Categoria: Sindicalismo e Movimentos Sociais

  • Contra o progressimo neoliberal um novo progressismo populista

    Contra o progressimo neoliberal um novo progressismo populista

    por Nancy Fraser  *

     

    A leitura que Johanna Brenner fez do meu artigo “Trump ou o final do neoliberalismo progressista” não toca a centralidade do problema que postulei: a hegemonia. Meu ponto de vista primordial é que o atual predomínio do capital financeiro não se deu apenas pela força, mas também pelo que Gramsci chama “consentimento”.

     

    As forças que se beneficiam com a financeirização, a globalização corporativa e a industrialização tiveram êxito quando o Partido Democrata exibiu como progressista políticas manifestamente anti-operárias.

     

    Os neoliberais ganharam poder recobrindo seu projeto com um novo espírito cosmopolita, centrado na diversidade, na autonomia da mulher e nos direitos dos coletivos LGBTQ. Assumindo esses ideais forjaram um novo bloco hegemônico, que chamei de progressismo neoliberal.

     

    Na identificação e na análise deste bloco nunca perdi de vista o poder dominante do capital financeiro – como insinua J. Brenner – mas do que se trata é oferecer uma explicação de sua preponderância política.

     

    Colocar a lente sobre a hegemonia projeta luzes sobre o progressismo e sobre os movimentos sociais que bateram de frente com o neoliberalismo. Em lugar de analisar quem conspirou ou quem foi cooptado, me concentrei na mudança que se produziu no pensamento progressista; um processo ideológico que modificou o conceito de igualdade pela noção de “meritocracia”.

     

    Nas décadas recentes, o pensamento neoliberal influenciou não só as feministas liberais e os defensores da diversidade (que abraçaram de um certo modo o ethos individualista) mas também muitos dos movimentos sociais. Inclusive aqueles movimentos que J. Brenner denomina partidários do bem-estar social, porque quando estes se identificaram com o progressismo neoliberal fizeram vista grossa a sua contradições.

     

    Afirmar que eles não têm a culpa – como sustenta J. Brenner – não permite entender como funcionam os processos hegemônicos e, tampouco, ajuda a encontrar a melhor maneira de construir a contra-hegemonia.

     

    É necessário avaliar o comportamento da esquerda desde a década de 1980 até a atualidade. Revisando aquele período, Brenner expõe os dados de um impressionante ativismo de esquerda, que apoia e admira tanto como eu apoio e admiro. Penso, no entanto, que esta admiração não deve nos impedir de comprovar que esse ativismo não contribuiu para a construção da contra-hegemonia.

     

    Estes movimentos não tiveram êxito. Ou seja, não conseguiram apresentar-se a si mesmo como uma alternativa crível ao progressismo neoliberal, nem muito menos para sua substituição. Ainda que para explicar os porquês requer-se um estudo “lato”, ao menos uma coisa está clara: para desafiar as versões neoliberais do feminismo, do antirracismo e do multiculturalismo, os ativistas de esquerda não conseguiram chegar aos chamados “populistas reacionários” (ou seja, os brancos da classe operária industrial) que terminaram votando em Trump.

     

    Bernie Sanders é a exceção que confirma a regra. Sua campanha eleitoral, em que pese estar longe de ser perfeita, desafiou diretamente as placas tectônicas da classe política.

     

    Apontando a “classe de multimilionários” estendeu a mão aos abandonados pelo progressismo neoliberal. Ademais, dirigiu-se para a “classe média” porque também é vítima da “economia neoliberal” e porque necessariamente devem estar numa causa comum com as outras vítimas do sistema; os que não tiveram acesso aos postos de trabalho da “classe média”. Ao mesmo tempo, Sanders foi um divisor de águas em relação aos partidários do progressismo neoliberal.

     

    Ainda que derrotado por Clinton, Bernie Sanders abriu o caminho para a construção de um poder contra-hegemônico; no lugar de uma aliança dos progressistas com os neoliberais, Bernie Sanders abriu a perspectiva de um novo bloco “progressista-populista” que combine emancipação com a proteção social

     

    Na minha opinião, a opção de Sanders é a única estratégia de princípios e capaz de ganhar na era Trump. Aos que agora se mobilizam sob a bandeira da “resistência”, lhes sugiro um contra-projeto.

     

    A primeira estratégia sugere uma subordinação ao progressismo neoliberal com um “nós” (os progressistas) contra “eles” (os “deploráveis” partidários de Trump); o que proponho é redesenhar o mapa político – forjando uma causa comum entre todos aqueles que Trump indefectivelmente vai golpear e trair. Estes setores NÃO são somente os imigrantes, as feministas e os negros (que votaram contra ele) também são os trabalhadores parados do “cinturão do óxido” e os estratos da classe operário do Sul que votaram nele.

     

    Contra o que opina J. Brenner, penso que a estratégia não deve colocar em contradição a “política de identidade” com a “política de classe”. Ao contrário, deve identificar claramente os interesses da classe dominante e as injustiças provocadas pelo capitalismo financeirizado construindo alianças para lutar contra ambas.

     

    *  professora de filosofia e política na The New School for Social Research e autora, mais recentemente, de Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis. New York: Verso, 2013.

     

    Fonte: Rebelion (Tradução de Charles Rosa, do Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos)
  • Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    por Juliano Medeiros*

     

        O resultado das eleições municipais deste ano ensejou, nos últimos dias, diversas análises sobre os rumos da esquerda. De todos os lados, analistas buscam compreender as razões que levaram à acachapante vitória eleitoral dos partidos associados ao golpe que conduziu Michel Temer à Presidência da República. A ideia de que o terreno perdido nos últimos meses exigirá uma necessária reconfiguração das forças progressistas parece encontrar eco em muitas vozes. No entanto, a “reorganização da esquerda” pode ter distintos significados a depender de como se interpreta a derrota que o impeachment e as eleições municipais deste ano representaram.

        Parece consenso que é chegada a hora de um profundo ajuste de contas na esquerda brasileira. O fim do ciclo do PT – que se anunciava desde junho de 2013 e se concretizou tragicamente com o impeachment de Dilma Rousseff – abriu um período de definições estratégicas para as forças populares. Um claro processo de reconfiguração da esquerda está em curso, dentro e fora das organizações tradicionais como partidos, sindicatos e entidades estudantis. No âmbito das organizações partidárias esse movimento é mais nítido. No PT, o movimento “Muda PT” representa para seus integrantes a derradeira batalha para salvar o simbolismo e a representatividade que o partido ainda detém entre parcela cada vez menor dos trabalhadores. Na Rede Sustentabilidade, as divisões internas chegaram a um limite insuportável, opondo lideranças de esquerda ao indecifrável projeto de Marina Silva. No PSOL, o crescimento do partido, que ocupou parte do espaço deixado pelo PT nas eleições municipais deste ano, exige definições sobre seu papel no novo ciclo que se abre para a esquerda brasileira. E até o pequeno e monolítico PSTU sofreu os efeitos da pressão em favor da reorganização: uma dissidência de centenas militantes deixou a legenda, rejeitando a tática do “fora todos” levada a cabo pelo partido durante o impeachment.

        Mas esse processo de reconfiguração da esquerda não se resume aos partidos. Aliás, é possível afirmar que é precisamente fora da vida partidária que essa reconfiguração se processa de forma mais dinâmica. O esgotamento do ciclo do PT – que nada mais é que o esgotamento de uma tática que envolveu centenas de organizações políticas e sociais em favor do chamado “pacto de classes” – já se nota no âmbito dos movimentos sociais há algum tempo. O surgimento de novas lutas, sobretudo nas grandes cidades, novos ativismos e formas de intervenção política, expressam também um novo momento para a esquerda social. Movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento Passe Livre (MPL), as ocupações de escolas em todo o país, o fortalecimento do movimento de mulheres contra o machismo e a violência, os novos movimentos de contracultura e o ativismo digital de coletivos como o Mídia Ninja, marcam o início de um novo ciclo na política brasileira. Isso não significa, é claro, que as formas “tradicionais” de organização política, como sindicatos, organizações de bairro ou entidades estudantis estão superadas. Significa apenas que esses instrumentos terão de ceder espaço a novas formas de ação política surgidas das transformações que o Brasil e o mundo vivenciaram nos últimos vinte anos, reinventando suas práticas e formas de organização para recuperar a legitimidade perdida.

