por Paulo Kliass*
Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.
A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo, pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que, uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.
A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra a maioria da população brasileira.
Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais, Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.
Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.
A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma mistura explosiva para o conjunto da sociedade.
Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios. Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram aos comandos da nova direção.
O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade de promover superávit primário a qualquer custo.
Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.
Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.
Previdência não é estruturalmente desequilibrada.
Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio. E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável. Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem retornar a patamares compatíveis às despesas.
E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé “saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento formalmente equilibrado.
Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia, André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.” Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida contra a grande maioria da sociedade.
Por que não uma Reforma da Política Monetária?
Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos, sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.
Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado são sagrados e imexíveis.
Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.
Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o financismo passa incólume – graças ao compadrio generoso dos responsáveis pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas previdenciárias. E ponto final.
Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.
Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” – esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo, o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa estrutura tributária.
Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.
Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Publicado originalmente na Carta Maior. 08/08/2017. http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FPrevidencia-Social-ou-Juros-%2F7%2F37670
Tudo muda o tempo todo. Antigamente era aceitável ter escravos. Hoje em dia o escravagismo é bastante malvisto socialmente – a não ser, é claro, que o dono dos escravos seja uma empresa, e os escravos sejam asiáticos.
Há menos de cem anos, visitantes pagavam para ver aborígenes em zoológicos humanos. Tudo já foi normal até que algum dia ficou bizarro. O que nos leva a perguntar: o que vai ser bizarro daqui a cem anos?
Um dia vai ser muito estranho pessoas se locomoverem num veículo movido a combustíveis fósseis. Um dia vai ser muito estranho o governo dar isenção de impostos para as pessoas comprarem mais veículos movidos a combustíveis fósseis apesar das ruas lotadas e dos oceanos subindo.
Um dia vai ser muito estranho mamilos masculinos serem banais e mamilos femininos serem escandalosos. Um dia vai ser muito estranho o Congresso brasileiro ter só 9% de mulheres. Um dia vai ser muito estranho ser proibido à mulher interromper sua gestação como se o seu corpo pertencesse ao Estado.
Um dia vai ser muito estranho igrejas não pagarem imposto. Um dia vai ser muito estranho um pastor se eleger deputado e citar a Bíblia no Congresso. Um dia vai ser muito estranho ver a figura de Cristo acima do juiz num tribunal laico.
Um dia vai ser muito estranho negros ganharem pouco mais da metade do que ganham brancos – sim, esse dado é de 2016.
Um dia vai ser muito estranho pessoas que tratam animais como se fossem filhos comerem animais que passaram a vida enclausurados em campos de concentração porque afinal de contas alguns animais são dignos de afeto e outros não.
Um dia vai ser muito estranho uma pessoa ir presa porque planta uma erva que nunca na história matou ninguém – enquanto o supermercado vende drogas comprovadamente letais.
Um dia vai ser muito estranho o salário ser mais taxado que a herança e a renda ser menos taxada que o trabalho. Um dia vai ser muito estranho os bancos falirem e os banqueiros continuarem bilionários.
Um dia vai ser muito estranho você estudar dez anos para ser médico da rede pública e ganhar menos do que ganha uma filha de militar. Um dia vai ser muito estranho filha de militar ser profissão.
Um dia vai ser muito estranho um jornal restringir o conteúdo para assinantes.
Um dia vai ser estranho membros do Judiciário e do Legislativo ganharem supersalários e defenderem o ajuste fiscal.
Um dia.
*Artigo de Gregório Duvivier, originalmente publicado no site da Folha de São Paulo nesta segunda-feira (22/02)
Colóquio Relações Internacionais e Marxismo
8 e 9 de Junho de 2016*
UFRRJ/UFRJ
A corrente marxista ocupa uma posição marginal nos debates tradicionais sobre Relações Internacionais. Quando não ausente, aparece diluída em outros matizes de pensamento, incluída no campo residual das teorias críticas. O ensino introdutório das RI passa ao largo da explicação marxista, por vezes sob o argumento de falta de tempo para Marx finalizar seu estudo sistemático sobre a sociedade burguesa, notadamente quanto ao Estado e o mercado mundial. Esta visão, largamente esposada pela maioria das academias no Brasil e no mundo reluz, não apenas desconhecimento sobre o arcabouço teórico como esconde certa rejeição ao projeto político acoplado à teoria social marxiana. Ainda nos Grundrisse, Marx alude que a tendência de criar um mercado mundial é inerente ao próprio conceito de capital.
Este argumento ratifica o descompasso existente no estudo da área. Antes mesmo do marco temporal adotado, do pós-Primeira Guerra Mundial para o primeiro debate entre realismo e liberalismo, os estudos marxistas já manifestam sua preocupação e sua ênfase à temática internacional. As teorias clássicas do imperialismo, por exemplo, carregam um substrato teórico robusto e consistente. Isto se comprova por sua relevância para o pensamento e as lutas revolucionárias daquele período. A identificação das transformações no modo de produção capitalista, ocorridas a partir do último quartel do século XIX, confere aos teóricos do imperialismo, em que pesem as divergências significativas entre si, uma perspectiva que permite avaliar os fenômenos históricos para além da aparência, atingindo a essência do objeto de análise.
A expansão exponencial do modo de produção capitalista pelo mundo e a reorganização política pós-1945 permitiram o avanço nas reflexões teóricas e nas lutas revolucionárias, como atestam o surgimento de correntes de pensamento que rachavam o monolitismo do bloco anglo-saxão, como as teorias da dependência, e os movimentos de descolonização e de autodeterminação, sobretudo, na África e na Ásia. A emergência da periferia enquanto centro de resistência e de transformação marca as discussões sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, divisão internacional do trabalho, as leituras da formação histórica do sistema capitalista, até os atuais debates sobre globalização, empresas multinacionais, a natureza e papel do Estado no capitalismo, hegemonia, contra-hegemonia e o império americano, compondo o vasto horizonte marxista de pensamento sobre a esfera internacional, cedendo elementos para a construção desta área de conhecimento.
No Brasil, particularmente desde os anos 1970, há a participação ativa e direta de pesquisadores latino-americanos, com figuras de destaque na corrente marxista da Teoria da Dependência ou na Teoria do Sistema-Mundo. Contudo, essa influência não se materializou em uma assimilação mais sistemática e profunda na academia brasileira destas proposições. A relativa ausência da perspectiva marxista como paradigma legítimo de reflexão nas Relações Internacionais no Brasil enfraquece a capacidade de elaboração de alternativas para a atuação internacional de um país dependente, como o Brasil. Esta limitação é, ao mesmo tempo, causa e efeito de uma identificação da intelectualidade de Relações Internacionais e dos operadores de política externa brasileira com o centro hegemônico estadunidense, sua teoria e prática, sendo uma barreira à construção de uma nova identidade profundamente latino-americanista, terceiro-mundista e ligada às causas populares de todo o mundo.
