Categoria: Segurança Pessoal e Direitos Humanos

  • Jovens negros e pobres são maioria entre vítimas de chacinas

    Jovens negros e pobres são maioria entre vítimas de chacinas

    chacinasSão Paulo, 01/10/2015 (Agência Brasil) – Por volta das 23h do dia 18 de abril deste ano, três pessoas armadas entraram na sede da torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9), na zona oeste da capital, logo após um churrasco. Doze torcedores ainda estavam no local. Quatro deles conseguiram fugir, mas os demais foram obrigados a se ajoelhar e a deitar no chão. Todos foram executados. Sete morreram no local. A oitava vítima chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital.

    Todas as vítimas dessa chacina tinham entre 19 e 38 anos. Em entrevista à Agência Brasil, o parente de um dos torcedores assassinados, que pediu para não ser identificado por medo de retaliação, disse que o jovem era estudante e trabalhador.

    “Não tinha nenhum tipo de vício. A única coisa que ele gostava de fazer era torcer para um time de futebol”, disse. O jovem assassinado também não tinha passagem pela polícia. “E mesmo que eles [as vítimas] não estivessem trabalhando ou que estivessem fazendo bico. A coisa é o seguinte: por que está desempregado tem que morrer? Por que já passou pela polícia tem que morrer? E esses 19 que foram mortos lá em Osasco e que nem passagem tinham?”, questionou.

    A maioria das vítimas das chacinas ocorridas em São Paulo é jovem e mora na periferia, segundo representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e da Defensoria Pública de São Paulo ouvidos pela Agência Brasil. Na chacina de Carapicuíba, por exemplo, ocorrida no dia 19 de setembro, três dos quatro mortos tinham menos de 18 anos: dois deles tinham 16 e um, 17 anos. Já nas chacinas de Osasco e de Barueri, do dia 13 de agosto, as vítimas tinham entre 15 e 41 anos.

    “Existe um estereótipo. Geralmente [as vítimas] são pobres, de cor negra e jovens. E tem também estereótipo de linguagem e de comportamento coletivo. Isso tem chamado muito a atenção: a padronização da vítima”, disse Rildo Marques, presidente do Condepe.

    São Paulo registra 15 chacinas este ano; número já é igual ao de 2014

    O número de chacinas – ocorrências com mais de três mortes – no estado de São Paulo este ano já se iguala à quantidade registrada em todo o ano passado. Um balanço feito pela Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo e obtido pela Agência Brasil mostra que, até a última terça-feira (22), foram registradas 15 chacinas, com 62 mortes. Em 2014, foram 15 chacinas, com 64 vítimas.

    Este ano ocorreram ainda 120 assassinatos registrados nos boletins de ocorrência como crimes de autoria desconhecida – forma com que a polícia nomeia casos de homicídios com menos de três vítimas. De acordo com o ouvidor Julio Cesar Fernandes Neves, na maior parte dos casos, há indícios de execução. Em 2014, ocorreram 183 crimes de autoria desconhecida com 200 mortes.

    “Em Osasco falaram em 19 [assassinatos] na chacina. Mas tivemos mortes por autoria desconhecida de cinco pessoas, entre a morte de Ademilson Pereira de Oliveira [policial militar] e a chacina propriamente dita [que pode ter ocorrido como vingança pela morte do policial], que eles não contabilizaram por ser autoria desconhecida, mas o modus operandi é o mesmo: tiro no rosto, no tórax, na cabeça”, disse, se referindo à chacina ocorrida no dia 13 de agosto.

    “Com as autorias desconhecidas, você nunca fica sabendo quem é o autor. A polícia nega veementemente participar disso. Então sobra para quem? É como se fossem da bandidagem. Ficam casos que não elencamos naquela letalidade policial porque não fica definitivamente claro que foi [provocada por] policial militar”, disse o ouvidor.

    Outro dado preocupante, de acordo com Neves, é o número de mortes ocorridas em confrontos com a polícia. No ano passado, foram 838 mortes. “Isso significa que foram mortos por agentes da polícia. É impossível, com 838 mortes, pensar que não existem grupos [organizados] como o do Butantã [episódio em que câmeras flagraram policiais matando um suspeito de roubo já rendido e jogando um segundo suspeito do telhado, desarmado]”, disse o ouvidor em entrevista à Agência Brasil.

    Neste ano, já foram contabilizadas 571 mortes em confrontos com a polícia. Os números da Ouvidoria têm como base os dados informados pela Secretaria de Segurança Pública e pela Corregedoria, já somados os casos de agosto. “É um número altíssimo”, ressaltou o ouvidor. “Como no ano passado tivemos 838 [mortes], significa que estamos no mesmo patamar”, afirmou.

    Outros números

    Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública faz comparações diferentes e fala em redução dos homicídios múltiplos. “Na capital foram 43 casos em 2002 contra sete no primeiro semestre de 2015”, disse o órgão. A secretaria contesta ainda a informação de aumento do número de mortes causadas por policiais. “A adoção de medidas para reduzir a letalidade policial pela Secretaria de Segurança Pública resultou na redução de 15% nas mortes decorrentes de intervenção policial militar de abril a julho deste ano, na comparação com o mesmo período do ano passado”, informou a nota.