    O impeachment como fim de um ciclo

        Afirmamos que o impeachment de Dilma marca o fim de um ciclo. Mas poderíamos ir além. Na verdade, o golpe que levou Michel Temer à presidência representa ao mesmo tempo o fim de dois ciclos. O primeiro é um ciclo mais geral da política brasileira, que começa com a Constituição de 1988. O golpe representa a ruptura do pacto que permitiu, ao longo de quase trinta anos, algum nível de estabilidade política e a garantia mínima da progressiva ampliação das políticas sociais. Mesmo no auge do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) direitos foram ampliados, apesar do retrocesso representado pela reforma do Estado promovida naquele período. Apesar de favorável às forças do conservadorismo, esse pacto permitiu o fortalecimento político e social do campo democrático-popular durante os anos 1990, a livre organização dos movimentos sociais e a vitória eleitoral da esquerda em 2002, mesmo que sob circunstâncias que se mostrariam fatais anos depois. Ao congelar os investimentos públicos por 20 anos, destruir o já insuficiente sistema que regulava a exploração do petróleo e retomar um agressivo ajuste no sistema de previdência, Temer implode o pacto que garantiu a estabilidade ao regime político brasileiro nas últimas duas décadas e encerra o clico instituído pela Constituição de 1988, abrindo um período de luta aberta pelos rumos do Estado.

        Por outro lado, na esquerda também se encerra um ciclo. A hegemonia do PT e do bloco histórico que o sustentou desde os anos 1980 chegou definitivamente ao fim. O historiador Lincoln Secco, em livro sobre a história do PT,1 afirma que o partido viveu três momentos em sua história. O primeiro foi marcado por um partido radical que liderava a oposição social à ditadura militar. O segundo momento é aquele em que o PT se consolida como oposição parlamentar ao neoliberalismo, quando o partido se institucionaliza e passa a viver a experiência de governar importantes municípios. O terceiro momento, que se inicia com a vitória de Lula em 2002, é aquele caracterizado pela ascensão do PT à condição de “partido de governo”. Nessa terceira e última etapa do processo de aggiornamento2 do partido à dinâmica do sistema político brasileiro, o PT incorpora plenamente a estratégia do pacto de classes, isto é, de uma aliança reformista assentada no crescimento econômico com distribuição de “dividendos” para todas as classes. Com o processo de impeachment e a implosão do pacto que o PT mantinha com diferentes frações da burguesia brasileira, o partido e seu campo de aliados tende a perder definitivamente a hegemonia sobre a esquerda brasileira. É o fim desse outro ciclo que exige definições urgentes sobre os rumos da reorganização das forças populares.

    Três tarefas urgentes para a reorganização da esquerda no Brasil

        Nossa situação política é inédita. Diferente de outros momentos da história, quando a esquerda foi coagida fisicamente pelas forças do conservadorismo e da reação, o que vemos hoje é um processo de “demonização” das organizações de esquerda que alcançou níveis inéditos desde a redemocratização. Combinando o desgaste promovido pela crise econômica e seus efeitos sobre os mais pobres com as denúncias de corrupção envolvendo altos dirigentes do governo e do PT, a mídia monopolista construiu com relativo sucesso uma associação quase automática entre “esquerda” e “corrupção/ineficiência”. Os partidos que compuseram o governo, como PT e PCdoB, sentiram mais fortemente os efeitos dessa narrativa no recente processo eleitoral. Mas ela não poupou nem aqueles partidos que jamais mantiveram qualquer envolvimento com atos de corrupção e nunca compuseram o governo Dilma, como o PSOL. A luta que se trava em torno das responsabilidades sobre a recessão econômica e a corrupção atingiu em cheio a esquerda.

        Quais seriam, então, as tarefas para contornar essa situação? Evidentemente, não há um “manual de reorganização da esquerda brasileira”. Mas há alguns elementos indispensáveis para enfrentar esse gigantesco desafio, que podemos sintetizar no tripé balanço / renovação programática / promessa. Vejamos como se apresentam cada uma dessas tarefas:

        a) Balanço:A mais urgente das tarefas para a reorganização da esquerda brasileira refere-se ao balanço da experiência dos governos petistas. Por mais de uma década, a esquerda brasileira se dividiu entre aqueles que apoiavam ou não o projeto liderado por Lula e Dilma. Por vezes, essa divisão tomava formas absurdas, onde uns se tornavam incapazes de ver os flagrantes limites dos governos de conciliação, enquanto outros fechavam os olhos para os inegáveis avanços que foram promovidos na expansão de alguns direitos sociais. Com o fim do ciclo do PT à frente do governo federal, torna-se possível desenvolver um balanço crítico e honesto dos avanços e limites que os governos petistas produziram. Exemplos não faltarão. Se por um lado é evidente que o crescimento econômico de quase uma década proporcionou uma melhoria nas condições de vida de parte expressiva da população mais pobre, com acesso a crédito, aumento real do salário mínimo e mais políticas sociais, por outro, não se pode esconder que a natureza do projeto de conciliação de classes não permitiu avanços mais profundos, manteve o país vulnerável à dinâmica do capital financeiro, fortaleceu o agronegócio predatório e deixou intocado o controle da informação nas mãos da mídia monopolista. Além disso, o mito conservador da “governabilidade” se impôs de tal forma sobre as iniciativas de participação direta da população sobre a política, favorecendo o fisiologismo e as alianças pragmáticas, que muitos terão dificuldades em admitir que o governo foi enredado em acordos que jamais deveria ter firmado. Por isso um balanço crítico e desapaixonado é indispensável para extrair as lições dos limites da conciliação de classes. Sem isso será impossível pensar um novo projeto político independente e comprometido com os interesses populares.

        b) Renovação programática:O bloco histórico surgido com o PT na luta contra a ditadura militar representou uma grande novidade na cena política brasileira. Aquela esquerda, renovada pelos novos atores políticos que entraram em cena no final dos anos 1970, construiu um programa ao mesmo tempo radical e inovador para enfrentar os séculos de atraso e exploração que marcavam nossa formação social. Ele estava muito à frente do reformismo que caracterizava, já naquela época, os partidos comunistas no Brasil. O chamado “Programa Democrático-Popular”, aprovado no 5º Encontro Nacional do PT, em 1987, reunia um conjunto de tarefas anti-monopolistas, anti-imperialistas e anti-latifundiárias que conferiam à estratégia do partido um caráter profundamente anti-capitalista e radicalmente democrático. Esse programa, rompendo com a tradição que fora hegemônica na esquerda até então, apresentava uma nova interpretação do estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e preconizava uma tática de fortalecimento das organizações de base do campo popular, rechaçando a conciliação de classes em favor da independência política dos trabalhadores e trabalhadoras. O abandono desse programa por parte do PT e sua relativa desatualização deixaram a esquerda brasileira, no século XXI, com um enorme “déficit programático”. Ao mesmo tempo em que foram incorporadas novas demandas à agenda política da esquerda nos últimos anos, especialmente no campo dos direitos civis, pouco se avançou na correta interpretação das mudanças que o Brasil viveu durante as últimas três décadas. A consolidação do processo de urbanização do capital e suas contradições trouxeram novas formas de dominação política e econômica que ainda precisam ser incorporadas à análise da esquerda. Essa renovação programática – econômica, política, social, cultural, ideológica – é uma condição indispensável para “reconectar” a esquerda ao Brasil real.

        c) Promessa: Os efeitos da derrocada do PT terão efeitos de longo prazo. Uma geração inteira de militantes, desiludida com as inaceitáveis concessões feitas pelo partido ao longo de quase catorze anos, já não acredita que outro instrumento partidário possa responder à tarefa histórica de liderar a reorganização da esquerda brasileira. Isso é natural. A decepção é profunda, tanto quanto a indignação pelos erros cometidos – em especial em relação à corrupção e à retirada de direitos dos mais pobres, marca do último ano de governo Dilma. Por isso, além de realizar um balanço crítico da experiência petista no governo federal e promover uma profunda atualização programática, a esquerda deverá lançar mão de uma promessa: a de que é possível construir um caminho diferente no futuro. Numa de suas principais obras,3 Hannah Arendt afirma que é a promessa que valida o perdão; isto é, apenas o compromisso de que algo novo está sendo construído no lugar do velho é que permite expiar os pecados do passado. Mesmo aqueles que nada tiveram a ver com os erros cometidos terão de consignar seu compromisso com a promessa de que nada será como antes. O perdão, que exime a esquerda das consequências dos erros cometidos, só pode ser validado pela promessa do novo. E esse novo que é reclamado pela nova geração de lutadores e lutadoras que está nas ruas não pode ser nada menos que uma esquerda horizontal, pluralista, radicalmente democrática e profundamente comprometida com os interesses dos explorados e oprimidos. Uma esquerda anticapitalista, socialista e classista, mas também feminista, negra, jovem, disposta a combater qualquer tipo de opressão. Perdão e promessa: eis o binômio do qual a reorganização da esquerda não pode fugir.

