescendo no mês de setembro, o movimento para depô-la atingiu números impressionantes, configurando diferentes forças e personagens que se entrecruzavam de diferentes formas, desde os “jovens turcos” do MBL e ROL posando para fotos com Cunha, até pilares da lei como Moro e Dallagnol (que também é evangélico) encontrando-se com políticos do PSDB e lobistas pró-impeachment, sem contar também com a imprensa atacando virulentamente o PT e o Planalto com novas denúncias diárias. Ou Dilma havia ilegalmente legado um déficit nas contas do Estado para seguir sendo reeleita, ou ela havia permitido grandes injeções de verbas ilegais para financiar sua campanha eleitoral…ou ambos – em qualquer caso, material suficiente para acelerar o processo de retirada dela da presidência enquanto afronta a probidade pública. Naquele momento, cerca de 80% da população queria que ela fosse embora.

    Nesse meio tempo, uma bomba explodiu. Em meados de outubro, as autoridades suíças notificaram o Procurador Geral da República em Brasília de que Cunha tinha nada mais do que quatro contas secretas na Suíça – e outra logo em seguida foi descoberta nos Estados Unidos – uma delas no nome de sua esposa, outra no nome de uma companhia empresa-fantasma em Cingapura que recebia direto de outra empresa-fantasma da Nova Zelândia. O valor total era de 16 milhões de Dólares, ou trinta e sete vezes mais a riqueza que ele havia declarado no Brasil. À disposição do casal também havia duas companhias locais – e, desafiando o escárnio, uma delas se chamava Jesus.com – além de uma frota de nove limusines e caminhonetes no Rio de Janeiro. As evidências de que ele acumulava propinas da Petrobrás começaram a se acumular. Mesmo para a mais obediente imprensa isso era demais. No Congresso, uma comédia às avessas tinha início. Segundo a Constituição Brasileira, o Presidente da Câmara possui o poder solene de dar início à moção de impeachment presidencial. Por meses o PSDB ficou cortejando Cunha, conferenciando com ele em conclaves íntimos sobre as táticas e o momento do processo. A revelação da sua caixa-forte na Suíça, com muito mais evidências do que aquelas que caíam sobre Dilma, tornou-se um profundo constrangimento para o partido. O que deveria ser feito? Cunha ainda controlava as chaves para o impeachment, que se fosse bem-sucedido poderia até mesmo anular as eleições de 2014 e garantir, assim, a vitória de Neves. O partido então se silenciou sobre as ondas que vinham de Berna, no que vale mencionar que o próprio Cunha ainda não havia se pronunciado e era tomado como inocente até que se provasse o contrário. Mas seus apoiadores na mídia não conseguiram conter os questionamentos: como pode o partido da moralidade dar cobertura para tamanha criminalidade? Diante do clamor, o PSDB foi forçado a bater em retirada e tirar o apoio ao Presidente da Câmara – um pequeno partido socialista independente [o PSOL], a essa altura do jogo, havia entrado com recurso para tirar Cunha da Câmara. Ao perceber que o PSDB deixara de lhe dar apoio, Cunha rapidamente fez um jogo de dupla-face. Negociando a portas fechadas, ele ofereceu trancar o impeachment de Dilma se o PT o protegesse das tentativas de anulação de seu mandato e expulsão do Congresso. E isso rapidamente aconteceu. Os ministros do PT, tanto desavergonhados quanto os políticos do PSDB, concordaram em auxiliá-lo a manter-se no cargo, desde que ele não fizesse nenhum movimento contra Dilma. Esse surreal carrossel foi demais para as bases do partido que estavam afastadas do Congresso e o acordo teve de ser cancelado. Por um breve momento, pareceu que a posição de Cunha era insustentável e a causa do impeachment estava tão desgastada pela sua exposição que havia, portanto, quase nenhuma chance de ela passar.

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    Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças de acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise, FHC tornou-se onipresente na mídia – sua imagem estava em toda parte, numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários. Bastante estimado pelos barões da mídia e seus lacaios, sua renovada proeminência era fruto de um cálculo político mais imediato de ambas as partes. Apresentado como o estadista ancião da República, a cuja sabedoria se deve a estabilidade atingida, editores e jornalistas esforçaram-se para construí-lo como um pensador de renome internacional, a voz da sanidade e da responsabilidade diante das mazelas do país, inclusive com a imprensa e a academia anglófona cotejando-o, engolindo todo esse coro de sicofantia. A razão para toda essa apoteose é bastante simples: a presidência de Cardoso administrou ao Brasil uma generosa dose de administração pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do que nunca diante do escárnio populista do PT. O próprio Cardoso, que quando presidente lamentou a “enorme dificuldade” de que “o Brasil não gostava do sistema capitalista”, estava tranquilo em exercer esse papel. Mas ele também tinha uma questão pessoal no meio de todos esses holofotes. Quando ele saiu da presidência, seu índice de aprovação não era muito mais alto do que o de Dilma hoje, e por oito anos ele sofreu uma dura comparação com Lula, um presidente muito mais popular que repudiou seu legado e transformou o país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro do seu.

    Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura do pensador poderia suportar a perda de seu prestígio como governantes? Objetivamente, o segundo mandato foi – e isso é bastante normal – menos popular do que o primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou não apenas suas antigas convicções, que inclusive eram marxistas e socialistas, mas com o tempo até mesmo seus padrões intelectuais. A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada – bromas elogiosas para os efeitos da globalização e ansiedade com seus efeitos colaterais. Em raras ocasiões ele acabava sendo sincero: “Eu devo admitir que, ainda que meu lado intelectual seja forte, eu sou basicamente um Homo politicus”, disse ele certa vez. Mas subjetivamente, a vaidade – atingida pelo apelo político grandioso de um ex-operário sem educação formal – não permite que pretensões mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e amarelo da Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão original e pomposa dos franceses – com uma espada a seu lado, ele declarou que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando uma carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em sintonia uma com a outra.

    Por anos ele teve motivos para reclamar que, enquanto oposição, o próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória de seu líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa de sua modernização nacional e seu corajoso programa de privatizações. Agora, contudo, diante da crise do ‘lulopetismo’ – seu uso mais desdenhoso, implicando algo ainda focado nas bases, mais demagógico do que o mero suporte petista, ou ‘petismo’ – fica claro o quão certo Cardoso esteve todo esse tempo. Se houve algo de bom durante o governo do PT, isso se deve à herança deixada por FHC. Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não é dele, pois havia alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer inibição, colocando assim um fim ao desgoverno do PT. Ainda que ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele o reconhecia como um processo legítimo, desde que tivesse base legal para isso. E ainda que não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida politicamente. Mas – e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes daqueles feitos pela nova geração de políticos do PSDB no Congresso, ansiosos para tomar o poder rapidamente – era melhor esperar pelo Judiciário, que poderia ser tido como um instrumento para que a Justiça Política fosse cumprida.

    Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os juízes mais veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para presidir o caso contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar Mendes, um parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o Supremo Tribunal Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje – e que nunca fez nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT. Mas Dilma era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser destruído era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco, dada sua antiga popularidade, de que ele voltasse em 2018 – supondo que Dilma sobrevivesse até então, algo que assustava o PSDB e seu programa de orientar o país novamente para uma modernização responsável. E tão logo as deixas de Cardoso começaram a encontrar eco, uma série de vazamentos feitos pela força tarefa da Lava Jato passaram a aparecer na imprensa, implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por empreiteiras, apartamentos confortáveis, melhorias num sítio, sem falar nos ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio a apreensão de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro do PT. Aparentemente, a rede estava se fechando sobre ele.

