Categoria: Saúde

  • Síntese dos debates do Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”

    Síntese dos debates do Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”

         A fundação Lauro Campos, em parceria com diretórios estaduais e municipais do PSOL, realizou uma série de eventos buscando contribuir com a discussão programática do partido e ajudar na apresentação de propostas visando as eleições municipais de 2016.

         Foram dez atividades realizadas em oito cidades brasileiras, que contou com a participação de pesquisadores, estudiosos e militantes dos eixos temáticos escolhidos para o aprofundamento da discussão. Rio de Janeiro, Curitiba, Nova Iguaçu, Fortaleza, Salvador, Recife, Belém e São Paulo sediaram atividades.  

         Confira a síntese de cada discussão realizada pelo Ciclo “Se a Cidade fosse Nossa”:

     

     

     

    Cidades do negócio vs. cidades rebeldes

    Local: Rio de Janeiro – RJ

    Participantes: David Harvey (geógrafo), Juliano Medeiros (presidente da FLC) e Edmilson Rodrigues (deputado federal – PA)

         Tivemos a oportunidade de apoiar o diretório carioca do partido, recebendo o  professor David Harvey, figura destacada do pensamento marxista e mais importante  geógrafo da atualidade. Em duas conferências mais uma aula pública, mostrou como a cidade é o espaço privilegiado de reprodução ampliada do capital, e destacou como os movimentos sociais estão procurando outras formas de organização e articulação para enfrentar a cidade dos negócios.

         O capitalismo em crise tenta resolver seus problemas através do avanço sobre as cidades para transformá-las em ativos financeiros. É a lógica de que a cidade não deve servir para as pessoas, mas para os negócios.

         Há uma enorme irracionalidade do capitalismo e na política. Como lembrou, em tom de brincadeira:  “dizem que nós, marxistas, somos insanos. Insanos são os capitalistas, que defendem esse modelo de cidade feita para especular, e não um modelo decente para as pessoas morarem com dignidade”.

         E continuou: “a solução não é abandonar o processo político, mas reconstruir o sistema. Precisamos de uma revolução política. Nos dizem que a única solução para as nossas dificuldades é mais capitalismo. A verdadeira resposta é nada de capitalismo. Na esquerda, a base tem que ser popular e estar no centro do processo político.”

     

    Tema 1: Saúde

    Local: Curitiba – PR

    Participantes: Bernardo Pilotto (setorial de saúde do PSOL), Lidia Cardieri (socióloga) e Melissa Pereira (Fiocruz)

         A saúde é um dos principais problemas dos municípios e dos cidadãos. A constituição federal estabelece que é competência do município a atenção básica e os serviços locais (em parceria com o estado e a união), o estabelecimento de uma política municipal de saúde, que invista ao menos 15% do orçamento local, e os laboratórios de exames e hemocentros. É muita coisa e os recursos são poucos.

         As restrições financeiras e as imposições da lei de responsabilidade fiscal têm trazido dificuldades adicionais. As administrações em geral, independente da orientação ideológica do partido, tem apostado em formatos de terceirização de serviços e de gestão, precarizando as condições de trabalho e retirando o caráter público do serviço. Para o PSOL, a ideia é fortalecer o SUS e a saúde pública, gratuita e de qualidade, bem como apostar na valorização do profissional, sabendo que sua dedicação e competência podem fazer a diferença.

         Como ressaltou Bernardo Pilotto, “é muito importante que o PSOL construa programas de governo na área de saúde antenados com as lutas de nosso povo nessa área, defendendo a ampliação e desprivatização do SUS. Na gestão municipal, é possível fazer muitas políticas de prevenção e promoção da saúde e é nessa área que devemos ter foco.” A própria melhora das condições de vida da população, com investimentos em saneamento básico, melhorias no transporte público e mais opções de lazer podem ser encarados como política de prevenção.

         Além disso, destacamos um assunto dentro da atenção básica: a saúde mental (junto da política de drogas), onde o município tem papel proeminente. Trata-se de debate com crescente relevância da sociedade e que traz a discussão sobre cuidado e o acolhimento. Aqui, o PSOL reafirma seu compromisso com a luta antimanicomial e com as práticas de redução de danos enquanto diretrizes para nossas políticas locais, focando sua atenção no estabelecimento e qualificação dos CAPS.

    Propostas

    • Ampliar os serviços do SUS e combater a privatização da saúde buscando rever os contratos de serviços e gestão
    • Melhorar as condições de trabalho e salários dos servidores
    • Foco na saúde básica, com fortalecimento das equipes de saúde da família
    • Políticas de prevenção e de informação
    • Construção, ampliação e melhorias dos CAPSs
    • Políticas sobre drogas de inclusão social e redução de danos.

     

    Tema 2: Segurança e direitos humanos

    Local: Curitiba – PR

    Participantes: Juninho (presidente do PSOL-SP e membro do Círculo Palmarino) e Orlando Zaccone (delegado e membro da Leap – Law Enforcement Against Prohibition).

         O desafio para o PSOL é estabelecer uma política de governo baseada no mais amplo respeito aos direitos humanos e no combate à todas as formas de opressão. Essas questões, como apontado pelo Juninho, estão relacionadas à questões estruturais que marcam a sociedade brasileira: a profunda desigualdade social, a cidadania restrita e a violência como forma de controle: “a manutenção desses privilégios de acumulação de riqueza e essa cidadania restrita se mantém através da violência”.

         Essa formação social leva a uma atuação do estado  baseada no controle social, dentro da lógica do combate ao inimigo, do punitivismo penal, da gentrificação e da exclusão social. Ressaltou Orlando Zaccone: “então, a questão da cidadania que o Juninho trouxe mostra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não contemplou essa distinção entre cidadão humano e não cidadão inimigo. O inimigo hoje não é o cidadão, ele é construído dessa forma, pelo discurso: ´direitos humanos para humanos direitos´. E esse nosso cidadão é construído como inimigo, e diversas fatores vão ser contemplados nessa não cidadania, nessa construção de inimigo. E o tráfico de drogas hoje é a grande construção que se faz dessa figura mítica do inimigo que perde toda proteção do ambiente social”.

         A política de segurança do PSOL precisa encarar a discussão da segurança e da violência como produto da desigualdade social: “a violência não será combatida com mais aparato e com mais violência, mas sim a partir de uma dinâmica de desenvolvimento real, de distribuição de riqueza, de desenvolvimento social”, reforçou Juninho.

    Propostas:

    • Políticas de proteção aos direitos humanos e combate às opressões
    • Pelo fim do caráter atual “militarizado” das Guardas Civis Metropolitanas e reforço da atuação comunitária
    • Foco em políticas de revitalização dos espaços e de combate à desigualdade

     

    Tema 3: Poder local nas periferias e no interior

    Local: Nova Iguaçu – RJ

    Participantes: Carlos Vainer (urbanista), Sandra Quintela, Glauber Braga (deputado federal – RJ), José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo-RJ), Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,), Cid Benjamin (jornalista) e Álvaro Neiva (presidente do diretório estadual do Rio de Janeiro)

         As políticas públicas não podem se resumir às capitais. Mesmo quando pensamos nelas, é decisivo incorporar as regiões metropolitanas no debate, porque para as pessoas as fronteiras entre os municípios muitas vezes representam impedimentos e dificuldades. Para Carlos Vainer é preciso superar as divisões baseadas em municípios, muitas vezes incorporadas pelos próprios partidos que têm viés contra-hegemônico. “Sou a favor do comitê metropolitano. Nós queremos os impostos da Barra da Tijuca sendo aplicados em Nilópolis (…) O poder é a capacidade de articular escalas, sejam elas globais, nacionais ou locais”, afirmou Vainer.