    Segundo a secretaria, isso ocorreu após a adoção de uma resolução (SSP 40/2015) que “garante maior eficácia nas investigações de mortes, pois determina o inédito comparecimento das Corregedorias e dos comandantes da região, além de equipes específicas do Instituto Médico-Legal (IML) e do Instituto de Criminalística (IC) para melhor preservação do local dos fatos e eficiência inicial das investigações”. Além disso, acrescentou o órgão, foi criado o Conselho Integrado de Planejamento e Gestão Estratégica “para coordenar as ações policiais e integrar os sistemas de inteligência das polícias, além de propor medidas para controle da letalidade policial”.

    Em entrevista coletiva concedida na última sexta-feira (25), o secretário de Segurança Pública do estado, Alexandre de Moraes, negou que o número de chacinas esteja crescendo e que isso seja uma tendência.

    Sociedade civil

    Os números divulgados pela Ouvidoria são semelhantes aos de um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, elaborado com base em informações obtidas, por meio da Lei de Acesso à Informação, na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

    De acordo com a organização, no primeiro semestre deste ano, foram registradas 12 chacinas com 44 vítimas no estado de São Paulo – estão fora desse cálculo as chacinas de Osasco e Barueri, de 13 de agosto, e a de Carapicuíba, ocorrida no dia 19 de setembro. Do total de ocorrências do primeiro semestre, seis foram na capital, somando 26 vítimas. No mesmo período do ano passado, foram contabilizadas 13 chacinas com 40 vítimas – três desses episódios foram na capital, com nove vítimas.

    “O número de chacinas, especificamente na capital, neste primeiro semestre de 2015, dobrou. Outro dado bastante preocupante é que o número de vítimas, também na capital, triplicou”, disse Bruno Langeani, coordenador do Sou da Paz.

    Segundo ele, não é possível determinar o motivo do crescimento do número de chacinas na capital. “De qualquer maneira, esse dado preocupa porque se a gente olhar para além das chacinas, houve um aumento também do número de homicídios onde há indícios de execução, que é um tipo de informação que a Secretaria de Segurança Pública passou a divulgar há pouco tempo”, afirmou Langeani.

    Entre janeiro e junho deste ano, 24% do total de homicídios da cidade de São Paulo tiveram indícios de execução, ou seja, uma em cada quatro vítimas de assassinatos foi executada. No ano passado, essa taxa era de 16%. “Isso mostra um crescimento bastante grande. E combinado com essa informação das chacinas, sugerem a existência de grupos de extermínio ou de matadores em ação”, acrescentou Langeani.

    A ideia da existência de grupos de extermínio atuando no estado é contestada pela secretaria. “A SSP refuta a tese de grupo de extermínio nas corporações”, informou o órgão.

    Sociedade civil e parentes de vítimas pedem que PF investigue chacinas

    A demora na investigação e, muitas vezes, a falta de punição dos responsáveis pelas chacinas preocupa os parentes das vítimas e os movimentos sociais e de direitos humanos. Para eles, uma possível solução seria convocar a Polícia Federal para auxiliar nas investigações desse tipo de crime no estado de São Paulo.

    Na semana passada, movimentos sociais se reuniram na sede do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), no centro da capital paulista, para discutir uma forma de pressionar o governo de São Paulo na responsabilização das chacinas ocorridas no estado. O pedido de ajuda à PF para resolução desses crimes foi uma das medidas propostas.

    “A ideia é que isso [encontro] se transforme em uma articulação permanente no estado de São Paulo para lutar por uma reforma da polícia, uma nova política de segurança e pelo fim do extermínio da juventude negra, pela mudança da postura da polícia e, principalmente, para que os crimes sejam investigados pela Polícia Federal porque os dados mostram um crescimento alarmante [das chacinas] e esses crimes têm ficado impunes”, disse Julian Rodrigues, coordenador de formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). “Queremos pressionar o Ministério Público e o próprio Judiciário, que não podem ser complacentes com essa política de extermínio”, completou.

    Segundo Rodrigues, os movimentos cogitam pedir a federalização das investigações. “Isso exige que o procurador-geral da República acione o Superior Tribunal de Justiça para que as investigações saiam do âmbito do estado de São Paulo e sigam para âmbito federal. Não é algo simples de fazer, é burocrático e precisa ser comprovada negligência do governo estadual, que a gente sabe que existe, mas que é difícil de ser aceita e comprovada pelos órgãos superiores de justiça e pela procuradoria da República”, disse o coordenador do MNDH.

    Líder do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, também defendeu a medida. “Temos que pedir intervenção federal porque estão morrendo brasileiros no estado de São Paulo”, pediu durante a reunião.

    “Compreendemos e achamos salutar para o governo de São Paulo que isso seja investigado por todas as polícias, não só pela Corregedoria [Polícia Militar] nem só pela Polícia Civil de São Paulo que possui um grau de competência para isso, mas que pudéssemos federalizar essas investigações porque quanto mais instituições investigando isso, maior é a possibilidade e oportunidade que temos de esclarecer”, ressaltou Rildo Marques, presidente do Condepe.

    A preocupação das famílias também é demonstrada pelo Escritório para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh).