    * * *

    Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força-tarefa da Polícia Federal chegou na porta da casa de Lula às seis da manhã, levando-o sob custódia para ser interrogado no aeroporto de São Paulo. A imprensa, informada de antemão, estava esperando do lado de fora para invadir com suas câmeras, esperando obter o máximo de publicidade. O pretexto para todo esse show é de que se Lula fosse convidado a dar esclarecimentos, ele poderia ter se recusado. Na semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a Ditadura – de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de pessoas nas ruas – clamou por justiça contra Lula e impeachment para Dilma. Três dias depois, Dilma apontou Lula como ‘chefe da Casa Civil’ de seu governo – algo equivalente a um Primeiro Ministro. Como ministro, Lula teria imunidade perante as acusações de Moro em Curitiba, possibilitando que ele, assim como os demais membros do governo, respondesse somente ao Supremo Tribunal. Moro não perdeu tempo. Na mesma tarde, ele publicou as gravações de uma conversa telefônica entre Lula e Dilma, na qual ela disse a ele que mandaria os papéis necessários para que ele assinasse e assumisse, “se necessário”. Sua fala foi ambígua. Mas o escândalo midiático foi ensurdecedor: aqui, pega com a boca na botija, estava uma manobra para fugir da Justiça e salvar Lula, deixando-o longe do alcance da lei. Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a nomeação – um juiz que, como se soube mais tarde, havia postado imagens nas redes sociais de quando ele estava nas manifestações pelo impeachment, ostentando alegremente uma camiseta do PSDB. Mas esse juiz rapidamente foi apoiado por Gilmar Mendes e, naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava saindo do governo, no qual ele controlava a vice-presidência e outros seis ministérios, pavimentando o caminho para uma rápida deposição de Dilma no Congresso.

    Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista central era o Judiciário. A noção de que a operação de Moro estava agindo de forma imparcial em Curitiba, inicialmente defensável, acabou sendo prejudicada com a cobertura gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a condução coercitiva de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma mensagem pública saudando as manifestações a favor do impeachment: “o Brasil está nas ruas”, anunciou o juiz. “Sinto-me tocado”. Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma, horas depois do grampo ter sido anulado pela Justiça, ele violou a lei duas vezes: violou o sigilo das interceptações, ainda que fosse permitido o grampo, e sem falar também no princípio da confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da chefe do Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram ilegalidades que logo Moro foi repreendido pelo juiz do Supremo responsável por Moro, mas sem qualquer sanção efetiva. Ainda que “inapropriado”, seu superior notou delicadamente que a ação do juiz havia atingido seu objetivo.

    Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos poderes é uma ficção bem-educada, com os Supremos Tribunais – no que o caso americano é uma importante exceção – curvando-se perante os governos. Os contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão – geralmente visto como exemplo de independência judicial – ao sustentar as violações do país tanto noGrundgesetz e no Tratado de Maastricht e favorecer os diferentes regimes de Berlim pode ser visto como uma norma geral. No Brasil, a politização do Judiciário é uma tradição longínqua. A figura inverossímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo, ainda que seja revelador. Como presidente, Fernando Henrique Cardoso defendeu seu amigo de acusações criminais ao lhe promover como Ministro antes de elevá-lo ao STF – e Mendes agora se volta contra Dilma por ela fazer o mesmo com Lula. Ao colocá-lo no posto e tentando evitar chamar atenção, FHC entrava pelo prédio sorrateiramente pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no estacionamento. Bastante militante em relação ao PSDB – ‘tucano demais’, considerando que a ave é o símbolo do partido – até mesmo para Eliane Catanhêde, uma respeitável jornalista de direita, Mendes geralmente era visto almoçando com proeminentes líderes do partido após ter sido absolvido das acusações e o juiz não hesitou em utilizar dinheiro público para ‘alistar’ seus subordinados a partir de uma escola privada de advocacia que ele possui, algo feito enquanto ele já era juiz no maior tribunal da nação. Seus ataques contra o PT são constantes.

    Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e vinho de outra pipa. Os Estados Unidos, país que ele visita com regularidade, é sua principal referência. Um sujeito trabalhador e provinciano, ele considera que nada deve aos sistemas de patronagem e compadrio. Mas vale destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele demonstrou também sua indiferença com os princípios básicos das leis e das regras num artigo exaltando o exemplo dos magistrados italianos nos anos 1990, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, nos termos que antecipariam seus procedimentos uma década depois. Recusando-se a pesquisar na literatura mais extensiva sobre a Tagentopoli, ele utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de Milão e que foram traduzidos para o inglês, citados sem qualquer dose de reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe da máfia que vivia com um salário do Estado enquanto delator, ainda que ele tenha sido rejeitado pela corte. A presunção da inocência não poderia ser tida como ‘absoluta’, tal como ele declarara: ela era apenas um ‘instrumento pragmático’ que poderia ser desfeita de acordo com a vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos seletivos para a mídia como forma de ‘pressão sobre os acusados’, usados quando ‘os meios legítimos não podem ser atingidos por outros métodos’.

    O perigo de ter um Judiciário atuando nesse espírito é o mesmo no Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente necessária contra a corrupção se torna tão infectada com o desdém pelo devido processo, com um conluio tão inescrupuloso com a mídia, que ao invés de instalar qualquer nova ética de legalidade, ela acaba confirmando o longo desrespeito social pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova viva disso. Todavia, a cena no Brasil se difere da situação na Itália por dois aspectos. Não há nem Berlusconi ou Rinzi no horizonte brasileiro. Moro, cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos, sem dúvida está sendo solicitado para suprir o vazio político, caso a Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o medíocre destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de Milão, pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja a sua aparência, evitar a tentação de envolver-se na política. O espaço para uma ascensão meteórica também tende a ser menor, pois há uma diferença crucial entre as duas cruzadas contra a corrupção. O assalto feito pela Tagentopoli foi direcionado contra os principais partidos do país, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, que estiveram no poder durante trinta anos. A Lava Jato, por sua vez, não parece estar focada nos partidos tradicionais do poder político no Brasil que, diga-se de passagem, estão bastante divididos, mas sim nos sistemas que possibilitaram que eles chegassem lá. Nesse ponto, ela parece mirar somente num alvo e, sendo assim, mais manipuladora.

    Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como a segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de hoje. Quando a Tagentopoliatingiu o sistema político, a mídia italiana formou um cenário homogêneo. Jornais independentes passaram a apoiar o Judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado midiático do Olivetti, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte dos vazamentos, acusou duramente os democratas cristãos e socialistas ao mesmo tempo em que ficou quieto sobre as implicações em outros partidos. O império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia ainda mais questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do Judiciário – muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram mais dúbias – do que no Brasil. Ali a mídia tem sido bastante monolítica e partidária em sua hostilidade anti-PT e nada crítica quanto à estratégia de vazamentos e pressões vindas de Curitiba, do qual a imprensa age como sua porta-voz. O Brasil possui alguns dos melhores jornalistas do mundo, cujos textos vem analisando a atual crise num nível intelectual e literário que vai além do que fazem o Guardian ou o New York Times. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de conformistas que nada mais fazem do que ecoar as visões de patrocinadores e editores.

    Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer vazamento que prejudique o PT com o tratamento dado às informações ou rumores que afetam a oposição é uma forma de medir a extensão da sua política de dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato estava se desenrolando, veio à tona um pujante exemplo. Em 1989, num dos mais famosos momentos decisivos da história moderna brasileira, Lula – que na época era visto como um perigoso radical pelas elites – estava perto de assegurar uma vitória em sua primeira corrida presidencial, quando dias antes da eleição, uma ex-namorada sua apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio irmão de Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho de ambos. Aquele momento, amplificado até o limite pela mídia, foi fundamental na sua derrota eleitoral. Dois anos depois, Cardoso – na época um proeminente senador do PSDB, já cotado como futuro candidato à presidência – ficou conhecido no meio político por ter uma amante trabalhando na mesma rede de televisão que prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve um filho do ex-senador, ela saiu do país e foi mandada para Portugal. Em meados de 1994, depois de ter sido Ministro da Fazenda, Cardoso estava disputando a presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal, ainda que a Globo seguisse pagando seu salário. Tão logo FHC foi eleito, seu braço direito, o jovem Magalhães, instruiu ela a não retornar para o Brasil por medo de comprometer sua reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de pagamento, um trabalho ficcional foi feito para ela, fazendo pesquisas de mercado na Europa para uma cadeia de lojas duty-free que recebera do próprio FHC direitos monopolísticos nos aeroportos brasileiros. Por meio dessa firma, ela teria lavado cerca de cem mil dólares via uma conta bancária nas Ilhas Cayman – teria sido pensão alimentícia ou suborno para ficar calada? A história veio à tona em fevereiro, em meio ao furacão das denúncias sobre as reformas no sítio de Lula. A mídia fez de tudo para que isso recebesse o mínimo possível de cobertura. A firma agora está sob investigação por transação criminosa. Cardoso protesta sua inocência. E ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.

