Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.
A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo, pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que, uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.
A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra a maioria da população brasileira.
Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais, Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.
Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.
A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma mistura explosiva para o conjunto da sociedade.
Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios. Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram aos comandos da nova direção.
O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade de promover superávit primário a qualquer custo.
Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.
Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.
Previdência não é estruturalmente desequilibrada.
Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio. E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável. Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem retornar a patamares compatíveis às despesas.
E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé “saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento formalmente equilibrado.
Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia, André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.” Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida contra a grande maioria da sociedade.
Por que não uma Reforma da Política Monetária?
Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos, sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.
Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado são sagrados e imexíveis.
Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.
Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o financismo passa incólume – graças ao compadrio generoso dos responsáveis pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas previdenciárias. E ponto final.
Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.
Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” – esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo, o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa estrutura tributária.
Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.
Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
O resultado das eleições municipais deste ano ensejou, nos últimos dias, diversas análises sobre os rumos da esquerda. De todos os lados, analistas buscam compreender as razões que levaram à acachapante vitória eleitoral dos partidos associados ao golpe que conduziu Michel Temer à Presidência da República. A ideia de que o terreno perdido nos últimos meses exigirá uma necessária reconfiguração das forças progressistas parece encontrar eco em muitas vozes. No entanto, a “reorganização da esquerda” pode ter distintos significados a depender de como se interpreta a derrota que o impeachment e as eleições municipais deste ano representaram.
Parece consenso que é chegada a hora de um profundo ajuste de contas na esquerda brasileira. O fim do ciclo do PT – que se anunciava desde junho de 2013 e se concretizou tragicamente com o impeachment de Dilma Rousseff – abriu um período de definições estratégicas para as forças populares. Um claro processo de reconfiguração da esquerda está em curso, dentro e fora das organizações tradicionais como partidos, sindicatos e entidades estudantis. No âmbito das organizações partidárias esse movimento é mais nítido. No PT, o movimento “Muda PT” representa para seus integrantes a derradeira batalha para salvar o simbolismo e a representatividade que o partido ainda detém entre parcela cada vez menor dos trabalhadores. Na Rede Sustentabilidade, as divisões internas chegaram a um limite insuportável, opondo lideranças de esquerda ao indecifrável projeto de Marina Silva. No PSOL, o crescimento do partido, que ocupou parte do espaço deixado pelo PT nas eleições municipais deste ano, exige definições sobre seu papel no novo ciclo que se abre para a esquerda brasileira. E até o pequeno e monolítico PSTU sofreu os efeitos da pressão em favor da reorganização: uma dissidência de centenas militantes deixou a legenda, rejeitando a tática do “fora todos” levada a cabo pelo partido durante o impeachment.
Mas esse processo de reconfiguração da esquerda não se resume aos partidos. Aliás, é possível afirmar que é precisamente fora da vida partidária que essa reconfiguração se processa de forma mais dinâmica. O esgotamento do ciclo do PT – que nada mais é que o esgotamento de uma tática que envolveu centenas de organizações políticas e sociais em favor do chamado “pacto de classes” – já se nota no âmbito dos movimentos sociais há algum tempo. O surgimento de novas lutas, sobretudo nas grandes cidades, novos ativismos e formas de intervenção política, expressam também um novo momento para a esquerda social. Movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento Passe Livre (MPL), as ocupações de escolas em todo o país, o fortalecimento do movimento de mulheres contra o machismo e a violência, os novos movimentos de contracultura e o ativismo digital de coletivos como o Mídia Ninja, marcam o início de um novo ciclo na política brasileira. Isso não significa, é claro, que as formas “tradicionais” de organização política, como sindicatos, organizações de bairro ou entidades estudantis estão superadas. Significa apenas que esses instrumentos terão de ceder espaço a novas formas de ação política surgidas das transformações que o Brasil e o mundo vivenciaram nos últimos vinte anos, reinventando suas práticas e formas de organização para recuperar a legitimidade perdida.
O impeachment como fim de um ciclo
Afirmamos que o impeachment de Dilma marca o fim de um ciclo. Mas poderíamos ir além. Na verdade, o golpe que levou Michel Temer à presidência representa ao mesmo tempo o fim de dois ciclos. O primeiro é um ciclo mais geral da política brasileira, que começa com a Constituição de 1988. O golpe representa a ruptura do pacto que permitiu, ao longo de quase trinta anos, algum nível de estabilidade política e a garantia mínima da progressiva ampliação das políticas sociais. Mesmo no auge do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) direitos foram ampliados, apesar do retrocesso representado pela reforma do Estado promovida naquele período. Apesar de favorável às forças do conservadorismo, esse pacto permitiu o fortalecimento político e social do campo democrático-popular durante os anos 1990, a livre organização dos movimentos sociais e a vitória eleitoral da esquerda em 2002, mesmo que sob circunstâncias que se mostrariam fatais anos depois. Ao congelar os investimentos públicos por 20 anos, destruir o já insuficiente sistema que regulava a exploração do petróleo e retomar um agressivo ajuste no sistema de previdência, Temer implode o pacto que garantiu a estabilidade ao regime político brasileiro nas últimas duas décadas e encerra o clico instituído pela Constituição de 1988, abrindo um período de luta aberta pelos rumos do Estado.
Por outro lado, na esquerda também se encerra um ciclo. A hegemonia do PT e do bloco histórico que o sustentou desde os anos 1980 chegou definitivamente ao fim. O historiador Lincoln Secco, em livro sobre a história do PT,1 afirma que o partido viveu três momentos em sua história. O primeiro foi marcado por um partido radical que liderava a oposição social à ditadura militar. O segundo momento é aquele em que o PT se consolida como oposição parlamentar ao neoliberalismo, quando o partido se institucionaliza e passa a viver a experiência de governar importantes municípios. O terceiro momento, que se inicia com a vitória de Lula em 2002, é aquele caracterizado pela ascensão do PT à condição de “partido de governo”. Nessa terceira e última etapa do processo de aggiornamento2 do partido à dinâmica do sistema político brasileiro, o PT incorpora plenamente a estratégia do pacto de classes, isto é, de uma aliança reformista assentada no crescimento econômico com distribuição de “dividendos” para todas as classes. Com o processo de impeachment e a implosão do pacto que o PT mantinha com diferentes frações da burguesia brasileira, o partido e seu campo de aliados tende a perder definitivamente a hegemonia sobre a esquerda brasileira. É o fim desse outro ciclo que exige definições urgentes sobre os rumos da reorganização das forças populares.
Três tarefas urgentes para a reorganização da esquerda no Brasil
Nossa situação política é inédita. Diferente de outros momentos da história, quando a esquerda foi coagida fisicamente pelas forças do conservadorismo e da reação, o que vemos hoje é um processo de “demonização” das organizações de esquerda que alcançou níveis inéditos desde a redemocratização. Combinando o desgaste promovido pela crise econômica e seus efeitos sobre os mais pobres com as denúncias de corrupção envolvendo altos dirigentes do governo e do PT, a mídia monopolista construiu com relativo sucesso uma associação quase automática entre “esquerda” e “corrupção/ineficiência”. Os partidos que compuseram o governo, como PT e PCdoB, sentiram mais fortemente os efeitos dessa narrativa no recente processo eleitoral. Mas ela não poupou nem aqueles partidos que jamais mantiveram qualquer envolvimento com atos de corrupção e nunca compuseram o governo Dilma, como o PSOL. A luta que se trava em torno das responsabilidades sobre a recessão econômica e a corrupção atingiu em cheio a esquerda.
Quais seriam, então, as tarefas para contornar essa situação? Evidentemente, não há um “manual de reorganização da esquerda brasileira”. Mas há alguns elementos indispensáveis para enfrentar esse gigantesco desafio, que podemos sintetizar no tripé balanço / renovação programática / promessa. Vejamos como se apresentam cada uma dessas tarefas:
a) Balanço:A mais urgente das tarefas para a reorganização da esquerda brasileira refere-se ao balanço da experiência dos governos petistas. Por mais de uma década, a esquerda brasileira se dividiu entre aqueles que apoiavam ou não o projeto liderado por Lula e Dilma. Por vezes, essa divisão tomava formas absurdas, onde uns se tornavam incapazes de ver os flagrantes limites dos governos de conciliação, enquanto outros fechavam os olhos para os inegáveis avanços que foram promovidos na expansão de alguns direitos sociais. Com o fim do ciclo do PT à frente do governo federal, torna-se possível desenvolver um balanço crítico e honesto dos avanços e limites que os governos petistas produziram. Exemplos não faltarão. Se por um lado é evidente que o crescimento econômico de quase uma década proporcionou uma melhoria nas condições de vida de parte expressiva da população mais pobre, com acesso a crédito, aumento real do salário mínimo e mais políticas sociais, por outro, não se pode esconder que a natureza do projeto de conciliação de classes não permitiu avanços mais profundos, manteve o país vulnerável à dinâmica do capital financeiro, fortaleceu o agronegócio predatório e deixou intocado o controle da informação nas mãos da mídia monopolista. Além disso, o mito conservador da “governabilidade” se impôs de tal forma sobre as iniciativas de participação direta da população sobre a política, favorecendo o fisiologismo e as alianças pragmáticas, que muitos terão dificuldades em admitir que o governo foi enredado em acordos que jamais deveria ter firmado. Por isso um balanço crítico e desapaixonado é indispensável para extrair as lições dos limites da conciliação de classes. Sem isso será impossível pensar um novo projeto político independente e comprometido com os interesses populares.