    Os atores da reorganização

        Consideramos que as tarefas que mencionamos – balanço / renovação programática / afirmação do novo – não poderão ser bem-sucedidas sem atores dispostos a encará-las como indispensáveis à reorganização da esquerda brasileira. Para isso será necessário um amplo processo de diálogo entre aqueles dispostos a enfrentar o momento de defensiva estratégica que os setores populares vivem e dar um novo sentido à luta em favor de um amplo instrumento político que unifique os que lutam contra a opressão e a exploração.

        Mesmo que os efeitos da ofensiva conservadora tenham sido devastadores, há diversos atores discutindo os rumos da reorganização da esquerda brasileira. No PT e na Rede Sustentabilidade há setores dispostos a debater a construção de uma nova síntese política “pós-PT”. Outras organizações políticas não partidárias também iniciam essa discussão. No âmbito dos movimentos sociais, novos atores já se apresentam como expressão concreta de um novo ciclo político que rechaça como limitadas as promessas do lulismo.4 Há ainda uma grande quantidade de intelectuais críticos que reivindicam uma profunda reflexão sobre os rumos do campo popular e democrático no Brasil, em favor de uma “nova esquerda” que se apresente como tal já a partir das eleições presidenciais de 2018. No meio desse turbilhão está o PSOL.

        O PSOL é hoje o polo mais dinâmico da reorganização da esquerda brasileira e o partido mais bem localizado politicamente para enfrentar esse desafio. Isso se deve a algumas razões específicas que garantem a ele uma posição privilegiada nesse processo. O primeiro e mais evidente é o fato do partido ter mantido, ao longo de seus onze anos de vida institucional, uma profunda crítica à estratégia de conciliação de classes levada a cabo pelo PT. Por essa razão o PSOL é visto como um partido coerente, capaz de arcar com as pesadas consequências de ser oposição de esquerda aos governos petistas para conservar suas posições. Além disso, a tática que o partido assumiu durante o impeachment, quando sua militância e suas figuras públicas se engajaram plenamente na luta contra o golpe, permitiu ao PSOL conectar-se com o mais importante movimento de massas ocorrido no país desde junho de 2013. Para os milhares de lutadores e lutadoras que tomaram as ruas contra o golpe, o PSOL foi visto como um partido capaz de deixar as diferenças de lado para unir forças em favor de um objetivo maior: a defesa da democracia. Por fim, vivendo toda a sua existência fora da dinâmica do Estado, o partido compreende melhor os novos atores sociais que emergiram na última década. Esses lutadores e lutadoras têm uma forte empatia com o partido e muitos concorreram pelo PSOL nas eleições deste ano. Portanto, se o partido tiver a sabedoria política necessária para se colocar à altura do momento histórico, ele pode se tornar a expressão “natural” de uma nova síntese política para essa nova esquerda que está se formando no Brasil. Mas para isso, será necessário responder às inadiáveis tarefas que mencionamos neste ensaio.

    * Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.

     

    1 Lincoln Secco. História do PT – 1978-2010. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.

    2 Termo em italiano que signfica atualização ou adaptação.

    3 Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2000.

    4 Para saber mais sobre o lulismo como expressão da política de pacto de classes nos governos petistas ver André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

     

  • Dia Internacional da Mulher

    Dia Internacional da Mulher

    Mulheres reivindicando seus direitos
    Mulheres reivindicando seus direitos

    Em 1975, a assembleia geral da ONU declarou oficialmente o 8 de março Dia Internacional da Mulher.  A origem da data não está muito clara e existem várias versões. A mais verossímil é que foi o 8 de março de 1857, quando um grupo de trabalhadoras têxteis decidiu sair às ruas de Nova Iorque para protestar contra as míseras condições em que trabalhavam. Essa seria uma das primeiras manifestações de luta por seus direitos laborais. Distintos movimentos e eventos se sucederam a partir dessa data.

    Um dos eventos mais destacados ocorreu em 25 de março de 1911, quando se incendiou a fábrica de camisas Shirtwaist, em Nova Iorque. 123 mulheres e 23 homens morreram. A maioria era de jovens imigrantes com idades entre 14 e 23 anos. Foi o desastre industrial mais mortífero da história da cidade e motivou a introdução de novas normas de segurança e de saúde do trabalho nos EEUU.

    A data sempre esteve ligada a movimentos de esquerda em defesa da igualdade de gênero e da emancipação feminina.

    Em 28 de fevereiro de 1909, Nova Iorque e Chicago realizaram atos pelo ‘Dia da Mulher’, organizados por destacadas mulheres socialistas como Corinne Brown e Gertrude Breslau-Hunt.

    Na Europa, foi em 1910, na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague com a participação de mais de 100 mulheres de 17 países, que se decidiu proclamar o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. A proposta dessa iniciativa partiu de defensoras dos direitos das mulheres como Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. Não se marcou uma dia determinado, mas um mês: março.

    Como consequência desse encontro feminista de Copenhague, no mês de março de 1911 se celebrou por primeira vez o Dia da Mulher na Alemanha, na Áustria, na Dinamarca e na Suíça. Organizaram-se comícios nos quais as mulheres reivindicaram o direito de votar, de ocupar cargos públicos, de ter acesso ao trabalho e à formação profissional, de receber salário igual ao do homem pelo mesmo serviço e de não sofrer discriminação no emprego. Coincidindo com a primeira guerra mundial, a data ensejou protestos em toda a Europa contra a deflagração bélica, assumindo conotações pacifistas.

    A celebração foi-se ampliando progressivamente a mais países. A Rússia adotou o Dia da Mulher após a Revolução Socialista de 1917. Seguiram-lhe muitos outros países. Na China, o dia se comemora desde 1922; em Cuba, desde 1931. O ato cubano foi no Centro Operário, em Havana, organizado pela Central Nacional Operária de Cuba e pela Federação Operária de Havana. Na Espanha, foi celebrado pela primeira vez em 1936, sob a República espanhola em armas contra o ditador Franco.

    A inglesa Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei no célebre Derby de 1913, foi a primeira mártir do movimento sufragista, que conquistou, com a aprovação do Representation of the People Act de 1918, o voto feminino no Reino Unido, tornando o sufrágio universal.

    Fruto das lutas do movimento feminista (dito sufragista), o voto feminino no Brasil foi reconhecido plenamente no Código Eleitoral de 1932, embora ainda persistisse uma distinção de gênero: enquanto o voto do homem era obrigatório, o da mulher era facultativo. Mas a conquista do sufrágio universal no Brasil só se completou com a promulgação da Constituição de 1988, que, ao lado do voto obrigatório para os maiores de 18 anos e do voto facultativo para os maiores de 16 anos, estendeu o direito de voto (facultativo) aos analfabetos.

    Todavia, foi só em 1975, que a ONU instituiu o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, com um objetivo, que hoje em dia continua vigente: lutar em prol da igualdade, da justiça, da paz e do desenvolvimento. “O Dia Internacional da Mulher se refere às mulheres comuns como artífices da história e se enraíza na luta plurissecular da mulher para participar na sociedade em pé de igualdade com o homem”, recorda a ONU.

  • O velho álibi do combate ao terrorismo

    O velho álibi do combate ao terrorismo

    A pretexto de combater o terrorismo, o “PL Antiterror” poderá criminalizar ainda mais as manifestações e os movimentos sociais

    Conduta de outros países que aprovaram leis semelhantes justifica receio com o PL 2016/2015
    Conduta de outros países que aprovaram leis semelhantes justifica receio com o PL 2016/2015

    Contestado por diversos setores da sociedade civil, sobretudo por movimentos sociais, o Projeto de Lei (PL) 2016/2015, conhecido como “PL Antiterrorismo”, foi aprovado na quarta-feira 24 pela Câmara de Deputados e agora será encaminhado para sanção presidencial. De autoria do governo federal, o PL já havia sido aprovado no Senado e na própria Câmara em primeiro turno.

    Ainda que os diversos atentados que têm ocorrido ao redor no mundo nos últimos anos despertem uma sensação de insegurança, é essencial que nos esforcemos para reunir o maior número possível de informações e análises a fim de subsidiar um debate aprofundado a respeito do tema “terrorismo” na sociedade.

    Nesse sentido, as experiências de alguns países em relação a leis antiterroristas podem servir como objetos de estudo bastante interessantes.

    Posteriormente aos eventos que se seguiram ao 11 de Setembro nos Estados Unidos, foi possível observar um amplo esforço de diversos países (muito embora em contextos bastante diferentes) na elaboração de leis específicas que visavam a coibir atos terroristas. Inglaterra, Austrália e Canadá são alguns exemplos de nações que buscaram rapidamente se adequar a essa tendência.

    Desde então, paralelamente a esse processo, organismos internacionais vêm alertando para a necessidade de cautela na implementação de leis antiterroristas, chegando inclusive a questionar se esse tipo de legislação é eficaz e realmente imprescindível.