    Será que isso pode ser generalizado para toda a oposição? Moro lançou seus grampos incendiários no dia 16 de março. Uma semana depois, a polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, cujo diretor recém havia sido sentenciado por 19 anos pelo crime de suborno. Na casa os policiais encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de dinheiro ligadas aos seus nomes. Estavam inclusas figuras tradicionais do PSDB, do PMDB e de vários outros partidos – um verdadeiro panorama da classe política brasileira. Objetivamente falando, essa lista produzia muito mais barulho do que a conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho menos conveniente: diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma posição contrária, ordenando que as listas fossem colocadas sob sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda assim, o alarme havia soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma tinha que cair, era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht pudessem ameaçar seus próprios acusadores. Poucos dias depois, o PMDB anunciara que abandonava o governo e começaria uma contagem de votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos necessários na Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de atingir no início das discussões, agora estava mais perto do alcance. A opinião pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio de ladrões, tendo Cunha à sua frente, solenemente derrubando uma presidente por crime de responsabilidade fiscal.

    Quais são as chances de Dilma resistir a esse desfecho e as perspectivas caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as grandes manifestações feitas a favor do impeachment. Ambos objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde ele poderia – ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o ministério – informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram atribuídas, ou seja, de aproximar-se de deputados relutantes para o campo governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o cenário está mudando e isso tudo parece cada vez mais distante. As relações entre Lula e Dilma se fragilizaram desde que ela optou pela austeridade após sua reeleição. Culpando-a pela falta de habilidade política e pela sua recusa em aceitar conselhos, Lula falaria, no âmbito privado, que “ela foi minha Chefe da Casa Civil e ela ainda age como uma, e não como uma presidente”, ou então que “ela é como se fosse a minha filha, que sempre diz pra mim que me ama, mas nunca presta atenção no que eu falo pra ela”. Mas é duvidoso se faria alguma diferença a flexibilidade tática, ainda que importante, diante das dificuldades enfrentadas por ela. Desde o início, sua segunda presidência foi pega em um círculo vicioso de escândalos políticos e indicadores econômicos deteriorados, cuja interação forma um obstáculo nada fácil de superar para recuperar sua autoridade. O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, vem gerando demissões em massa de trabalhadores; o mesmo vem acontecendo com as empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A incerteza sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais temerosos e deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do fundo bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do continente, a menina dos olhos do Financial Times e do Economist, foi levado algemado para a delegacia. No Congresso, o corte de gastos neoliberal e o aumento tributário proposto pelo governo foi derrubado pelo próprio neoliberal PSDB, buscando criar todo um constrangimento político: o orçamento de 2016 sequer foi aprovado. Mesmo que um virtuoso trabalho de base feito nos corredores do poder possa conseguir colocar temporariamente o impeachment em xeque, ele não conseguiria resolver o temível impasse do atual governo.

    A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, da forma como está pensada, também tem problemas. Mas isso está conectado diretamente aos legados dos governos do PT. O partido está numa frágil posição para convocar seus beneficiários para defende-lo por pelo menos três razões. A primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que a classe média perdesse a simpatia que o partido antes desfrutou, a austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado. As manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até agora, muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os pobres ainda não têm comparecido nessas manifestações. A força rural do Nordeste onde o PT se consolidou estão ainda socialmente dispersos, enquanto as grandes cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento. Há também a inevitável desmoralização do partido conforme sucessivos escândalos surgem com o seu nome, criando um sentido de culpa coletiva difusa, ainda que não explícita, mas que enfraquece qualquer espírito de luta. E por fim, mas fundamentalmente, na época que Lula chegou ao poder, o partido tornou-se uma máquina eleitoral, financiada principalmente por doações de grandes corporações, ao invés de – como ele era em seu início – pelas doações de membros e simpatizantes, com eles inclusive aderindo passivamente ao nome de seu líder, sem qualquer vontade de construir uma ação coletiva com os eleitores. A mobilização ativa que fez o PT ser uma força nas regiões urbanas e industriais do Brasil tornou-se uma memória distante conforme o partido passou a ganhar força em regiões sem indústrias, enraizadas numa tradição de submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura política entendida por Lula e que ele não fez nenhuma tentativa séria de termina-la. Segundo sua própria visão, ele considerava que mudar isso teria um custo potencial alto demais. Para ajudar as massas ele buscou harmonia com as elites, para as quais qualquer polarização vigorosa era um tabu. Em 2002 ele finalmente ganhou a presidência, na sua quarta tentativa, com um slogan de “paz e amor”. Em 2016, diante de um linchamento político, ele ainda seguiu falando essas palavras para uma multidão que esperava por algo mais combativo.

    Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de responsabilidade é uma marca comum de um padrão que, desde a virada do século, vem distinguindo a política do Brasil em relação à América Latina. O país não é o único que viu um conflito de classes se tornar uma crise. Mas em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil. Mesmo quando Lula estava no auge de seu prestígio enquanto estava na presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas moderadas e comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média enragé e da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa expressão de abominação unilateral se tornou ainda mais violenta. Um vereador [Roberval Fraiz, de Araraquara] do PMDB no interior de São Paulo falou publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, tendo que pisar em sua cabeça. No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra se recusou a atender uma criança de um ano porque a mãe era uma ‘petista’, e foi absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de Medicina e pela Associação de Médicos. O juiz do Supremo Tribunal, Teori Zavascki, responsável por ter repreendido Moro, foi presenteado com uma série de faixas e cartazes que o chamavam de “traidor” e “pilantra do PT”, enquanto manifestantes cantavam sua canção símbolo que fala que o “capitalismo veio pra ficar”. Conforme aproxima-se do Dia D do impeachment, os militantes fanáticos vêm recebendo endereços de deputados indecisos ao redor do país e intimidando-os, acampando em frente de suas casas. Meticulosamente deve-se dizer que o mercado de ações vem mantendo um ritmo: ele subiu quando Lula foi preso, caiu quando ele foi feito ministro e subindo novamente quando a sua posse foi impedida.

    Um golpe teatral (um coup de théâtre) ainda é possível, com uma virada de eventos salvando Dilma no último minuto, mesmo que não pareça que isso irá acontecer. A maior probabilidade é de que se forme um regime liderado pelo vice-presidente que a abandonou, o veterano sepulcral do PMDB – comparado com o mordomo de um filme de terror – Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, ele preparou o caminho alguns meses atrás, criando um programa para deixar claro que o país estaria seguro assim que ele assumisse. Seu pacote trata-se de um plano de estabilização convencional, agilizando privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados. Se Dilma sofrer o impeachment, tendo uma maioria de 3/5 do Congresso lhe apoiando, Temer não teria nenhum problema em formar um governo de coalizão junto com PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos nanicos, colocando uma pitada de tecnocratas em ministérios centrais. Já que tal combinação poderia passar uma série de leis, às quais Dilma não pode, e isso garantiria o retorno da confiança do mercado, isso certamente traria melhorias aos indicadores econômicos feitos pelos mercados financeiros, não importa o quanto isso custaria aos pobres. Mas dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de investimentos que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é difícil ver qualquer alívio para o país num horizonte futuro.

    Politicamente também a estabilidade não estaria garantida. Uma questão óbvia que surge é se será que o choque do impeachment irá sufocar o que resta do espírito de luta daqueles que apoiam Dilma, ou o contrário, ou seja, que isso provoque uma resistência ainda mais feroz contra as elites do país. Ambas alternativas não são fáceis para a fileira dos vitoriosos – se eles de fato conseguirem o impeachment da presidenta. Um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também colocasse em votação o impeachment de Temer, usando da mesma referência legal do impeachment da Dilma, já que quando ela estava fora do país, ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal que são atribuídos a ela – algo que pegaria desprevenido aqueles que querem derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente rapidamente. Caso esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha. Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma acusação de que a campanha de 2014 de Dilma e Temer violaram o regulamento eleitoral, uma acusação trazida pelo PSDB quando ainda esperava forçar uma situação de novas eleições. Se levada adiante, a ação derrubaria ambos. O processo não pode mais ser retirado e seria um constrangimento se o impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas desde que Gilmar Mendes torne-se presidente do Supremo em maio, a Justiça brasileira provavelmente superará essa questão sem dificuldade. Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht. Mas essas listas podem ser apagadas da consciência da população após o impeachment? Dentro de suas fileiras, toda a classe política está em risco. Será que a Justiça brasileira também poderia minimizar essa dificuldade, nos interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?