A construção de um campo marxista nas Relações Internacionais no Brasil coloca-se hoje como necessidade. Com o objetivo de supri-la, o Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais (LIERI), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e o Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-hegemonia (LEHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizam o colóquio “Relações Internacionais e Marxismo”.
O desenvolvimento do campo marxista pode impactar sobre a área no Brasil em múltiplos aspectos. Teoricamente, permitirá o aprofundamento dos debates, impondo um desafio aos paradigmas dominantes. Por suas características intrínsecas, o marxismo enfatiza o aspecto histórico e a possibilidade de transformação das estruturas internacionais. Por romper com a compartimentalização do conhecimento, é a única abordagem capaz de confluir a Economia Política Internacional, as Teorias de Relações Internacionais e a Geopolítica. Ademais, o marxismo transcende o campo da teoria, tendo um papel político – o qual é indissociável do científico – e mesmo social: a inclusão de perspectivas que emergem dos setores explorados e oprimidos. O marxismo vai além de outras correntes críticas, que apontam, corretamente, a inexistência de neutralidade axiológica nas Relações Internacionais. Ele assume organicamente um compromisso ao teórico e político com os oprimidos do mundo.
Este colóquio terá, como desafio, a construção de uma unidade na diversidade de concepções marxistas. Há elementos de convergência, tanto teóricos, como metodológicos e políticos. Ainda que existindo leituras distintas, há um conjunto conceitual que aproxima e estabelece pontos mínimos de contato, como a dependência, a hegemonia e o imperialismo. Neste sentido, ressalta-se a convergência do evento com o calendário internacional de comemorações dos cem anos de lançamento da obra seminal para as Relações Internacionais, O Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de Vladimir Lênin e a menos de um ano do centenário da Revolução Russa.
Para a construção deste campo comum do marxismo nas Relações Internacionais brasileira, o evento se propõe a ser um espaço de reflexão duplo, tanto interno ao próprio marxismo, como crítico em relação aos outros paradigmas. No que diz respeito ao colóquio, serão organizados dois espaços distintos, mas complementares, de discussão sobre os temas e conceitos próprios que são parte do patrimônio teórico marxista (imperialismo, dependência, hegemonia, entre outros), e outro onde se exercerá o processo de análise crítica em temas centrais das Relações Internacionais (teoria, política externa, integração regional, entre outros).
Por fim, este evento se dará nos marcos não só da elaboração marxista, mas de uma perspectiva desde a periferia. Procurar-se-á contribuir para colocar em evidência o papel do antagonismo Centro-Periferia no âmbito global, nacional e local. Isso significa pensar as Relações Internacionais a partir das experiências da realidade periférica. Assim, este evento não poderia ser mais propício: ocorrerá num país da periférica América do Sul, parte do Sul Global, e terá como um dos seus organizadores uma universidade situada na periferia do Rio de Janeiro, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, localizada em Seropédica.
CHAMADA PARA ARTIGOS
Um evento que pretende à construção de um campo teórico-político exige uma profundidade reflexiva, que se expressará não só nos dois dias do evento, mas na discussão e circulação prévia dos textos produzidos pelos participantes. Por isso, abrimos desde já a chamada para o envio dos resumos/abstracts e resumidos expandidos, com o prazo limite de 19 de fevereiro de 2016.
Os trabalhos poderão variar entre diferentes temas nos eixos Tópicos das Relações Internacionais sob o prisma marxista (incluindo-se entre estes, mas não os esgotando, a Teoria das Relações Internacionais, Política Externa Brasileira, Geopolítica e Integração Regional) e Análises marxistas da ordem mundial (abordando conceitos e perspectivas da tradição marxista, como Imperialismo, Dependência, Sistema-Mundo, Hegemonia, Bolivarianismo, entre outros).
Os resumos/abstracts deverão contar com no máximo 200 palavras e os resumos expandidos com no máximo 1000 palavras.
Propostas deverão ser enviadas em formato word para o e-mail: rimarxismo@gmail.com
MEMBROS DO COMITÊ CIENTÍFICO E ORGANIZAÇÃO
Prof. Dra. Ana Saggioro Garcia (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dra. Mayra Goulart da Silva (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Muniz Ferreira (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Luiz Felipe Osório (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Carlos Eduardo Martins (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Carlos Serrano Ferreira (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Miguel Borba de Sá (IRI/PUC-Rio)
Prof. Dr. João Márcio Mendes Pereira (Pós-graduação de História, UFRRJ)
Coloquio Relaciones Internacionales y el marxismo
8 y 9 de junio 2016*
UFRRJ/UFRJ
La corriente marxista ocupa una posición marginal en los debates tradicionales sobre Relaciones Internacionales. Cuando no está ausente, aparece diluida en otros matices de pensamiento, incluidos en el ámbito residual de teorías críticas. La enseñanza introductoria de RI pasa de largo de la explicación marxista, a veces con el argumento de la falta de tiempo de Marx para finalizar su estudio sistemático de la sociedad burguesa, especialmente con respecto a el Estado y el mercado mundial. Este punto de vista, ampliamente abrazado por la mayoría de las academias en Brasil y en el mundo, brilla no sólo la ignorancia del marco teórico bien como oculta cierto rechazo al proyecto político unido a la teoría social marxista. Ya en los Grundrisse, Marx se refirió a la tendencia a la creación de un mercado mundial como inherente al concepto mismo de capital.
Este argumento confirma el descompás existente en el estudio de la área. Aún antes del marco temporal adoptado, el post-Primera Guerra Mundial para el primer debate entre el realismo y el liberalismo, los estudios marxistas han manifestado su preocupación y su énfasis en la temática internacional. Las teorías clásicas del imperialismo, por ejemplo, tienen una sólida y consistente base teórica. Esto queda demostrado por su relevancia para el pensamiento y las luchas revolucionarias de la época. La identificación de los cambios en el modo de producción capitalista, a partir del último cuarto del siglo XIX, da a los teóricos del imperialismo, a pesar de las diferencias significativas entre ellos, una perspectiva que permite evaluar los fenómenos históricos más allá de la apariencia, de llegar a la esencia del objeto de análisis.
La expansión exponencial del modo capitalista de producción en todo el mundo y la reorganización política posterior a 1945 permitió el avance en las reflexiones teóricas y las luchas revolucionarias, como lo demuestra la aparición de corrientes de pensamiento que dividen el bloque monolítico anglosajón, como las teorías de la dependencia, y los movimientos de descolonización y autodeterminación, especialmente en África y Asia. El surgimiento de la periferia como centro de resistencia y transformación marca las discusiones sobre el desarrollo y el subdesarrollo, división internacional del trabajo, las lecturas de la formación histórica del sistema capitalista, hasta los debates actuales sobre la globalización, las empresas multinacionales, la naturaleza y el papel del Estado en el capitalismo, hegemonía y contrahegemonía y el imperio estadounidense, que componen el vasto horizonte del pensamiento marxista en el ámbito internacional, dando elementos para la construcción de esta área de conocimiento.