    Uma primeira recomendação nos posicionamentos desses organismos é a de que qualquer lei que vise combater o terrorismo deve respeitar todos os documentos e convenções internacionais de direitos humanos. T

    al recomendação consta, por exemplo, no documento Informe sobre Terrorismo y Derechos Humanos, publicado em 2002 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e, mais recentemente, na Declaração Conjunta sobre Programas de Vigilância e seu Impacto na Liberdade de Expressão, assinada pelas Relatorias para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da ONU.

    A recorrência desse tipo de recomendação em muitos documentos analisados revela uma preocupação em relação às leis antiterroristas: a de que, ao buscar coibir o terrorismo, a legislação acabe por criminalizar grupos que tenham uma tradição de contestação política e que, historicamente, sejam alvos do aparato repressor do Estado. No Brasil, esses grupos podem ser ilustrados pelos movimentos sociais.

    À luz dessa constatação, a ONU recomendou, por diversas ocasiões, que os países que haviam adotado leis antiterroristas as readequassem de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos.

    Em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a lei antiterrorista do Canadá, aprovada em 2001, partia de definição excessivamente ampla, recomendando que o país deveria “adotar uma definição mais precisa de atos terroristas a fim de garantir que indivíduos não sejam alvos por questões políticas, religiosas e ideológicas”.

    A legislação australiana também foi objeto de menção por parte da ONU. Segundo o organismo, a Austrália “deve garantir que sua legislação e práticas contra o terrorismo estejam em plena conformidade com o Pacto (Internacional de Direitos Civis e Políticos). Em particular, deve-se mencionar o caráter excessivamente vago da definição de ato terrorista no Código Criminal de 1995, de forma a garantir que sua aplicação seja restrita a ações indiscutivelmente terroristas.”

    Certamente, a cautela reservada a esse tipo de análise não é em vão: a criminalização de movimentos sociais e manifestações populares é prática recorrente em muitos países e regiões ao redor do mundo. Um dos instrumentos mais efetivos para este fim é a interpretação extensiva de normas que, em tese, possuíam outros objetivos.

    Em setembro de 2014, os relatores especiais da ONU para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos no Combate ao Terrorismo e para o Direito à Liberdade de Associação advertiram a Etiópia para que deixasse de utilizar sua legislação antiterrorismo com o intuito de suprimir direitos humanos de seus cidadãos. De acordo com os relatores, o governo do país estava detendo pessoas arbitrariamente e distorcendo a aplicação da lei.

    Pouco tempo depois, em abril de 2015, o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos expressou preocupação em relação à lei de combate ao terrorismo na Malásia, que havia sido aprovada havia pouco.

    Sob o pretexto de combater militantes fundamentalistas islâmicos, por exemplo, a legislação, por sua excessiva amplitude, permitia a detenção por tempo indefinido de suspeitos sem direito a julgamento e concedendo poderes amplos às autoridades sem as salvaguardas necessárias para prevenir abusos.

    Nota-se que tanto as recomendações em documentos internacionais quanto as críticas concretas emitidas por representantes de organismos de direitos humanos apontam para uma mesma avaliação: a edição desenfreada de dispositivos legais, derivada de uma sensação de insegurança frente à violência de atos terroristas, não parece eficiente para atacar o problema, acabando na verdade por servir a um propósito diferente: o de intensificar a criminalização de movimentos sociais e manifestações populares.

    Um questionamento recorrente no âmbito internacional se dá sobre a necessidade ou não de se criar um ordenamento jurídico específico para combater o crime de terrorismo. Isso ocorre porque muitas leis vigentes nos países que adotaram tal legislação – e também no Brasil – já punem as condutas as quais as leis antiterrorismo pretendem combater.

    O argumento é o de que a legislação comum já oferece os mecanismos necessários à punição de práticas como dano, incêndio, explosão, sendo que seu uso é preferível à edição de novas leis que carregam consigo um potencial lesivo a direitos fundamentais, e que, além do mais, não garantem serem eficazes.

    A relevância de todo esse contexto para o Brasil, que acaba de ver sua lei antiterrorismo aprovada no Congresso, é enorme. Muitos dos elementos que vêm preocupando os organismos internacionais em relação às leis antiterrorismo na maior parte dos países que as aprovaram estão no PL 2016/2015.

    A existência de definições amplas e vagas sobre o que é uma prática terrorista, a desproporcionalidade das penas previstas, a caracterização de ações historicamente usadas por movimentos sociais como elementos que configuram um ato terrorista (como ocupações de prédios públicos), a punição de atos preparatórios e da “apologia ao terrorismo”, entre outros pontos, formam um quadro bastante preocupante em relação às exigências previstas em documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

    Atentos a isso, especialistas da ONU e da OEA para a liberdade de expressão já se manifestaram contrários ao projeto, principalmente quanto à sua tramitação sob regime de urgência.

    Mesmo a ressalva que consta na versão final do projeto aprovada na quarta-feira 24 na Câmara, que visa proteger movimentos sociais, sindicais e manifestações políticas, entre outros (art 2º, parágrafo 2º), não é garantia de que a lei antiterrorismo não será usada contra esses grupos, já que estará sujeita à interpretação subjetiva do Judiciário.

    Além disso, em termos de contexto interno, a criminalização de protestos e movimentos sociais observada em todo o País representa mais um alerta de que a aprovação dessa lei tem grandes chances de ser instrumentalizada no sentido oposto ao da proteção dos direitos humanos, contribuindo para a supressão da liberdade de expressão, de opinião e de manifestação.

    A aprovação do PL 2016/2015, ainda que a pretexto de combater o terrorismo, enseja um preocupante risco de nos lançarmos em um período de flerte com um autoritarismo temerário e indesejável. E quem perde com isso é a democracia.

    *Paula Martins é diretora-executiva da ONG Artigo 19 e Camila Marques é coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da mesma organização

    Fonte: Carta Capital,  25/02/2016

  • Ocupações das escolas goianas expõem faceta terrorista das relações público-privadas

    Ocupações das escolas goianas expõem faceta terrorista das relações público-privadas

    pm_escola_goiásEntre o final de um 2015 de crise e o início de um novo ano de mais crise e precarização da vida, persiste a grande cortina de fumaça sobre os estudantes secundaristas de Goiás e sua resistência à versão local de “reorganização escolar”, celebrizada nas mais de 200 ocupações de escolas estaduais em São Paulo. Para entender o contexto goiano, conversamos com a professora Kim Xavier, que tem acompanhado de perto o dia a dia dos secundaristas goianos.

    “No primeiro ato, antes das ocupações, a polícia jogaria jatos de água para dispersar a multidão, como normalmente fazem. Mas jogaram jatos de esgoto nos manifestantes. Alguns foram parar no hospital por intoxicação”, conta Kim Xavier, logo após dar um panorama geral da situação anterior, na qual algumas escolas foram entregues para a administração da Polícia Militar, tornando-se, literalmente, escolas militares, para além das que já haviam sido entregues a Organizações Sociais (OSs), com possibilidades até de cobrança de mensalidade.

    Ela conta que no início do movimento o tempo era de “vacas gordas” no que se refere ao apoio da sociedade. Recebiam muitas doações e faziam oficinas abertas para a população. Defende que graças à repressão policial, ameaças e muita propaganda midiática contra os alunos e seus familiares, muitos apoiadores ficassem mais distantes. Como pano de fundo, o tradicional conluio entre agentes do estado e pretensos empresários de um ramo com potencial de lucro.

    “Já fizeram o processo para a região de Anápolis e entorno. De três das empresas que ganharam a licitação, uma delas é da Maria do Rosário, ex-reitora da UFG, hoje no conselho estadual de educação e aliada do governo estadual. José Izecias, ex-reitor da UEG, já foi condenado por processo de corrupção e é uma das pessoas que foram licitadas. Seu escritório ganhou licitação para educação, cultura e saúde, porque a saúde aqui também está sendo gerida por OSs, e o escritório dele é o mesmo escritório de um outro advogado que, por coincidência, é o advogado do governador do estado”.

    Já a brutal violência policial, infelizmente, se tornou a assinatura do Estado brasileiro em toda e qualquer mobilização social que promova um debate mais amplo, qualquer seja a questão, e neste caso os graves casos de agressão e abuso de poder também dizem presente. “É perfeitamente possível perceber que toda a violência é arquitetada pelo governo do estado”, denuncia a professora.

    Confira abaixo a entrevista na íntegra.

    Correio da Cidadania: Acompanhamos que o movimento secundarista goiano se levantou após o anúncio do governo estadual de que mudaria a gestão das escolas públicas, passando-as para a administração das ditas Organizações Sociais. Como estava a situação das escolas estaduais de Goiás no período anterior a este estouro? Já havia indícios do novo plano de governo?