         O programa do PSOL é construído em parceria com os movimentos sociais. Sandra Quintela, economista do PACS (Políticas Alternativa para o Cone Sul), lembrando seus vínculos com a Baixada, citou exemplos de embates como os comitês em Nova Iguaçu contra a ALCA, pescadores da Zona Oeste do Rio contra a TKCSA, Comitês Populares denunciando as políticas de exclusão relacionada à Copa e às Olimpíadas. Para Sandra, “o debate sobre poder local não pode abrir mão de fazer as disputas de classe, afinal, o capital é global”.

         Fechando a primeira parte do debate, o deputado federal Glauber Braga (PSOL/Nova Friburgo-RJ) falou sobre as relações entre institucionalidade e resistência nas ruas.  “Somos o partido que toda sexta-feira está em praça pública no Centro do Rio. Temos que construir os programas e prestar contas nas praças, não para negar o poder representativo que hoje existe, mas por entender que ele não dá conta de um projeto de ruptura”, afirmou Glauber.

       Na parte da tarde o debate contou com a participação dos professores José Cláudio Souza Alves (sociólogo/UFRRJ), Josemar Carvalho (geógrafo/São Gonçalo), e Leci Carvalho (pedagoga e presidenta do PSOL-Nova Iguaçu,); do jornalista Cid Benjamin.e do presidente estadual do PSOL-RJ, Álvaro Neiva. Em pauta, as particularidades da militância na Baixada e na periferia em geral, os problemas na segurança e no serviço público e os desafios da luta institucional, entre outros temas.

    Propostas:

    • Políticas integradas para Região Metropolitana – mobilidade urbana, segurança pública, saneamento básico, saúde etc
    • Criação de comitês metropolitanos e de laços entre os governos e os cidadãos dessas regiões

     

    Tema 4: Cidades Negras

    Local: Salvador-BA

    Participantes: Samuel Vida (UFBA), Linesh Ramos (professora) e Dennis Oliveira (USP)

         Para o PSOL o racismo é parte estrutural da formação social do país e da luta de classes. Como destacou o professor Dennis de Oliveira,  o “racismo é a ideologia que vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa clivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”.

         Do ponto de vista da gestão do Estado e das políticas públicas, enfrentar o tema do racismo institucional é decisivo para uma gestão que quer combater o racismo estrutural. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

         Da mesma forma, destacamos a importância de abordar esse tema de forma intersetorial, com conexões com a questão das mulheres em especial: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”, afirmou Linesh Ramos.

         Para o PSOL a temática do combate ao racismo não pode se resumir às ações de uma pasta específica, devendo estar presente em todas as ações institucionais e políticas públicas, além das políticas específicas.

    Propostas:

    • combate ao racismo institucional
    • combate à violência contra o jovem periférico
    • combate à violência contra a mulher negra

     

    Tema 5: Comunicação

    Local: Fortaleza-CE

    Participantes: Aldenor Jr. (ex secretário de comunicação de Belém), Roger Pires (coletivo Nigéria) e Helena Martins (coletivo Intervozes)

         Segundo a Unesco “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações”. Essa concepção é mais do que garantir a liberdade de expressão, é pensar em formas e políticas que garantam a todas as pessoas o direito de acessar, produzir e difundir informações e cultura. Esse direito, no entanto, é negado pelo alto grau de concentração da propriedade dos meios de comunicação, inclusive em âmbito municipal (donos de rádios e jornais locais são ligados ao poder econômico).

         Junto dos movimentos sociais, é preciso pensar outras formas de comunicação e de identidade visual. Para Roger Pires, a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou.

         Mais do que as políticas específicas de comunicação, é preciso ter uma linha de atuação militante, que contribua para a organização popular e faça o enfrentamento com o pensamento e as forças hegemônicas, na direção da ampliação da participação popular. Assim, a comunicação precisa ser feita “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo”.

    Propostas:

    • wi fi livre e incentivo à produção popular
    • incentivo à distribuição e circulação da produção popular
    • incentivo à comunicação popular, jornais de bairro, rádios comunitárias, produção local
    • comunicação militante com engajamento social

     

    Tema 6: Meio ambiente

    Local: Fortaleza – CE

    Participantes: Márcio Astrini (Greenpeace) e Alexandre Araújo (PBMC – Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas)

         Pensar em outro modelo de desenvolvimento, sustentável e que respeite todas as formas de vida. O Ecossocialismo, ou qualquer outro nome que se queira dar para uma alternativa para além do capitalismo, precisa ser um projeto que supere o capital em dois aspectos: o da desigualdade social e o do colapso ambiental que promove.

          É importante romper com a dicotomia Homem versus Natureza, e compreender que a humanidade é parte integrante da natureza. O planeta Terra deve ser visto como um único organismo com um metabolismo próprio. Entretanto, a ação do homem no planeta, forçada pela atual forma de exploração devastadora, acaba por desequilibrar este metabolismo, comprometendo a sobrevivência de todas as espécies.

         A tarefa que cabe é a de adequar a exploração do planeta com as reais necessidades da humanidade, o que é incompatível com o atual sistema capitalista, uma vez que a superexploração dos recursos naturais, com o aumento da produção de dejetos, contaminação do meio-ambiente e destruição de biomas, se torna cada vez mais aceleradas na busca da produção de capital e sua consequente hiperconcentração. É mais do que urgente se buscar soluções de baixo custo e alta rentabilidade para o conjunto da sociedade, na construção de uma cadeia produtiva baseada na economia criativa e solidária.

    Propostas:

    • Eficiência no gerenciamento dos dejetos
    • Estímulo a soluções criativas de produção com baixo impacto ambiental e alto retorno social
    • Vigilância rigorosa do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos
    • Incentivo a nova matrizes energéticas, como o programa de instalação de placas solares em equipamentos públicos
    • Estímulo à criação de cadeias de produção e circulação de mercadorias, orientadas pela perspectiva da economia solidária

     

    Tema 7: Moradia e mobilidade

    Local: Recife-PE

    Participantes: Lucio Gregori (ex-secretário governo municipal de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina), Socorro Leite (ONG Habitat), Leonardo Cisneros (Ocupe Estelita) e Vitor Guimarães (MTST)

         A cidade tem sido alvo do capital para se tornar espaço de valorização, produzindo desigualdades e exclusão social. O direito à cidade foi abordado em torno dos temas da moradia e da mobilidade urbana.

         Socorro Leite, diretora executiva da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, destacou  que “o direito à moradia não está à frente da política pública”. Apresentou também uma série de propostas para a inversão das prioridades nesse tema, como a ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.


         Já Vitor Guimarães, da coordenação nacional do MTST, destacou que “não existe programa habitacional, existe um projeto econômico, pois a crise urbana é um projeto político. Quem é dono da terra é dono da cidade. O Minha Casa Minha Vida não questiona a especulação imobiliária”. Concluiu chamando à luta e à organização popular, destacando que um programa de esquerda deve enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.


         Para falar de mobilidade, o engenheiro Lucio Gregori, que foi secretário de transporte da gestão Luiza Erundina na cidade de São Paulo, apontou que “a luta de classes é no chão das cidades, mais que nas fábricas”. Lembrando que a mobilidade é questão transversal, destacou também a participação popular e concluiu dizendo que “se a cidade fosse nossa a mobilidade seria de todos”.


        Por fim, Leonardo Cisneros, Professor UFRPE e ativista dos Direitos Urbanos – Recife e do Ocupe Estelita, lembrou que “mobilidade é problema político, cujas soluções expressam visões sobre o modelo de cidade. É a democracia direta do capital, que articula investimentos públicos com os interesses privados”. Assim, a questão da transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder.