b) Renovação programática:O bloco histórico surgido com o PT na luta contra a ditadura militar representou uma grande novidade na cena política brasileira. Aquela esquerda, renovada pelos novos atores políticos que entraram em cena no final dos anos 1970, construiu um programa ao mesmo tempo radical e inovador para enfrentar os séculos de atraso e exploração que marcavam nossa formação social. Ele estava muito à frente do reformismo que caracterizava, já naquela época, os partidos comunistas no Brasil. O chamado “Programa Democrático-Popular”, aprovado no 5º Encontro Nacional do PT, em 1987, reunia um conjunto de tarefas anti-monopolistas, anti-imperialistas e anti-latifundiárias que conferiam à estratégia do partido um caráter profundamente anti-capitalista e radicalmente democrático. Esse programa, rompendo com a tradição que fora hegemônica na esquerda até então, apresentava uma nova interpretação do estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e preconizava uma tática de fortalecimento das organizações de base do campo popular, rechaçando a conciliação de classes em favor da independência política dos trabalhadores e trabalhadoras. O abandono desse programa por parte do PT e sua relativa desatualização deixaram a esquerda brasileira, no século XXI, com um enorme “déficit programático”. Ao mesmo tempo em que foram incorporadas novas demandas à agenda política da esquerda nos últimos anos, especialmente no campo dos direitos civis, pouco se avançou na correta interpretação das mudanças que o Brasil viveu durante as últimas três décadas. A consolidação do processo de urbanização do capital e suas contradições trouxeram novas formas de dominação política e econômica que ainda precisam ser incorporadas à análise da esquerda. Essa renovação programática – econômica, política, social, cultural, ideológica – é uma condição indispensável para “reconectar” a esquerda ao Brasil real.
c) Promessa: Os efeitos da derrocada do PT terão efeitos de longo prazo. Uma geração inteira de militantes, desiludida com as inaceitáveis concessões feitas pelo partido ao longo de quase catorze anos, já não acredita que outro instrumento partidário possa responder à tarefa histórica de liderar a reorganização da esquerda brasileira. Isso é natural. A decepção é profunda, tanto quanto a indignação pelos erros cometidos – em especial em relação à corrupção e à retirada de direitos dos mais pobres, marca do último ano de governo Dilma. Por isso, além de realizar um balanço crítico da experiência petista no governo federal e promover uma profunda atualização programática, a esquerda deverá lançar mão de uma promessa: a de que é possível construir um caminho diferente no futuro. Numa de suas principais obras,3 Hannah Arendt afirma que é a promessa que valida o perdão; isto é, apenas o compromisso de que algo novo está sendo construído no lugar do velho é que permite expiar os pecados do passado. Mesmo aqueles que nada tiveram a ver com os erros cometidos terão de consignar seu compromisso com a promessa de que nada será como antes. O perdão, que exime a esquerda das consequências dos erros cometidos, só pode ser validado pela promessa do novo. E esse novo que é reclamado pela nova geração de lutadores e lutadoras que está nas ruas não pode ser nada menos que uma esquerda horizontal, pluralista, radicalmente democrática e profundamente comprometida com os interesses dos explorados e oprimidos. Uma esquerda anticapitalista, socialista e classista, mas também feminista, negra, jovem, disposta a combater qualquer tipo de opressão. Perdão e promessa: eis o binômio do qual a reorganização da esquerda não pode fugir.
Os atores da reorganização
Consideramos que as tarefas que mencionamos – balanço / renovação programática / afirmação do novo – não poderão ser bem-sucedidas sem atores dispostos a encará-las como indispensáveis à reorganização da esquerda brasileira. Para isso será necessário um amplo processo de diálogo entre aqueles dispostos a enfrentar o momento de defensiva estratégica que os setores populares vivem e dar um novo sentido à luta em favor de um amplo instrumento político que unifique os que lutam contra a opressão e a exploração.
Mesmo que os efeitos da ofensiva conservadora tenham sido devastadores, há diversos atores discutindo os rumos da reorganização da esquerda brasileira. No PT e na Rede Sustentabilidade há setores dispostos a debater a construção de uma nova síntese política “pós-PT”. Outras organizações políticas não partidárias também iniciam essa discussão. No âmbito dos movimentos sociais, novos atores já se apresentam como expressão concreta de um novo ciclo político que rechaça como limitadas as promessas do lulismo.4 Há ainda uma grande quantidade de intelectuais críticos que reivindicam uma profunda reflexão sobre os rumos do campo popular e democrático no Brasil, em favor de uma “nova esquerda” que se apresente como tal já a partir das eleições presidenciais de 2018. No meio desse turbilhão está o PSOL.
O PSOL é hoje o polo mais dinâmico da reorganização da esquerda brasileira e o partido mais bem localizado politicamente para enfrentar esse desafio. Isso se deve a algumas razões específicas que garantem a ele uma posição privilegiada nesse processo. O primeiro e mais evidente é o fato do partido ter mantido, ao longo de seus onze anos de vida institucional, uma profunda crítica à estratégia de conciliação de classes levada a cabo pelo PT. Por essa razão o PSOL é visto como um partido coerente, capaz de arcar com as pesadas consequências de ser oposição de esquerda aos governos petistas para conservar suas posições. Além disso, a tática que o partido assumiu durante o impeachment, quando sua militância e suas figuras públicas se engajaram plenamente na luta contra o golpe, permitiu ao PSOL conectar-se com o mais importante movimento de massas ocorrido no país desde junho de 2013. Para os milhares de lutadores e lutadoras que tomaram as ruas contra o golpe, o PSOL foi visto como um partido capaz de deixar as diferenças de lado para unir forças em favor de um objetivo maior: a defesa da democracia. Por fim, vivendo toda a sua existência fora da dinâmica do Estado, o partido compreende melhor os novos atores sociais que emergiram na última década. Esses lutadores e lutadoras têm uma forte empatia com o partido e muitos concorreram pelo PSOL nas eleições deste ano. Portanto, se o partido tiver a sabedoria política necessária para se colocar à altura do momento histórico, ele pode se tornar a expressão “natural” de uma nova síntese política para essa nova esquerda que está se formando no Brasil. Mas para isso, será necessário responder às inadiáveis tarefas que mencionamos neste ensaio.
* Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.
1 Lincoln Secco. História do PT – 1978-2010. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.
2 Termo em italiano que signfica atualização ou adaptação.
3 Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2000.
4 Para saber mais sobre o lulismo como expressão da política de pacto de classes nos governos petistas ver André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
A fundação Lauro Campos, em parceria com diretórios estaduais e municipais do PSOL, realizou uma série de eventos buscando contribuir com a discussão programática do partido e ajudar na apresentação de propostas visando as eleições municipais de 2016.
Foram dez atividades realizadas em oito cidades brasileiras, que contou com a participação de pesquisadores, estudiosos e militantes dos eixos temáticos escolhidos para o aprofundamento da discussão. Rio de Janeiro, Curitiba, Nova Iguaçu, Fortaleza, Salvador, Recife, Belém e São Paulo sediaram atividades.
Confira a síntese de cada discussão realizada pelo Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”:
Cidades do negócio vs. cidades rebeldes
Local: Rio de Janeiro – RJ
Participantes: David Harvey (geógrafo), Juliano Medeiros (presidente da FLC) e Edmilson Rodrigues (deputado federal – PA)
Tivemos a oportunidade de apoiar o diretório carioca do partido, recebendo o professor David Harvey, figura destacada do pensamento marxista e mais importante geógrafo da atualidade. Em duas conferências mais uma aula pública, mostrou como a cidade é o espaço privilegiado de reprodução ampliada do capital, e destacou como os movimentos sociais estão procurando outras formas de organização e articulação para enfrentar a cidade dos negócios.
O capitalismo em crise tenta resolver seus problemas através do avanço sobre as cidades para transformá-las em ativos financeiros. É a lógica de que a cidade não deve servir para as pessoas, mas para os negócios.
Há uma enorme irracionalidade do capitalismo e na política. Como lembrou, em tom de brincadeira: “dizem que nós, marxistas, somos insanos. Insanos são os capitalistas, que defendem esse modelo de cidade feita para especular, e não um modelo decente para as pessoas morarem com dignidade”.
E continuou: “a solução não é abandonar o processo político, mas reconstruir o sistema. Precisamos de uma revolução política. Nos dizem que a única solução para as nossas dificuldades é mais capitalismo. A verdadeira resposta é nada de capitalismo. Na esquerda, a base tem que ser popular e estar no centro do processo político.”