En Brasil, en particular desde la década de 1970, hubo la participación activa y directa de los investigadores de América Latina, con figuras principales en la corriente marxista de la Teoría de la Dependencia y en la Teoría del Sistema-Mundo. Sin embargo, esta influencia no se materializa en una asimilación más sistemática y profunda de estas proposiciones en la Academia Brasileña. La relativa ausencia de la perspectiva marxista como paradigma legítimo de pensamiento en Relaciones Internacionales en Brasil socava el desarrollo de alternativas para las actividades internacionales de un país dependiente como Brasil. Esta limitación es, al mismo tiempo, causa y efecto de una identificación de la intelectualidad de Relaciones Internacionales y de los operadores de la política exterior de Brasil con el centro de la hegemonía de Estados Unidos, su teoría y práctica, siendo una barrera para la construcción de una nueva identidad profundamente latinoamericanista, tercermundista y vinculada a las causas populares de todo el mundo.
La construcción de un campo marxista en Relaciones Internacionales en Brasil sobresale hoy como una necesidad. Para desarrollarlo, el Laboratorio Interdisciplinario de Estudios en Relaciones Internacionales (LIERI), de la Universidad Federal Rural de Río de Janeiro, y el Laboratorio de Investigación en Hegemonía y Contrahegemonía (LEHC), de la Universidad Federal de Río de Janeiro, organizan el Coloquio “Relaciones Internacionales y el marxismo”.
El desarrollo del campo marxista puede impactar en el área en Brasil en muchos aspectos. En el campo teórico permitirá la profundización de los debates, poniendo un desafío a los paradigmas dominantes. Por sus características inherentes el marxismo enfatiza el aspecto histórico y la posibilidad de transformación de las estructuras internacionales. Al romper con la compartimentación del conocimiento, es el único método capaz de confluir la Economía Política Internacional, las Teorías de las Relaciones Internacionales y la Geopolítica. Por otra parte, el marxismo trasciende el ámbito de la teoría, tiene un rol político – que es inseparable del científico – e incluso social: la inclusión de perspectivas que surgen de los sectores explotados y oprimidos. El marxismo va más allá de otras corrientes críticas, que señalan, con razón, la falta de neutralidad axiológica en Relaciones Internacionales. El marxismo hace orgánicamente un compromiso teórico y político con los oprimidos del mundo.
Este coloquio tendrá el desafío de construir una unidad en la diversidad de las concepciones marxistas. Existen elementos de convergencia, tanto teóricos, como metodológicos y políticos. Aunque existan diferentes lecturas hay un conjunto de conceptos que aglutina y establece puntos mínimos de contacto, como la dependencia, la hegemonía y el imperialismo. En este sentido, se enfatiza la convergencia del evento con el calendario internacional de las celebraciones de los cien años de lanzamiento de la obra seminal para las Relaciones Internacionales, El imperialismo, fase superior del capitalismo, de Vladimir Lenin, y menos que un año del centenario de la revolución rusa.
Para la construcción de este campo común del marxismo en las relaciones internacionales de Brasil, el evento pretende ser un espacio de doble reflexión, tanto interna para el propio marxismo, como crítica de los otros paradigmas. En el coloquio se organizarán dos espacios diferenciados, pero complementarios de discusión, uno acerca de los temas y conceptos que forman parte de la herencia teórica marxista (el imperialismo, la dependencia, la hegemonía, etc.), y otro en el que se ejercerá un proceso de análisis crítico sobre temas centrales de Relaciones Internacionales (teoría, la política exterior, la integración regional, etc.).
Por último, este evento se llevará a cabo en el marco no sólo del desarrollo marxista, sino de una perspectiva desde la periferia. Se tratará de contribuir a sacar a la luz el papel del antagonismo centro-periferia a nivel mundial, nacional y local. Esto significa pensar las Relaciones Internacionales desde las experiencias de la realidad periférica. Por lo tanto, este evento no podría ser más propicio: ocurrirá en un país del periférico América del Sur, parte del Sur Global, y tendrá como uno de sus organizadores una universidad situada en la periferia de Río de Janeiro, la Universidad Federal Rural de Río de Janeiro, ubicada en Seropédica.
CONVOCATORIA DE PONENCIAS
Un evento que tiene como objetivo construir un campo teórico y político requiere una profundidad reflexiva, que se expresa no sólo en el evento de dos días, pero la discusión previa y la circulación de los textos producidos por los participantes. Así pues abrimos desde ya la convocatoria para la presentación de resúmenes/abstracts y resúmenes extendidos, con la fecha límite del 19 de febrero.
Los artículos pueden variar entre los diferentes temas en los ejes Tópicos de Relaciones Internacionales bajo el prisma marxista (incluyendo la teoría de las Relaciones Internacionales, la política exterior brasileña, Geopolítica e Integración Regional, etc.) y Análisis marxistas del orden mundial (abordando conceptos y perspectivas de la tradición marxista, como el imperialismo, la dependencia, el sistema-mundo, hegemonía y el bolivarianismo, entre otros).
Resúmenes / abstracts deben contar con un máximo de 200 palabras y los resúmenes extendidos de no más de 1000 palabras.
Las propuestas deben ser enviadas en formato Word a la dirección de mail: rimarxismo@gmail.com
MIEMBROS DEL COMITÉ CIENTÍFICO Y ORGANIZACIÓN
Prof. Dra. Ana Saggioro Garcia (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dra. Mayra Goulart da Silva (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. MunizFerreira (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Luiz Felipe Osório (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Carlos Eduardo Martins (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Carlos Serrano Ferreira (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Miguel Borba de Sá (IRI/PUC-Rio)
Prof. Dr. João Márcio Mendes Pereira (Pós-graduação de História, UFRRJ)
Colloquium International Relations and Marxism
June 8th and 9th, 2016*
UFFRJ/UFRJ
The Marxist strand occupies a marginal position on traditional debates about International Relations (IR). When it is not absent, it appears diluted into other currents of thought, placed on the residual camp of critical theories. Nevertheless, since the beginning of IR as an academic discipline, at the post-First World War period, Marxist studies (and revolutionary struggles of the time) turned to international themes as, for instance, the classical theories of imperialism. At the post-1945 world, theoretical reflections and struggles evolved to beyond Europe, with dependency theories in Latin America, as well as decolonization and self-determination movements, above all, in Africa and Asia. The emergence of the periphery as a hub of resistance and transformation marked early discussions on development and underdevelopment, international division of labour, readings of the historical formation of the capitalist system, all the way until current debates around globalization, multinational companies, the nature and role of the State within capitalism, hegemony, counter-hegemony and the American empire. All this composes the vast Marxist horizon of thinking about the international sphere, forming the elements of this knowledge-area.