    Propostas:

    • inversão das prioridades. Ocupação de imóveis ociosos, recursos locais para moradia, planejamento para a cidade, proteção nas ZEIS, regularização da posse, diversificação soluções habitacionais e, em especial, a participação popular.
    • enfrentar a questão do valor da terra, ampliar e regulamentar o estatuto das cidades e estabelecer comitês democráticos de mediação de conflitos.
    • transparência e das prioridades é central, garantindo ao povo a capacidade de decidir e não apenas participar de conferências e consultas esvaziadas de poder

     

    Tema 8: Participação popular

    Local: Belém-PA

    Participantes:  Edmilson Rodrigues (deputado federal-PA), Juliano Ximenes (urbanista) e Jurandir Novaes (urbanista)

         A radicalização da democracia, a participação da sociedade e a construção do poder popular são as principais marcas da proposta de governo do PSOL, ao lado da ideia de inversão de prioridades. Somente  com o povo tendo voz ativa nas decisões do governo é que seus interesses serão atendidos. A crise política e o governo golpista de Michel Temer reforçam essa importância, propondo um formato de governo totalmente oposto ao ministério de homens brancos e ricos de Temer.


         Juliano Ximenes falou sobre a importância de se instituir um ativismo comunitário no Brasil como uma medida para melhorar os mecanismos de controle político utilizados pela população. “Tais processos conferem força e diminuem os conflitos da população. O ativismo é um processo necessário e deve estar integrado às políticas para democratizá-las plenamente”, enfatizou. Já Jurandir Novaes complementou a contribuição do arquiteto, Juliano Ximenes, ao dizer que “a participação popular é uma decisão política, que serve para romper a lógica da dominação sobre o povo”.

         Edmilson Rodrigues finalizou o debate, destacando que a falta da participação popular é um dos fatores que contribuiu para o aprofundamento da crise vivida no Brasil e sofrida pela população. “A participação do povo na gestão é o instrumento que deve ser usado para que superemos as crises e para que possamos caminhar rumo a um futuro democrático, sem diferenças na sociedade e que tenha a população como foco”, concluiu.

    Propostas:

    • Ampliar e reforçar as formas de participação popular, através de conselhos, conferências e mecanismos de participação direta nas decisões, bem como reforçar mecanismos de controle social dos gastos e contratos.
    • Descentralizar o governo e estabelecer mecanismos de protagonismo local e popular.

     

    Tema 9: Educação.

    Local: São Paulo-SP

    Participantes: Luiz Araújo (professor UNB e presidente nacional do PSOL), Lisete Arelaro (professora da Faculdade de Educação da USP) e Sylvie Klein (pesquisadora), com comentários de Paula Coradi (professora)

         Para o PSOL, é central a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade para todas e todos. A efetivação desse direito depende das prioridades e opções do governo. Luiz Araújo, professor da UNB e presidente nacional do PSOL, contou que no governo de Belém, quando foi secretário de Educação, “o Edmilson reuniu lá no palácio do governo a equipe que trabalhava comigo na secretaria e fez a seguinte pergunta: de tudo que vocês estão fazendo ou estão planejando fazer, o que a direita não faria?”.

         Para a esquerda socialista são três tarefas: a) garantir o acesso universal aos direitos sociais, o que envolve a inversão de prioridades e a “disputa do fundo público com outras prioridades”; b) fazer uma disputa de valores pela herança imaterial de concepções, o que implica em “empoderar a população”; e c) radicalizar a participação popular , “abrir os dados e discutir a sua composição e capacitar a população a discutir isso e decidir de forma inclusive diferente”.

         Já a professora Lisete Arelaro, professora da Faculdade de Educação da USP, começou lembrando que “nós estamos em tese numa democracia, e efetivamente a gestão democrática foi para as cucuias”. E que a preocupação com os números de matriculados precisa ser balizada pela qualidade. E como faz pra melhorar a qualidade? “Querido, se tiver uma jornada digna para o professor e ele ganhar um salário minimamente decente, surpresa, dá certo a escola, em geral”.

         Sobre a educação de jovens e adultos e a alfabetização no país, Lisete lembrou da enorme dívida social, do alto número de analfabetos e de adultos que não passaram do ensino fundamental ou médio: “ Porque ele pensa: eu trabalho nove horas, 14h eu estou aqui, duas horas para voltar, se eu ainda for estudar três horas e meia, quatro, tem que valer muito à pena”.

          Finalizando o debate, a pesquisadora Sylvie Klein falou sobre educação infantil, que é uma das responsabilidades dos municípios. Para ela, “a creche e a educação infantil, é um direito das crianças, é um direito que as crianças têm de estarem num espaço público, que as crianças têm de estarem num espaço coletivo, um espaço entre pares, que ela saia daquele núcleo que é caminhar, que é o espaço do privado, para estar nesse lugar”. Aqui, o desafio é o acesso com qualidade: “Se é direito das crianças, de todas as crianças, ela é um dever do estado, e aí o estado tem que se responsabilizar por esse atendimento. E o que a gente tem visto é uma desresponsabilização do estado via política de conveniamento”.

    Propostas:

    • Fim das matrículas da educação infantil nas entidades conveniadas e progressiva retomada da prefeitura
    • Limite de alunos por sala de aula definido por critérios pedagógicos
    • Ampliação dos programas de alfabetização de Jovens e Adultos
    • Valorização do professor e ampliação dos mecanismos de participação social nas escolas
  • “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    “A diabetes é uma desadaptação do ser humano à sociedade que criámos”

    Em entrevista ao esquerda.net, José Manuel Boavida, diretor do programa nacional para a diabetes, salienta o papel da cidadania, destacando que em Portugal fundou-se a primeira associação de diabéticos do mundo, e aponta que a alimentação é uma “questão fundamental” e “está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais”, “que modificam muitos dos nossos comportamentos”.

    Nesta entrevista ao esquerda.net, publicada no Dia Mundial da Diabetes – 14 de novembro – José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”. Em Portugal, “temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes”, refere. José Manuel Boavida fala também do papel da cidadania na prevenção e tratamento da doença e aborda a alimentação, como “uma questão fundamental que é pouco falada”.

    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”
    José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”

    Qual é a situação atual da diabetes em Portugal, particularmente os efeitos dos últimos anos de austeridade?

    José Manuel Boavida: A diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém, não só no mundo dito mais desenvolvido mas também nos países em vias de desenvolvimento. Os países que hoje têm mais diabetes são os países como a China, a Índia, o Paquistão, o Egito, o Brasil, coisa que não era de maneira nenhuma expectável e a maior parte das pessoas, que não sabe, pensa ainda que são os EUA e os países que são normalmente apontados como os países da obesidade e da diabetes. Não é verdade.

    A diabetes é um problema de uma desadaptação do homem a esta sociedade que criámos. Obviamente que uma situação de crise agrava esses problemas. O acesso à alimentação torna-se um acesso a uma alimentação mais barata e, normalmente, mais hipercalórica e menos saudável. Todo o stress ligado às situações de desemprego, de afastamento, de isolamento social, são situações que são também criadoras de diabetes, diabetogénicas.

    E temos também uma sociedade que deixa de pensar as cidades do ponto de vista da mobilidade das pessoas, do desenvolvimento da atividade física. Afastámos o exercício, a atividade física, do trabalho, pelo próprio desenvolvimento da sociedade, e tudo isso condicionou estes três elementos: a alimentação, a atividade física e o stress são considerados hoje em dia os elementos fundamentais do desenvolvimento da diabetes.

    Mas, é evidente que isto se insere numa sociedade que é hoje o resultante dos mais capazes, que foram selecionados pela espécie, que são os sobreviventes. E, portanto, estes sobreviventes são pessoas muito resistentes e que estão preparados mais para as épocas de fome do que para as épocas de abundância e esta é a contradição e o grande problema do desenvolvimento da diabetes.