Tema 1: Saúde
Local: Curitiba – PR
Participantes: Bernardo Pilotto (setorial de saúde do PSOL), Lidia Cardieri (socióloga) e Melissa Pereira (Fiocruz)
A saúde é um dos principais problemas dos municípios e dos cidadãos. A constituição federal estabelece que é competência do município a atenção básica e os serviços locais (em parceria com o estado e a união), o estabelecimento de uma política municipal de saúde, que invista ao menos 15% do orçamento local, e os laboratórios de exames e hemocentros. É muita coisa e os recursos são poucos.
As restrições financeiras e as imposições da lei de responsabilidade fiscal têm trazido dificuldades adicionais. As administrações em geral, independente da orientação ideológica do partido, tem apostado em formatos de terceirização de serviços e de gestão, precarizando as condições de trabalho e retirando o caráter público do serviço. Para o PSOL, a ideia é fortalecer o SUS e a saúde pública, gratuita e de qualidade, bem como apostar na valorização do profissional, sabendo que sua dedicação e competência podem fazer a diferença.
Como ressaltou Bernardo Pilotto, “é muito importante que o PSOL construa programas de governo na área de saúde antenados com as lutas de nosso povo nessa área, defendendo a ampliação e desprivatização do SUS. Na gestão municipal, é possível fazer muitas políticas de prevenção e promoção da saúde e é nessa área que devemos ter foco.” A própria melhora das condições de vida da população, com investimentos em saneamento básico, melhorias no transporte público e mais opções de lazer podem ser encarados como política de prevenção.
Além disso, destacamos um assunto dentro da atenção básica: a saúde mental (junto da política de drogas), onde o município tem papel proeminente. Trata-se de debate com crescente relevância da sociedade e que traz a discussão sobre cuidado e o acolhimento. Aqui, o PSOL reafirma seu compromisso com a luta antimanicomial e com as práticas de redução de danos enquanto diretrizes para nossas políticas locais, focando sua atenção no estabelecimento e qualificação dos CAPS.
Propostas
Ampliar os serviços do SUS e combater a privatização da saúde buscando rever os contratos de serviços e gestão
Melhorar as condições de trabalho e salários dos servidores
Foco na saúde básica, com fortalecimento das equipes de saúde da família
Políticas de prevenção e de informação
Construção, ampliação e melhorias dos CAPSs
Políticas sobre drogas de inclusão social e redução de danos.
Tema 2: Segurança e direitos humanos
Local: Curitiba – PR
Participantes: Juninho (presidente do PSOL-SP e membro do Círculo Palmarino) e Orlando Zaccone (delegado e membro da Leap – Law Enforcement Against Prohibition).
O desafio para o PSOL é estabelecer uma política de governo baseada no mais amplo respeito aos direitos humanos e no combate à todas as formas de opressão. Essas questões, como apontado pelo Juninho, estão relacionadas à questões estruturais que marcam a sociedade brasileira: a profunda desigualdade social, a cidadania restrita e a violência como forma de controle: “a manutenção desses privilégios de acumulação de riqueza e essa cidadania restrita se mantém através da violência”.
Essa formação social leva a uma atuação do estado baseada no controle social, dentro da lógica do combate ao inimigo, do punitivismo penal, da gentrificação e da exclusão social. Ressaltou Orlando Zaccone: “então, a questão da cidadania que o Juninho trouxe mostra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não contemplou essa distinção entre cidadão humano e não cidadão inimigo. O inimigo hoje não é o cidadão, ele é construído dessa forma, pelo discurso: ´direitos humanos para humanos direitos´. E esse nosso cidadão é construído como inimigo, e diversas fatores vão ser contemplados nessa não cidadania, nessa construção de inimigo. E o tráfico de drogas hoje é a grande construção que se faz dessa figura mítica do inimigo que perde toda proteção do ambiente social”.
A política de segurança do PSOL precisa encarar a discussão da segurança e da violência como produto da desigualdade social: “a violência não será combatida com mais aparato e com mais violência, mas sim a partir de uma dinâmica de desenvolvimento real, de distribuição de riqueza, de desenvolvimento social”, reforçou Juninho.
Propostas:
Políticas de proteção aos direitos humanos e combate às opressões
Pelo fim do caráter atual “militarizado” das Guardas Civis Metropolitanas e reforço da atuação comunitária
Foco em políticas de revitalização dos espaços e de combate à desigualdade
Tema 3: Poder local nas periferias e no interior
Local: Nova Iguaçu – RJ
Participantes: Carlos Vainer (urbanista), Sandra Quintela, Glauber Braga (deputado federal – RJ), José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo-RJ), Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,), Cid Benjamin (jornalista) e Álvaro Neiva (presidente do diretório estadual do Rio de Janeiro)
As políticas públicas não podem se resumir às capitais. Mesmo quando pensamos nelas, é decisivo incorporar as regiões metropolitanas no debate, porque para as pessoas as fronteiras entre os municípios muitas vezes representam impedimentos e dificuldades. Para Carlos Vainer é preciso superar as divisões baseadas em municípios, muitas vezes incorporadas pelos próprios partidos que têm viés contra-hegemônico. “Sou a favor do comitê metropolitano. Nós queremos os impostos da Barra da Tijuca sendo aplicados em Nilópolis (…) O poder é a capacidade de articular escalas, sejam elas globais, nacionais ou locais”, afirmou Vainer.
O programa do PSOL é construído em parceria com os movimentos sociais. Sandra Quintela, economista do PACS (Políticas Alternativa para o Cone Sul), lembrando seus vínculos com a Baixada, citou exemplos de embates como os comitês em Nova Iguaçu contra a ALCA, pescadores da Zona Oeste do Rio contra a TKCSA, Comitês Populares denunciando as políticas de exclusão relacionada à Copa e às Olimpíadas. Para Sandra, “o debate sobre poder local não pode abrir mão de fazer as disputas de classe, afinal, o capital é global”.
Fechando a primeira parte do debate, o deputado federal Glauber Braga (PSOL/Nova Friburgo-RJ) falou sobre as relações entre institucionalidade e resistência nas ruas. “Somos o partido que toda sexta-feira está em praça pública no Centro do Rio. Temos que construir os programas e prestar contas nas praças, não para negar o poder representativo que hoje existe, mas por entender que ele não dá conta de um projeto de ruptura”, afirmou Glauber.
Na parte da tarde o debate contou com a participação dos professores José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo), e Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,); do jornalista Cid Benjamin.e do presidente estadual do PSOL-RJ, Álvaro Neiva. Em pauta, as particularidades da militância na Baixada e na periferia em geral, os problemas na segurança e no serviço público e os desafios da luta institucional, entre outros temas.
Propostas:
Políticas integradas para Região Metropolitana – mobilidade urbana, segurança pública, saneamento básico, saúde etc
Criação de comitês metropolitanos e de laços entre os governos e os cidadãos dessas regiões
Tema 4: Cidades Negras
Local: Salvador-BA
Participantes: Samuel Vida (UFBA), Linesh Ramos (professora) e Dennis Oliveira (USP)
Para o PSOL o racismo é parte estrutural da formação social do país e da luta de classes. Como destacou o professor Dennis de Oliveira, o “racismo é a ideologia que vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa clivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”.
Do ponto de vista da gestão do Estado e das políticas públicas, enfrentar o tema do racismo institucional é decisivo para uma gestão que quer combater o racismo estrutural. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.
Da mesma forma, destacamos a importância de abordar esse tema de forma intersetorial, com conexões com a questão das mulheres em especial: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”, afirmou Linesh Ramos.
Para o PSOL a temática do combate ao racismo não pode se resumir às ações de uma pasta específica, devendo estar presente em todas as ações institucionais e políticas públicas, além das políticas específicas.
Propostas:
combate ao racismo institucional
combate à violência contra o jovem periférico
combate à violência contra a mulher negra
Tema 5: Comunicação
Local: Fortaleza-CE
Participantes: Aldenor Jr. (ex secretário de comunicação de Belém), Roger Pires (coletivo Nigéria) e Helena Martins (coletivo Intervozes)
Segundo a Unesco “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações”. Essa concepção é mais do que garantir a liberdade de expressão, é pensar em formas e políticas que garantam a todas as pessoas o direito de acessar, produzir e difundir informações e cultura. Esse direito, no entanto, é negado pelo alto grau de concentração da propriedade dos meios de comunicação, inclusive em âmbito municipal (donos de rádios e jornais locais são ligados ao poder econômico).
Junto dos movimentos sociais, é preciso pensar outras formas de comunicação e de identidade visual. Para Roger Pires, a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou.
Mais do que as políticas específicas de comunicação, é preciso ter uma linha de atuação militante, que contribua para a organização popular e faça o enfrentamento com o pensamento e as forças hegemônicas, na direção da ampliação da participação popular. Assim, a comunicação precisa ser feita “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo”.