    Kim Xavier: Já está em funcionamento algo muito parecido com as Organizações Sociais (OSs): as escolas militares. Literalmente, escolas militarizadas cuja administração é totalmente feita pela polícia militar. Esse é um modelo que já temos de terceirização. Nesse modelo não há acesso para todos, é um modelo excludente. E eles se desculpam falando de uma avaliação que o aluno faz para ingressar, mas na verdade não funciona como na teoria. Na prática, é necessário alguém para indicar o aluno.

    Além disso, o fardamento custa 500 reais. É o uniforme que os alunos usam para poder estudar: uma farda militar – e cobra-se uma mensalidade. Também nas escolas conveniadas, conseguiram aprovar nos últimos períodos que fosse paga uma mensalidade.

    Em resumo, o governo propõe ou a militarização ou as parcerias com as OSs e ONGs. A grande maioria das escolas estava abandonada. Ficamos em uma escola ocupada na região nobre de Goiânia onde a maioria dos vidros da parte de baixo da escola já estava quebrada e a parte de cima – a escola é como se fosse um sobrado, tem o térreo e mais um andar – cheia de infiltração. Como estamos em época de chuva, pudemos verificar que todas as salas alagavam. Mesmo as escolas mais novas, as chamadas “escolas do século 21”, várias na periferia, dentre as quais pudemos acompanhar a Ismael Silva de Jesus. Essa escola inundava toda vez que chovia.

    No final das contas, temos escolas novas cheias de problemas e também escolas mais antigas e tradicionais sem reforma e manutenção há um bom tempo. Muitas vezes vemos placas anunciando reformas, mas no final fazem qualquer coisa. Por exemplo: colocar novas telhas no telhado da quadra e dizer que reformaram todo o espaço. É isso que, de modo geral, acontece aqui nas escolas do estado.

    Quanto ao fechamento das escolas, a José Carlos de Almeida é uma das escolas mais antigas e tradicionais de Goiânia. Ela foi fechada há um ano e meio e até hoje tem um diretor trabalhando lá. O que um diretor está fazendo na escola que foi fechada há um e meio atrás? Há outra escola, no Jardim América, um bairro de classe média, que está sendo fechada para ser uma base da Polícia Militar. Há vários casos de escolas que estão sendo fechadas, em algumas já foi possível reverter o processo com pressão popular, como a Pedro Gomes, uma escola também antiga daqui de Goiânia.

    Correio da Cidadania: E como se deu o processo de ocupações no seu início, tendo em vista essa influência policial militar no governo estadual?

    Kim Xavier: Tanto as ocupações daqui quanto as de São Paulo se inspiram na Revolução dos Pinguins no Chile (documentário sobre a revolta chilena disponível ao final desta entrevista), que foi uma luta contra a terceirização e a reorganização escolar que aconteceu dentro do Chile.

    Temos um link com algumas pessoas do movimento secundarista de São Paulo, tivemos uma visita há um mês de três estudantes da Fernão Dias (segunda escola a ser ocupada em SP), e agora veio mais um pessoal do movimento secundarista de São Paulo. Temos essa conexão, mas tem coisas que temos de analisar sob diferentes pontos de vista.

    O movimento de São Paulo foi vitorioso, em parte, porque os estudantes já começaram a se posicionar no processo de greve do ano passado. Vários foram apoiar os professores. Várias escolas entraram em greve estudantil. Conheço diversos casos onde tinham 30 alunos ajudando uma ocupação. Muitas vezes com os apoiadores ficando do lado de fora da escola, em barracas. Aqui o processo se dá de forma diferente.

    Em Goiânia, desde o sucesso do Movimento Passe Livre em 2013, os secundaristas têm estado um pouco desligados das questões sociais. Participavam de alguns protestos discretamente, só agora estão retomando. Portanto, foi feita a organização para ocupar as escolas através dos atos de rua contra as OSs e o fechamento das escolas.

    Houve o primeiro ato, vamos falar dele adiante. No segundo ato já fizeram a ocupação da José Carlos de Almeida, a escola que estava fechada. Seria até mais fácil de ser ocupada por causa disso e assim foi. A partir desta escola, ocuparam o Liceu de Goiânia, uma escola muito antiga e tradicional, considerada a melhor escola do estado e declarada patrimônio da humanidade, enfim, há uma série de questões envolvendo-a.

    O Liceu sempre teve alunos bem politizados. Os alunos do José Carlos de Almeida também são mais politizados, e assim contribuíram muito no processo. A seguir se deu a ocupação do Robinho (Colégio Estadual Robinho Martins de Azevedo), e vai-se para um contexto de periferia, acelerando o processo de ocupações. Teve dias que contamos três ou quatro ocupações. Chegamos a ter 27 ocupações no estado.

    Correio da Cidadania: Qual a relação do movimento com a sociedade civil?

    Kim Xavier: No começo, a quantidade de doações para as escolas foi algo surpreendente. Vários pais e pessoas das comunidades sempre levavam alimentos. A gente brinca dizendo que houve a época das vacas gordas e agora estamos na época das vacas magras. Houve uma doação muito grande de alimentos. As pessoas vieram para as escolas, tinham oficinas, houve a tentativa de promover muitos espaços de ensino e cultura, e realmente funcionou muito bem antes de começar a repressão e criminalização policial.

    Muitos pais apoiam o movimento e em todas as escolas que estive vinham pais visitar. Fizeram jantares com os pais nas escolas, houve reunião com eles tentando explicar o que estava acontecendo. Mas o governo foi convencendo as pessoas ao fazer pressão nas secretarias das escolas, deixando a comunidade contra o movimento, através de propaganda na televisão e no rádio, além de lideranças regionais dos partidos de direita, como o PSDB por exemplo, que tentaram minar as ocupações o tempo todo.

    O que aconteceu no Ismael foi isso. Políticos do PSDB se juntaram a um diretor da escola próximo do partido para desmobilizar a ocupação. Conseguiram apoio do Conselho Tutelar, da Associação de Moradores, tudo para derrubar o movimento dos alunos com o argumento de que estariam atrasando o calendário escolar e atrapalhando os estudantes.

    Desta mesma forma, vários outros colégios foram sofrendo ataques. No Cecilia Meireles, de Aparecida de Goiânia, vimos a coordenadora e mais alguns professores contra o movimento dos alunos. Existe um adendo importante sobre a questão da participação dos professores no movimento daqui: há várias escolas de tempo integral nas quais os professores ganham uma gratificação para poder ficar no segundo período, ou seja, o dia inteiro. Não podem ter uma falta sequer. E até atestado têm de levar com reconhecimento de firma no cartório.

    Portanto, a situação está complicada até em relação aos direitos dos professores. Muitos professores ficam contra o movimento por estarem perdendo a gratificação. Os professores que estão apoiando o movimento o fazem à parte do sindicato dos professores de Goiás. No caso do Cecília Meireles, os professores, junto com a coordenadora e alguns alunos, tentaram por várias vezes desocupar. Chegaram a quebrar o portão da escola para poder entrar. A escola acabou desocupada, mas não dessa forma. Entraram em acordo com a comunidade e já até fizeram manifestação contra as OSs por lá.

    Na minha opinião, o maior ganho em todo o processo é conseguir o contato maior com a comunidade e fazer com que ela abrace a causa. O tempo todo na televisão tem propagandas do governo do Estado – e eles investem muito em propaganda – a mostrar as escolas como se fossem a Terra do Nunca. E ninguém acredita no que se fala na televisão, tamanha é a mentira que se veicula.

    Outro processo interessante foi o das escolas do centro. No Liceu, por exemplo, a Secretaria de Educação passa os contatos de telefone e endereço dos alunos para a Secretaria de Segurança Pública para que a ordem de reintegração de posse chegue endereçada aos secundaristas daquela escola, com multas altíssimas, como 50 mil reais ao dia. E a intimação chegou na casa de alunos. Outra coisa que a Secretaria de Educação faz é passar dados para o Conselho Tutelar; o Conselho liga para os pais e diz que se os alunos não saírem eles correm o risco de apanhar da polícia, sofrer retaliação e serem processados pelo Estado.

    Correio da Cidadania: A respeito da repressão policial, o que você pode contar? E, aproveitando o gancho, fale um pouco mais da importância desses altos gastos estatais em propaganda oficial dentro da tática da repressão.