    Que o Partido dos Trabalhadores tenha se juntado, por uma transformação ocorrida internamente, às deformadas fileiras do resto da fauna política brasileira – PMDB, PSDB, PP e o restante da corja – não pode ser negado. Até agora, dois presidentes do partido, dois tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da Câmara dos Deputados e o líder do partido no Senado foram todos presos, afundados na lama da corrupção que desconhece fronteiras políticas. De forma emblemática, o último dos notáveis e com a delação mais volumosa, o senador Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma importante engrenagem do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais da metade do Congresso está na lista de pagamento das empreiteiras, cujas doações financiam suas campanhas eleitorais. A degradação do sistema político se tornou tão evidente que no outono passado o STF – que está longe de ser algum tipo de areópago da integridade imparcial – finalmente decidiu que o financiamento privado de campanha era matéria inconstitucional e proibiu as empresas de doarem para as campanhas. O Congresso imediatamente reagiu com emendas constitucionais para permitir as doações, mas o assunto segue congelado na Câmara. Se confirmada a decisão do Supremo sem ser driblada, a decisão permitirá uma espécie de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a única coisa inequivocamente positiva em meio a toda essa crise.

    O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante determinado período, que ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para beneficiar os pobres sem prejudicar os ricos – e até mesmo contando com a ajuda deles. E de fato houve benefícios aos pobres, tal como eles se propuseram. Mas uma vez aceito o preço de entrar num sistema político moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O próprio partido passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem qualquer autocrítica ou direção estratégica, tão cego que chegou a ostracizar André Singer, seu melhor pensador, para colocar uma mistura de marqueteiros e relações públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram a conceber o lucro, não importa de onde viesse, como condição para o poder político. Suas conquistas ainda permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo destino, isso é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo está chegando ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão direta dos Estados Unidos, fortalecidos peloboom das commodities, e amparando-se em grandes reservas de tradição popular, o continente foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos heterodoxos. No despertar de 2008, há agora cada vez mais desses movimentos. Mas não há mais nenhum desses governos. Uma exceção global está chegando ao seu fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte.

    * Artigo publicado originalmente na edição de Abril da London Review of Books. A tradução é de Fernando Pureza, para o Blog Junho.

    NOTA

    * André Singer escreveu a principal análise sobre esse conjunto de medidas e seu desenrolar no artigo ‘Cutucando onças com varas curtas’ (Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um epílogo de seu estudo sobre a trajetória do PT, Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador (Cia das Letras, 2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005, conforme ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual – e talvez possa se argumentar que seja o mais impressionante pensador social de sua geração na América Latina. Secretário de comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se tornou professor universitário acabou sendo mentalmente descartado pelo PT, que não demonstrara nenhum interesse sobre o seu trabalho.

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    Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido por seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de Espectro, Afinidades seletivas e o mais recente A política externa norte-americana e seus teóricos, além de ser colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

    Fonte: Blog da Boitempo

  • Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    Guilherme Boulos e as saídas à esquerda

    “Nós não devemos ter a menor dúvida de que o que está em curso no país é um golpe”, enfatizou Guilherme Boulos em sua fala ocorrida na última sexta-feira, dia 15, no “Encontro pela Democracia e por mais direitos” promovido pela Fundação Lauro Campos com o apoio do Núcleo de Direitos Humanos, do Centro Acadêmico Florestan Fernandes e do Centro Acadêmico do Borba, todos da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

    Para o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), é necessário se ater ao que ele chamou de o “pacote do golpe”. O projeto do Michel Temer, denominado de “Ponte para o Futuro”, é o projeto que sequer o neoliberalismo de FHC teve a ousadia de propor, “é o pacote das contrarreformas estruturais da burguesia brasileira que representa uma política de terra arrasada no país”. Em pauta, as reformas trabalhistas, entendidas como o estímulo às terceirizações, o ataque ao décimo terceiro, à licença maternidade, às férias; assim como a busca pela desindexação do aumento do salário mínimo e o esfacelamento do sistema previdenciário.

    Para Boulos, Michel Temer seria o ator político ideal que poderia implementar esse pacote de reformas, já que ele “não foi eleito por ninguém e não vai pretender reeleição para ninguém. Ele não precisa prestar contas para a sociedade brasileira: ele vai precisar prestar contas para o Congresso Nacional de ratos, que significa fazer uma boa distribuição de cargos, e prestar contas para o empresariado e para a burguesia financeira do Brasil, que é quem está sustentando com sua mão invisível o golpismo”.

    boulos

    Continuando, apontou qual é o desafio para a esquerda que o atual cenário coloca: “é preciso identificar que há o esgotamento de um ciclo, há algo que chegou ao seu limite. Não há mais espaço para pacto conservador nesse sistema. A polarização da sociedade brasileira não é algo passageiro, e não é passageiro porque se esgotou um ciclo econômico, que é o ciclo do ganha-ganha, o ciclo da conciliação, que trouxe ganhos para os setores mais pobres deste país, é verdade, mas sem enfrentar um único privilégio da burguesia brasileira”. Boulos identificou também que há o esgotamento do sistema político brasileiro: “se há algo de progressivo na Operação Lava Jato, no meio de tanta arbitrariedade e abuso, é que ela demonstrou aquilo que a esquerda brasileira diz há 30 anos: que este sistema político é refém dos negócios privados, comandado por uma lógica de financiamento de campanha que faz com que o Estado brasileiro sirva aos mesmos donos, independentemente de quem ganha”.

    Sobre as saídas possíveis para esse cenário, são duas: “a saída à direita para o esgotamento do sistema político é este processo de impeachment e o ‘neoparlamentarismo’ que já falam por aí. A saída à direita para o esgotamento da política do ganha-ganha é a austeridade e a retirada dos direitos sociais”.

    Já saída à esquerda, defendida por ele, “é propor uma inversão do ajuste fiscal, é retomar a pauta das nossas reformas estruturais, é colocar o tema tributário, é colocar o tema da dívida pública. É trazer esse debate de forma viva. Porque se a gente ficar a vida inteira dizendo que não tem correlação de força para fazer, a gente nunca vai construir a correlação de força para fazer”.

    A saída à esquerda para o esgotamento do sistema político brasileiro é radicalizar a democracia: “vamos falar de uma democracia que não seja controlada pelo poder econômico. Vamos falar de uma democracia que tenha participação popular efetiva nas decisões não só de quatro em quatro anos no voto, que tenha instrumentos de participação popular que assegure a participação das mulheres, que assegure a participação dos negros. Falemos de uma democracia que não seja uma democracia racista que extermina a juventude negra, que não seja uma democracia machista que impede o direito das mulheres sobre seu corpo, que não seja uma democracia homofóbica que bloqueia o direito à diversidade sexual, vamos falar de democracia de verdade”.

    “Eles estão passando uma ideia que o governo Temer é um governo de pacificação nacional, baseados na ideia de que terão maioria parlamentar. Nós temos que furar isso: pode ter governabilidade no parlamento, mas não terá governabilidade nas ruas”, encerrou Guilherme Boulos.

  • Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    Chico Alencar: “Na política brasileira, está em jogo, acima de tudo, repactuação do poder e estancamento da Lava Jato”

    “Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico. Tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment”, analisou.

    Na entrevista, realizada enquanto o deputado transitava no plenário da câmara em meio ao que chamou de “festival de cinismo”, Chico Alencar lamenta o grau de rebaixamento atingido pela política brasileira e afirma que acima de tudo está em jogo uma repactuação do poder, que visa inclusive estancar a Operação Lava Jato.

    “O Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc.”, resumiu.

    A entrevista completa com o deputado federal Chico Alencar pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Como avalia a crise política que sacode o Brasil e mantém o governo Dilma na paralisia? Qual a complexidade de todo esse quadro, numa visão de perspectiva também histórica?