Propostas:
wi fi livre e incentivo à produção popular
incentivo à distribuição e circulação da produção popular
incentivo à comunicação popular, jornais de bairro, rádios comunitárias, produção local
comunicação militante com engajamento social
Tema 6: Meio ambiente
Local: Fortaleza – CE
Participantes: Márcio Astrini (Greenpeace) e Alexandre Araújo (PBMC – Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas)
Pensar em outro modelo de desenvolvimento, sustentável e que respeite todas as formas de vida. O Ecossocialismo, ou qualquer outro nome que se queira dar para uma alternativa para além do capitalismo, precisa ser um projeto que supere o capital em dois aspectos: o da desigualdade social e o do colapso ambiental que promove.
É importante romper com a dicotomia Homem versus Natureza, e compreender que a humanidade é parte integrante da natureza. O planeta Terra deve ser visto como um único organismo com um metabolismo próprio. Entretanto, a ação do homem no planeta, forçada pela atual forma de exploração devastadora, acaba por desequilibrar este metabolismo, comprometendo a sobrevivência de todas as espécies.
A tarefa que cabe é a de adequar a exploração do planeta com as reais necessidades da humanidade, o que é incompatível com o atual sistema capitalista, uma vez que a superexploração dos recursos naturais, com o aumento da produção de dejetos, contaminação do meio-ambiente e destruição de biomas, se torna cada vez mais aceleradas na busca da produção de capital e sua consequente hiperconcentração. É mais do que urgente se buscar soluções de baixo custo e alta rentabilidade para o conjunto da sociedade, na construção de uma cadeia produtiva baseada na economia criativa e solidária.
Propostas:
Eficiência no gerenciamento dos dejetos
Estímulo a soluções criativas de produção com baixo impacto ambiental e alto retorno social
Vigilância rigorosa do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos
Incentivo a nova matrizes energéticas, como o programa de instalação de placas solares em equipamentos públicos
Estímulo à criação de cadeias de produção e circulação de mercadorias, orientadas pela perspectiva da economia solidária
Tema 7: Moradia e mobilidade
Local: Recife-PE
Participantes: Lucio Gregori (ex-secretário governo municipal de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina), Socorro Leite (ONG Habitat), Leonardo Cisneros (Ocupe Estelita) e Vitor Guimarães (MTST)
A cidade tem sido alvo do capital para se tornar espaço de valorização, produzindo desigualdades e exclusão social. O direito à cidade foi abordado em torno dos temas da moradia e da mobilidade urbana.
Socorro Leite, diretora executiva da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, destacou que “o direito à moradia não está à frente da política pública”. Apresentou também uma série de propostas para a inversão das prioridades nesse tema, como a ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.
Já Vitor Guimarães, da coordenação nacional do MTST, destacou que “não existe programa habitacional, existe um projeto econômico, pois a crise urbana é um projeto político. Quem é dono da terra é dono da cidade. O Minha Casa Minha Vida não questiona a especulação imobiliária”. Concluiu chamando à luta e à organização popular, destacando que um programa de esquerda deve enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.
Para falar de mobilidade, o engenheiro Lucio Gregori, que foi secretário de transporte da gestão Luiza Erundina na cidade de São Paulo, apontou que “a luta de classes é no chão das cidades, mais que nas fábricas”. Lembrando que a mobilidade é questão transversal, destacou também a participação popular e concluiu dizendo que “se a cidade fosse nossa a mobilidade seria de todos”.
Por fim, Leonardo Cisneros, Professor UFRPE e ativista dos Direitos Urbanos – Recife e do Ocupe Estelita, lembrou que “mobilidade é problema político, cujas soluções expressam visões sobre o modelo de cidade. É a democracia direta do capital, que articula investimentos públicos com os interesses privados”. Assim, a questão da transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder.
Propostas:
inversão das prioridades. Ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.
enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.
transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder
A radicalização da democracia, a participação da sociedade e a construção do poder popular são as principais marcas da proposta de governo do PSOL, ao lado da ideia de inversão de prioridades. Somente com o povo tendo voz ativa nas decisões do governo é que seus interesses serão atendidos. A crise política e o governo golpista de Michel Temer reforçam essa importância, propondo um formato de governo totalmente oposto ao ministério de homens brancos e ricos de Temer.
Juliano Ximenes falou sobre a importância de se instituir um ativismo comunitário no Brasil como uma medida para melhorar os mecanismos de controle político utilizados pela população. “Tais processos conferem força e diminuem os conflitos da população. O ativismo é um processo necessário e deve estar integrado às políticas para democratizá-las plenamente”, enfatizou. Já Jurandir Novaes complementou a contribuição do arquiteto, Juliano Ximenes, ao dizer que “a participação popular é uma decisão política, que serve para romper a lógica da dominação sobre o povo”.
Edmilson Rodrigues finalizou o debate, destacando que a falta da participação popular é um dos fatores que contribuiu para o aprofundamento da crise vivida no Brasil e sofrida pela população. “A participação do povo na gestão é o instrumento que deve ser usado para que superemos as crises e para que possamos caminhar rumo a um futuro democrático, sem diferenças na sociedade e que tenha a população como foco”, concluiu.
Propostas:
Ampliar e reforçar as formas de participação popular, através de conselhos, conferências e mecanismos de participação direta nas decisões, bem como reforçar mecanismos de controle social dos gastos e contratos.
Descentralizar o governo e estabelecer mecanismos de protagonismo local e popular.
Tema 9: Educação.
Local: São Paulo-SP
Participantes: Luiz Araújo (professor UNB e presidente nacional do PSOL), Lisete Arelaro (professora da Faculdade de Educação da USP) e Sylvie Klein (pesquisadora), com comentários de Paula Coradi (professora)
Para o PSOL, é central a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade para todas e todos. A efetivação desse direito depende das prioridades e opções do governo. Luiz Araújo, professor da UNB e presidente nacional do PSOL, contou que no governo de Belém, quando foi secretário de Educação, “o Edmilson reuniu lá no palácio do governo a equipe que trabalhava comigo na secretaria e fez a seguinte pergunta: de tudo que vocês estão fazendo ou estão planejando fazer, o que a direita não faria?”.
Para a esquerda socialista são três tarefas: a) garantir o acesso universal aos direitos sociais, o que envolve a inversão de prioridades e a “disputa do fundo público com outras prioridades”; b) fazer uma disputa de valores pela herança imaterial de concepções, o que implica em “empoderar a população”; e c) radicalizar a participação popular , “abrir os dados e discutir a sua composição e capacitar a população a discutir isso e decidir de forma inclusive diferente”.
Já a professora Lisete Arelaro, professora da Faculdade de Educação da USP, começou lembrando que “nós estamos em tese numa democracia, e efetivamente a gestão democrática foi para as cucuias”. E que a preocupação com os números de matriculados precisa ser balizada pela qualidade. E como faz pra melhorar a qualidade? “Querido, se tiver uma jornada digna para o professor e ele ganhar um salário minimamente decente, surpresa, dá certo a escola, em geral”.
Sobre a educação de jovens e adultos e a alfabetização no país, Lisete lembrou da enorme dívida social, do alto número de analfabetos e de adultos que não passaram do ensino fundamental ou médio: “ Porque ele pensa: eu trabalho nove horas, 14h eu estou aqui, duas horas para voltar, se eu ainda for estudar três horas e meia, quatro, tem que valer muito à pena”.
Finalizando o debate, a pesquisadora Sylvie Klein falou sobre educação infantil, que é uma das responsabilidades dos municípios. Para ela, “a creche e a educação infantil, é um direito das crianças, é um direito que as crianças têm de estarem num espaço público, que as crianças têm de estarem num espaço coletivo, um espaço entre pares, que ela saia daquele núcleo que é caminhar, que é o espaço do privado, para estar nesse lugar”. Aqui, o desafio é o acesso com qualidade: “Se é direito das crianças, de todas as crianças, ela é um dever do estado, e aí o estado tem que se responsabilizar por esse atendimento. E o que a gente tem visto é uma desresponsabilização do estado via política de conveniamento”.
Propostas:
Fim das matrículas da educação infantil nas entidades conveniadas e progressiva retomada da prefeitura
Limite de alunos por sala de aula definido por critérios pedagógicos
Ampliação dos programas de alfabetização de Jovens e Adultos
Valorização do professor e ampliação dos mecanismos de participação social nas escolas
A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre bombardeada pelos setores corporativos como deficitária – sob benção do próprio governo. Para discutir mais esse tema repleto de informações dadas pela metade, entrevistamos Denise Gentil, economista e pesquisadora, que acabou de concluir sua tese de doutorado sobre o que considera o falso déficit da Previdência.
“A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”, afirmou, em tom introdutório.
A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer setor da economia, está colocada a serviço da manutenção das margens de lucro do empresariado, o que obviamente se oculta dos debates midiáticos.
“São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Quando todas as receitas são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.
Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”, como denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos de vista em questões como idade mínima de aposentadora e a própria noção de solidariedade da seguridade social, além de defender fórmulas variadas para a aposentadoria dos trabalhadores de diversas regiões e características do país.
A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma grave crise econômica?
Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas.