    A diabetes em Portugal. Neste momento os números, do ponto de vista de percentagens, são também agravados pela emigração da população jovem, pelo envelhecimento, e portanto, os números têm vindo a aumentar – aumentaram cerca de 2% nos últimos cinco anos, o que demonstra bem o impacto: temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes.

    Em primeiro lugar, é evidente que é preciso tratar as pessoas com diabetes, mas em segundo lugar, é preciso dirigirmo-nos àqueles que estão em risco de a vir a desenvolver, porque são esses que hoje podem atuar, corrigindo alguns destes problemas. Aqui também numa perspetiva de que a correção não é individual. Ou seja, se estamos à espera só de que os comportamentos individuais modifiquem as condições nunca iremos muito longe. Poderemos conseguir grandes vitórias isoladas, mas temos de ter uma visão social, porque a diabetes é claramente uma doença social, é uma doença da sociedade moderna e da desadaptação do homem a esta sociedade moderna.

    Para combater e para responder ao problema da diabetes qual é o papel da cidadania, tanto mais que nesta sexta-feira se comemora o Dia Mundial da Diabetes?

    José Manuel Boavida: Portugal tem aí um exemplo grande, que fundou a primeira associação de diabéticos do mundo. E essa associação foi criada numa altura em que se descobriu um medicamento que era caríssimo, que era inacessível às pessoas e houve um conjunto de pessoas que se juntaram e formaram a Associação Protetora dos Diabéticos e foi ela que dava a insulina, mas sempre numa perspetiva de autonomia, de integração social das pessoas, de devolução, que era o termo utilizado na altura, de devolução das pessoas com diabetes à sociedade. Ou seja, as pessoas vinham, aprendiam a tratar-se e a insulina era-lhes enviada pelo correio, que é uma forma absolutamente revolucionária de encarar a doença e de encarar a situação das pessoas. Há frases dos anos 20 [do século XX] absolutamente fantásticas como, por exemplo, do professor Pulido Valente, influenciado pelo doutor Ernesto Roma, que foi o fundador desta associação, em que diz que o papel do médico é menos tratar o doente do que ensiná-lo a tratar-se ele próprio. Isto dá bem a imagem de como a diabetes encara a cidadania e a participação ativa das pessoas no seu próprio tratamento. E, já desde esse processo se desenvolveram núcleos de apoio à associação pelo país. Com a crise económica e com as guerras mundiais esses núcleos fecharam, mas nos anos 80 começaram a surgir novos núcleos associativos pelo país.

    Hoje há mais de cinquenta associações de pessoas com diabetes pelo país fora que, normalmente, comemoram este dia mundial com organizações que vão desde colocar os edifícios camarários a azul, monumentos a azul, palestras, encontros, marchas, convívios, discussão sobre os seus próprios problemas e as suas dificuldades.

    Este movimento associativo teve um grande impulso no tempo da Maria de Belém como ministra da Saúde, em que se reivindicou o acesso aos materiais de autocontrole. Ou seja, serem as próprias pessoas a poderem determinar os seus valores de açúcar e assim adaptarem a alimentação, o exercício físico e a medicação consoante os valores que têm. Esse processo reivindicativo correspondeu depois a uma manifestação na Assembleia da República, que foi vitoriosa e criou um fôlego que hoje se transforma no que são hoje as comemorações do Dia Mundial.

    Este ano o Dia Mundial da Diabetes foi preparado por um grande encontro que decorreu no Estoril que são os fóruns da diabetes. Esses fóruns da diabetes – já vamos no oitavo ano consecutivo – reúnem associações de todo o mundo. A Marisa Matias já esteve em três destes fóruns e tem estado associada a este processo. Este ano, o embaixador da diabetes foi o Ricardo Araújo Pereira, que conseguiu, com o seu humor, transmitir também muita força, que é necessária para a situação atual, para que, além do viver com a doença, as pessoas sejam capazes de encarar com coragem, com força, com determinação, e encontrar as saídas necessárias para uma sociedade melhor e mais humana.

    Por fim, gostava que falasses sobre a ligação da diabetes com a alimentação e com o modo como comemos hoje.

    José Manuel Boavida: A questão da alimentação é uma questão fundamental que é muito pouco falada. Hoje, a alimentação está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais, com forças absolutamente incríveis e que modificam muitos dos nossos comportamentos.

    Há o primeiro lóbi que é o lóbi dos cereais, que transformou todo o movimento dos pequenos almoços: se nos recordarmos do que era o pequeno almoço há 20 anos e agora a panóplia que existe de produtos para o pequeno almoço, que estão cheios de sal, que estão cheios de açúcar, e que são dados às crianças como modo absolutamente saudável e rico do ponto de vista alimentar com minerais, com ferro, com isto e com aquilo – tudo publicidade enganosa. Não quer dizer que não sejam produtos bons, mas são produtos manufaturados, com imensos produtos aditivos, que não sabemos a sua influência porque nunca foram estudados.

    Nos últimos 20 anos foram introduzidos na alimentação mais de 4.000 produtos, que na sua grande maioria são estudados pelo efeito sobre o cancro, mas que não são estudados pelo efeito sobre a obesidade ou sobre a diabetes ou sobre as hormonas e muitos deles terão aqui um papel bastante importante.

    O segundo grande lóbi é o lóbi da carne e temos Portugal como um bom exemplo do que é a cultura intensiva da vaca, que ocupa espaços agrícolas em grande terreno e uma cultura da carne de vaca que era uma coisa que também não existia há 30 anos – a vaca era introduzida na alimentação em pequenas quantidades.

    Depois existe enfim toda a panóplia dos refrigerantes. Hoje, infelizmente, não entramos em casas de pessoas, muitas vezes com mais dificuldades, onde o refrigerante não seja considerado algo que apesar de tudo lhes dá algum prazer. O problema é que esse prazer está ligado claramente à obesidade, à diabetes e portanto às doenças do coração, em geral. Poderíamos continuar por aqui e percebermos que há uma transformação da própria alimentação. Os alimentos são cada vez mais calóricos. O aumento de preço dos produtos como os refrigerantes é praticamente nulo, nos últimos dez quinze anos, enquanto o aumento do preço dos vegetais, da fruta, dos produtos mais complexos é exponencial.

    Em Portugal, por exemplo, um dos alimentos que mais tem desaparecido nos últimos anos é as leguminosas, é o feijão, o grão, ervilhas e favas que foram os alimentos que sempre constituíram a base da alimentação ao longo de anos no mundo e tem vindo a reduzir-se drasticamente.

    Obviamente que depois temos outro problema que tem a ver com a alimentação: o dia a dia e a falta de tempo. Hoje, por exemplo, as pessoas preferem os fritos que são muito mais rápidos do que os cozidos. Antigamente, estava a panela ao lume, todo o dia, ia preparando a comida em lume brando, ia cozendo devagar e agora queremos isso em cinco minutos, porque as pessoas não têm tempo. Ou então, comermos com ajuda do micro-ondas, nada melhor que pré-feitos e aí vem outro lóbi que é o da indústria dos alimentos pré-fabricados, que é só aquecer e comer e a que vemos a juventude recorrer.

    Já não vou falar da fast-food, que é mais do que falada, mas toda a compreensão de como esta sociedade se desenvolve de uma forma anárquica, virada unicamente para o lucro, e sem consideração nenhuma nem pela espécie humana nem pela saúde das populações é claramente marcante.

    É neste sentido que é fácil o caminho da culpabilização das pessoas. As pessoas são gordas porque comem demais… as pessoas são gordas porque têm uma genética de resistência à fome e da sobrevivência que lhes faz com que absorvam bem os alimentos e que se lhes dão alimentos que não são bons obviamente se tornam gordas.