Since the 1970’s, Latin-American and Brazilian scholarsbecame distinguished figures within the Marxist strand of dependency theory, as well as in World-Systems theory. However, this did not let to a deeper and more systematic assimilation of those theories’ propositions by the Brazilian academy. The absence of the Marxist perspective as a legitimate paradigm in IR weakens the capacity of elaboration of alternatives to the international behaviour of a dependent country, such as Brazil. This limitation is, at the same time, cause and effect of an identification of IR scholarship and foreign policy markers with the North-American hegemonic core, its theory and practice, constituting a barrier to the construction of a new and profoundly Latin-American, third-worldist identity connected with popular causes from around the world.
The development of a Marxist camp has the potential to impact on the area of IR in Brazil in multiple ways. Because of its intrinsic characteristics, Marxism emphasizes the historical aspect and the possibility of the transformation of international structures. Due to its refusal of compartmentalization of knowledge, it is able to gather International Political Economy, International Relations theory and Geopolitics. Furthermore, Marxism transcends the fields of pure theory, assuming a political role that is inseparable from the scientific one: the inclusion of perspectives that emerge from exploited and oppressed sectors. Marxism goes beyond other critical currents, which point, correctly, to the inexistence of axiological neutrality in IR. It assumes organically a political and theoretical compromise with the oppressed of the earth.
The building of a Marxist camp within the Brazilian IR community presents itself, today, as a necessity. With the aim of fulfilling it, the Interdisciplinary Laboratory of International Studies (LIERI, in Portuguese) from the Federal Rural University of Rio de Janeiro (UFRRJ), together with the Laboratory of Studies on Hegemony and Counter-Hegemony (LEHC), from Rio de Janeiro’s Federal University (UFRJ), decided to organise the colloquium “International Relations and Marxism”.
This colloquium will have, as a challenge, the construction of unity amidst the diversity of Marxist conceptions. There are elements of convergence, theoretical and methodological, as well as political. Even if diverse interpretations exist, there is a conceptual apparatus that brings them closer to oneanother, establishing minimal points of contact, such as dependency, hegemony and imperialism. In this sense, it is worth noticing that the event coincides with the international calendar of commemorations of the hundred years of the publishing of a seminal work for IR, Vladimir Lenin’s Imperialism, superior stage of capitalism(1916), as well as one year before the centennial anniversary of the Russian Revolution.
CALL FOR PAPERS
An event that wishes to construct a political-theoretical camp demands a capacity to deepen reflections, that will be expressed not only during the two days of event, but also previously, during the circulation and discussion of the texts submitted by participants. In order to achieve that, we now open the call for the submission of abstracts and expanded abstracts, which will be finished at _______ 2016.
The works will be allowed to vary amongst different themes on the axes Topics of International Relations from a Marxist Prism (including among them, but not exhausting, IR theory, Brazilian Foreign Policy analysis, Geopolitics and Regional Integration) and Marxist Analyses of World Order (encompassing concepts and perspectives from the Marxist perspective, such as Imperialism, Dependency, World-System, Hegemony, Bolivarianism, among others).
Abstracts should limit themselves to the maximum of 200 words and expanded abstracts to the maximum of 1000 words.
Proposals must be sent in Microsoft Word format (.doc) to the following e-mail: rimarxismo@gmail.com
MEMBERS OF THE SCIETIFIC COMMITTEE
Prof. Dra. Ana Saggioro Garcia (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dra. Mayra Goulart da Silva (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. MunizFerreira (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Luiz Felipe Osório (LIERI/UFRRJ)
Prof. Dr. Carlos Eduardo Martins (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Carlos Serrano Ferreira (LEHC/UFRJ)
Prof. Me. Miguel Borba de Sá (IRI/PUC-Rio)
Prof. Dr. João Márcio Mendes Pereira (Pós-graduação de História, UFRRJ)
* A data do evento poderá ser alterada para o segundo semestre em caso de atraso no repasse de recursos da Faperj.
* La fecha del evento se puede cambiar para la segunda mitad en el caso de transmisión tardía de los fondos por parte de la Faperj.
*The dates of the event can be postponed to the second semester in case of delay in the disbursement of resources from FAPERJ.
O campo onde a ideologia manifesta mais explicitamente seu poder de enviesamento é, com certeza, o campo da atividade política.
O sujeito da ação política é alguém que quer conhecer o quadro em que age, quer poder avaliar o que pode e o que não pode fazer, mas, ao mesmo tempo, é um sujeito que depende, em altíssimo grau, de motivações particulares – suas e dos outros – para agir.
Por mais sinceros que sejam os princípios universais que adota, o sujeito da ação política atua de maneira a mobilizar pessoas que, de fato, só se mobilizam em função de motivações pessoais. De desejos próprios, de interesses particulares.
A política é levada, assim, a lidar com duas referências contrapostas, legitimando-se através da universalidade dos princípios e viabilizando-se por meio das motivações particulares.
O problema se agrava, ainda, na medida em que, para enfrentar a concorrência, para competir com outros sujeitos, que procuram arregimentar seguidores para uma caminhada que se dispõe a seguir em outra direção, o político é levado as misturar as duas coisas: o universal e o particular. E é a confusão dos dois polos que manifesta, de modo explícito e permanente, a presença do viés ideológico.
Uma política que se subordinasse rigorosamente à universalidade dos princípios não conseguiria promover uma mobilização ampla, consistente e duradoura de indivíduos particulares. E – o que é pior – caso tal política venha a funcionar ela terá efeitos deformadores extremamente graves na cabeça daqueles que ela arregimentou, caracterizando-se como um movimento de produção de fanáticos.
Por outro lado, uma política que esvaziasse os princípios universais de qualquer conteúdo real, que se dispusesse a aproveitar com total desenvoltura quaisquer vantagens circunstanciais, sem se preocupar com compromissos programáticos ou com metas a médio e longo prazo, seria uma política de oportunistas, de indivíduos incapazes de se elevarem ao nível de uma dedicação fecunda à comunidade.
Em geral, os caminhos trilhados pela política evitam uma opção explícita por uma dessas linhas extremadas: o doutrinarismo, o oportunismo crasso, o cinismo ostensivo ou a completa indiferença. São frequentes as combinações de elementos representativos de tais direções, porém combinados em graus diversos. E é nessa combinação hábil que se enraíza a ideologia.
Cada pessoa, cada grupo, ao intervir na política, ou ao se omitir em face dela, tende a acreditar que seu ponto de vista é o mais adequado às necessidades ou às conveniências da humanidade do que o ponto de vista dos outros.