    Chico Alencar: Acima de tudo, a crise é do modelo político e econômico brasileiro e, nesse momento conjuntural, se traduz em mera luta pelo poder. Mas na verdade o que está em questão é o Modelo Liberal Periférico, dependente, que prioriza os ganhos do capital financeiro. Daí os valores estratosféricos da dívida pública, daí a própria Dilma vetar a auditoria da dívida, daí a queda dos preços das commodities no mercado internacional afetar tanto nossa dinâmica interna.

    Assim, tem-se o cenário de inflação, desemprego, desinvestimento e, consequentemente, queda de arrecadação dos entes federados e da própria União. É o ponto central. Ninguém tem dúvida de que se estivéssemos no cenário econômico de dois anos atrás não haveria possibilidade alguma de prosperar qualquer pedido de impeachment.

    Por outro lado, nosso padrão político com o atual Congresso, que se recusa a reformá-lo (tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado), é o mais rebaixado possível. Ele é voltado ao toma lá dá cá, aos interesses fisiológicos. O presidencialismo de coalizão obriga o presidente a negociar com esse Congresso pra ter maioria; há uma grande crise das lideranças, que não lideram e, salvo raras exceções, os partidos são todos fragmentados. Os partidos são mais escritórios de negócios pra disputar nacos do orçamento público do que agremiação com proposta, doutrina, visão de mundo, projeto de Brasil.

    E no meio de tudo o poder do dinheiro avassala. A Lava Jato está desnudando tudo, o que é muito positivo. Apesar das inequívocas arbitrariedades do Sérgio Moro, é uma operação preciosa porque está colocando a nu o padrão e o modelo de financiamento da política no Brasil, que é corrupto e corruptor.

    O imediato é a disputa pelo poder. O PMBD, que sempre participou de todos os governos, agora quer o governo por inteiro, para depois recompor o novo pacto das elites. Trata-se de um rearranjo. Setores econômicos mais poderosos, inclusive vinculados aos governos Lula e Dilma, agora pulam fora porque tal governo não lhes é mais funcional. E a Dilma tem dificuldade de articulação política, o que se soma à conjuntura de crise econômica, com seus elementos internacionais. Assim, todos aqueles que estiveram aliados aos negócios, Fiesp à frente, e participaram do neo-desenvolvimentismo que Lula e Dilma implementaram, agora abandonam o governo. Inclusive o BNDES foi o grande agente financiador de muitas obras dessas empreiteiras, no Brasil e no exterior.

    Agora, ao lado de setores expressivos da grande mídia, estão todos “contra” e fazem uma poderosa articulação para colocar o Michel Temer lá. Mas nem de longe o PMDB é solução; é parte do mesmo problema.

    Correio da Cidadania: O que pensa do processo de impeachment da presidente e o que comenta da comissão de impeachment, com mais de 30 parlamentares também investigados no comando dos trabalhos?

    Chico Alencar: Dos 65 deputados da comissão, 38 são investigados. Por ações judiciais diversas, nem todos são processados por corrupção, diga-se. Mas um detalhe: o que vejo, agora mesmo aqui dentro do plenário, é um festival de cinismo. Tem notório corrupto indignado com a corrupção; tem legalista de primeira hora aprovando burlas à lei e à Constituição; tem gente que apoiou a ditadura, passou a ser democrata radical e acha que democracia radical é tirar a Dilma… O rito do impeachment de fato tem abrigo constitucional, mas é muita hipocrisia, haja estômago.

    E o Brasil é o país das transições intransitivas. O governo é péssimo, fazemos oposição, mas quem quer tirar a Dilma e por o Temer quer aplicar aquele velho princípio de mudar pra continuar como está. E inclusive quer obstaculizar a Lava Jato. Acham que já “cumpriu” sua função, de colocar o carimbo de corrupção no PT (não sem razão), tirar a Dilma e dizer “chega”, porque depois o normal seria pegar tucanos, mais gente do PMDB etc.

    A investigação não pode parar e tem de ir fundo, mas o pacto de rearranjo do poder implica também na contenção da Operação Lava Jato. Aliás, aquele procurador suspeito de ser contra o PT – Carlos Fernando dos Santos Lima – falou com todas as letras, em evento público em São Paulo, que se deve reconhecer que o PT, tão incriminando nas investigações, permitiu ao Ministério Público e à Polícia Federal agirem com mais autonomia, o que não ocorria há anos – palavras dele. E tem de ser assim, quem errou, quem se lambuzou, tem de pagar.

    Correio da Cidadania: Como analisa a suposta saída do PMDB do governo e a postura do vice Michel Temer, dentro da dinâmica “rompe-não-rompe”, ministros que não entregam os cargos etc.?

    Chico Alencar: É o PMDB. Por excelência o partido do poder no Brasil. O projeto nacional do PMDB é estar no governo. Sempre. Portanto, tem muita dificuldade em sair do poder. Quando declara formalmente que vai sair faz esse papel patético. É assim desde que acabou a ditadura e em toda a Nova República. Com exceção do Henrique Eduardo Alves, não saiu ainda.

    Fica, de um lado, um acordão em torno do Temer, para uma nova configuração do poder, e de outro lado, o varejão que o governo faz pra sobreviver, oferecendo cargos a pequenos políticos e mantendo aqueles do próprio PMDB que não quiserem se desligar do governo.

    Claro, de novo estamos falando do padrão atual da política. Mudar de governo não quer dizer mudar o sistema e tudo aquilo que gera tantos problemas ao Brasil de hoje.

    Correio da Cidadania: E o que pensa, nesse sentido, da repactuação de cargos e ministérios pretendida pelo governo em favor de partidos como PP e PR, caso os ministros do PMDB realmente entreguem seus cargos?

    Chico Alencar: É o rearranjo em parâmetros rebaixados. Não tem nada a ver com projeto ou programa. É puramente a tentativa de sobrevivência do governo, em situação crítica e necessitado de pelo menos 171 apoios no Congresso pra sobreviver ao impeachment.

    E mesmo que a Dilma sobreviva terá de repaginar o governo todo. Assim, espero que nós e a sociedade consigamos avançar numa reforma política profunda, numa reforma tributária que taxe os mais ricos, o patrimônio, as grandes fortunas. Aí mudaria tudo.

    Com Michel Temer, em vez de “Ponte Para o Futuro” (nome da agenda apresentada pelo partido), teremos uma Pinguela Para o Passado. Ataque aos direitos trabalhistas, prioridade do negociado sobre o legislado, retirada da indexação do salário mínimo ao crescimento do PIB… É o arrocho, a ortodoxia que Dilma tentou implantar ao lado do Levy durante 2015 inteiro. Foi aí que ela cometeu estelionato eleitoral em relação ao que disse na campanha. E o PSDB, ao se opor a tais medidas de arrocho e ajuste fiscal duro, também praticou estelionato eleitoral (risos).

    Querem impor, eles mesmos, um novo programa de ataque aos direitos dos trabalhadores, desvinculação de receitas da União na Educação e Saúde etc. Obviamente, vai inclinar forças ultraconservadoras, a ultradireita parlamentar, assanhadíssima com o impeachment, o que significará muito mais repressão e tensão social.

    O futuro não é nada promissor, qualquer seja a saída, embora nós do PSOL defendamos, em nome da democracia e não da Dilma, o cumprimento do seu mandato. Se teve caixa 2 e o TSE cancelar a chapa Dilma-Temer, tudo bem, é outro departamento. Mas o impeachment não tem sustentação política, jurídica ou orçamentária.

    Correio da Cidadania: Quanto à oposição conservadora, como enxerga, mais especificamente, sua atuação neste momento, dentro e fora do Congresso?

    Chico Alencar: Ela opera no passionalismo, na raiva, no ódio, mal escondendo sua reação às cotas, aos direitos das mulheres etc. Toda a pauta regressiva está subjacente. E vemos nas ruas e carros de som coisas muito reacionárias mesmo, com elementos de fascismo. Eu mesmo ouvi carros de som falando “vamos expulsar os socialistas e os comunistas do Brasil”, “vamos acabar com essa história de direitos homossexuais”, “vamos acabar com cotas pra botar negro na universidade”. São coisas que eu mesmo ouvi quando vieram protestar em frente ao Palácio.