    É preciso enquadrar bem esta questão da alimentação. É um debate para o qual penso que todos os movimentos se devem aproximar, devem aprofundar, porque é complexo e tem forças enormes por detrás dela que é necessário enquadrar. A publicidade é um dos aspetos menores disso. Mas não é por acaso que entre as notícias dos canais televisivos, nos noticiários da noite, aparecem anúncios de chocolates para crianças, que é influência sobre os pais e sobre os avós. Esta subtileza de todos estes lóbis é extremamente pouco subtil, mas infelizmente extremamente eficaz e, portanto, temos que encontrar formas de a combater decididamente.

    Entrevista realizada por Carlos Santos e Nino Alves para esquerda.net

    Fonte: Esquerda.Net, 14 de novembro, 2014

  • “Ainda vamos sofrer bastante pelas décadas de abandono do combate ao Aedes Aegypti”

    “Ainda vamos sofrer bastante pelas décadas de abandono do combate ao Aedes Aegypti”

    Há fortes evidências de que a falta de políticas públicas e acesso ao saneamento básico, aliado a crises de abastecimento de água podem ter influenciado na proliferação do mosquito Aedes Aegypti, vetor tanto da dengue, quanto da zika e da chikungunya. Para entender melhor o contexto histórico no qual está inserida a atual epidemia, entrevistamos o historiador Rodrigo Magalhães, que em seu doutorado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) investigou a história do combate ao Aedes Aegypti em nível continental, ao longo do século 20

    saneamento-basico“Do final do século 19 até os anos 70, o foco é a febre amarela e todo combate que se desenha em torno do Aedes Aegypti tem como objetivo acabar com as epidemias de febre amarela, especialmente as urbanas. E foram essas campanhas que eu estudei mais a fundo. Elas foram bem sucedidas e resultaram na erradicação do mosquito Aedes Aegypti do Brasil em 1955”.

    Ele defende que além de todas as medidas individuais que as atuais campanhas pregam, é preciso que o poder público garanta um serviço regular e que realmente funcione de fornecimento de água encanada, porque, segundo ele, onde falta água as pessoas tendem a acumular o máximo possível em baldes, caixas e afins, que acabam tornando-se criadouros do mosquito.

    “Não foi à toa que em São Paulo teve uma grande epidemia de dengue no ano passado, no auge da crise hídrica. Isso ocorreu devido à falta de abastecimento, pois as pessoas estão acumulando água por necessidade. O governo precisa investir em saneamento básico já que as valas, poços e lixões são paraísos para o Aedes Aegypti se reproduzir”, conclui.

    Rodrigo Magalhães coloca que a situação é desesperadora e todos os esforços devem ser feitos no sentido de erradicar novamente o Aedes Aegypti, não só do território brasileiro, mas de todas as Américas. “Ainda vamos sofrer mais um tempinho com essas epidemias. Teremos de tomar nossos cuidados com repelentes e desmantelamento de criadouros, além de, principalmente, pressionar o poder público no sentido do combate ao Aedes Aegypti. Mesmo se tudo isso der certo, infelizmente ainda sofreremos um pouco mais até voltarmos a uma situação de normalidade no que se refere à proliferação dessas doenças”.

    Confira abaixo a entrevista completa com o professor Rodrigo Magalhães.

    Correio da Cidadania: Em se tratando da dengue, a epidemia mais antiga que podemos encontrar nos arquivos da imprensa data de 1986. Houve alguma epidemia antes desta, enfim, de quando exatamente pode-se falar em epidemias como as de dengue, zika, chikungunya e semelhantes?

    Rodrigo Magalhães: Essas três doenças são transmitidas por uma espécie de mosquito que é o Aedes Aegypti. Realmente, a primeira grande epidemia de dengue que temos notícia aconteceu em 1986 aqui no Rio de Janeiro, só que apesar disso a dengue já era identificada no país desde o final do século 19. Temos notificações de casos de dengue em Curitiba no final do século 19 e em outras cidades também. Acontece que nesse período, entre o final do século 19 e os anos 70 do século 20, a dengue ficou em segundo plano porque a grande preocupação que o mosquito Aedes Aegypti trazia era a febre amarela, uma doença que se mostrava realmente terrível e sobre a qual se conhecia muito pouco: o diagnóstico da doença era muito complicado porque ela se parecia com outras como a malária, seus sintomas eram muito semelhantes.

    Além disso, era uma doença que afetava bastante o comércio internacional e o trânsito de pessoas, pois ao menor indício de epidemia, os países vizinhos levantavam quarentenas. A febre amarela era o grande problema sanitário durante boa parte do século 20 e o Aedes Aegypti, como transmissor, passou a ser o inseto combatido.

    Do final do século 19 até os anos 70, o foco foi a febre amarela e todo combate que se desenhou em torno do Aedes Aegypti tem como objetivo acabar com as epidemias de febre amarela, especialmente as urbanas. E foram essas campanhas que eu estudei mais a fundo. Elas foram bem sucedidas e resultaram na erradicação do mosquito Aedes Aegypti do Brasil em 1955. Em 1958, a organização mundial da saúde atesta sua erradicação e, confirmada no Brasil, vários outros países do continente também conseguem. Isso até chegarmos a um momento em que no final dos anos 60 o mosquito está restrito a algumas regiões das Américas, como por exemplo parte do Caribe, América Central e o sul dos Estados Unidos.

    A campanha de combate ao Aedes Aegypti e a febre amarela foi bem sucedida, mas não terminada, não finalizada e assim não se conseguiu erradicar o mosquito nas regiões supracitadas, fazendo com que a partir daí ele começasse a reinfestar o restante do continente desde o final dos anos 60 e durante os anos 70. Já nos anos 70, começamos a ver o problema da dengue passar para um primeiro plano da saúde pública.

    A campanha continental de erradicação do Aedes Aegypti, embora não tenha conseguido eliminar o mosquito de todo o território das Américas, foi muito bem sucedida ao impedir a eclosão de epidemias urbanas de febre amarela. Ou seja, a febre amarela deixara de ser um problema. O mosquito ficou confinado e paralelamente também foi desenvolvida uma vacina contra a febre amarela, que deixou de ser um problema.

    Mas como esse mosquito não foi erradicado por completo – e isso é até uma redundância, porque erradicar é, de fato, “acabar de vez” – ele voltou a infestar novamente outros países, trazendo consigo a doença principal nos anos 70: a dengue. Temos diversas notificações da doença em várias partes do continente nesta década.

    Em 1981, tivemos a primeira grande epidemia de dengue do século, a maior de todas, em Cuba, e é até uma coisa inimaginável hoje: eram cerca de cem mil casos notificados por dia da doença. Enquanto isso, outros países iam enfrentando esse problema no começo dos anos 80 e, em 1986 tivemos a primeira grande epidemia de dengue do Brasil aqui no Rio de Janeiro, com uma quantidade absurda de casos notificados. 1986 foi o ano da primeira grande epidemia de dengue no Rio de Janeiro e lá se vão 30 anos, ou seja, são 30 verões em que convivemos com esse problema, culminando em 2016 com outras calamidades, como o vírus zyka e a febre chikungunya, também transmitidos pelo mosquito Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: O que tem sido feito ao longo desses 30 anos por parte do poder público para prevenir e combater essas epidemias?