O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da política macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise externa. A economia brasileira tem sido desativada de seus mecanismos de crescimento de forma programada. Houve redução do crédito, queda brutal do investimento público, elevação da taxa de juros, menor aporte de recurso para as estatais (principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social, enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências nefastas da crise mundial.
Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e atender às pressões do sistema financeiro, achando que, com isso, vai se equilibrar minimamente no jogo de poder onde tem perdido sistematicamente, lança como estratégia política a Reforma da Previdência. Considero um suicídio político. O governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de perder apoio onde ainda lhe resta algum.
Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em favor dessa reforma previdenciária?
Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público. O orçamento público se transformou num instrumento a serviço dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada taxa de juros do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais brutal de apropriação privada dos recursos públicos. Em lugar nenhum há uma transferência tão violentamente explícita de renda aos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão como no Brasil.
É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com juros no ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento público deveria estar a serviço da recuperação da economia. São 8,5% do PIB destinados a uma classe de rentistas que apenas acumula riqueza sem nada devolver à sociedade. Não investe, consome pouco e remete renda ao exterior.
Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da saúde, o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos de saúde privados ofertados também pelos bancos. Na área de educação, o patrocínio do governo às empresas privadas é de enorme generosidade. Agora, como se ainda não fosse o suficiente, a base da proposta de Reforma da Previdência visa dificultar o acesso a direitos sociais e comprimir o valor dos benefícios. O governo alardeia que a previdência pública não tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O resultado é que está empurrando as pessoas para os planos de previdência privada complementar o que os bancos oferecem. É mais do mesmo.
É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo Dilma está levando adiante de forma muito mais radical. É preciso entender a reforma da previdência não como uma necessidade conjuntural de ajuste fiscal ou de enfrentamento de uma trajetória demográfica, mas antes como um projeto do mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto para justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo entre Estado e o poder financeiro.
Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de comunicação?
Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o cálculo do déficit previdenciário não é correto, porque não está de acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de seguridade social. O cálculo do resultado previdenciário que tem sido oficialmente divulgado pelo governo leva em consideração apenas a receita de contribuição previdenciária ao INSS dos empregados, empregadores e contribuintes individuais, diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos com benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.
Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição Federal assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e a Assistência Social, mas não são levadas em consideração. Quando todas as receitas de contribuições sociais são computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.
A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde, Assistência Social e Previdência). Essa informação favorável não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema previdenciário brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções e necessita de reforma urgentemente. O cálculo é propositalmente feito para difundir um suposto déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem benefícios.
Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão comum, as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a burocracia do governo passaram a incorporá-las como se fossem verdades definitivas. A ANFIP faz estudos anuais, com elevado grau de detalhamento, divulgando o resultado superavitário da Seguridade Social há mais de vinte anos. Nunca vi uma matéria na televisão que propagasse os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que, aliás, são de alto nível.
Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um dos eixos principais de estímulo ao crescimento e, em menor escala, à recuperação da indústria, a despeito da conhecida limitação desse instrumento para tal fim. A renúncia de receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253 bilhões ou 5% do PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à Seguridade Social.
Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e representou um valor maior do que a soma de tudo o que foi gasto, em 2014, em Saúde (R$93 bilhões), Educação (R$93,9 bilhões), Assistência Social (R$71 bilhões), Transporte (R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1 bilhões) pelo governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias de receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto é, R$157,6 bilhões.
Não é aceitável que o governo conceda esse patamar estratosférico de desonerações e agora proponha cortar gastos. Não é minimamente razoável que o governo force o entendimento de que faltam recursos para manter o sistema de proteção social quando abre mão de montantes gigantescos de receita a favor da margem de lucro das empresas.
Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse sentido?
Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição. Quem se aposenta nessas condições normalmente começou a trabalhar muito cedo e, no caso dos que têm menor renda, sacrifica seus estudos e sua escolaridade fica prejudicada. Por isso tais pessoas ganham salários menores, têm saúde mais precária e vivem menos. Estabelecer uma idade mais elevada para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a trabalhar muito cedo.
Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de contribuição formam dois tipos de grupo. Alguns acabam voltando a trabalhar depois de aposentados e, portanto, voltam a contribuir para o INSS; estes, não são um peso para o orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais arrecadação do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou por problemas de saúde devido ao aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por desemprego causado por períodos recessivos. Estes aposentados já são punidos (com redução do valor da aposentadoria) pelo fator previdenciário.
As perdas de renda são grandes principalmente para as mulheres. Tratar a todos com se fossem iguais, como se o mercado de trabalho fosse homogêneo e como se tudo ocorresse da mesma forma na região Norte e Sudeste, é injusto. Mas o fundamental em tudo isso é que forçar a aposentadoria para uma idade mais alta não implica necessariamente em manter o trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade. Pode, ao contrário, significar que eles perderão a condição de segurados, principalmente em recessões prolongadas.
Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma reforma da Previdência? De que tipo?
Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria que permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres e informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que não conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua vida ativa deveriam se aposentar com um salário mínimo, comprovando o tempo de trabalho. A reforma deveria ser inclusiva, criando mecanismos de proteção mais amplos e não afastando as pessoas da previdência pública com regras duras e renda baixa para os aposentados.
Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para todos, inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam a vida toda. Estes necessitam da aposentadoria na velhice e poderiam receber o piso básico simplesmente porque são cidadãos brasileiros e não podem ser desamparados. Se não contribuíram diretamente para a previdência, pagaram impostos indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos preços.
Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que discuta uma agenda positiva com a sociedade, que proponha laços de solidariedades entre as gerações e entre as classes e que fortaleça a cidadania.
Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências na vida da população, caso se aprove a reforma agora discussão?
Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a amplitude que essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando perigosas porque as disputas se acirram e a atuação dos lobbies fica muito mais forte. Haverá também a enorme pressão política dos meios de comunicação. As forças conservadoras da burocracia do governo emergem, trazendo propostas de reforma draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a classe trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete incessantemente.
O resultado que se quer alcançar com reformas de corte liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias, do piso e do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de dificuldade para as pessoas conseguirem se aposentar para que elas passem o menor tempo possível recebendo uma renda do governo. Quanto menor o período de aposentadoria, isto é, quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem condições de pagar serão empurradas para os planos de previdência complementar num banco privado, porque a renda que receberão do sistema público não garantirá a sobrevivência em condições semelhantes às da fase ativa.
A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um piso básico de valor mínimo para atender precariamente os mais pobres. Assim, a tendência é de transferir a responsabilidade da renda futura para os indivíduos e famílias, retirando cada vez mais o amparo do Estado. O sistema previdenciário vai ampliar as assimetrias e exclusões existentes no mercado de trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais conquistados na primeira década deste século. A impressão que se tem é que tudo não para de desmoronar.
Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?
Denise Gentil: O resultado político é desastroso, mas já que a pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja melhor começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será um menor crescimento. E crescimento mais baixo significa queda da taxa de emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso, menor será a arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal agrava o resultado fiscal. Reduzir gasto social é condenar a economia à recessão, particularmente em momentos de crise externa.
O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir espaço para o investimento público. Isso é uma grande bobagem. Redução de gasto em governos muito conservadores, como é o caso do governo Dilma, sempre significará elevação de superávit primário e não maior investimento. Além disso, um governo que realmente deseje realizar investimentos de grande porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos expressivos o governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos públicos no mercado, emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes acordos para coordenar um bloco de interesses, nacionais e internacionais, numa determinada direção.
Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças públicas. Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande impacto quem tem um projeto de inserção internacional. País nenhum na história do capitalismo mundial cresceu economizando migalhas de seus recursos internos, mas realizando grandes projetos estratégicos que implicam em elevar a dívida pública. Portanto, não será “economizando” com gastos sociais que o governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os investimentos.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania
Pesquisadora Denise Gentil afirma que os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. Fotografia: Adufmat/Ssind
Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira – condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005″.
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
Eis a entrevista.
A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem – Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo.
O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras como juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?
A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.
A população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).
A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.
“A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.
O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.
“A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.
Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.
Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?
Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.
A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.
Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.
Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?
Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.
Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.
Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?
Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.
Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.
A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.
Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?
Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.
Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.
Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?
Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.
Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.
Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.
Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?
Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.
Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.
Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.
É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.
Em entrevista do início do ano, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes já afirmava que “a falência do PT gera instabilidade política”, dentro de um governo praticamente “natimorto”. Em nova conversa com o Correio da Cidadania, além de reafirmar tais análises, Antunes descreveu todo o quadro de “crises econômica, política e social profundas”, o que torna tudo imprevisível até 2018, inclusive uma possível “reaparição heroica” de Lula. “Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência”.
No entanto, como se trata de uma crise generalizada, que nega credibilidade a toda a classe política, a paralisia se estende a todos os atores em cena. “Como existe relativa autonomização do judiciário e da Polícia Federal, torna-se tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Não é apenas coleira (no sentido de oposição e partidos fisiológicos interditarem o governo). Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte, por outro, uma paralisia da economia é assustadora. É inaceitável também para os assalariados”, sintetizou.