    Kim Xavier: No primeiro ato, antes das ocupações, a polícia jogaria jatos de água para dispersar a multidão, como normalmente fazem. Mas jogaram jatos de esgoto nos manifestantes. Alguns foram parar no hospital por intoxicação. No quarto ato, que seria o segundo cadeiraço, havia vários policiais infiltrados e foi roubada uma câmera da mão dos estudantes. Essa câmara era da UFG, Universidade Federal de Goiás. Foi comprovado que o sujeito que afanou a câmera era um “p2”, a polícia chegou para defender este infiltrado apontando armas na cara dos estudantes secundaristas e isso pode ser comprovado por vídeos e fotos.

    Policiais à paisana também marcaram presença na frente das escolas tentando filmar e registrar o cotidiano. Isso sem contar as ameaças. No Dantas, que é uma escola na periferia, a polícia jogava bombas por dias seguidos e a própria comunidade via que eram viaturas da polícia que paravam e jogavam as bombas. Passei a virada de ano nessa escola e jogaram uma bomba que caiu muito perto de onde estávamos, e olha que nem perto dos muros era. Como jogaram uma bomba tão longe? E não eram bombas como as de efeito moral ou gás lacrimogêneo, mas bombas de festa junina, de pólvora, semelhantes a rojões. Muitos alunos nunca haviam passado por situações de violência como essa e ficaram assustados.

    No Ismael foram expulsos debaixo de agressão polícia. A polícia invadiu a escola por volta das seis da manhã, chutaram muitos alunos, uma menina levou uma cadeirada nas costas e os professores que foram lá buscar os alunos foram seguidos pela polícia e policiais à paisana os obrigaram a ir até a delegacia sob alegações de que se não fossem seriam presos. Eles foram e prestaram depoimento falando sobre qual era o envolvimento deles com os alunos e com a ocupação daquela escola. Ainda prestaram outros depoimentos.

    Vimos a forma que fizeram para criminalizar o movimento. No Robinho, escola periférica que citei antes, entraram pessoas mascaradas. O curioso é que logo depois do processo de violência, depois que pessoas vêm, xingam e ameaçam os alunos, começam a chegar as viaturas da polícia. Também aparece o superintendente do Seduce.

    É perfeitamente possível perceber que toda a violência é arquitetada pelo governo do estado. Inclusive, nessa semana que passou um estudante do Ismael, ao voltar para casa depois de visitar ocupações, foi perseguido por policiais na rua que tentaram prendê-lo, mas felizmente não conseguiram.

    Comigo já aconteceu. Durante uma visita a uma escola furaram o pneu do meu carro à faca e dois dias depois vi uma tentativa de abrir à força o portão da escola. Na ocasião, eu estava chegando na escola de noite e a viatura estava com o farol apagado no meio da rua. Por pouco eu não consigo entrar, já com a polícia lá dentro, e na hora que consegui chegar eles estacionaram a viatura bem na frente do portão.

    Todos os casos são tentativas de amedrontar, fazer advertência, inclusive ligações anônimas foram feitas para os alunos e muitas famílias. Já conhecemos a forma ditatorial e autoritária do governo do Estado, portanto, já esperamos essa reação da parte deles.

    Correio da Cidadania: Como você explica a invisibilidade midiática desta luta, levando em conta tudo o que tem relatado neste entrevista?

    Kim Xavier: A imprensa em geral vem blindando o governo e não é de agora, sempre foi assim. A imprensa sempre tenta proteger o governo. Como nas últimas notícias, eles tentam colocar como se fossem os pais que tentaram desocupar as escolas e nós sabemos que não é verdade. No caso do Ismael, onde eu sei porque estava lá e posso te falar claramente que quem organizou a desocupação foram os próprios partidários do PSDB, partido do governador do estado.

    Temos um jornal que chama Diário da Manhã com o qual até brincamos falando que é o Diário do Marconi (Perillo, governador do estado) e logo nas primeiras ocupações saiu uma matéria de capa onde se criminalizou vários apoiadores. Até gente que na verdade nem estava apoiando entrou no mesmo balaio. Soltaram fotos de todos os apoiadores no jornal afirmando que todos eram do “Fora Marconi”, das manifestações contra o aumento da passagem, que alguns deles foram detidos na operação 3,30, a do aumento da passagem recente e outros nas jornadas de junho de 2013.

    Tentaram o tempo todo jogar a população contra as manifestações, o que se via claramente nos telejornais. Por isso que desde o começo houve uma resistência de se dar entrevistas para qualquer meio de comunicação, porque eles sempre cortavam, como foi o caso das primeiras entrevistas que foram dadas.

    Para quê? Para blindar o governo. Infelizmente, é uma situação que perdura há muitos anos e faz com que o governador continue no comando do estado – até porque ele é pré-candidato a presidente da República.

    A quebra da manipulação da mídia está começando a romper a barreira do estado. Vieram meios de comunicação alternativos, como a Carta Capital e a TVT, de São Paulo também, que fez uma matéria televisiva passando ao vivo o depoimento do Lucas, aluno do Ismael, a respeito da violência policial.

    Correio da Cidadania: Que prospectivas pode fazer a respeito do futuro da pauta colocada pelos estudantes?

    Kim Xavier: Analiso que agora vai haver uma quebra no movimento por causa do aumento da passagem novamente. Os movimentos, muitos apoiadores dos estudantes, estão tentando se articular com relação ao aumento da tarifa, que se deu de uma hora para outra (a partir de sábado, 6 de fevereiro).

    Importante lembrar que não temos concursos para professor do estado desde 2010. O salário, hoje, é assim para os contratados: se você fizer 20 horas vai ganhar um salário de 572 reais, e se você fizer 40 horas esse salário vai subir para R$ 1030. Os trabalhadores da educação vão ficar com o salário nessa média e ainda verão contratações de professores não formados.

    E com o processo de licitação? O que está garantido em edital é que fique em cada escola 30% do quadro. O que vai ser feito dos 70% do quadro de professores que estão em cada escola hoje? Eu acredito que vai ser feito um PDV (plano de demissão voluntária), já realizado em outras épocas aqui no estado, uma forma de indenizar o funcionário por sua saída do estado. E acredito que ou no meio do ano ou até o final de 2016 já devam sair os PDVs.

    Como ficarão com 30% dos professores da rede, fixos do estado em cada escola, acredito que vão fazer uma manobra, alguma coisa para dispensar os outros professores porque é muito mais barato os professores nessa medida de contratação do que através de concurso. Para os professores do estado, tem de se garantir pelo menos o piso, e a gente já sabe que os professores vão perder o piso.

    Já fizeram o processo para a região de Anápolis e entorno. De três das empresas que ganharam a licitação, uma delas é da Maria do Rosário, ex-reitora da UFG, hoje no conselho estadual de educação e uma das aliadas do governo estadual, há muitos anos. José Izecias, ex-reitor da UEG, já foi condenado por processo de corrupção e é uma das pessoas que foram licitadas. Seu escritório ganhou licitação para educação, cultura e saúde, porque a saúde aqui também está sendo gerida por OSs, e o escritório dele é o mesmo escritório de um outro advogado que, por coincidência, é o advogado do governador do estado. A empresa funciona no mesmo escritório.

    E a outra pessoa é o dono de uma editora que também tem ligação com o governo, já ganhou várias licitações, inclusive. Eles usam a justificativa de que quando se faz um processo de licitação, demora-se de três a quatro meses para fazer uma obra dentro de uma escola, e através das OSs, não: em três dias se resolve. Vejamos: se dentro de um processo de licitação há vários problemas de corrupção, imagina sem licitação? Eu acredito que vai ser ainda pior, e a expectativa é de que, infelizmente, do jeito que anda a situação, se forem feitas as desocupações como têm ocorrido vai ser complicado.

    Estamos em um processo de reestruturação do movimento para ver o que é possível fazer de agora em diante e qual seria a forma de atuação. Infelizmente, estamos vendo que isso vai tirar direitos dos professores, vai fazer com que a educação seja completamente privatizada, mesmo que eles digam que não é privatização, “porque a OS é uma aliada do governo no processo”, só que a OS não vai aceitar que continue o mesmo diretor de determinada escola, ou o mesmo professor; ela vai querer mandar na escola. E quando uma pessoa monta uma empresa, não monta CNPJ se não tiver lucro, se não vir que terá retorno daquilo.

    Há uma entrevista da secretária de Educação de alguns meses atrás em que ela fala mal das OSs, afirma que prefere a parceria público-privada. Na opinião dela, as PPPs são garantia de lucro, nas OSs nem tanto. Como ela muda de opinião de uma hora para outra? Isso é uma situação muito difícil. E o colégio José Carlos de Almeida, que foi a primeira escola ocupada das que falei, nos planos do estado deixará de existir para dar lugar ao Conselho Estadual de Educação e do Idoso.

    É muito complicado tirar um colégio antigo, tradicional, com a fachada em art deco, para transformar num conselho. Hoje o conselho tem um andar num prédio em Goiânia em um bairro de classe média, um bairro chique onde eles já fazem as reuniões. Portanto, como se tira uma escola tradicional para transformar o prédio em mais um órgão do governo?