    Em setembro deste ano, logo após a divulgação de vídeos em que dois suspeitos de roubo foram rendidos, revistados e depois mortos por policiais militares (um deles foi arremessado do telhado em uma casa no bairro do Butantã, na zona oeste da capital paulista), o órgão se manifestou por meio de nota e pediu que o fato seja investigado exaustiva e imparcialmente.

    “É essencial que as execuções extrajudiciais sejam investigadas por um órgão independente da Polícia Militar de São Paulo. Só assim se pode evitar que os responsáveis fiquem na impunidade”, disse Amerigo Incalcaterra, representante do Acnudh para a América do Sul.

    “Esse tipo de fato recorrente evidenciaria uma cultura institucional de violência e impunidade nas polícias. Por isso, chamo as autoridades a revisar a doutrina e o funcionamento das forças de segurança do país, além de investigar, julgar e sancionar os responsáveis por estas condutas”, acrescentou Incalcaterra, que solicitou ainda que os policiais sejam treinados a agir segundo os protocolos internacionais de respeito aos direitos humanos.

    Crítica às investigações

    Um parente de uma das oito vítimas da chacina na sede da torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9), ocorrida em abril deste ano, reclamou da atuação da polícia e do Ministério Público na investigação do caso. Até o momento, um policial e um ex-policial estão presos e estão sendo julgados pelas mortes, mas um terceiro suspeito ainda não foi identificado oficialmente.

    “Num primeiro momento, eles [as vítimas] não estavam na rua. Eles estavam dentro de uma sede com CNPJ. Ali houve uma chacina deliberada onde a polícia acusou duas pessoas porque as testemunhas disseram que entraram três pessoas lá e atiraram. Dois deles foram identificados e estão presos, mas existe um terceiro que a polícia até agora não pegou porque disse que não existem provas e porque as testemunhas não querem falar. Se não tem testemunha, a polícia não tem dado técnico? Onde está o acompanhamento disso? Cadê o Ministério Público (MP)?”, reclamou o parente que pediu para não ser identificado com medo de retaliação. “Tem justiceiro e o Estado não quer assumir. Por que então não colocam a Polícia Federal para investigar?”, questiona.

    A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque, que também acompanha o caso, reclama que, muitas vezes, ao se identificar um dos autores da chacina, os demais suspeitos são esquecidos ou ignorados na investigação. “Quando se identifica um ou dois, a investigação perde força para encontrar os outros [responsáveis]. Isso foi o que aconteceu na chacina da Pavilhão 9. Encontrou-se um PM e um ex-PM e ambos estão presos, e há notícias, sem dúvida, do envolvimento de pelo menos mais uma pessoa e agora fica meio de escanteio”, critica.

    Outro problema, acrescentou a defensora, diz respeito à própria legislação penal do país que só condena indivíduos e não o Estado que, em sua visão, deveria ser responsabilizado pelas chacinas praticadas por policiais. “Quem está no processo penal no banco dos réus é o indivíduo, não o Estado. E aí a tendência é sempre analisar o caso concreto quando, na verdade, se tem um problema crônico e seria necessário fazer um enlace, como se fosse uma grande investigação entre todos os casos”, disse.

    “Teve uma chacina em Sapopemba, no primeiro semestre de 2014, na Favela da Ilha, e lá colhi relatos de que uma Hyundai HB20 teria sido usada pelos matadores. Coincidentemente ou não, uma HB20 também foi usada na chacina da Pavilhão 9. Poderia se tratar do mesmo ou dos mesmos autores? Só saberíamos isso juntando e unindo as investigações”, exemplificou.

    O caso do Pavilhão 9 é acompanhado pelo promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo, cuja atuação é criticada por movimentos sociais e pelos parentes das vítimas. Zagallo também ficará responsável pela investigação das mortes de dois suspeitos de roubo no Butantã em que câmeras flagraram policiais forjando as mortes e até arremessando um deles do telhado.

    “Ele é um dos responsáveis por atuar na área dos fatos e o caso foi distribuído a ele”, disse Everton Luiz Zanella, promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de São Paulo, em resposta aos questionamentos da Agência Brasil.

    Segundo ele, os inquéritos policiais de chacinas são sempre acompanhados por um promotor. “No caso de Osasco, há uma força-tarefa constituída para acompanhar o caso. Vale mencionar que o MP assinou neste ano dois termos de cooperação – um com o Condepe e outro com a prefeitura de São Paulo – para receber informações acerca de mortes que envolvam agentes do Estado”, disse.

    Sobre as críticas feitas à atuação do órgão nos casos referentes às chacinas, Zanella respondeu que esse tipo de investigação “é bastante complicado, especialmente pelo medo das testemunhas em dar informações”.

    “Entendemos o lado das famílias e estamos sempre à disposição para atendê-las. É conveniente mencionar que o MP tem um termo de cooperação com o Centro de Referência e Apoio a Vítima [Cravi] para atendimento diário às vítimas de violência. O Cravi funciona no Fórum da Barra Funda e diariamente há um promotor de plantão para atender a vítimas e familiares. De qualquer forma, é evidente que toda atuação pode melhorar e o MP está sempre buscando a otimização de sua atuação”, disse.