    Rodrigo Magalhães: Temos que voltar um pouco antes de 1986 porque é preciso ter as dimensões do que foi feito anteriormente e que culminou na erradicação do mosquito do país em 1958. Foi feito um trabalho minucioso, casa a casa, rua por rua, borrifando DDT, que era o principal inseticida na época. Para fazer o controle do mosquito, um serviço de vigilância epidemiológica foi muito bem implementado, identificava-se um caso de febre amarela assim que ele surgisse para que fosse possível combatê-lo, tratar o caso, erradicar a doença e vacinar a população das redondezas. Esse trabalho minucioso foi realizado no Brasil, em grande parte pelo Serviço Nacional de Febre Amarela (SNFA) no bojo da campanha continental para erradicação do Aedes Egypti. Esse trabalho foi muito bem realizado entre os anos 30 e 50, culminando, como falamos anteriormente, na erradicação do mosquito nesta década.

    O que aconteceu a partir de 1958, quando o mosquito foi erradicado, é que paulatinamente o trabalho minucioso foi abandonado. Lentamente, os órgãos criados para combater a febre amarela no Brasil foram sendo extintos, tendo seu número de pessoal reduzido, suas atividades diminuídas, ou seja, há o que eu chamo na tese de um desmonte de toda a infraestrutura nacional voltada para o combate ao Aedes Aegypti, o que acabou criando as condições para o mosquito reinfestar o país a partir de 1967. Ou seja, nove anos depois de o país se ver livre do mosquito, ele reapareceu em Belém, primeiramente, e a partir daí foi se espalhando para todos os estados, jogando no lixo o trabalho que havia sido realizado nas décadas anteriores.

    Houve uma nova tentativa nos anos 70, ele chegou a ser eliminado mais uma vez, mas voltou porque este trabalho não foi, como o anterior, coordenado com os outros países do continente. E aí vemos um problema, porque o Brasil faz fronteira com mais de 10 países na América do Sul. Não adianta nada fazer todo esse trabalho se também não for feito nos países vizinhos, porque a capacidade de reinfestação do mosquito é muito grande – ele voa através das fronteiras e infesta os territórios.

    O trabalho coordenado, depois de 1958 e da campanha continental, nunca mais foi feito. O que o Brasil tentou fazer a partir de então foi combater o mosquito, e consequentemente a doença, somente em períodos agudos de epidemia, apelando nos anos 80, por exemplo, para o “fumacê”, que são aqueles carros que passam nas ruas jogando grandes camadas de DDT para eliminar o mosquito – hoje uma técnica muito criticada pelos pesquisadores e infectologistas porque acaba criando resistência no mosquito, fazendo até com que haja um projeto para regular essa medida. Paralelamente temos, e estou até escrevendo um artigo a respeito, um lento deslocamento da saúde pública no Brasil através do qual o governo tenta culpabilizar a população por doenças como a dengue.

    Em outras palavras, o poder público tenta se redimir da responsabilidade sobre a doença e transmite a responsabilidade através de campanhas que apelam para a população “fazer sua parte”, não manter pneus usados no quintal, tirar água dos vasos de planta, combater poças de água, cobrir caixas de água etc. Tudo isso é muito importante, realmente, para eliminar criadouros do mosquito Aedes Aegypti.

    No entanto, não basta: é preciso que o governo também assuma sua responsabilidade na eliminação desses criadouros. Fazendo o que, por exemplo? Um serviço regular e que realmente funcione de fornecimento de água encanada, porque onde não tem água as pessoas tentam acumular o máximo de água possível em baldes, caixas e afins, que, por sua vez, acabam tornando-se criadouros do mosquito.

    Não foi à toa que São Paulo teve uma grande epidemia de dengue no ano passado no auge da crise hídrica. Isso ocorreu devido à falta de abastecimento, pois as pessoas estão acumulando água por necessidade. O governo precisa investir em saneamento básico porque existem valas, poços, lixões, que são paraísos para o Aedes Aegypti se reproduzir.

    Resumindo: são duas coisas que não foram feitas desde então e que são necessárias: coordenar esse trabalho no Brasil com os países vizinhos que também têm o mosquito. Além disso, é preciso que o poder público assuma sua responsabilidade no combate à espécie, principalmente no que se refere a políticas de saneamento básico, facilitando o fornecimento de água encanada. Com isso, já se reduziriam enormemente os criadouros externos do Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: Qual sua análise em relação às epidemias dos últimos 30 anos no que se refere à diversos aspectos, tais como médicos, sociais, econômicos, temporais etc.?

    Rodrigo Magalhães: O mosquito Aedes Aegypti é bem democrático, digamos assim. Porque ele não afeta somente a ricos ou somente a pobres. Ele se reproduz onde tem água parada com uma facilidade muito grande. Ele pode se reproduzir na piscina de uma cobertura do Morumbi ou numa caixa d´água nas periferias de São Paulo, onde a água encanada não chega. É o “caráter democrático” do mosquito. O que acontece é que quanto maior a aglomeração de pessoas, quanto maior o número de pessoas vivendo juntas em um mesmo espaço, seja em um bairro ou uma cidade, maior a possibilidade de o mosquito picar mais pessoas em um espaço menor de tempo. Portanto e obviamente, as grandes aglomerações populacionais estão mais sujeitas à doença. Ou seja, os lugares onde há mais pessoas compartilhando o mesmo espaço e em condições mais precárias de saneamento são os mais afetados pela dengue.

    Se olharmos um mapa da epidemia de dengue do ano passado no estado de São Paulo veremos que as regiões periféricas foram muito mais afetadas, uma vez que esse problema da falta de água é fundamental para o crescimento de uma epidemia de dengue. É obvio que afetou o estado como um todo, com o racionamento, mas afetou muito mais os lugares onde o fornecimento de água já não era tão bom e passou a inexistir, obrigando as pessoas a se deslocar por distâncias maiores para carregarem seus baldes de água. E é claro que não vão levar um ou dois baldes por dia, elas vão acumular a maior quantidade possível de água para suas residências disporem desse elemento fundamental para sua sobrevivência. Ao fazer isso, criam verdadeiras maternidades para o Aedes Aegypti.

    Soma-se a grande densidade populacional que existe nas periferias de São Paulo e temos uma grande crise de epidemia de dengue como a que houve na capital paulista. Resumindo: em um lugar onde o Estado não cumpre com sua responsabilidade de fornecer serviços de saneamento básico e abastecimento de água encanada regular, somado à uma grande densidade populacional, tem-se um ambiente propicio à eclosão de epidemias de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti.

    Correio da Cidadania: Pensando no caso paulista, o que poderia ser feito para amenizar o quadro, haja vista que a crise hídrica sofre uma invisibilidade midiática tremenda?

    Rodrigo Magalhães: O ideal era que não se chegasse a essa situação. Seria ideal que o serviço não só do estado de São Paulo, mas de todos os estados e do Governo Federal adotassem medidas preventivas para evitar que chegássemos à situação de epidemia. Como isso não foi realizado e como desde os anos 80 se criou uma tradição de se combater doenças apenas quando chegam ao seu pico máximo, ou seja, só se combate a dengue quando a epidemia está matando a torto e a direito, altamente disseminada, deixou-se chegar a essa situação. Agora não tem mais jeito. O único caminho, na minha opinião, é combater sem tréguas o mosquito Aedes Aegypti, onde quer que ele esteja.

    Não vamos conseguir, ainda, desenvolver uma vacina contra a dengue, e mesmo que conseguíssemos, vacina não combate epidemia. Ela previne, mas durante surtos epidêmicos não tem uma capacidade muito grande, uma vez que as pessoas já estão expostas ao vírus. Nesse contexto, onde não temos ainda uma vacina e vivemos um cotidiano de epidemia, o caminho realmente é combater o Aedes Aegypti e seus criadouros. A mídia e a propaganda governamental insistem em combater os criadouros, e isso é muito importante para impedir que o mosquito nasça. Mas e os mosquitos que já nasceram e estão voando por aí e picando as pessoas?