Quando se trata do exercício do poder, aqueles que têm a posse dos grandes maios de produção inevitavelmente tendem a ficar convencidos (e tratam de convencer os demais) de que a situação de que se beneficiam é, se não a melhor, ao menos a menos ruim das situações possíveis. Na medida em que os conhecimentos proporcionam algum poder, aqueles que detêm o saber tendem a acreditar necessariamente que a superioridade da sua cultura só não é reconhecida por ignorância ou por má fé. Os ricos, por sua vez, costumam crer que a existência de diversidade nas fortunas é normal, já que pode ser constatada em todas as sociedades. E os privilegiados se inclinam a considerar seus privilégios como direitos.
Essa capacidade de se auto-iludir confere aos detentores do poder e da riqueza uma eficiência maior na argumentação, no modo como iludem os outros. A mentira desavergonhada não consegue, em geral, ser convincente como o discurso político acolhe elementos de auto-ilusão.
É sintomático que a mitologia grega, tão rica, não tenha tido um deus específico para a política. O comércio tinha um deus, que, aliás, era bastante safado: Hermes (o Mercúrio dos romanos). A indústria tinha um deus: Hefesto (o Vulcano dos romanos), casado com Afrodite, a deusa da beleza, e traído por ela. A sabedoria tinha uma deusa: Palas Atena (a Minerva dos romanos). E o deus da política, quem seria?
Zeus, o deus dos deuses, fazia política o tempo todo, no Olimpo, mas nunca se dispôs a ser o deus da política. Os atenienses do tempo de Péricles prezavam muito as prerrogativas da cidadania, discutiam bastante. Um pouco mais tarde, Aristóteles escreveu um famoso tratado intitulado A política. A palavra derivava de polis e e designava uma relação intersubjetiva. Enquanto a poiesis era a produção de uma coisa (relação sujeito/objeto), apráxis era a ação dos cidadãos uns em relação aos outros, era a atividade do homem livre empenhado em persuadir os demais (relação sujeito/sujeito).
Apesar da importância que reconheciam à atividade política, os atenienses – que foram mais longe do que todos os demais povos da Antiguidade na experiência da polis – não tinham um deus para ela.
A política, com suas ambiguidades, com suas tensões entre o universal e o particular, entre o ideal e o interesse, com suas possibilidades libertárias e seus poderosos meios de manipulação e de opressão, com sua grandeza e suas misérias, talvez tenha parecido aos gregos um espaço humano, demasiado humano para que algum deus o apadrinhasse.
Em Atenas, a cidade deu origem à ideia de cidadania. O conceito chegou até nossos dias, porém seu significado sofreu alterações importantes. Para Aristóteles, cidadão era quem podia – e devia – participar das decisões do governo. Quer dizer: pela primeira vez na história os cidadãos constituíam um grupo numeroso, mas ainda assim minoritário, já que ficavam de excluídos da cidadania os escravos, as mulheres e as pessoas que não haviam nascido em Atenas.
Muitos séculos mais tarde, nas condições da história moderna, essa concepção de cidadania mudou. Desenvolveu-se a exigência democrática de que os direitos da cidadania valessem para todos e incluíssem não só os direitos políticos mas também os direitos civis. O pensamento político mais avançado vê a cidadania como uma meta a ser conquistada e uma condição a ser aprimorada por todos e para todos.
Como escreve Carlos Nelson Coutinho: “A cidadania não é dada aos indivíduos uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo histórico de longa duração” (Coutinho, 2000, p. 51)
Em face desse processo histórico, a ideologia conservadora atua de duas maneiras diversas: 1) em uma linha explicitamente antidemocrática, de oposição ao processo e 2) em uma linha que declara sua adesão ao movimento de construção e aprimoramento da cidadania, porém de fato subordina o apoio à preservação do controle feito por setores de elite.
Na primeira linha se encontram movimentos de extrema direita, como o fascismo e o nazismo. Em vez de se limitarem a uma resistência passiva às mudanças, esses conservadores radicais são ativistas, tomam iniciativas ousadas. Em sua atuação no século XX, eles não hesitaram em saquear até o quadro das experiências práticas e o acervo conceitual da esquerda revolucionária.
Mussolini, por exemplo, buscou em Marx dois conceitos essenciais (modificando-os, é claro): o de luta de classes e o de ideologia. Reconhecendo a existência da luta de classes, o Duce corrigiu o autor de O Capital, sustentando que era exatamente para disciplinar o conflito que precisava ser criado o Estado forte, ditatorial, capaz de se impor tanto aos capitalistas como aos trabalhadores: o Estado fascista.
E, admitindo a justeza da observação de Marx segundo a qual é impossível avaliar mais aprofundadamente uma ideia sem levar em conta seu condicionamento histórico e seu uso social, Mussolini concluiu que afinal tudo é ideologia e no discurso só importas mesmo a utilidade imediata do que está sendo dito. De tal modo que a unidade de teoria e prática, pensada por Marx, virou uma pragmática identidade de teoria e prática. A teoria perdeu a capacidade de criticar a ação, o conhecimento deixou de ter exigências próprias significativas.
Coerente com sua perspectiva, Mussolini dispensava qualquer compromisso com a coerência. Definia o fascismo como um movimento super-relativista, porém advertia que ele precisava do mito da italianidade. Anunciou que os fasci jamais se tornariam um partido e poucos meses depois presidiu o congresso de fundação do Partido Nacional fascista, caracterizando-o como o coroamento da experiência anterior. Fez pronunciamentos pela monarquia e pela república.
Justificando a violência fascista, assegurou que ela não era imoral porque não era fria e calculada, e sim instintiva e impulsiva. Alguns meses mais tarde, exaltou a violência fascista porque ela era “pensante, racional, cirúrgica” 9Konder, 1977, p.32).
Tudo isso para o Duce era compatível com sua concepção da ideologia, quer dizer, correspondia a um conceito de ideologia que reduzia a construção do conhecimento à racionalização de desejos e interesses e à produção de armas usadas nos conflitos políticos, sempre em função das circunstâncias e das conveniências momentâneas.
Essa comcepção rudemente pragmática de ideologia não foi adotada apenas por Mussoliuni e pelos fascistas; com algumas variações, de fato, ela teve muitos outros adeptos nos anos 20, 30 e 40, entre eles numerosos representantes da versão mais difundida do marxismo-leninismo.
E ainda convém acrescentar: até um historiador muito distante do fascismo e do movimento comunista, um pesquisador que fez observações muito agudas sobre fenômenos ideológicos, como Noberto Elias, endossou essa forma extremamente empobrecida do conceito, o que o levou, afinal, a recusá-lo.
Em sua fina análise do precesso civilizador, depois de ter estudado o condicionamento social dos medos e ansiedades dos indivíduos, sua força, forma e papel na personalidade das pessoas, Elias não se dá conta dos pontos de contato existentes entre sua abordagem e as preocupações que se manifestam na questão da ideologia, como ela emerge do pensamento de Marx.