De toda forma, Antunes faz uma ampla análise do atual momento de Lula e do próprio processo histórico já denominado de lulismo, com seus traços “nefastos” e “centralizadores”, a impedir qualquer movimento de mudança dentro do PT. “É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT”, explicou.
Diante do quadro, Ricardo Antunes lamentou que ainda não se tenha criado uma alternativa viável e prática no campo da esquerda, o que será ainda mais sofrível, em sua visão, nos próximos pleitos. Ainda assim, também destaca que no atual momento essa mesma esquerda alijada do jogo de poder não deve gastar demasiada energia em eleições, o que dá a ideia de urgência da reorganização através “das bases”, afirmação compartilhada por algumas outras lideranças.
“Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso”, criticou.
Por fim, além de prever uma nova era de rebeliões (ou “contrarrebeliões”), Antunes reitera o que ele e muitos outros chamaram de mitos desenvolvimentistas e seu voo de galinha, que agora volta a terra nada firme. “O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem”.
A entrevista completa com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: No início do ano, você nos concedeu entrevista na qual afirmou estarmos diante de “governo natimorto”, fruto da “falência do PT”. Como enxerga essas assertivas diante da crise política, ética e econômica que já marcou todo o quinto ano de Dilma Rousseff na presidência da República?
Ricardo Antunes: O quadro atual confirma minha formulação provocativa de meses atrás. A eleição que Dilma ganhou sinalizava uma vitória eleitoral difícil e uma acentuação ainda mais profunda de um governo antipopular, completamente favorável aos grandes e dominantes interesses, em particular do capital financeiro. E seguidor dos constrangimentos e imposições indicados pelo FMI e o receituário da ordem, qual seja, o governo deveria implementar, o mais rápido possível, um ajuste fiscal profundamente destrutivo em relação ao mundo do trabalho, cortar conquistas, reduzir outras dos assalariados em geral, aumentar juros e garantir superávit primário. De tal modo que, ao encontrar respaldo dos interesses dominantes, do mundo financeiro e produtivo (ainda que num contexto de crise), acreditou que poderia iniciar seu segundo mandato.
De lá pra cá, além do agravamento da crise econômica, veio simultaneamente o agravamento exponencial da crise política. A Operação Lava Jato chegou aos núcleos dominantes do PT e aos laços de setores dominantes que controlavam as finanças do partido, inclusive com o empresariado mais destrutivo e corruptor, a exemplo da “burguesia empreiteira”. Tal crise foi ampliada pelo fato de o ajuste fiscal penalizar os setores assalariados (que garantiram a vitória de Dilma), empobrecidos e dependentes de Bolsa Família. Vale lembrar que Dilma perdeu apoio de parcelas dos assalariados e Aécio ganhou no ABC Paulista, mostrando como o derretimento petista se dá até no cinturão industrial de seu núcleo originário.
As duras medidas do ajuste corroeram parte do que resta da base de apoio de Dilma entre os assalariados. Tanto que vemos com frequência manifestações de movimentos como MST e MTST contra o ajuste fiscal e a política econômica de Dilma, ainda que contra o impeachment. Só em poucos casos é claramente a favor do governo também.
Porém, é visível que 10 meses depois da posse de Dilma o quadro é de completa imprevisibilidade. Em 13 de outubro, por uma liminar concedida pelo STF, Dilma conseguiu se livrar de um processo de impeachment, mas lembremos que é só uma liminar, a ser julgada mais adiante, além de outras iniciativas ainda em curso.
Assim, respondendo a pergunta, o governo Dilma é um governo que não governa. Um governo que levita. Não no ar, pois não tem mais condições de voo; ele derrapa no chão molhado. Cada medida que toma é uma “desmedida”, pois não se efetiva. É claro que assim começa a perder uma base de sustentação importante, junto a amplos setores do empresariado, especialmente o industrial, que em função da alta de juros e da falta de perspectiva para a economia nos próximos meses começa a retirar o apoio que era forte até recentemente. Esse empresariado não se bandeia completamente para o lado do impeachment porque sabe que abriria uma crise social no país. Muitos fazem oposição ao governo Dilma, mas não aceitam uma medida tomada por um parlamento cujo nível de comprometimento está visceralmente degradado. Basta dizer que o presidente da Câmara está completamente envolvido nas corrupções que vêm impregnando a política brasileira nas últimas décadas.
Portanto, não é possível que um parlamento dirigido por um político completamente envolvido em práticas de corrupção, conforme recente indicação do procurador geral da República, tenha legitimidade para depor o governo Dilma. Se o PT está envolvido até a medula em práticas de corrupção (o que está ainda sendo investigado), desde os inícios do governo Lula, não há ainda elementos que incriminem a presidência. Não há um elemento factível a dizer que a presidente da República, até o presente, envolveu-se diretamente com corrupção, contas e outros casos apresentados pela Operação Lava Jato.
O quadro, portanto, é de crises econômica, política e social profundas. E gera uma completa imprevisibilidade sobre se Dilma governará nesse voo rasante e derrapante até 2018, ou se sofrerá impeachment nos próximos tempos, ou se conseguirá algum soerguimento em função da retomada de algum crescimento econômico, o que nenhuma avaliação minimamente lúcida indica – na melhor das hipóteses, apenas em 2017. Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência.
E tem um elemento importante: em caso de queda de Dilma, seu vice também fica comprometido, de modo que aquela ideia que meses atrás ganhava força, de ter Michel Temer como espécie de paladino da ordem e da “frente amplíssima” pra preservar o impreservável, não cola mais. Afinal, o comprometimento da Dilma seria a partir das contas de campanha, que envolvem a presidência, ou das chamadas pedaladas, à medida que estendidas a 2015, supondo que levadas adiante, também envolveriam a vice-presidência da República.
Assim, veja o tamanho da tragédia. Ou farsa. Dilma cai acusada de corrupção junto de Temer, o presidente da Câmara (Cunha) toma posse de 90 dias, e o flanco fica aberto, pois este seria atacado por todos os lados por ter deixado rastros em todos os pontos por onde passou.
Correio da Cidadania: Desse modo, é precipitado reduzir a hipótese do impeachment à mera coleira política do mandato de Dilma, a ser usada pelo maior tempo possível.
Ricardo Antunes: Certamente. Não é apenas coleira. Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte no país, por outro, uma paralisia completa da economia é assustadora para o empresariado. É inaceitável também para os assalariados. O que os trabalhadores(as) estão vendo? Milhares de demissões. Quando não são demitidos, têm de negociar com uma faca no coração e uma espada nas costas para aceitar uma redução da jornada com redução salarial, a antessala do desemprego.
O capital financeiro, claro, percebe a alta dos juros e a ciranda financeira favorável, mas na medida em que tem de controlar o crédito quase sem poder emprestar, pois o risco de calote é enorme, cria toda uma paralisia econômica. E o movimento de rua das classes médias conservadoras, hoje, digamos, mais retraído, pode voltar, naturalmente. Pra completar, 2016 é ano eleitoral.
Não havendo o impeachment, se tenta uma alternativa onde o governo reina, mas não governa. Mas Dilma nem sequer reina. Isso é feito pelo “primeiro-ministro”, que até semanas atrás pautava a vida política do país, mas não sabe até quando será presidente da Câmara. Por certo tem o risco, crescente, de perder até o mandato, pois deixou rastro em todos os lugares por onde andou: contas esparramadas em varias áreas, com digitais, passaporte diplomático… E como existe relativa autonomização do poder judiciário e da Polícia Federal, não é possível controlar tais movimentos, o que torna tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado.
Correio da Cidadania: Como enxerga a figura de Lula em meio à crise política? O que se pode esperar deste político, ou deste ‘personagem’, ou do que se chama de lulismo, para os próximos tempos?
Ricardo Antunes: Primeiramente, o fenômeno do lulismo é muito recente. Fui dos primeiros a tratar algumas pistas a respeito, em dois livros de artigos – A Desertificação Neoliberal do Brasil e A Esquerda Fora do Lugar. A figura do lulismo é ainda pouco conhecida entre nós, embora se possa ter muitas pistas, como vem se dando desde 2002 pelo menos.
Em rápidas palavras, o lulismo é a figura carismática e em momentos de apogeu foi quase messiânica, de um líder que conseguia atingir as duas pontas da classe trabalhadora. No apogeu do Lula, ele tinha um respaldo quase inquebrantável da classe trabalhadora organizada brasileira, aquela classe trabalhadora que tem formas de associação sindical ou de algum outro nível, onde Lula era sua principal liderança. Não sem razão. É preciso dizer que Lula foi, talvez, a maior liderança sindical do século 20 brasileiro. É passado, mas foi. E foi com base nessa trajetória, de 1975 até 1989, e depois até 2002, algo real, que ele se tornou uma liderança nacional.
O lulismo, e em particular seu personagem, está também atado de forma indissolúvel à figura do Lula – assim como o varguismo está atado a Vargas e o brizolismo à figura do Brizola. Mas o lulismo não tem herdeiros. É um limite entre tantos outros do Lula. É tão autocentrado e personalizado que não tem herdeiros. O varguismo ao menos teve o janguismo e o brizolismo como herdeiros, entre outros que não eram Vargas, mas tentaram remar de forma similar. O lulismo não tem herdeiro algum.