    Já a Secretaria de Segurança Pública, por meio de nota, disse que um policial militar foi preso, na última quinta (24), pela morte de quatro entregadores de pizza no caso da chacina de Carapicuíba, “como consequência das investigações”. Ainda segundo a secretaria, os crimes em Osasco e Barueri estão com investigações avançadas, que tramitam em segredo de Justiça.

    Em entrevista coletiva concedida na semana passada, o secretário de Segurança Pública do estado, Alexandre de Moraes, disse que apresentará em breve uma conclusão sobre as chacinas de Osasco e de Barueri. “A investigação de Osasco e Barueri é absoluta prioridade do governo do estado de São Paulo. Agora, não confundam pressa com prioridade. Não temos pressa. Temos prioridade, porque é um assunto importante e que envolveu diversas vidas. Nós vamos resolver isso”, disse. Até o momento, apenas um policial militar foi preso acusado de participação nas mortes ocorridas em Osasco e Barueri.

    “Estamos fazendo uma investigação técnica, baseada em uma metodologia importantíssima, que vai levar importantes resultados ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Não queremos agir com pressa simplesmente para dizer que temos um resultado. É prioridade, não pressa”, acrescentou o secretário.

    Procurado pela Agência Brasil, o governo de São Paulo não se pronunciou, até o momento, sobre o pedido de ajuda à Polícia Federal nas investigações. Já a Secretaria de Segurança Pública disse que não iria se pronunciar sobre o pedido feito pelas famílias e por movimentos sociais. O Ministério da Justiça respondeu que esses “crimes são de competência da polícia estadual”.

    Especialistas acreditam que chacinas são praticadas por grupos formados por PMs

    Na madrugada do dia 19 de setembro, quatro jovens entregadores de pizza foram mortos em frente ao estabelecimento comercial em que trabalhavam, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Na quinta-feira (24), um policial militar foi preso acusado pelas mortes.

    Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o policial Douglas Gomes, que está no Presídio Romão Gomes, teria se vingado de um roubo em que esses jovens teriam agredido a sua esposa. Na casa de um dos entregadores de pizza foi encontrada a bolsa da mulher do policial, que havia sido roubada. Na residência do policial foi encontrada uma pistola e um revólver calibre 38. Os jovens já eram investigados pela polícia por roubos na região.

    Essa foi a terceira vez, este ano, que um policial militar foi preso por participação em chacinas. Antes da de Carapicuíba, um policial foi preso por ter participado da ação que resultou em 19 mortes em Osasco e Barueri. Um policial e um ex-PM foram presos e estão sendo julgados pela morte de oito pessoas na sede de uma torcida organizada do Corinthians (Pavilhão 9). Também houve suspeita de participação de policiais em chacinas ocorridas em janeiro deste ano em Mogi das Cruzes (Grande São Paulo); em fevereiro, na Vila Jacuí; em abril, no Jaçanã, e em julho, no Jardim São Luiz, todos na capital.

    “Tem justiceiro e o Estado não quer assumir”, diz o parente de uma das oito vítimas da chacina na Pavilhão 9 que pediu para não ser identificado. “Se [os executores] não tivessem se apresentado como policiais, eles [as vítimas] iriam para cima. Não iam acatar a ordem de ajoelhar e colocar a mão na cabeça. Se eu sei que vou morrer, vou para cima do cara”, disse, fazendo questão de ressaltar que, apesar de policiais terem sido presos por esse crime, não se pode generalizar, já que “tem muita gente boa na polícia”.

    Especialista em segurança pública, Guaracy Mingardi diz não ter dúvidas da existência de grupos de extermínio.

    “Nos tempos áureos dos homicídios, anos atrás em São Paulo, havia dois tipos de chacinas: as que eram praticadas por uma briga por ponto de drogas e as que eram cometidas por grupos de extermínio”, disse.

    “O número de disputas por pontos de droga caiu radicalmente por causa do PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa que age nos presídios paulistas], que tomou conta de boa parte do mercado. As chacinas que sobram, normalmente, são praticadas por grupos de extermínio que envolvem algum agente público, no caso, policial. Não que todas sejam, mas a maior parte é. Os casos que têm sido resolvidos nos últimos anos indicam isso”, completou Mingardi, ex-subsecretário nacional de Segurança Pública e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    Segundo o especialista, São Paulo “foi a terra da chacina” na década de 90. “As chacinas caíram com relação àquele período. Tivemos anos com pouquíssimas chacinas, mas elas estão voltando agora”, destacou.

    Modo de operação

    Doutora em sociologia e professora da Universidade Federal do ABC, Camila Nunes Dias disse que as chacinas registradas no estado apresentam algumas características que reduzem a possibilidade de que sejam praticadas por criminosos “comuns”.

    “Não apenas porque no caso de Osasco – e muitos outros similares – já se reconhece oficialmente a participação de policiais militares, mas o modus operandi é bastante típico também, de crimes cometidos por grupos de extermínio que, comumente, contam com a participação de agentes públicos”, disse Camila, autora do livro PCC: Hegemonia nas prisões e monopólio da violência, resultado de cinco anos de pesquisa e de entrevista com integrantes e ex-integrantes do PCC.