    Correio da Cidadania: E o que dizer sobre Eduardo Cunha, ainda pontificando na política parlamentar, mesmo diante de denúncias bastante robustas de recebimento de propinas, contas na Suíça etc.?

    Chico Alencar: O Cunha na cadeira de presidente da Câmara é a nobre expressão do cinismo mais abjeto, das incongruências totais. Ele é réu, a cada dia surgem novas denúncias, como nessa própria quinta-feira. Ele tenta atrapalhar e obstruir ao máximo o Conselho de Ética, usa do cargo pra manipular tudo. E tem uma rede de cumplicidade com deputados, que devem alguma coisa pra ele, que é impressionante. Eduardo Cunha deslegitima as funções da Câmara dos Deputados, é uma coisa vergonhosa. Algo que chancela o chamado cretinismo parlamentar.

    O pior é que ele não reconhece nada, não fala nada, simplesmente se dá ao luxo de ignorar todas as críticas e denúncias pesadas. Quando subimos à tribuna falamos do “deputado-réu” e ele vira de costas, fica digitando no celular, fingindo que não é com ele… Eu nunca vi isso. Mas é claro que não tem o menor futuro. Pode até demorar, mas ele não tem o menor futuro como figura pública e já está indo para o lixo da história. No entanto, já fez um estrago.

    Correio da Cidadania: A Operação Lava Jato tem cheiro de pizza?

    Chico Alencar: Ela incomoda todo o sistema político, seja governo ou a oposição de direita, conservadora. O sonho de todos é que ela pare, deixe de avançar. Mas pode contribuir muito.

    Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sexta-feira, 8 de abril de 2016

  • O pacificador

    O pacificador

    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016
    Lula discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e pela democracia em São Paulo no dia 18 de março de 2016

    A convite da professora Natalia Brizuela, participei há cerca de duas semanas do lançamento do dossiê especial da revista Film Quarterly (vol. 69, no. 3) dedicado ao legado do cineasta Eduardo Coutinho. O evento ocorreu no intervalo da apresentação de dois documentários de Coutinho, Boca de Lixo (1993) e Peões (2004), no prédio recém-inaugurado do Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive (BAMPFA). Natália pediu-me pra introduzir o filme Peões ao público presente no mais novo museu da Universidade da Califórnia em Berkeley. Rapidamente, fiz alguns comentários sobre o método etnográfico “radical” de Coutinho e sua habilidade de condensar os dilemas da visão social de mundo dos subalternos em entrevistas traspassadas por um profundo sentido de dignidade humana.

    Além disso, busquei contextualizar historicamente o tema de Peões, isto é, o filme que, rodado em 2002, ano da eleição de Lula da Silva, Coutinho dedicou à trajetória da classe operária fordista do ABCD paulista. Observei como o documentarista foi hábil em restituir a agência histórica aos próprios trabalhadores. Afinal, tendo em vista o sucesso de Lula da Silva e da burocracia sindical de São Bernardo, muitas vezes não nos lembramos que foi aquela classe operária semiqualificada retratada nas telas por meio de algumas trajetórias individuais exemplares a verdadeira protagonista do ciclo das greves de 1978, 1979 e 1980. Os peões explicam o ativismo de Lula da Silva, mas Lula da Silva não consegue explicar o ativismo dos peões.

    Lembrei ao público que após o golpe de 1964, a ditadura civil-militar interveio nos sindicatos, perseguindo as lideranças comunistas do ABCD paulista e substituindo-as por antigos pelegos diversas vezes batidos nas eleições sindicais e usualmente alinhados aos setores conservadores da igreja católica. Paulo Vidal foi o mais bem-sucedido desses pelegos. Conhecido por entregar militantes de esquerda pra polícia e ameaçar quem falasse em greve, Vidal foi o predecessor de Lula da Silva na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O “sindicalismo autêntico”, como ficou conhecida essa corrente sindical, nada mais era do que uma tentativa extemporânea de negociar com as multinacionais da região pequenas concessões materiais ao estilo do business unionism estadunidense (sindicalismo de negócios) no qual a nova burocracia de São Bernardo espelhava-se.

    Batendo de cara com o total desinteresse das empresas em negociar com os trabalhadores, afinal, o golpe de 1964 serviu exatamente pra barrar as concessões materiais ao operariado conquistadas pelas greves do período populista, e pressionados pelo aumento da mobilização das suas próprias bases, a escolha de Lula da Silva como sucessor de Paulo Vidal em 1976 marcou o momento da renovação das velhas práticas pelegas de controle da insatisfação operária pela burocracia sindical. Diante da inevitabilidade da greve, Lula da Silva soube se reinventar politicamente, passando de instrumento do assistencialismo sindical à principal liderança de um movimento operário intempestivo e, até certo ponto, imprevisível.

    No entanto, o documentário de Coutinho mostra uma dimensão ainda mais sutil dessa história. Na realidade, o filme captou a relação dialética entre a insatisfação, os desejos e as iniciativas políticas dos peões, verdadeiros sujeitos de sua própria história, e a tentativa de controlar esta agência empreendida por Lula da Silva. Recorrendo a outros filmes da época, em especial, o já clássico Linha de Montagem (1982) de Renato Tapajós, Coutinho revelou por meio de detalhes – o choro, a ansiedade, a chantagem emocional e o pedido do voto de confiança –, o nascimento de uma liderança política ainda desconfiada de sua própria força. Ao mesmo, tempo, o cineasta mostrou como nesses instantes de fragilidade de Lula da Silva, os dilemas dos próprios operários em seu “fazer-se” história condensavam-se e encontravam um sentido mais ou menos consciente.

    Sabemos que daí surgiu um líder cuja legitimidade deriva do controle da insatisfação popular por meio de negociações que lentamente garantem pequenas concessões aos trabalhadores. Uma força social reformista a afiançar o armistício entre a autonomia dos subalternos e a presunção dos dominantes. Quando isso não é possível, sua utilidade tende a declinar até o ponto em que o estabelecimento de um novo pacto volte a ser uma opção crível. No mundo do trabalho, o colapso do armistício entre as classes geralmente vem sob a forma de uma onda grevista.

    De fato, de acordo com os últimos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-Dieese), os trabalhadores brasileiros protagonizaram em 2013 uma onda grevista inédita na história do país, somando 2.050 greves. Isto significou em crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 877 greves. Este número superou o ano de 1990, configurando um novo recorde na série histórica do SAG-Dieese. Em termos de horas paradas, tivemos 111.342 horas paradas, em 2013, representando um crescimento de 28% em relação ao ano anterior. Trata-se do maior número desde o ano de 1990, quando foram registradas 117.027 horas paradas.

    Assim, o país superou o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento sindical readquiriu certo protagonismo político. Em várias capitais, as greves bancárias tornaram-se rotineiras. Além disso, professores, funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil, motoristas e cobradores reconciliaram-se com a mobilização sindical entre 2013 e 2015. Um notável protagonismo da esfera privada tornou-se saliente, consolidando a tendência iniciada em 2012. Proporcionalmente, as greves da esfera privada representaram 54% do total, superando as greves da esfera pública.

    No tocante às greves ocorridas na esfera privada, por exemplo, a maior parte das greves defensivas (46%) esteve diretamente associada ao descumprimento de direitos sociais e trabalhistas por parte dos empregadores. Em comparação com o ano de 2012, nota-se um importante aumento (21,6%) na proporção do número de greves relacionadas ao pagamento de salários atrasados, um indício claro da deterioração das condições gerais de reprodução do regime de acumulação. Com um crescimento de 332% em relação a 2012, em apoio à tendência identificada acima, vale destacar a verdadeira explosão de greves ocorrida no domínio que acantona com mais frequência os grupos de trabalhadores não qualificados ou semiqualificados, terceirizados, sub-remunerados, submetidos a contratos precários de trabalho e mais distantes de certos direitos trabalhistas, isto é, o setor de serviços privados.

    Além de oito greves nacionais realizadas pelos trabalhadores bancários, nota-se, também, um particular ativismo existente entre os trabalhadores em turismo, limpeza, saúde privada, segurança, educação e comunicação. No entanto, a maioria das greves foi deflagrada por trabalhadores dos transportes. Além disso, é possível notar uma tendência semelhante quando observamos os trabalhadores do serviço público. Tanto em termos de administração direta quanto em relação às empresas estatais, o aumento mais expressivo das greves deu-se nos municípios.