No entanto, como dito anteriormente, com a crise do mensalão, a primeira devassa que se abateu na alta cúpula do PT, mostrando a corrupção política e, como sabemos hoje, com grandes traços de corrupção privada e enriquecimento pessoal, foi uma crise profunda. E a crise de 2005 tem muitas similaridades com a atual. Não tenho dúvida de que o Lula esteve a alguns segundos de sua renúncia naquele fatídico ano. Não tenho nenhuma dúvida disso, embora não tenha elementos objetivos. É pura intuição. Não sei se os leitores lembram de uma entrevista que ele deu na França, a uma jovem jornalista, completamente perdido. Seus olhos rodopiavam mais que pião. Só girava, não sabia o que responder. Dizia-se alvo de traição de dentro do próprio PT.
Depois de passado aquele período, Lula ganhou as eleições em 2006 e começou seu segundo governo. Houve uma mudança importante, conforme escrevi na época: “Lula começava a migrar da classe trabalhadora mais organizada para os setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, que vivenciam os trabalhos mais precarizados, até o completo não trabalho e desemprego, típicos das populações pobres dos rincões brasileiros, onde o programa Bolsa Família teve incidência”. Vamos lembrar que o Bolsa Família começou no segundo mandato. No primeiro mandato o programa era o Fome Zero e foi um fracasso completo.
O Bolsa veio com um novo desenho, atingiu milhões de famílias e criou um bolsão eleitoral, que no fundo era uma tragédia política. O Bolsa Família garantia a sobrevida de famílias paupérrimas. A miséria poderia ser eliminada através de reformas estruturais profundas, pra diminuir a miséria brasileira, a exemplo do que seriam reformas agrária e urbana profundas e mudança do padrão capitalista brasileiro… Nada. O governo passou longe disso e o Bolsa Família passou a ser um modus operandi perpetuador do governo Lula. Com o Bolsa, o PT teria uma base excedente garantidora das vitórias eleitorais.
Esse segundo substrato de apoio ao lulismo garantiu a perda de apoio do Lula em setores organizados da classe trabalhadora. Quando vimos que nas eleições o Aécio – essa figura grotesca da direita brasileira – teve mais votos no ABC do que a Dilma, mostrou-se o tamanho da perda de apoio ao lulismo nos estratos organizadas da classe trabalhadora brasileira – embora no ABC haja uma classe média expressiva, ainda é um cinturão industrial. E a perda também atingiu as periferias.
É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. E quando a criatura vai à falência, como a Dilma, uma parte expressiva da conta vai para o criador, pois é corresponsável pela falência política do governo de sua criatura, a exemplo de Paulo Maluf com Celso Pitta em São Paulo. Aliás, outro erro grave de Lula é a indicação de uma pessoa completamente inexperiente, pois qualquer um com o mínimo de lucidez sabia que na crise a Dilma não daria conta – e sou obrigado a dizer de novo que meus artigos apontavam isso na época.
Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT. Ninguém faz nada dentro do PT que não seja completamente dependente de Lula. Qualquer mínimo exercício de autonomia é tolhido por Lula, outro traço certamente nefasto do lulismo.
A intuição que tenho é que para Lula ganhar uma eleição vai ter de suar muito a camisa, vai ter que usar muito a voz, que já sabemos não ser mais a mesma, nem literal, nem metaforicamente. Vai ter de suar demais, porque o desgaste do PT é poli e multiclassista. Esse é o dado novo. Ele perdeu o apoio decisivo das classes ricas, dominantes e proprietárias. De forma devastadora, perdeu apoio das classes médias tradicionais – o mito de que o PT criou uma nova classe média não pode ser levado a sério. E perde apoio, também exponencial, nos vários estratos distintos, “compósitos e heterogêneos”, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, que fazem parte da nossa classe trabalhadora. E Lula sabe de tudo isso.
Só uma mudança muito profunda de situação, com expansão econômica em 2017, a apagar um pouco da tragédia atual, pode dar-lhe sobrevida. Hoje não tem, e se imaginar que tem sobrevida garantida estará errando mais uma vez. Sua sorte é que a oposição mais à direita – porque o PT tem um amplo leque de direita ao seu lado – não tem candidato forte. Aécio saiu fortalecido da última eleição, porque seu nome tornou-se mais nacional, mas o próprio PSDB não se entende, e o Alckmin não quer deixar que as Minas Gerais novamente carreguem a bandeja.
Já as esquerdas do PT não foram capazes de esboçar até hoje uma confluência política de tantos movimentos sociais e sindicais que pudessem gerar novas lideranças. De certo modo, já vemos novas lideranças aparecendo em movimentos. Na última eleição, Luciana Genro qualificou-se como jovem candidata de esquerda, corajosa e capaz de tratar temas contemporâneos com qualidade. Mas ainda não conseguimos criar confluência social e política. Há algumas lideranças como a de Luciana Genro – à medida que tem ligações fortes com PSOL e a juventude – ou o Boulos do MTST, em São Paulo, mas estamos aquém de ter uma alternativa. Portanto, o quadro para 2018 também é muito nebuloso.
A única coisa que me parece evidente é que imaginar o Lula vencedor das eleições em 2018 significa não ter ideia do nível de corrosão que o PT e todos os seus dirigentes vêm sofrendo, de modo devastador.
Correio da Cidadania: Já que você falou de Boulos e Genro, o que pensa das iniciativas de reação a esse quadro de retrocessos generalizados, tanto dentro quanto fora do escopo governista, a exemplo da Agenda Brasil (mais governista) e da conformação da Frente Povo sem Medo?
Ricardo Antunes: São manifestações distintas, embrionárias e num quadro defensivo. Quanto à primeira das citadas, pensar numa Frente de Esquerda com liderança do PT enseja a pergunta jocosa: “a Odebrecht vem junto?” É uma piada. Se não fosse verdadeiro, seria piada. Frente de Esquerda com o governo que está em seu quarto mandato e ainda não tomou nenhuma medida de esquerda, nenhuma, que minimamente contrariasse os interesses dominantes, é piada. De novo: não tomou nenhuma medida de esquerda. Não houve nada no sentido de falar “agora o governo é popular e o país não vai ser mais o mesmo”.
Não houve taxação de grandes fortunas; não houve reforma tributária progressiva, algo elementar, no sentido de tributar mais quem tem mais e destributar a classe trabalhadora; não houve nenhuma mudança da estrutura agrária, pelo contrário, o PT foi espetacular para o agronegócio. A burguesia agrária, devastadora, que não faz outra coisa se não aprofundar o uso de transgênicos e pesticidas, foi inteiramente beneficiada pelos governos do PT.
Portanto, uma “Frente Popular” ou “Frente de Esquerda” com o PT é provocação. Só se for uma Frente de Esquerda para carregar cadáver político. O PT tem de ser responsabilizado por suas atitudes. Claro que me refiro à ala dominante do partido e separo certos núcleos de base, as pessoas sérias, a militância que acreditava num partido diferente, como nos anos 80.
Mas o núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos movimentos, e dizer “vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda”. Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso.
Naturalmente, sou contrário ao impeachment. Até prova cabal de que a presidência esteve diretamente envolvida em corrupções, como se prova hoje em relação a Cunha (e como deveria se provar com as muitas “Lava Jatos” de governos de PSDB, DEM etc.). As pedaladas podem ser reprováveis, mas aí teríamos de “cassar” os mandatos de FHC e de todos os governos e prefeitos que fizeram e fazem o mesmo. Elas podem ser reprováveis, mas não podem valer somente com um governo.
Iniciativas como a “Frente Povo Sem Medo” e vários outros movimentos têm uma dificuldade interna. São muito importantes para dizer, por exemplo, que o Levy é, sim, o governo Dilma. Ele não foi imposto contra a vontade. Primeiro, ela tentou o Luiz Carlos Trabuco e por sorte deus nos livrou desse trambolho, como o próprio nome indicava. Aí veio o Levy. E as medidas do Levy são as medidas de Dilma. E do PT também, pois o Lula tem dito que é preciso apoiá-las.
Outro ponto: dizem que Levy não tem apoio do PT. Mas nunca vi uma nota pública do Lula desqualificando Levy. O Lula, pícaro que é, vai no MST e faz um discurso bravio. Depois vai na Dilma e fala “maneira, Dilma, entrega tudo ao PMDB, até a alma”. Importante é ver que a tragédia, que ruiu em 2015, foi toda arquitetada por Lula: uma frente de conciliação entre modos de ser incompatíveis e antagônicos. Mas Lula tem uma habilidade política espetacular, é um homem da conciliação. E a Dilma é da rejeição. O que ouvimos dizer é que a convivência diária com a Dilma é infernal. Ela é autoritária, autocrática, mandonista, impositiva. O oposto do Lula, uma figura “encantadora” para praticar, espetacularmente, a conciliação.