    De acordo com ela, há um claro padrão nas chacinas ocorridas recentemente no estado de São Paulo: “a chegada de várias pessoas em uma ou mais motos ou em um ou mais carros, a utilização de capuz ou outras formas de esconder o rosto, a rendição das vítimas em alguns casos, colocando-as de costas para a parede, de joelhos ou atirando na cabeça, simplesmente”.

    Ainda segundo ela, essa forma de agir é bastante comum a policiais militares. “Há uma forma de empunhar a arma, de abordar, de se aproximar que são bastante típicas, conforme foi apontado por especialistas da própria PM”, enfatizou.

    Ela também destaca que esse tipo de abordagem é diferente do modo de operar do PCC.

    “Quando é o PCC, há uma espécie de julgamento primeiro, o chamado ‘debate’. Quando isso ocorre, evidentemente, as vítimas não são pegas de surpresa. Elas já estão sequestradas nas mãos dos criminosos. Nesses casos, o ‘julgamento’ e a execução não ocorrem em locais públicos, e sim em locais de difícil acesso – tanto para dificultar a localização pela polícia, como para impedir que a violência seja testemunhada pelos moradores do bairro”, afirmou.

    “O PCC busca uma certa legitimação de seu poder nos bairros onde atua e, neste sentido, busca sempre – ou sempre que possível – esconder ou camuflar o uso da violência física, essencialmente, o homicídio”, disse a professora, destacando que as vítimas do grupo criminoso costumam ter um perfil específico – delatores, acusados ou suspeitos de crimes sexuais ou contra crianças, devedores e agentes de segurança são alguns exemplos.

    Segundo Luiz Carlos dos Santos, conselheiro e relator da comissão de violência policial do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), o órgão analisa atualmente 21 casos de chacinas no estado. E, nestes casos, não houve qualquer dado que apontasse a participação do PCC como autor das chacinas.

    Para ativistas e especialistas, há muitos indícios de participação de policiais militares nesse tipo de crime.

    “Outra questão do modo de operação padronizado são as perguntas que são feitas às vítimas, tais como se elas têm passagem, se estão envolvidos com algum crime ou se portam alguma coisa ilegal. Esse é um padrão da Polícia Militar ostensiva. Há ainda a questão do armamento. Os tiros sempre na região de alta letalidade, na cabeça ou região torácica, efetivamente para matar”, disse Rildo Marques, presidente do Condepe.

    A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque também destaca pontos que levam à conclusão de participação de agentes do Estado nas chacinas.

    “Um indicativo é que, após um entrevero envolvendo um policial, um roubo ou uma morte de um policial na área, existem várias mortes ou homicídios múltiplos, como se fosse um recado, perdemos um, vocês perdem muito mais. Em geral há um revide quantitativo, em maior número. A esmo, como uma política de imposição de medo”, acrescentou a defensora.

    Vingança

    Muitas chacinas ocorridas em São Paulo desde o ano de 2006 apresentam um fator em comum: são registradas após a morte de um policial.

    “Vale lembrar que, em 2006, em resposta aos ataques promovidos pelo PCC aos agentes de segurança que vitimaram cerca de 80 policiais, houve uma reação da Polícia Militar paulista e o saldo de vítimas em uma semana chegou a quase 500. De lá para cá, parece que se produziu uma dinâmica bem típica: execuções sumárias, com múltiplas vítimas, ocorridas na mesma região e pouco tempo depois do assassinato de um policial”, disse a professora Camila Nunes.

    As chacinas deste ano no Jardim São Luiz, no Jaçanã, e em Osasco, exemplificou Rildo Marques, presidente do Condepe, foram todas precedidas da morte de um policial. “Imaginávamos que estava explícita uma ideia de revide por parte de seus colegas da corporação. Isso não é uma certeza, mas é o que imaginamos como uma das causas”, disse.

    “Há também uma certa ideia de controle de território feita de maneira ilícita por meio de interesse de negócios. Não nos parece que esse revide ou revanche seja gratuito. Parece que há a defesa de interesse de negócios ocultos e isso merece uma investigação profunda por parte das autoridades de São Paulo”, completou Marques.

    Documento da Corregedoria da Polícia Militar sobre a investigação das 19 mortes ocorridas em Osasco e Barueri, obtido pela Agência Brasil, traz vários episódios que apontam para a participação de policiais militares nos crimes. Uma das vítimas, Rafael Nunes de Oliveira, morto na Rua Moacir Sales D’Avila, em Osasco, no dia 13 de agosto, teve seu veículo apreendido por policiais militares um mês antes de ser assassinado. Ele portava um cigarro de maconha. Em uma outra ocorrência, Rafael enfrentou uma situação de conflito com policiais e foi agredido.

    Pelos registros, uma das conclusões do documento é que se trata de “um grupo organizado para a prática de crimes de homicídios com clara intenção de vingança”.

    Em entrevista à Agência Brasil esta semana, o ouvidor das Polícias, Julio Cesar Fernandes Neves, preferiu não usar o termo grupo de extermínio, mas admitiu a existência de grupos organizados com participação de agentes públicos atuando em chacinas.