    É um trabalho sem trégua que deve ir nessas duas direções: combater os criadouros, tanto os residenciais com ajuda da população quanto os públicos que dependem de uma atuação do Estado, e fazer um trabalho de conscientização da população, que eu particularmente até acho bem feito, mas mantenho minha ressalva sobre a forma como a propaganda é feita, que dá a entender que a culpa é exclusivamente da população. É importante que o Estado reconheça seu papel e se insira, também, na tarefa.

    Correio da Cidadania: E como avaliar um novo ingrediente dessa conjuntura que são os mosquitos transgênicos? Isso pode trazer alguma situação de melhora nesse combate?

    Rodrigo Magalhães: O mosquito transgênico nasceu da ideia de se combater determinada doença sem eliminar toda uma espécie. Voltando no tempo, durante a campanha continental que eu estudei houve uma grande resistência de algumas categorias profissionais em relação a erradicar o mosquito, tendo em vista dois pontos: o primeiro que o mosquito ainda não estava devidamente estudado; o segundo por prejuízos ao meio ambiente ao erradicar uma espécie. Assim, desde os anos 60 sempre se procuraram outros caminhos no combate à crise, que não levassem à erradicação do Aedes Aegypti. Olhando por uma perspectiva histórica, nenhum dos caminhos propostos funcionou.

    Mais recentemente, tivemos duas tentativas: pesquisadores da Fiocruz inocularam uma bactéria que impede o mosquito de transmitir a doença. A outra é exatamente o mosquito transgênico, que está sendo implantado em Pernambuco, a fim de esterilizar e impedir que o mosquito, mesmo existindo, transmita a doença. Mas é apenas uma iniciativa, e somente uma possibilidade. Tem gente séria trabalhando nisso e a proposta merece ser olhada com atenção.

    No entanto, a questão do mosquito transgênico entra em discussão, assim como tudo que é transgênico: os estudos ainda são muito incipientes, são estudos que estão só começando e ainda não se tem uma medida de como afeta a saúde da população. Nesse caso, por exemplo, a picada do mosquito não irá mais transmitir a dengue, mas qual o potencial de essa picada transgênica no que se refere a outros danos à saúde humana? Não há ainda estudos conclusivos.

    É uma possibilidade e pode até funcionar em um contexto agudo de epidemia como o que estamos vivendo, mas na minha opinião não resolve o problema maior, que é a existência do Aedes Aegypti em um mundo que já mudou bastante. Nosso lixo é diferente do lixo dos anos 70, pois se degrada com menor rapidez, possibilitando um maior acúmulo. Tal acúmulo, por sua vez, leva a um acúmulo de água. É o cenário perfeito para a reprodução do Aedes Aegypti, enquanto o caminho é a eliminação dele.

    Segundo pesquisas recentes, o mosquito tem capacidade de transmitir mais de cem doenças e aqui ainda estamos lidando com apenas quatro delas: a febre amarela, dengue, zika e chikungunya, apenas quatro em um cenário de mais de cem doenças que o mosquito pode trazer. Em outras palavras, é uma espécie que traz um perigo muito grande para a humanidade, de modo que não há outro caminho. Desequilíbrio por desequilíbrio já existe. O próprio aumento de densidade do Aedes Aegypti está ligado ao extermínio dos seus predadores naturais que já não existem. É extremamente necessário combater esse mosquito e reduzir seu número em grande quantidade, ou até eliminá-lo.

    Correio da Cidadania: Como avaliar a maneira como a população lida com a situação no que se refere ao combate do mosquito vetor? Como que a recepção das notícias e informações sobre o tema têm afetado a população?

    Rodrigo Magalhães: Talvez esse seja o único ou um dos únicos lados positivos dessa epidemia. A propaganda massiva, o fato da epidemia estar na mídia, com alertas sobre os perigos nos jornais, televisões e etc.. isso vem para conscientizar a população sobre os cuidados que ela deve ter com a saúde pública. Então, vemos as pessoas muito mais preocupadas com os seus reservatórios domésticos de água, tomando medidas em suas residências e até no exterior delas: aqui no Rio de Janeiro a televisão tem mostrado pessoas que cuidam não só da sua residência mas também da rua onde moram.

    Nesse sentido, essa propaganda desesperadora e apocalíptica que tenta culpabilizar a população até que teve um efeito benéfico uma vez que a população se conscientizou do seu papel individual na melhoria das condições da saúde pública na sua localidade. Essa propaganda, mesmo com todas as críticas que possamos fazer à seu método, vem de certa forma despertando uma consciência de cidadania compartilhada onde a pessoa se enxerga como responsável pelo seu bem estar no que se refere à saúde pública. Isso é fundamental. O que não pode acontecer é que esse efeito sirva para retirar, como falei anteriormente, a responsabilidade do Estado. Isso não pode acontecer!

    É preciso sim que se incentive essas campanhas de conscientização, de redução de criadouros e tudo mais, sem que se esqueça da responsabilidade maior que é do poder público. Sobre o combate em si o que vemos observando é que esta campanha vem cumprindo um papel importante no combate ao Aedes Aegypti. Temos localidades onde a incidência de dengue, zika e chikungunya já vem diminuindo devido a esse trabalho de conscientização. Reitero: por mais importante que seja essa atuação popular, somente o trabalho feito nas residências não é suficiente para que consigamos sair dessa situação de epidemia que vivemos no momento.

    Correio da Cidadania: Quais as perspectivas para os próximos anos a respeito da erradicação tanto da epidemia, quanto do mosquito em si? Inclusive levando em consideração a recente “declaração de guerra” feita pelo Governo Federal contra o Aedes Aegypti?

    Rodrigo Magalhães: Estamos pagando o preço por décadas de abandono desse trabalho de combate ao mosquito. A recente declaração de guerra do Governo Federal ao mosquito é bastante bem vinda, ainda que tardia.

    Sendo assim, ainda vamos sofrer bastante com essas epidemias até que sua incidência se reduza e até que consigamos de fato combater e reduzir consideravelmente a população de Aedes Aegypti. Como já falamos, a situação atual vem acompanhada de uma complexidade muito maior do que a do período que eu estudei. O lixo que produzimos é diferente e o ambiente urbano é maior e mais complexo, portanto, hoje é muito mais difícil de se combater o Aedes Aegypti.

    Sempre me perguntam se eu acredito que podemos erradicar o mosquito novamente. Podemos conseguir, ou não, erradicá-lo. Nos anos 40 se tentou, não se conseguiu, mas houve um efeito benéfico para a saúde pública, que foi frear as epidemias urbanas de febre amarela. O que penso é que devemos recuperar esse norte: o objetivo tem que ser o de combater a espécie, onde quer que ela exista. Se vamos conseguir, é outra história. Porém, no caminho entre tomá-lo como meta e conseguir atingir o objetivo, tenho certeza que vamos chegar a uma série de sucessos no campo da saúde pública e um deles será, certamente, a redução e o controle dessas epidemias e doenças que estamos vivenciando hoje.

    A perspectiva para os próximos anos não é muito boa. Teremos dois anos até que a vacina para a dengue fique pronta, mais uns três anos para a vacina do zyka vírus ser elaborada, fora o período de testes. Assim, ainda estaremos mergulhados na epidemia. Mas, como disse anteriormente, vacina não combate epidemias, apenas as previne.

    Por um lado, o que me deixa um pouco pessimista é que se anteriormente, sob uma situação menos complexa, levamos 40 anos para erradicar o Aedes Aegypti, agora em 2016, quando nós decidimos novamente erradicá-lo em um cenário muito mais complexo, quanto tempo levaremos? Esse é o aspecto pessimista. Por outro lado, há um aspecto otimista: hoje em dia temos muito mais tecnologia, informação e comprometimento da população do que tínhamos nos anos 40 e 50.