Ou seja, o PT foi fagocitado justamente por aquilo que criticou. O PT nasceu nos anos 80 criticando a política de conciliação de classes do velho PCB. O PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação na qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. Agora o demônio quer de volta os velhos executores de sua política.
A questão dessas manifestações é: muito dificilmente se pode criticar o Levy e defender Dilma. Eu não concordo com isso. Criticar o Levy nos obriga a dizer que o governo Dilma é nefasto e antipopular. Mas é muito difícil dizê-lo e, ao mesmo tempo, também conforme penso, afirmar que não dá pra aceitar a derrubada do governo. Hoje seria com a Dilma, mas amanhã poderia ser contra Luciana Genro ou qualquer governo popular. É inaceitável. Não falo de golpe militar, mas parlamentar. Como todos sabem, em 1964, quando Jango saiu de Brasília a Porto Alegre para buscar forma de resistir ao golpe, o parlamento e os Cunhas de então legitimaram a “vacância do cargo” e o golpe militar.
Por isso que o atual parlamento está na sarjeta. É das instituições mais repudiadas e tenho impressão de ser mais rejeitada que a Dilma, com essa bancada BBB, mais o capital financeiro e tudo o mais que há por lá, salvo pequenos núcleos ligados às esquerdas, que são minoritários.
Correio da Cidadania: Estamos diante da maior taxa de desemprego dos últimos cinco anos. Já se pode fazer um balanço contundente a respeito das políticas de ajuste fiscal ditadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e suas graves consequências sociais em geral e para o mundo do trabalho em particular?
Ricardo Antunes: Existe a aparência de algo nefasto porque esse projeto é essencialmente nefasto. É o projeto do sistema financeiro, no sentido de ser momento de enxugar o Estado em tudo que diz respeito às suas atividades públicas e sociais. O que se gasta com a dívida pública e juros que se remuneram ao sistema financeiro é muito maior que todo o arrocho praticado pelo ajuste fiscal de 2015.
Bastaria outra política, de contenção de juros, antiespeculativa, com outro rumo, o que neste momento, com esse governo, seria impossível. Mas ninguém poderia esperar em outubro de 2014 uma guinada à esquerda do PT, depois de 12 anos servindo as direitas e aos capitais.
A Dilma não poderia fazer diferente, portanto. Podia continuar o que já vinha fazendo, o que daria em curto-circuito, ou jogar a conta em cima dos assalariados, como feito. O ajuste se resume ao mesmo que as classes dominantes sempre fizeram em tempos de crise: jogar a conta para a classe-que-vive- do-trabalho, que depende do salário pra sobreviver. E hoje não tem emprego, não tem seguro-desemprego e vivemos uma situação mais triste que anteriormente.
O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Era uma redistribuição por dentro dos assalariados. Os capitais só engordaram e cresceram no Brasil da era Lula.
Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem. As respostas da classe trabalhadora serão duras contra o PT. E será triste se não formos capazes de ao menos germinar alternativas à esquerda, capazes de canalizar o descontentamento e não deixá-lo ir pra direita, desse modo tosco e bruto que vemos.
Que ao menos comecemos a reinventar a ideia de outro modo de vida, outro modo de produção, outra organização da política, que recuse essa institucionalidade. Um modelo mais democrático, mais popular, mais fundado na soberania do povo, com mais assembleias e plebiscitos. Enfim, o exercício de alguma coisa de novo tipo.
Correio da Cidadania: Diante do que você espera de uma continuidade do mandato de Dilma e suas consequências na vida política nacional, o que restará para a população, em termos de condições de vida e trabalho?
Ricardo Antunes: Vários movimentos. Deterioração das condições de vida, destroçamento do que resta da res publica, com a saúde e a educação públicas ficando mais precarizadas. O governo estadual do PSDB fecha escolas! Ou seja, a coisa passa por todas as esferas de governo. Quando Levy anunciou suas primeiras medidas, a pasta que mais sofreu cortes foi a Educação. Essa tendência vai aumentar.
Paralelamente, vamos ter aumento das revoltas e rebeliões. É evidente. A população das periferias adquiriu um novo patamar de consciência de seus direitos e das tragédias que permeiam o país. A Copa das Confederações (em junho de 2013) conjugou três movimentos: as rebeliões do mundo inteiro (Oriente Médio, EUA e Europa), a percepção da falência do mito do projeto lulista e, por fim, o fato de os megaeventos esportivos mostrarem que havia dinheiro pra estádio, pra Copa, pras transnacionais, mas não pra educação e saúde.
Não é difícil imaginar, novamente, uma situação de curto-circuito com esses três fios se interseccionando e reaparecendo um quadro favorável a rebeliões de massa. Se não caminhar em tal direção, teremos rebeliões episódicas e moleculares em todo o país, mais ou menos passivas. Greves também, coisa que o Brasil só viu crescer nos últimos anos. Em 2013 e 2014 o número se ampliou ainda mais, conforme dados do Dieese. E em 2015, quem está empregado teme o pior. Quem está no desemprego, não tem muito a perder.
Imagino uma nova era de rebeliões. Se mais ou menos moleculares, não sabemos. Tomara que essas manifestações de rua, greves, de caráter polissêmico, que marcam as lutas sociais do país, comecem a encontrar alguns polos de confluência que permitam um salto. Uma ideia que venho elaborando mais recentemente, uma triste constatação, é que as direitas, em 2015, politizaram as rebeliões de 2013 para seu campo, isto é, da contrarrevolução, do ódio ao comunista, ao socialista. Todos são comunistas, o PT é comunista, até os liberais! A direita vê comunista até no rabanete das feiras livres.
Correio da Cidadania: Conclui-se que a esquerda agora vê o preço de não ter acelerado sua reorganização nos últimos tempos?
Ricardo Antunes: As esquerdas dos movimentos sociais não conseguiram dar um salto, a partir das manifestações de massa e populares, para um patamar mais ofensivo. Tomara que saibamos avançar. O caminho, que em geral nossas esquerdas têm dificuldade de encarar, é não ficar focado na próxima eleição. Não adianta pensar nas eleições de 2016, 2018! Precisamos de um campo social e político organizado pela base, em manifestações cotidianas, decisões plebiscitárias, avanço de ações coletivas, sejam sindicais ou sociais. É necessária uma articulação mais generosa dessa enorme multiplicidade de movimentos sociais e das esquerdas, onde isoladamente cada um de nós somos poucos. Mas juntos, não!
Outro ponto é que trabalhamos muito com a dicotomia movimentos sociais x partidos. Um ou outro. Não estou de acordo que são dicotômicos. Os movimentos são muito importantes por estarem atados à vida cotidiana. A questão da terra é o sentido da vida para o MST, o assalariado rural, a camponesa. Terra, alimentação, casa e vida nova. Os sem teto sabem que na arquitetura do “planeta favela” os ricos vivem fechados em guetos com segurança à lá Robocop e fazem as periferias serem expulsas para lugares ainda mais periféricos. O estádio Itaquerão é exemplo perfeito: a região se valorizou e teve gente que foi expulsa para a periferia da periferia.
Os movimentos, portanto, têm muita colação com a vida cotidiana, mas têm mais dificuldade, até pelos seus métodos e necessidades, de terem projetos mais longevos, de pensar no amanhã e também no depois de amanhã e combinar com a atualidade. Falo isso deixando de lado as excepcionais exceções, trata-se mais de uma síntese. Os partidos de esquerda ao menos reconhecem que precisam adentrar o século 21 pensando o novo. Refiro fundamentalmente a PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupamentos que procuram se inserir no mundo e na vida real, e em geral têm um olhar mais longevo, a respeito de que sociedade queremos e como caminhar. Mas têm uma grande dificuldade de se vincular às lutas cotidianas, que são exatamente a força dos movimentos sociais. A força de uns é o limite de outros e vice-versa.
Estou fazendo uma síntese, repito. Não sou da ideia de que “os partidos acabaram, viva os movimentos sociais”! Os movimentos podem ter muita vinculação com a vida concreta, mas é difícil um movimento ter a longevidade, por exemplo, do MST. Este, é um movimento forte porque tem dinâmica e vida de base, não só de luta cotidiana. As mulheres do MST podem discutir ações e atitudes, assim como os assentados, pois têm autonomia na base que lhes permite avançar um pouco. E creio que o mesmo possa se dizer, em certa medida, no MTST. Mas eles também têm dificuldades.
Muitos movimentos sociais nascem e desaparecem. Os partidos ao menos têm se mostrado mais longevos, porém, perdem capilaridade com a vida cotidiana, de tal modo que o salto positivo no século 21 seria a aproximação desses dois polos orgânicos do mundo do trabalho. A energia que ainda tenho invisto nessa direção, que talvez nos permita sair de um momento, para lembrar Florestan Fernandes, de contrarrevolução. Das rebeliões de 2013 às “contrarrebeliões”. Do flagelo dos imigrantes na Europa à construção de muros pelo Estado fascista húngaro, para que não atravessem o continente. Assim como as, até agora, balas de chumbinho nos haitianos em São Paulo o demonstram.