    “Na nossa legislação não tem essa capitulação de grupo de extermínio, mas está no Código Penal como quadrilha, com mais de três [pessoas] que se organizam para cometer crimes, no caso, o crime de homicídio. Existem grupos organizados para cometer crimes de homicídio. Tem gente que interpreta como grupos de extermínio”, disse.

    A existência de grupos de extermínio que tenham policiais entre seus integrantes não é admitida pela Secretaria de Segurança Pública (SSP).

    “A SSP refuta a tese de grupo de extermínio nas corporações. Essa declaração foi feita pelo ouvidor sem nenhum embasamento. Os casos recentes da Grande SP não têm relação. Os crimes em Osasco e Barueri estão com investigações avançadas pela força-tarefa, que tramitam em segredo de Justiça. Tanto esse caso quanto o de Carapicuíba já tem prisão do autor, como consequência das investigações”, disse a secretaria em nota.

    Em entrevista recente a meios de comunicação, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, também refutou a existência de grupos de extermínio. Segundo ele, o que existe são “maus policiais”.

    Na última sexta-feira (25), o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse que os excessos cometidos por policiais, quando comprovados, serão punidos pelo órgão. “Os desvios estão sendo analisados, investigados e serão punidos disciplinarmente por parte da Secretaria de Segurança e criminalmente por parte da Justiça.”

    A Polícia Militar também foi procurada para comentar a suspeita da existência de grupos de extermínio dentro da corporação, mas, até o momento, não respondeu à solicitação feita pela reportagem.

    Investigação e punição são armas para combate a chacinas, dizem especialistas

    Especialistas em segurança pública defendem que investigações bem-feitas e a punição dos executores são as respostas necessárias para combater o aumento do número de chacinas no estado de São Paulo.

    “Tem que investigar e prender”, defende Guaracy Mingardi, ex-subsecretário nacional de segurança pública e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A única resposta para esse tipo de homicídio é prioridade absoluta para a prisão dos matadores”, completou.

    A defensora pública Daniela Skromov também acredita na punição e em uma investigação bem elaborada como maneiras de reduzir o número de chacinas. Ela ressalta, entretanto, que é preciso evidenciar os casos, torná-los mais conhecidos, e reconhecer que a Polícia Militar pode ser parte do problema.

    “Mais do que a punição em si, o fato é que os casos não vêm à tona. Não acho que a cadeia iria dissuadir os policiais a fazerem isso. Mas acredito que, se as investigações fossem mais bem-feitas e revelassem as autorias e ficasse mais clara a participação de policiais militares e que isso acontece de maneira sistêmica, isso poderia auxiliar no estabelecimento de medidas para evitar novas chacinas. Isso iria na contra-corrente da negação. Na medida em que se trata como um caso de excesso de alguns maus policiais, você não resolve a base”, destacou.

    Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves também defende a investigação como forma de evitar mais chacinas. “Precisa de uma elucidação geral para que fique claro até para esses executores que eles estão indo para uma situação sem volta, que está acabando com a vida deles. Eles estão achando que estão fazendo justiça com as próprias mãos e estão acabando com sua vida profissional, pessoal e até familiar”, disse.

    Coordenador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani defende ainda que os locais dos crimes sejam preservados para auxiliar nas investigações. “Se você consegue identificar e tirar de circulação os autores dessas chacinas, em geral, você tem um impacto bastante relevante em próximas ocorrências”, disse.

    Segundo ele, São Paulo foi palco de muitas chacinas na década de 90 e isso acabou sendo reduzido nas décadas seguintes com mais investimentos na elucidação desses crimes.

    “Na época houve um investimento forte, uma priorização de recursos para o esclarecimento desses crimes. Então, é preciso uma atuação muito forte do DHPP [Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa] para esclarecer os casos e tirar de circulação esses grupos de extermínio. Atualmente seria necessário repetir essa mesma prática e aumentar os recursos para o esclarecimento desse tipo de crime”.

    Para diminuir a letalidade policial e a participação de policiais em chacinas, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, disse em entrevista coletiva na semana passada, que é preciso melhorar a formação dos policiais e dar rapidez à investigação e à punição aos criminosos.

    “Temos que diminuir qualquer possibilidade de participação de policiais em atividades criminosas. Temos que realizar três atitudes. Melhorar a seleção de policiais e melhorar o ingresso, e isso vem sendo feito ano a ano. O segundo ponto é aprimorar a fiscalização desses policiais, daqueles que atuam na rua. E o terceiro ponto é transparência total e rapidez no caso daqueles policiais que praticam crimes, daqueles bandidos que momentaneamente estão de fardas, para expulsá-los da corporação e encaminhar à Justiça”, disse o secretário.

    Segundo ele, os policiais que cometerem excessos serão punidos pela corporação. “Absolutamente todo policial que tiver praticado qualquer ilícito, não só homicídio, que é o mais grave, mas qualquer ilícito, vai ser punido e expulso da corporação e vamos encaminhar o pedido de prisão à Justiça. É assim que se deve atuar”, ressaltou o secretário.

    Segundo a Secretaria de Segurança Pública, quando constatada a prática de crime ou quando há a suspeita fundamentada, os agentes são afastados. De acordo com o órgão, nos primeiros sete meses deste ano, 131 policiais foram presos e 141, demitidos ou expulsos da corporação.