E, na parte final de sua obra, explicita sua rejeição do conceito que atribui ao outro nos seguintes termos: “Não faz sentido explicar o processo civilizador como uma superestrutura ou ideologia. Isto é, exclusivamente a partir de sua função como arma na luta entre interesses sociais específicos” (Elias, 1993, vol. 2, p. 235).
Mas essa breve referência ao mal-entendido encontrado no livro de Nobert Elias não deve nos afastar do objetivo que pretendemos alcançar, que é o de dizer algo sobre as duas linhas de atuação mais influentes da ideologia conservadora no âmbito do processo democratizador de formação da consciência da cidadania.
Já dissemos algo sobre a linha mais drasticamente antidemocrática, agora cabe nos determos rapidamente sobre a segunda linha, que subordina seu apoio ao fortalecimento da cidadania ao controle do processo por parte de uma elite.
Como ideologia, o elitismo é bem mais sutil do que tendências ostensivamente antidemocráticas. Em muitos casos, os representantes dessa linha que se declara favorável ao fortalecimento da cidadania, porém se preocupa com fenômenos de massificação, percebem e apontam problemas reais, dificuldades que o processo de democratização da sociedade não pode ignorar. Embora abordem a questão de um ângulo que lhes impõe limites para a análise, revelam às vezes perspicácia na crítica de procedimentosdemagógicos e atitudes populistas. Reagem contra a atribuição de saberes um tanto mágicos às massas populares (como se os de baixo tivessem sido miraculosamente preservados de quaisquer efeitos deformadores exercidos pela ideologia dominante).
Para os teóricos mais influentes ligados a essa tendência, sempre existiram de um lado os que governam e de outro os que são governados. E, dando um passo adiante, já caracterizado como um movimento nitidamente ideológico, esses teóricos (Mosca, Pareto etc.) asseguram: sempre existiram e sempre existirão essas duas categorias.
A constatação de uma determinada situação histórica que tem perdurado é transformada em uma tese que engessa o quadro, coagula a situação, eterniza e legitima a contraposição, estratificando-a e anulando assim, toda possível história futura diferente, exterminando toda possibilidade de mudança inovadora.
Existem, sem dúvida, diferenças entre os seres humanos, pessoas que se mostram mais bem preparadas e mais talentosas que as outras, e que constituiriam de algum modo umaelite, que não se confunde com os grupos de detentores do poder político e da riqueza. Mas esse destaque é circunstancial, o espaço dos melhores é ocupado por uma população flutuante, seus habitantes são provisórios e não têm nele residência garantida. O sábio de hoje pode se tornar rapidamente o tolo de amanhã. De uma hora para outra, qualidades viram defeitos, acertos resultam em erros. E a qualquer momento, os de baixo – sem que os idealizemos! – podem nos surpreender com a perspicácia de seus insights.
A distorção ideológica do elitismo não está no fato de ele advertir contra os riscos do plebeísmo, de uma perda de qualidade cultural ou de socialização da vulgaridade, e sim na incapacidade de seus teóricos para enxergar as potencialidades do aprendizado das camadas populares através da participação ampliada no exercício da cidadania.
Assustados com as expressões mais barulhentas dos movimentos sociais, os teóricos do elitismo repetem que são favoráveis ao progresso, mas sem sacrifício da ordem; recomendam prudência e moderação; e asseguram que qualquer radicalização nas reivindicações populares igualitárias pode prejudicar os delicados mecanismos de proteção das liberdades individuais.
A distorção ideológica começa na resposta que esses teóricos dão à questão proposta por Antonio Gramsci: é impensável a possibilidade de que algum dia venha a ser superada a divisão dos seres humanos entre governantes e governados? Entre dirigentes e dirigidos?
Na medida em que consideram a hipótese da superação da dicotomia perigosamente utópica, os teóricos do elitismo não só se recusam a admiti-la (não se permitem sequer enxerga-la como possibilidade) como se insurgem contra aqueles que a reconhecem como futuramente alcançável.
Mesmo entre os liberais, essa distorção ideológica pode ser percebida com sintomática clareza. Se fossem coerentes com o discurso que fazem, ainda que céticos em relação à utopia de uma sociedade integralmente democratizada, eles aceitariam como legítima a busca dessa democratização e defenderiam o direito dos outros de tentar alcança-la. (Podemos lembrar a frase famosa do liberal Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma palavra daquilo que o senhor está dizendo, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.) No entanto, ao longo da história dos dois últimos séculos, numerosos liberais têm, com frequência, apoiado ditaduras e políticas de repressão aos socialistas e às correntes de esquerda, em geral.
Esse fenômeno, aliás, nos faz lembrar que uma das característica da ideologia, tal como Marx a analisou, está no fato de que ela se revela com maior franqueza na ação do que no discurso.
Falando, o político – desde os tempos de Péricles, em Atenas – pode conseguir convencer os outros de que os interesses particulares por ele representados coincidem com os interesses gerais da sociedade. Agindo, porém, pondo em prática suas ideias, traduzindo-as em medidas práticas, que são sentidas no cotidiano da comunidade, cada um terá ocasião de avaliar por conta própria, com maior objetividade, o conteúdo real da política que está sendo implementada.
[KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p 248-256]
Biliografia:
COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2000.
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
ELIAS, Nobert. O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
Entrevista com o Papa Francisco no voo de volta da África
Francisco dialoga com os jornalistas no voo de volta da África. “Se a humanidade não mudar, continuarão as misérias, as tragédias, as guerras, as crianças que morrem de fome, a injustiça.” Sobre o caso Vatileaks: “Foi um erro a nomeação de Vallejo e de Chaouqui”. “Os jornalistas fazem bem em denunciar a corrupção. Agradeço a Deus que não existe mais a Lucrécia Bórgia! Devemos continuar com os cardeais na obra de limpeza.” O reconhecimento à obra de Ratzinger. O fundamentalismo? “Existe em todas as religiões, mas não é religioso, é idolátrico”.
O mundo está à beira do suicídio e corre o risco de nele cair se não mudar decisivamente de rota ao enfrentar os problemas ligados às mudanças climáticas, fruto do atual modelo de desenvolvimento. Francisco disse isso dialogando com os jornalistas durante o voo de Bangui para Roma.
O papa também respondeu a algumas perguntas sobre o Vatileaks: “Foi um erro a nomeação de Vallejo Balda e de Chaouqui na comissão Cosea”. Francesco acrescentou um significativo reconhecimento da obra contra a corrupção iniciada por Ratzinger.
Eis a entrevista.
No Quênia, você encontrou as famílias pobres de Kangemi e ouviu as suas histórias de exclusão dos direitos humanos fundamentais, como a falta de acesso à água potável. O que sentiu ouvindo as suas histórias e o que é preciso fazer para pôr fim às injustiças?