    Nesse sentido, a atividade sindical ampliou-se para categorias diferentes daquelas já tradicionalmente mobilizadas. Aqui também a atividade grevista avançou na direção dos grupos de trabalhadores mais precarizados do Estado. Em termos gerais, considerando tanto a esfera privada quanto a pública, é possível identificar uma expansão do movimento do centro para a periferia em uma espécie de transbordamento grevista. Além da presença cada vez mais saliente das reivindicações defensivas nas pautas sindicais, este avanço das greves para a periferia dos diferentes setores econômicos revela uma forte aproximação do precariado urbano em relação à mobilização sindical.

    Diante do atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa, passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.

    Mas o que a burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do “fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal, na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno ruidoso da luta de classes no país.

    No entanto, tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada, novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como ocorreu em 1978 em São Bernardo.

    * * *

    PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO
    A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular procurando domesticar ferramentas como as greves e as representações trabalhistas em sindicatos, e partidos.
    A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, o estudo desbravador de Ruy Braga que analisa as novas configurações da luta de classes no Brasil de hoje e indicava já em 2012 como a despeito da relativa “satisfação” acusada pelas eleições presidenciais e da aparente estabilidade do modo de regulação proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista encontrava-se assentada em um terreno historicamente movediço.
    Hegemonia às avessas: Economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Ruy Braga, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, volume clássico do Cenedic sobre a forma avessa de dominação que configura a era lulista, inspirado em uma releitura de Gramsci e no artigo homônimo de Chico de Oliveira. Vem aí, em 2016, o novo volume do Cenedic sobre o Brasil atual Desigual e combinado: capitalismo e Modernização Periférica no Brasil do Século XXI, coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro com reflexões de Ruy Braga, Maria Elisa Cevasco,Wolfgang Leo Maar, Cibele Rizek, Ana Amélia da Silva entre outros.
    De que lado você está, de Guilherme Boulos, é um livro de intervenção de leitura obrigatória para pensar (e transformar) o Brasil de hoje, com reflexões de fôlego sobre a conjuntura nacional recente que mostra a zona cinza em que a disputa polarizada se encontra.
    Revista Margem Esquerda #22, com homenagem a Eduardo Coutinho, escrita por Felipe Bragança, além de dossiê especial dedicado aos 50 anos do Golpe.

    * * *

    Ruy Braga

    Ruy Braga

    Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

    Fonte: Blog da Boitempo, 28/03/2016

  • O fetiche das ideias

    O fetiche das ideias

    Juliano Medeiros
    Juliano Medeiros

    Dias atrás o professor e filósofo Vladimir Safatle publicou artigo no jornal Folha de São Paulo onde questiona a existência de uma onda conservadora no Brasil. O artigo traz uma série de considerações sobre o momento político que vivemos, estimulando um importante debate sobre como encarar as transformações que o país tem vivido. Além disso, o artigo tem dois méritos inquestionáveis: cobrar uma posição mais clara daqueles que acreditam que há um fortalecimento do conservadorismo no Brasil e, ao mesmo tempo, apontar as responsabilidades da esquerda neste processo. No entanto, apesar de festejado por muitos, o artigo tem fragilidades que merecem ser debatidas. Num momento tão complexo como o que vivemos, não temos o direito de estimular análises superficiais da realidade.

    A posição de Safatle sustenta-se em duas constatações e uma hipótese. A primeira constatação é que o fortalecimento das posições conservadoras na sociedade brasileira deve-se à “decomposição” das esquerdas, notadamente aquelas que se enredaram em compromissos com a ordem do capital a ponto de comprometerem sua própria identidade. A segunda constatação é de que o Brasil sempre teve grande parcela de sua população identificada com ideias claramente conservadoras e isso não é propriamente uma novidade. Ambas as constatações nos parecem corretas.

    Em seguida Safatle formula uma hipótese que contraria suas próprias constatações: a “onda conservadora” seria apenas uma narrativa cômoda, um discurso útil que, como tal, não encontra base concreta na realidade. Daí o título bombástico de seu artigo: a “falsa” onda conservadora. Ou seja, uma onda conservadora que, na verdade, não existe. Acontece que, contraditoriamente, Safatle admite que posições conservadoras ganharam força no conjunto da sociedade, chegando inclusive a atribuir esse fenômeno à incapacidade das esquerdas de apresentarem uma alternativa global à visão de mundo representada por essas ideias. Mas esse não é, exatamente, o ponto fraco do artigo de Safatle. O problema de fundo está em tomar a ofensiva do conservadorismo como um fenômeno restrito ao mundo das ideias. O marxismo ocidental já foi muito criticado por sua falta de vínculos com a prática, por ser um “marxismo de filósofos” que dava as costas para a realidade. Não podemos cometer este erro num momento tão decisivo para o Brasil.

    Lauro Campos dizia que, como resultado do trabalho intelectual da burguesia, o indivíduo alienado erige um ponto de vista particular, limitado, que acaba eliminando e obscurecendo outros pontos de vista. Isto é, como falsa consciência, a ideologia impede que sejam observadas as determinações que constituem a totalidade dos fenômenos sociais. Romper com o particularismo, ou com o fetiche das ideias em relação às determinações econômico-sociais, é a melhor forma de superar aquele ponto de vista exclusivo, parcial.

    Por isso, o avanço do conservadorismo não pode ser medido apenas pelo fortalecimento das “ideias conservadoras”. Esta é uma visão unilateral do fenômeno. Em outras palavras, seria um erro interpretar a presente ofensiva do conservadorismo apenas como fenômeno de natureza político-ideológico quando, na verdade, é sua expressão material que representa a verdadeira possibilidade de retrocessos.

    A onda conservadora não encontra sua forma final nas posições de Silas Malafaia, Jair Bolsonaro ou Marco Feliciano. Esses indivíduos e suas visões de mundo, como adverte corretamente Safatle, sempre tiveram alguma penetração na sociedade brasileira. O que estamos vendo, possivelmente, é uma amplificação dos discursos de ódio devido à inexistência de forças de contenção como as que existiram nos anos 80 e 90. Considerar que a onda conservadora se expressa fundamentalmente na forma de “discurso do ódio” reforça a visão unilateral que Safatle reproduz em seu artigo. Ao contrário, a ofensiva do conservadorismo não se restringe à sua dimensão político-ideológica. É no campo das determinações materiais que ela se expressa mais concretamente. Trata-se, em última instância, de uma ofensiva do capital para retomar seus níveis de acumulação e colocar em marcha um novo ciclo de expansão do sistema capitalista. Por isso é necessário eliminar as conquistas democráticas que representam entraves a esta estratégia, tais como a legislação ambiental, os direitos indígenas, o sistema de proteção trabalhista e previdenciário, o controle do Estado sobre setores estratégicos da economia ou dos serviços públicos, dentre outras. Ao contrário do que pensa Safatle, a ofensiva conservadora não se resume a uma torrente de ideias atrasadas, retrógradas, anti-iluministas: sua expressão material pode ser percebida em dezenas de iniciativas que tem como objetivo retroceder em relação aos direitos hoje existentes para “destravar” um novo ciclo expansivo do capitalismo brasileiro.

    Com isso, podemos afirmar, por exemplo, que a Agenda Brasil, oferecida por Renan Calheiros à presidente Dilma, é uma expressão muito mais concreta da ofensiva do conservadorismo que os discursos de Bolsonaro ou Malafaia. Assim como o são a PEC 215, que pretende extinguir a demarcação de terras indígenas, permitindo assim a expansão da fronteira agrícola; o PL 4330, que permite a utilização desenfreada do trabalho terceirizado; a proposta de retroceder ao regime de concessão na exploração do petróleo; e mesmo as medidas do ajuste fiscal de Dilma e Levy, que retiraram direitos trabalhistas e previdenciários, ampliaram as privatizações e o arrocho sobre as contas públicas, diminuindo a capacidade de investimento do Estado enquanto reajustam as taxas de remuneração dos especuladores através dos juros da dívida pública. Ou seja, a ofensiva conservadora se expressa concretamente na retirada de direitos, especialmente aqueles que podem representar barreiras à reprodução do capital em tempos de crise.