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

  • Luta contra aumento das passagens em SP mostra o que virá em 2016

    Luta contra aumento das passagens em SP mostra o que virá em 2016

    choqueNão importa por onde comecemos a falar sobre as manifestações contra os aumentos da tarifa do transporte público de São Paulo; elas trazem características que provavelmente estarão presentes em todas as lutas sociais travadas nas ruas neste ano de 2016. E por isso é essencial entender o que está acontecendo, despindo-se de ideias pré-concebidas sobre os atores em questão. Podemos começar falando sobre a cobertura da imprensa, ou sobre a violência policial. Sobre a forma como se organiza o movimento, ou sobre a tática black bloc. Ou até mesmo sobre a ausência de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade. Todos são ingredientes já conhecidos, no senso comum, há pelo menos três anos.

    O que temos de novo é o aprimoramento da repressão. O chacoalho que 2013 causou nas autoridades levou a uma escalada repressiva jamais vista. Um 2014 de Copa do Mundo e um 2015 de crise e ajuste fiscal também serviram para as aulas práticas dos agentes da “ordem”. E por falar em ajuste fiscal e crise econômica, o Movimento Passe Livre – responsável por convocar os atos – fez um levantamento de gastos em suas páginas da internet, no qual chegou à conclusão de que a crise existe em diversos setores, menos nos recursos da repressão.

    Recentemente, foram comprados 6 blindados israelenses Plasan Sasa pela PM paulista. Segundo informações deste levantamento – feito a partir de dados divulgados por Metrô, SPtrans e imprensa – os veículos custaram 30 milhões de reais. Com essa verba seria possível comprar 100 ônibus, 272 ambulâncias, ou até mesmo financiar a tarifa zero por cerca de três dias para os 4,6 milhões de passageiros diários do metrô de São Paulo.

    O aumento entraria em vigor no sábado, dia 9 de janeiro. Vamos aos fatos.

    Primeiro ato: o caos

    Na sexta-feira, 8 de janeiro, o primeiro ato se concentrou no Theatro Municipal, a partir das 17h. Cerca de 6 mil pessoas saíram de lá às seis e meia e marcharam em círculos, contornando o próprio Theatro Municipal e o Largo do Payssandu antes de ganharem o Vale do Anhangabaú. Enquanto passavam pelo Vale, a Tropa de Choque se posicionava na lateral do Terminal Bandeira, onde se encontram as avenidas 9 de Julho e 23 de Maio.

    A multidão cruzou o Viaduto do Chá por baixo e buscou o acesso à avenida 23 de Maio. A tática do Movimento Passe Livre é exatamente essa. Trancar as ruas para chamar atenção à pauta. Concorde-se ou não, é desonesto afirmar que a ação policial foi decorrente da depredação de qualquer forma de patrimônio. O que se viu foi uma tropa de choque da polícia militar instruída a impedir a qualquer custo que a multidão trancasse a avenida 23 de Maio. E começou a chuva de bombas e balas de borracha, às 19h em ponto.

    Uma parte da multidão subiu em direção à rua Augusta, outra parte voltou na direção do Theatro, e assim toda a manifestação foi se dissipando pelo centro de São Paulo. Estava aberta a temporada de caça. Policiais rondavam ostensivamente as ruas em busca de manifestantes. Nesse momento, e não antes como insistem os grandes meios, alguns manifestantes – e nem todos mascarados – quebraram vidraças de bancos e tentaram fazer barricadas  no trajeto entre a entrada do Terminal Bandeira e a rua Martins Fontes.

    Podemos entender a atitude de diversas formas. O que esta reportagem viu foi uma reação – ainda que impensada – à repressão. Os jovens veem nos bancos um símbolo de opressão. Talvez a ação tomada no calor do momento seja questionável, mas a análise não. Basta uma breve pesquisada a respeito dos inigualáveis lucros de Itaú, Bradesco e Santander em plena crise econômica e ano de ajuste fiscal. E o recente veto da presidenta Dilma em incluir a Auditoria da Dívida Pública nos próximos planos de governo só joga água no mesmo moinho.

    O que a dívida pública tem a ver?  Tem muito a ver com isso, e que nos perdoe a presidenta, mas que pênalti perdido foi esse? Já funcionou no Equador, por exemplo, nosso vizinho.

    Relatos de agressões, abusos de autoridade e práticas questionáveis por parte da repressão começaram a pipocar nas redes sociais. Um deles, esta reportagem teve o desprazer de presenciar. A prisão dos quatro garotos, filmada também pelos Jornalistas Livres, na qual uma série de flagrantes foi forjada para justificar a ação. Os garotos foram conduzidos à base policial localizada na praça Roosevelt sob aplausos de um casal que frequentava a praça. Skatistas solidários aos garotos fizeram coro contrário, em repúdio aos aplausos.

    Na segunda-feira seguinte, o MPL fez o chamado “trancamento de ruas”. Trancou a Faria Lima, na altura do Largo Batata como uma prévia da manifestação do dia seguinte. Também recebemos informações de trancamentos na Lapa. Na segunda-feira, 18 de janeiro, véspera do quarto ato, destacou-se o trancamento do terminal Parque Dom Pedro, o maior terminal de ônibus urbano da América Latina.

    Segundo ato: a barbárie

    O segundo ato contra o aumento das tarifas não começou às 17h, na Praça do Ciclista, como previa sua concentração. Diversas questões anteciparam as tensões. Um vídeo “viralizado” na internet que mostrava um policial infiltrado agredindo uma manifestante e logo sendo agredido por outros manifestantes; um enorme conflito entre poder público e movimento social a respeito do trajeto; e, para variar, a irresponsabilidade dos grandes meios de comunicação na cobertura dos fatos.

    O vídeo citado gerou revolta em setores mais conservadores da sociedade, uma vez que foi lançado em página característica. Foram feitas prisões na casa dos manifestantes que foram filmados, em ações que fugiram do padrão exigido pelos códigos de justiça brasileiros. A não presença de oficiais de justiça com mandado de prisão ou algo do gênero pode vir a caracterizar uma ação ilegal por parte dos policiais envolvidos. Por outro lado, a grande imprensa não ficou atrás. Manchetes de jornais impressos chamando os manifestantes de “mimados”, “vândalos”, entre outros jargões, fez lembrar a mesma mídia de antes do grande massacre de 13 de junho de 2013, no qual muitos profissionais da imprensa foram atacados em nome de uma suposta “retomada” da Paulista, bradada no editorial de um desses famosos jornais.

    Outra questão levantada pela imprensa corporativa foi a de questionar a pauta de modo superficial. “Mas como se revoltam por uma aumento de 30 centavos e não dizem nada sobre os bilhões roubados?” Sejamos francos e menos canalhas. É tão óbvio quanto coerente que quem se revolta com o aumento do transporte público também está revoltado com a situação de crise e corrupção como um todo. Além disso, o MPL já deixou bem claro que não tem a proposta de dirigir um movimento mais amplo, mas, sim, pautar a questão do transporte público dentro das movimentações sociais e populares, por ser uma pauta com a qual eles já possuem acúmulo de mais de dez anos de estudos e atuação.

    Mais uma questão que abalou as relações entre a multidão e o Estado foi a respeito do trajeto a ser percorrido pelo ato. Os manifestantes haviam definido em reunião prévia que iriam para o Largo da Batata, em Pinheiros. A polícia militar fazia questão de que descessem para o centro da cidade e terminassem na praça da República. A distância para ambos lugares é praticamente a mesma a partir da Praça do Ciclista; acontece que além da decisão prévia sobre o destino do ato, a polícia havia preparado uma recepção, digna de autocracia, para os manifestantes ao longo da descida da Consolação e na chegada ao centro da cidade. O clima esquentava.

    A multidão se recusou, em jogral, a seguir o trajeto determinado pela PM, que por sua vez decidiu que por isso a manifestação não poderia acontecer. Por volta das 18h30, a multidão se dirigia para a Avenida Rebouças e era barrada pela PM. Havia bloqueios feitos pelas tropas de Choque e do Braço na Consolação, no acesso da Paulista à Rebouças e na própria Paulista pouco antes da esquina com a Haddock Lobo. Em outras palavras, os pouco mais de 4 mil manifestantes estavam encurralados.

    Na esquina da Paulista com a Consolação, próximo do acesso à Doutor Arnaldo, diversos jornalistas estiveram isolados da multidão pelo cordão policial e eram impedidos de trabalhar do outro lado. Isso antes e também logo depois das 19h, quando novamente começaram as bombas. Assim como na sexta-feira anterior, a repressão foi brava, mas nesse dia podemos dizer que foi um massacre. “Foi pior do que 2013”, afirmou o fotógrafo Sérgio Silva no calor do momento, ele que sentiu na pele (e no olho) a repressão de três anos atrás.