Sobre esse problema eu falei várias vezes. Não recordo bem as estatísticas, mas acho que eu li que 80% da riqueza do mundo está nas mãos de 17% da população. Não sei se é verdade. É um sistema econômico que tem no centro o dinheiro, o deus dinheiro. Lembro que uma vez um embaixador não católico, falava francês, e me disse: “Nous son tombeé dans l’idolatrie dell’argent”. O que eu senti em Kangemi? Senti dor, uma grande dor! Ontem [domingo] fui ao hospital pediátrico, o único em Bangui e do país. Na terapia intensiva, eles não têm oxigênio, havia muitas crianças desnutridas. A doutora me disse: a maioria deles vai morrer, porque tem a malária forte e estão desnutridos. A idolatria é quando um homem ou uma mulher perdem a sua carteira de identidade, ou seja, ser filhos de Deus, e preferem buscar um Deus à sua própria medida. Este é o princípio: se a humanidade não mudar, continuarão as misérias, as tragédias, as guerras, as crianças que morrem de fome, a injustiça. O que pensa esse percentual que tem nas mãos 80% da riqueza do mundo? Isso não é comunismo, é verdade. E a verdade não é fácil de ver.
Qual foi o momento mais memorável da visita? Você voltará para a África? E qual será a sua próxima viagem?
Se as coisas forem bem, acho que a próxima viagem será ao México. As datas ainda não estão precisas. Se eu vou voltar para a África? Não sei. Estou idoso, as viagens são pesadas! O momento mais memorável: aquela multidão, aquela alegria, aquela capacidade de festejar, de fazer festa, mesmo tendo o estômago vazio. Para mim, a África foi uma surpresa. Deus sempre nos surpreende, mas a África também nos surpreende. Eu me lembro de tantos momentos, mas sobretudo a multidão… Eles se sentiram “visitados”, têm um senso da acolhida muito grande, e eu vi isso nas três nações. Depois, cada país tem a sua identidade: o Quênia é um pouco mais moderno e desenvolvido. A Uganda tem a identidade dos seus mártires: o povo ugandês, tanto os católicos quanto os anglicanos, venera os mártires. A República Centro-Africana tem vontade de paz, reconciliação, perdão. Eles viviam até quatro anos atrás entre católicos, protestantes, muçulmanos como irmãos. Ontem eu fui aos evangélicos, que trabalham tão bem, e depois eles vieram à missa. Hoje [segunda-feira], eu fui à mesquita, rezei na mesquita, o imã subiu no papamóvel para dar uma pequena volta entre os refugiados. Há um pequeno grupo muito violento, acho que cristão ou que se diz cristão, mas não é o Isis, é outra coisa [os anti-Balaka]. Agora, serão feitas as eleições, eles escolheram um presidente de transição, uma mulher presidente, e buscam a paz: nada de ódio.
Hoje se fala muito do Vatileaks. Sem entrar no mérito do processo, gostaria de lhe perguntar: qual é a importância da imprensa livre e laica para erradicar a corrupção?
A imprensa livre, laica e também confessional deve ser profissional. O importante é que sejam profissionais, e que as notícias não sejam manipuladas. Para mim, é importante, porque a denúncia das injustiças e das corrupções é um belo trabalho. A imprensa profissional deve dizer tudo, mas sem cair nas três pecados mais comuns: a desinformação, ou seja, dizer só a metade da verdade e não a outra; a calúnia, quando a imprensa não profissional suja as pessoas; a difamação, que é dizer coisas que tiram a reputação de uma pessoa. Esses são os três defeitos que atentam contra a profissionalidade da imprensa. Precisamos de profissionalidade. E sobre a corrupção: ver bem os dados e dizer as coisas. “Há corrupção aqui por causa disto, disto e disto.” Depois, um verdadeiro jornalista, se erra, pede desculpas.
O fundamentalismo religioso ameaça o planeta inteiro, vimos isso com os atentados de Paris. Diante desse perigo, você pensa que os líderes religiosos devem intervir mais no campo político?
Se intervir no campo político significa fazer política, não. Sejam padres, pastores, imãs, rabinos. Mas que se faça política indiretamente, pregando os valores, os valores verdadeiros, e um dos maiores valores é a fraternidade entre nós. Somos todos filhos de Deus, temos o mesmo Pai. Eu não gosto da palavra tolerância, devemos fazer convivência, amizade. O fundamentalismo é uma doença que existe em todas as religiões. Nós, católicos, temos alguns – muitos – que acreditam ter a verdade absoluta e vão em frente sujando os outros com a calúnia, a difamação e fazem mal. Digo isso porque é a minha Igreja. O fundamentalismo religioso deve ser combatido. Não é religioso, falta Deus, é idolátrico. Convencer as pessoas que têm essa tendência: eis o que devem fazer os líderes religiosos. O fundamentalismo que acaba em tragédia ou comete crimes é uma coisa ruim, mas acontece em todas as religiões.
Como foi possível a nomeação do Mons. Lucio Anjo Vallejo Balda e de Francesca Chaouqui na comissão Cosea? Você acha que cometeu um erro?
Foi feito um erro. Vallejo entrou por causa do cargo que tinha e que teve até agora: ele era o secretário da Prefeitura para os Assuntos Econômicos. Quando ela entrou? Não tenho certeza, mas acho que não me engano se eu disser que foi ele que a apresentou como uma mulher que conhecia o mundo das relações comerciais. Eles trabalharam e, acabou o trabalho, os membros da Cosea permaneceram em alguns postos no Vaticano. A senhora Chaouqui não permaneceu no Vaticano: alguns dizem que ela se irritou com isso. Os juízes nos dirão a verdade sobre as intenções deles, como eles fizeram. Para mim, não foi uma surpresa, não me tirou o sono, porque mostraram o trabalho que se começou com a comissão dos nove cardeais, o de buscar a corrupção e as coisas que estão erradas. Quero dizer uma coisa, não sobre Vallejo e Chaouqui. Treze dias antes da morte de São João Paulo II, durante a Via Sacra, o então cardeal Ratzinger falou da sujeira da Igreja. Ele a denunciou por primeiro. Depois, João Paulo II morreu, e Ratzinger, que era decano, na “pro eligendo Pontifice”, falou da mesma coisa. Nós o elegemos por causa dessa sua liberdade de dizer as coisas. É desde aquele tempo que está no ar que há corrupção no Vaticano. Quanto ao processo: eu não li as acusações concretas. Deveria terminar antes do Jubileu, mas acho que não se poderá fazer isso, porque eu gostaria que todos os advogados da defesa tenham tempo para desenvolver o seu trabalho e que haja liberdade de defesa.
Como proceder para que esses fatos não voltem a ocorrer?
Eu agradeço a Deus que não haja mais a Lucrécia Bórgia! Mas devemos continuar com os cardeais e as comissões a obra de limpeza.
A Aids atinge duramente a África, a epidemia continua. Sabemos que a prevenção é a chave e que o preservativo não é o único meio para parar a epidemia, mas é uma parte importante da resposta. Talvez não chegou o tempo de mudar a posição da Igreja para permitir o uso dos preservativos para evitar novas infecções?