    Coordenador de formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Julian Rodrigues defende mais discussões acerca da desmilitarização da polícia em todo o país. “Precisamos discutir a mudança da formação, do ingresso e dos currículos, uma carreira para os policiais, com bons salários e uma outra cultura. A polícia não é para matar. A polícia só atira para matar em último caso. Ela tem que fazer a contenção, a investigação e a prevenção”, afirmou.

    Elaine Patricia Cruz é repórter da Agência Brasil

  • ‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’

    ‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’

    Rafael Braga
    Rafael Braga

    Um dos casos mais emblemáticos dentre todas as prisões políticas presenciadas pela sociedade brasileira a partir das manifestações de junho de 2013 é o de Rafael Braga, preso no Rio de Janeiro por portar um frasco de pinho sol enquanto vagava pelas ruas da cidade em um dos dias de manifestação popular. Talvez o único preso sem vinculo político com os protestos, Rafael recebeu a maior condenação, 5 anos de reclusão. Agora que seu caso chegou ao STF, entrevistamos João Henrique Tristão, advogado da ONG Defensores dos Direitos Humanos, que defende Rafael.

    “Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima do material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre”, explicou Tristão.

    Em sua visão, o caso de Rafael Braga simboliza bem como o Estado brasileiro “adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo”, o que explica como as reivindicações de caráter social que marcaram diversos protestos são bloqueadas por todas as instâncias de poder constituído.

    “Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras”, criticou.

    A entrevista com João Henrique Tristão, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: Além dos ativistas de diversos locais processados pelas instituições de Estado após as históricas manifestações de junho de 2013, chamou atenção o caso de Rafael Braga, preso por portar pinho sol próximo a uma manifestação no Rio de Janeiro. O que você tem a contar do caso e o que espera do STF, que agora tem o processo em mãos?

    João Henrique Tristão: O caso do Rafael Braga é um dos que revelam de forma patente a seletividade sob a qual atua o sistema penal e como é a política criminal, em especial o judiciário, o Ministério Público e todas as agências de poder constituídas. O Rafael, como todos sabem, é um jovem negro, pobre, que na época de sua prisão estava em situação de rua. Foi preso num dos dias das manifestações das jornadas de junho, próximo da avenida Presidente Vargas e da Central do Brasil, perto de onde se recolhia. Portava materiais de limpeza, pinho sol e outro desinfetante, e foi pinçado pela polícia que patrulhava a região. Pegaram-no e aduziram que estava causando tumultuando, conduzindo-o à delegacia de forma arbitrária. Posteriormente, segundo o próprio Rafael Braga relatou, apareceu um material já manejado, depois de sua prisão, que foi introduzido no sentido de qualificar aquilo como possível artefato explosivo, tudo à sua revelia.

    Malgrado a atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob tal manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima deste material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo, digamos assim. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. Por isso, foi processado pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que se refere à posse de material explosivo, e condenado a 5 anos de reclusão, de forma totalmente arbitrária e insensível por parte da justiça. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre.

    A pena, na época, foi majorada porque o juiz considerou que ele, por estar próximo a lugar de manifestação e concentração de gente, colocou em perigo a vida de muitas pessoas. Uma evidente incongruência, porque o próprio laudo atesta o mínimo de potencialidade do material. Tal aspecto foi objeto dos nossos recursos, mas a 3a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) negou nossa apelação, reduzindo a pena em somente quatro meses, ficando em 4 anos e 8 meses.

    Entramos com recursos no STJ e STF. Todavia, é evidente que por má vontade política com o caso e todas as circunstâncias correlatas nosso recurso não foi admitido na 3a. Vice-presidência do TJ-RJ. Por isso, entramos com medidas cabíveis no STJ superar tal apreciação. Não conseguimos êxito e agora recorremos à última instância do judiciário, o STF. Atualmente, o ministro Luiz Fux é relator de um agravo que visa superar esse óbice da apreciação do recurso, para assim reconhecerem e apreciarem o mérito da causa do Rafael Braga.

    Correio da Cidadania: Entre os que realmente participavam de atos políticos, há vários outros processados, como um militante da Federação Anarquista Gaúcha e outros 23 cariocas, a exemplo de Sininho, Igor Mendes e Eloisa Samy. Há também casos como o do fotógrafo paulista Sergio Silva, cegado de um olho por bala de borracha, cujo inquérito que investigava abuso policial acabou de ser arquivado. O que esses casos todos refletem pra você, a respeito da democracia brasileira?

    João Henrique Tristão: Atualmente, vivemos uma conjuntura política muito obscura, à luz do que deveria ser um estado democrático de direito. Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras.

    Isso mostra a clara tentativa estatal de sufocar e inibir quaisquer atitudes de reivindicação por parte da população. É lamentável, mas infelizmente se adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo. Seja através da criminalização de movimentos sociais, seja de qualquer outra forma pela qual o Estado possa manter as coisas como estão.

    Minha visão política do contexto é exatamente essa. Sobre os 23 ativistas cariocas processados também posso falar, pois o DDH atua no caso. É um processo estapafúrdio. O MP elaborou tudo na base de ilações e conjecturas, no sentido de que haveria vínculo estável e permanente entre todos os ativistas, o que sabemos não ser verdade. É uma clara tentativa de criminalizar movimentos sociais. Basta olhar a conjuntura, a forma de atuação do Estado e a truculência da polícia pra vermos como é clara a tentativa de sufocar qualquer suspiro em prol de um país melhor e mais justo.