    É importante equilibrar tanto o lado pessimista quanto o lado otimista, e já que ainda vamos sofrer um tempinho com essas epidemias, teremos de tomar nossos cuidados com repelentes e desmantelamento de criadouros, além de, principalmente, pressionar o poder público no sentido do combate ao Aedes Aegypti que ainda é um grande problema. Mesmo se tudo isso der certo, infelizmente ainda sofreremos um pouco até voltarmos a uma situação de normalidade no que se refere a tais doenças.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 27 de fevereiro de 2016

  • Abertura da saúde para capital estrangeiro ameaça princípios do SUS

    Abertura da saúde para capital estrangeiro ameaça princípios do SUS

    SUS-charge-DukeCobertura Universal de Saúde, um nome aparentemente inofensivo que oculta um plano perigoso de ajuste estrutural contra trabalhadores e usuários. No Brasil, tudo indica que essa proposta começou a ser posta em prática no apagar das luzes de 2014, quando a Câmara de Deputados aprovou a Medida Provisória 656 autorizando a entrada de capital estrangeiro no setor, antes proibida pela Lei 8.080/90.

    Faltam cerca de R$ 50 bilhões de reais por ano à saúde no Brasil¹. Nosso país gastou em média 9,2% do PIB com saúde entre 2000 e 2001, segundo os últimos dados publicados pelo Ministério da Saúde². É um valor baixo. Praticamente a metade do que investe os Estados Unidos e menos do que França e Alemanha. É baixo também em relação ao que estabelece a Constituição Federal de 1988 e os 12% do PIB propostos pela Emenda Constitucional Nº 29 — que a bancada do governo no Congresso não aceita porque exige a aprovação simultânea de um outro projeto definindo uma nova fonte de recursos para substituir a Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (a CPMF, que, aliás, enquanto vigorou, não foi destinada para a saúde). O problema é que a alegada falta de recursos públicos pode se converter em justificativa para o governo brasileiro ceder às pressões do setor privado, como vem defendendo o organismo das Nações Unidas (ONU) para a saúde, a OMS.

    Um forte indício de que as ideias privatizadoras defendidas pela OMS já andam circulando nos gabinetes de Brasília foi a aprovação, no final de dezembro de 2014, da MP 656. Segundo o texto aprovado, hospitais públicos e privados poderão abrir-se ao capital estrangeiro. Quer dizer, agora os hospitais brasileiros podem ser adquiridos por fundos privados estrangeiros que exploram o “negócio” da saúde mediante o lançamento de ações nas bolsas de valores de todo o mundo em busca de rendas elevadas, em negócios de risco. O que eles não dizem é que o maior risco é para a população usuária desses hospitais ou serviços.

    A inspiração da nova legislação brasileira deve ser buscada na sede da OMS, em Genebra, na Suíça, e seu projeto de Cobertura Universal de Saúde. A diretora-geral da Organização, Margaret Chan, diz que a proposta tem por objetivo dar proteção financeira aos mais pobres. Porém, especialistas brasileiros, como o Professor Luiz Facchini (UFPel), advertem que a proposta esconde atrás de si o entendimento de que o direito à saúde pública deve ser restringido. Essa também é a opinião da Associação Latino-Americana de Medicina (Alames) para quem a proposta de Cobertura Nacional da Saúde segmenta a população de acordo com seu poder aquisitivo, restringindo os investimentos públicos ao atendimento apenas da parcela mais vulnerável da população, deixando o restante da sociedade entregue a planos privados³.

    A adesão da OMS a uma proposta como a Cobertura Nacional da Saúde deve-se aos financiamentos de fundações privadas que a Organização depende para sobreviver desde o final dos anos 1990. Atualmente, cerca de 76% dos seus recursos provém de doações voluntárias deste tipo de fundação privada. Esse fato é o que explica a redução da liberdade da OMS para defender políticas equitativas de saúde, analisa o historiador Marcos Cueto, da Casa Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Além disso, a influência do Banco Mundial na OMS tem feito com que governos de países endividados aceitem a proposta como uma forma de obter recursos internacionais, indica o pesquisador.

    Há quem pense que privatizar a saúde pode ser uma solução para o subfinanciamento e para melhorar o atendimento de saúde oferecido pelo SUS à população. A realidade, porém, é outra. Em 2014, 54,3% dos recursos aplicados em saúde já foram privados, contra 45,7% que tiveram origem pública. Isso não representou melhora na prestação dos serviços em geral. Ao contrário, só neste mês de fevereiro de 2015, a Agência Nacional de Saúde suspendeu a comercialização de 70 planos de saúde privados por descumprimento de prazos máximos para atendimento ou negativas indevidas de coberturas.

    Por isso, os trabalhadores da saúde e a sociedade em geral que, em Junho de 2013, clamaram por uma saúde Padrão FIFA devem estar alertas para esse risco de mais um ataque ao SUS, agora disfarçado de ajuda aos mais pobres. A Cobertura Nacional da Saúde e a abertura do setor ao capital estrangeiro são, na verdade, uma estratégia das grandes empresas privadas do setor farmacêutico e das gestoras de fundos de investimentos de elevação de seus lucros explorando a saúde da população. E nisso estão sendo apoiadas pela OMS e encontrando representantes eficientes no governo e no Congresso brasileiros. Aliados, os políticos e empresários do setor querem excluir grande parte da população do seu direito inalienável à saúde garantido pela Constituição brasileira e pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade que fazem do SUS um sistema com bases democráticas pelos quais é preciso lutar para preservar e ampliar.

    ¹ Fonte: A informação é do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em entrevista ao Valor Econômico Setorial Saúde, publicada em agosto de 2014.
    ² Fonte: World Health Statistics, 2014.
    ³ Ver reportagem especial publicada pelo jornal Brasil de Fato, edição dos dias 11 a 17 de dezembro de 2014.

    Carla Ferreira é jornalista, Dra. em História e vice-coordenadora do Núcleo de História Econômica da Dependência Latina-Americana – HEDLA/UFRGS

  • O aborto no Brasil é uma realidade

    O aborto no Brasil é uma realidade

    aborto“Aborto só será votado passando por cima do meu cadáver”, afirmou Eduardo Cunha. Ao que parece, o presidente da Câmara não se incomoda em passar por cima do cadáver de milhares de mulheres. A cada dois dias, uma mulher morre em decorrência de abortos clandestinos feitos em condições desumanas.

    Mais da metade das mulheres vítimas de procedimentos inseguros é negra e pobre. Segundo dados da Organização Mundial de saúde, o risco de morte para mulheres pobres, que fazem abortos em clínicas clandestinas inseguras, é multiplicado por mil.

    São 850 mil abortos realizados por ano no Brasil. Não adianta ignorar os números. Na prática, a proibição não evita o aborto, mas arrisca a vida de mulheres que não podem pagar por um procedimento seguro. E reacende uma discussão muito relevante para o feminismo: pode o Estado legislar sobre o corpo das mulheres?

    É preciso fazer este debate partindo de algumas premissas objetivas: (1) o número de abortos realizados por ano no Brasil (2) o número de mortes em decorrência de abortos inseguros. Essas premissas garantem que a discussão seja feita no campo político e não no campo moral ou religioso. Vale lembrar que o fundamento religioso para redução do direito de escolhas compromete o Estado Laico e a cidadania das mulheres.

    Não é possível ser “pró-vida” e cruzar os braços diante de um número alarmante de mortes. Ou será que essas mortes incomodam menos por um perverso esquema de valoração da vida, que reduz a importância da morte de mulheres negras e pobres?

    Esse debate, feito no campo político, será o requisito para que todas as mulheres tenham igualdades de condições para decidir livremente sobre seus corpos.