A pergunta me parece parcial. Sim, é um dos métodos. A moral da Igreja, sobre esse ponto, se encontra diante de uma perplexidade. Ou o quinto ou o sexto mandamento: defender a vida ou a relação sexual aberta à vida. Mas esse não é o problema. O problema é maior: essa pergunta me faz pensar naquela que fizeram uma vez a Jesus: “Diga-me, Mestre, é lícito curar no sábado?”. É obrigatória curar! A desnutrição, a exploração, o trabalho em escravidão, a falta de água potável, esses são os problemas. Não falamos se se pode usar este curativo para tal ferida. A grande injustiça é uma injustiça social, a grande injustiça é a desnutrição. Eu não gosto de descer para reflexões casuísticas quando as pessoas morrem por falta de água e por fome. Pensemos no tráfico de armas. Quando não houver mais esses problemas, acho que se poderá fazer a pergunta: é lícito curar no sábado? Por que as armas continuam sendo fabricadas? As guerras são o maior motivo de mortalidade. Não pensar sobre se é lícito ou não é lícito curar no sábado. Façam justiça, e, quando todos estiverem curados, quando não houver injustiça neste mundo, podemos falar do sábado.
Qual é a posição do Vaticano sobre a crise que se abriu entre Rússia e Turquia? Você pensou em ir para a Armênia para os 101 anos do massacre dos armênios?
No ano passado, eu prometi aos três patriarcas que iria. A promessa existe. Depois, vêm as guerras: vêm por ambição. Não falo daquelas feitas para se defender justamente de uma injusta agressão. As guerras são uma indústria. Na história, vimos muitas vezes que um país com o orçamento que não vai bem decide fazer uma guerra e, assim, coloca o orçamento no seu lugar. A guerra é um negócio. Os terroristas fabricam armas? Quem lhes dá as armas? Há toda uma rede de interesses, e por trás há o dinheiro ou o poder. Há anos, nós estamos em uma guerra mundial em pedaços, e todas as vezes os pedaços são cada vez menos pedaços e são cada vez maiores. Não sei o que o Vaticano pensa. O que eu penso? Que as guerras são um pecado, destroem a humanidade, são a causa da exploração, tráfico de pessoas. Devem ser paradas. Para as Nações Unidas, por duas vezes, eu disse essa palavra, tanto em Nova York quanto no Quênia: que o trabalho de vocês não seja um nominalismo declamatório. Aqui na África, eu vi como trabalham os Capacetes Azuis, mas isso não é suficiente. As guerras não são de Deus. Deus é o Deus da paz, criou o mundo todo bonito. Depois, lemos na Bíblia que o irmão mata outro irmão: a primeira guerra mundial. E eu digo isso com muita dor.
Inicia nesta segunda-feira, em Paris, a COP-21, a conferência sobre as mudanças climáticas. Nós esperamos que possa ser o início da solução. Você está certo de que serão dados alguns passos?
Eu não estou certo, mas posso lhe dizer: agora ou nunca mais. Acho que a primeira conferência foi realizada em Kyoto… fez-se pouco. A cada ano, os problemas são cada vez mais graves. Falando em uma reunião de universitários sobre que mundo nós queremos deixar aos nossos filhos, um jovem disse: mas você tem certeza de que haverá filhos desta geração? Estamos no limite de um suicídio, para dizer uma palavra forte, e tenho certeza de que quase a totalidade daqueles que estão em Paris têm essa consciência e querem fazer alguma coisa. No outro dia, eu li que na Groenlândia as geleiras perderam bilhões de toneladas. No Pacífico, há um país que está comprando outro país para se mudar, porque, dentro de 20 anos, não vai mais existir [por causa da elevação do nível do mar]… Eu tenho confiança nessas pessoas, tenho confiança de que se fará alguma coisa. Espero que seja assim e rezo por isso.
Você fez muitos gestos de amizade e respeito para com os islâmicos. O que o Islã e os ensinamentos de Maomé dizem ao mundo de hoje?
Pode-se dialogar, eles têm tantos valores, e esses valores são construtivos. Eu também tenho a experiência de amizade com um islâmico, um dirigente mundial. Podemos falar. Você tem os seus valores, e eu, os meus, você reza, e eu rezo. Tantos valores: a oração, o jejum. Não pode apagar uma religião, porque há alguns ou muitos grupos fundamentalistas em um certo momento da história. É verdade, as guerras entre religiões sempre existiram. Também nós devemos pedir perdão: Catarina de Médici, que não era uma santa, e aquela Guerra dos Trinta Anos, a noite de São Bartolomeu… Devemos pedir perdão também nós. Mas eles têm valores, pode-se dialogar. Hoje, eu estive na mesquita, o imã quis vir comigo. No papamóvel estavam o papa e o imã. Quantas guerras nós, cristãos, fizemos? O saque de Roma não foi feito pelos muçulmanos.
Sabemos que você visitará o México. Pretende ir também para a Colômbia ou Peru?
As viagens, na minha idade, não fazem bem, deixam rastros. Eu vou para o México e, em primeiro lugar, vou visitar a Senhora, a Mãe da América [Nossa Senhora de Guadalupe]. Se não fosse por Ela, eu não iria para a Cidade do México pelo critério da viagem: visitar três ou quatro cidades que nunca foram visitadas pelos papas. Depois, vou para Chiapas, depois para Morelia e, quase certamente, no caminho de volta para Roma, haverá um dia para Ciudad Juarez. Sobre os outros países latino-americanos: em 2017, fui convidado para ir a Aparecida, a outra padroeira da América de língua portuguesa, e de lá se pode visitar algum outro país. Mas não sei, não há planos.
Essa foi a sua primeira visita, e todos estavam preocupados com a segurança. O que você diz ao mundo que pensa que a África é apenas vítimas de guerras e destruição?
A África é vítima, a África sempre foi explorada por outras potências. Os escravos da África eram vendidos na América. Há potências que buscam apenas tomar as grandes riquezas da África, talvez o continente mais rico, mas não pensam em ajudar os países a crescer, não pensam em fazer com que todos possam trabalhar. A África é mártir da exploração. Aqueles que dizem que da África vêm todas as calamidades e todas as guerras não conhecem bem o dano que certas formas de desenvolvimento fazem à humanidade. E, por isso, eu amo a África, porque foi vítima de outras potências.
* * *
No fim, depois de agradecer novamente aos jornalistas pelo seu trabalho realizado durante a viagem, o pontífice fez a seguinte conclusão sobre a entrevista recém-terminada: “Eu respondo aquilo que eu sei, e o que não sei eu não digo, não invento”.
Original: Vatican Insider, 30-11-2015
Tradução: Moisés Sbardelotto
Fonte: IHU, terça-feira, 01 de dezembro de 2015