    O exemplo da redução da maioridade penal é eloquente. Votada pela Câmara dos Deputados depois de vinte anos de tramitação, a aprovação veio acompanhada, poucos dias depois, de duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que preveem a redução da maioridade laboral, de 16 para 14 anos. Como se vê, mesmo quando o que está em questão é um tema aparentemente de natureza jurídico-penal, os interesses do capital não tardam a surgir.

    Isso não significa, é claro, que o aumento dos casos de homofobia, racismo, xenofobia, violência contra a mulher, intolerância religiosa e defesa de regimes ditatoriais, não componham uma agenda conservadora que prevê retrocessos também no campo das liberdades individuais. O que estamos afirmando, ao contrário, é que esta agenda não existe por si própria: ela se alimenta de condições históricas e sociais geradas pela ofensiva do capital sobre o trabalho. As determinações falsas, defeituosas, alienadas, que constituem a ideologia, correspondem à dinâmica defeituosa, conflitiva e contraditória em que se objetivam as relações sociais em torno da produção, isto é, do conflito entre capital e trabalho, essência determinadora de fenômenos sociais mutuamente dependentes. Abrir mão deste legado interpretativo é aderir completamente ao subjetivismo.

    O artigo de Safatle tem dois méritos inegáveis, a saber, destacar a responsabilidade das esquerdas no avanço das posições conservadoras – em especial aquela que, depois de 14 anos no poder, pouco fez para conter essas posições – e chamar a atenção para o fato de que o conservadorismo não é fenômeno recente no Brasil. Mas ele não soube extrair as conclusões corretas de suas constatações, circunscrevendo a ofensiva conservadora a um produto puramente ideológico, e portanto, falso. Infelizmente, Safatle e sua visão idealista da realidade tem muitos adeptos. Que a esquerda seja capaz de superar o fetiche das ideias e colocar, mais uma vez, a luta de classes no centro de suas análises.

    Juliano Medeiros é historiador e membro da Executiva Nacional do PSOL

     

  • A segunda morte do PT

    A segunda morte do PT

    Juliano Medeiros
    Juliano Medeiros

    Quando surgiu, naquele dia 10 de fevereiro de 1980 no Colégio Sion, o Partido dos Trabalhadores representava o início de uma nova etapa na história da esquerda brasileira. Surgido da crítica às formas tradicionais de organização da esquerda, representadas pelo vanguardismo e elitismo dos partidos comunistas, o PT foi a primeira organização partidária criada de “baixo pra cima” no Brasil. Surgido da reunião de diferentes vivências políticas – comunistas, socialdemocratas, reformistas, cristãos, intelectuais, operários, camponeses, estudantes – o PT representava uma grande novidade na política brasileira.

    Foram necessários vinte e dois anos até que o partido chegasse ao governo federal. Para isso, adaptou seu programa às razões de mercado, prometeu respeitar contratos, abandonou a defesa de reformas estruturais e firmou alianças com partidos do campo conservador. Não era o único caminho, obviamente. Em história não há caminhos únicos. A opção consciente da maioria do partido em domesticá-lo foi feita ao longo de uma década e culminou com a “carta aos brasileiros” (na verdade, uma carta aos banqueiros) e a aliança com o Partido Liberal.

    Uma vez no governo, Lula e o PT colocaram em prática o compromisso firmado meses antes com o mercado: sofrendo os efeitos da crise econômica que atingiu o país no início da década, o governo implementou um forte ajuste fiscal de caráter conservador que elevou a meta de superávit primário, aumentou as taxas de juros, renovou a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e enviou ao Congresso Nacional a proposta de emenda constitucional que alterava o regime da Previdência Social dos servidores públicos.

    Se os ajustes fiscais (juros, superávit, metas de inflação) já eram suficientes para estarrecer até o mais moderado petista, já que representavam uma clara adesão às teses macroeconômicas do tucanato, a Reforma da Previdência parecia um pesadelo: pela primeira vez o PT defendia a retirada de direitos dos trabalhadores.

    A Reforma da Previdência abriu uma crise entre o governo e parte do movimento sindical brasileiro. Os servidores públicos, históricos eleitores do PT, se converteriam a partir daí em base do eleitorado da oposição. Mesmo no âmbito do PT, a bancada mostrava-se rebelde. A oposição interna gerou uma dissidência pública. Parte dos parlamentares petistas votou contra a reforma da previdência, sendo expulsa em seguida; outra parte se absteve, sofrendo uma série de sanções internas. Mesmo diante da saraivada de críticas, o governo conseguiu aprovar, na noite do dia 11 de novembro de 2003, a famigerada Reforma da Previdência, que entre outras medidas aprovou a taxação dos servidores públicos inativos e o aumento da idade mínima para a aposentadoria. Era a primeira vez na história política brasileira que o PT capitaneava um ataque aos direitos dos trabalhadores. Naquela noite, o partido assinou sua primeira certidão de óbito como alternativa para a transformação social. Ali morria, simbolicamente, o PT do Sion.

    Mas o tempo passou. Depois da crise do “mensalão”, em 2005, outros petistas abandonaram o partido. Além de uma conversão programática ao modelo de gestão neoliberal da economia, o PT também se convertia aos métodos da velha direita. Apesar disso, as condições econômicas internacionais melhoraram, o que permitiu uma retomada dos investimentos públicos, a ampliação dos empregos, o aumento do salário mínimo e uma melhoria geral nas condições de vida dos mais pobres. Alguns alimentaram esperanças numa “guinada” de rumos no governo. No andar de cima, porém, os ricos lucravam como nunca. Nas palavras de Lula: “nunca os banqueiros ganharam tanto”.

    Com a crise econômica iniciada em 2008, as tentativas de manter a política de crescimento baseado no consumo entraram em xeque. O desaquecimento da economia e a queda do investimento público ameaçam o emprego, os salários e ampliam a desigualdade. Como resposta, o governo liderado pelo PT tinha duas alternativas: (a) colocar em marcha uma série de medidas de taxação dos mais ricos, como o imposto sobre as grandes fortunas, a correção da alíquota do Imposto de Renda, o aumento do imposto sobre o lucro líquido dos bancos (CSSLL) e a redução drástica da taxa de juros; ou (b) aderir às saídas ortodoxas do mercado que taxam os mais pobres, aumentando a taxa básica de juros beneficiando o rentismo, reajustando os preços públicos (o popular “tarifaço”), contendo o investimento público e retirado direitos trabalhistas e previdenciários. O governo, como sabemos, optou pelo segundo caminho.

    Buscando atender às pressões do mercado, em 31 de dezembro do ano passado, no apagar das luzes, o governo anunciou a publicação de duas Medidas Provisórias que flexibilizam direitos trabalhistas e previdenciários (abono salarial, seguro-desemprego, pensão por morte, seguro-defeso e auxílio-doença). Pela segunda vez, um governo do PT liderava a retirada de direitos dos trabalhadores. Em resumo, as medidas propostas pelo governo visam dificultar o acesso a esses direitos, ampliando prazos para sua requisição. O argumento é a existência de fraudes. Nada mais falso: por trás das MPs está a expectativa de uma economia de até R$ 18 bilhões de reais na concessão de benefícios. Esses recursos iriam para o caixa do governo, reforçando a contenção de despesas exigida pelo mercado.

    As MPs 664 e 665 começaram a ser votadas nessa semana. O governo tenta dobrar o PT e demais partidos da base aliada. Tem tido sucesso: o PCdoB, que anunciou que se oporia às medidas, voltou atrás e se somou ao exército do ajuste fiscal. O PMDB anuncia que só votará a favor das medidas se o PT cerrar fileiras por sua aprovação.

    À direita não basta ver o partido criado pelos “de baixo” servindo aos “de cima”. Querem uma capitulação total. Faz tempo que os que defendem uma transformação estrutural da política e da economia não podem mais contar o PT. Mas ver o partido se curvando mais uma vez às exigências de um governo liderado pelo PMDB é triste. Votando a favor das MPs 664 e 665, o PT estará assinando simbolicamente, pela segunda vez, seu atestado de óbito como alternativa em favor da classe trabalhadora brasileira.

     Juliano Medeiros é do Diretório Nacional do PSOL