    Correio da Cidadania: Muitos desses protestos tiveram relação direta com a contestação aos megaeventos esportivos e seus gastos bilionários. Como fica o Rio de Janeiro em meio a isso, que, além da Copa do Mundo, encerrada há um ano, ainda tem uma Olimpíada pela frente? Como você analisa a propalada ideia do ‘legado’?

    João Henrique Tristão: Sobre a Copa do Mundo se seguiu a lógica capitalista, que nos “contemplou” com a vinda dos megaeventos. Assim, não se pode falar muito de legado, ao menos a partir do momento em que se investiu e concederam isenções bilionárias a uma entidade privada que agora é alvo de investigações de corrupção, em detrimento de serviços básicos como saúde e educação, que vivem em petição de miséria, no Rio e nacionalmente.

    Valorizou-se um evento concebido para uma determinada classe, a dominante, poder acompanhar e usufruir de perto o suposto legado. Isso à margem da maioria esmagadora da população, que vive sem acesso a serviços básicos e muitas vezes em situação deplorável.

    No meu entendimento não se pode falar de quaisquer legados, nem mesmo a reforma do Maracanã. Tudo foi feito em detrimento da melhoria de outros serviços, algo ainda mais nefasto, e não trouxe nenhuma benesse para a população. Em relação às Olimpíadas, creio que seguimos a mesma lógica, com seletividade de público e somente pessoas de melhores condições tendo acesso aos eventos.

    Pior: temos casos de remoções drásticas de populações que vivem há muito tempo no entorno de alguns palcos desses grandes eventos. Podemos citar a Vila Autódromo, marco de resistência de moradores pobres à beira de um dos locais onde teremos Olimpíada, em constante ameaça de remoções ilegais e arbitrárias da prefeitura. Não consigo constatar nenhum legado para a população.

    Correio da Cidadania: Você acha que as instituições brasileiras absorveram algum recado deixado pelas ruas nesses últimos dois anos?

    João Henrique Tristão: Infelizmente, acho que as oligarquias midiáticas, os grandes conglomerados corporativos de mídia, foram atores no processo, de maneira que alienaram e deturparam muitos acontecimentos e fatos, tanto das manifestações de junho como nas que se seguiram depois.

    Creio que grande parte da população ainda não compreendeu a real essência do que tudo aquilo representou. Hoje vivemos uma conjuntura política conservadora no Congresso Nacional. Quero muito acreditar que nada tenha sido em vão, que muitas pessoas possam ter sido tocadas no sentido de que o poder realmente emana do povo, que o próprio poder constituinte originário nos outorga isso.

    Malgrado todos os percalços, deturpados e dissimulados pela grande mídia, quero acreditar que muitas pessoas possam ter se sensibilizado e constatado algo positivo, em termos de sentimentos de protestos e mudança. Quero acreditar que muitas pessoas tenham se sensibilizado e desenvolvido uma nova concepção política dos fatos.

    Correio da Cidadania: Como relaciona tudo o que foi aqui conversado com esse ano político, marcado por cortes do orçamento social, desemprego e greves? Acredita que estamos próximos de reviver manifestações similares às de 2013?

    João Henrique Tristão: Infelizmente, tenho uma análise política bem específica. Consiste no fato de que vivemos um momento político bastante singular, pois elegemos uma composição ultraconservadora para o Congresso Nacional. Além disso, tivemos as notícias de corrupção envolvendo membros do governo atual. Tudo isso gerou um oportunismo político muito bem manipulado pela grande mídia, que acabou difundindo um sentimento em diversas pessoas – não aquelas que se revoltaram em 2013, mas talvez um pouco também. Tivemos em 2015 protesto mais conservador, que visa principalmente sua própria autotutela, sua própria manutenção. Em março, tal sentimento foi capitaneado pela população de média e alta classe média.

    Creio que, analisando a conjuntura e o fenômeno, as manifestações deste ano não podem ser confundidas com aquelas que ficaram marcadas como jornadas de junho. Tem muito oportunismo envolvido e uma classe média manipulada de modo a servir a senhores políticos e senhores do próprio capital, pra tentar desvirtuar a linha de protesto inicialmente adotada, que clamava muito mais por aspectos sociais do que pela própria manutenção de tudo, como vimos em março desse ano, em protestos travestidos de revolta contra a corrupção, algo totalmente genérico e sem pauta.

    Evidentemente, a conjuntura atual do país potencializou e de certa forma viabilizou a deturpação do que efetivamente ocorre, aliado, volto a ressaltar, a um oportunismo político muito forte e uma manipulação por parte das grandes oligarquias midiáticas.

    Quanto à possibilidade de vermos retornar as pautas das jornadas de junho, espero muito que aconteça. Espero que os atos em prol das pautas realmente necessárias ao país – ou seja, sociais – voltem com força total, como naqueles dias de 2013.

    Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas

    Fonte: Correio da Cidadania, domingo, 12 de julho de 2015