    O saldo final foi incalculável. Esta reportagem acabou envelopada na rua Sergipe junto com grupos de manifestantes que tentavam dispersar. “Todo mundo aqui cala a boca e senta em cima da mão que eu estou mandando”, afirmou o policial do Choque, sem identificação. Muitos jovens secundaristas estavam ali, e nitidamente desesperados. Em um breve espaço de tempo, consegui sacar o cartucho de memória da câmera, substituí-lo por um vazio, e esconder o que continha as fotos do dia – não são raros os relatos de material jornalístico apagado ou apreendido em situações como essa.

    Dois estudantes secundaristas tentaram argumentar e pediram calma aos policiais, que responderam com uma prisão por desacato e um espancamento em cada um. Um colega deles afirmou que eram estudantes do Fernão Dias, segunda escola a ser ocupada no ano passado. O nível de violência na ação e na postura dos policiais chamou a atenção de um professor da FAU que também acabou envelopado: “vou escrever um pós-doutorado sobre essa linguagem violenta com um relato disto que acabou de acontecer”, declarou. Vale lembrar que o envelopamento, ou “caldeirão de Hamburgo”, é uma tática proibida e já gerou polêmicas a seu respeito em fevereiro de 2014, durante manifestação crítica à realização da Copa do Mundo da FIFA que aconteceria dali a poucos meses.

    Após o envelopamento, o jovem Peterson Marques procurou a reportagem do Correio da Cidadania. Ele havia perdido os dentes da frente por causa da agressão policial. “Eu fui ajudar as meninas que estavam apanhando e comecei a apanhar também, na cara. Só percebi que tinha perdido os dentes quando fui cuspir”, contou. Ele foi para a Santa Casa, onde recebeu atendimento. No fechamento desta matéria, a última informação que temos é de que conseguiu um dentista que se ofereceu para fazer tratamento de canal e recolocar os dentes perdidos.

    Além de Peterson, o pintor Douglas Ferreira, de 24 anos, foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha e correu risco de perder a visão. Apuramos que já não corre esse risco. Além dele, houve centenas de relatos de feridos dos quais o jornalista Alceu Castilho tomou nota e cujo link está disponível ao final desta reportagem.

    A libertação dos três presos, o repúdio à ação da PM e o direito à livre manifestação se juntaram ao aumento da tarifa e deram o tom do ato que se realizou dois dias depois. Em contrapartida, governo do estado e prefeitura tentaram uma anticonstitucional liminar que impedisse manifestações – especialmente as do MPL, visto que em outras manifestações o tratamento é “diferenciado” – de serem realizadas sem uma aprovação prévia do comando da polícia militar em relação ao trajeto que percorrerá. É o poder público dando cada dia mais mostras da sua incrível capacidade de diálogo.

    Terceiro ato: paz com armas, vozes cansadas

    “Por favor, não jogue bomba”, dizia a camiseta de um manifestante, ainda na concentração no Theatro Municipal, e de certa forma expressava o clima de tensão que manifestantes, imprensa e transeuntes sentiam em relação à ação policial. Desde as 14h, três antes do início da concentração, a polícia já tomava toda a região do Vale do Anhangabaú e arredores da Praça Ramos – onde fica o Theatro Municipal, local de uma das concentrações do ato deste dia. Acompanhamos esta manifestação, que foi até o vão do MASP, passando pela avenida Brigadeiro Luis Antônio. A outra concentração foi no Largo da Batata, às 17h em Pinheiros.

    Ainda no Theatro, o jogral de início do ato comemorou a soltura de três manifestantes presos nos atos anteriores, mas lembrou que ainda restavam dois. Havia uma presença mais intensa da mídia. O ato partiu no sentido da Secretária Estadual de Segurança Pública, poucas quadras de distância dali. Chegando lá, encontramos uma secretaria altamente guardada pela PM. Foi feito um jogral criticando a política de segurança e pedindo a desmilitarização da polícia e o respeito aos direitos de se manifestar. O ato seguiu sentido Brigadeiro Luis Antônio, por onde subiria até virar à direita na Paulista e encerrar em frente ao MASP, onde foi feito outro jogral.

    Não houve muitos incidentes durante o trajeto, a não ser uma bomba que estourou fora do espaço da manifestação ainda no início da subida da Brigadeiro. Segundo manifestantes que estavam próximos, policiais as atiraram na direção de moradores de rua que ali estavam. “Houve um princípio de desespero e revolta, mas o povo se segurou e estamos seguindo. Hoje está bonito”, afirmou Luis Berti, livreiro. Também foi possível presenciar um policial da Tropa do Braço dando uma cacetada em um jovem que participava do cordão de isolamento dos manifestantes. Aparentemente sem motivo.

    De qualquer maneira, é importante ressaltar mais uma vez que a presença ostensiva e explicitamente intimidadora da polícia ditou o passo tímido deste terceiro ato. Mas nem tudo foi só intimidação e provocação. Também houve vias de fato. Uma breve confusão de aproximadamente 15 minutos entre manifestantes que tentavam pular a catraca da estação Consolação, na linha verde do metrô, gerou bombas e tiros dentro da estação por parte dos agentes do Estado e alguns vidros quebrados por parte de manifestantes mais exaltados. Este fato foi tomado como um todo pela “rigorosa” cobertura dos grandes meios de comunicação.

    Enquanto isso, na dispersão do outro ato, um fato ainda mais estarrecedor, que prossegue ignorado pelos mesmos rigores. Um grupo de manifestantes foi encurralado pela polícia na ponte Eusébio Matoso. Relatos dão conta de agressões físicas a manifestantes, incluindo até mesmo agressões sexuais. “Não havendo nenhum tipo de registro cinematográfico, espancaram todos com socos, chutes, spray de pimenta e cacetadas. Com as meninas a abordagem foi ainda pior: além de bater, as abusaram, colocando a mão em suas vaginas e tacando-as no chão, aos risos. Que tipo de instituição faz isso? Que tipo de instituição tem como parte do trabalho, além de espancar e desorientar pessoas por elas se manifestarem, também violentá-las sexualmente e, quem sabe, assassiná-las?”, desabafou a manifestante D.M. nas redes sociais. Nenhuma nota na grande imprensa.

    E na semana em que publicamos essa primeira reportagem sobre os atos contra a tarifa, a dura vida paulistana continuará sacudida pelas manifestações contra o reajuste nos ônibus, trens e metrôs. Se a cidade vai parar ou a nova tarifa se imporá, os próximos dias dirão. De toda forma, continuaremos registrando os novos e candentes capítulos das disputas sociais e econômicas que marcam esse incerto período da história brasileira.

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 20 janeiro de 2016

  • “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    “Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab”

    viaduto-alcantara-machadoA população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).

    A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.

    “A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.

    O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.

    “A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.

    Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.

    Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?

    Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.

    A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.

    Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.

    Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?

    Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.

    Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.

    Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?

    Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.

    Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.

    A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.

    Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?

    Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.

    Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.

    Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?

    Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.

    Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.

    Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.

    Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?

    Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.

    Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.

    Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.

    É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

  • A vitória parcial dos estudantes de SP é desdobramento autêntico das jornadas de junho

    A vitória parcial dos estudantes de SP é desdobramento autêntico das jornadas de junho

    “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto”
    Darcy Ribeiro

    Foto de Alonzo Esteban

    Foto de Alonzo Esteban

    Não foi na última segunda-feira, com o vazamento do áudio da reunião realizada entre o chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Educação, Fernando Padula, com dirigentes regionais do ensino público, que começou a guerra aos estudantes paulistas. Também seu final não será decretado com a queda do secretário de educação Hermann Voorwald, que na tarde desta sexta-feira, 4 de dezembro, deixou o cargo com o rabo entre as pernas. Muito antes da incursões policiais clandestinas nas escolas, da repressão brutal aos estudantes que fecharam ruas e da guerra informacional feita a partir de boatos de uma depredação que nunca existiu – existem sim, inúmeras provas contrárias ao boato, basta buscar na fonte – o Estado de guerra já havia chegado às escolas sob a forma do ensino precário, da falta de acesso ao patrimônio escolar, entre outros sintomas. Em uma expressão: abandono calculado.

    Um dado curioso do movimento secundarista talvez remonte à influência dos secundaristas chilenos de 2012. Se por um lado o protagonismo dos estudantes é valorizado, a ponto de expulsarem de ocupações até mesmo organizações de esquerda que por alguma razão tentaram tomar as rédeas da luta secundarista (e que provavelmente usarão as fotos das visitas em campanha), por outro lado há um enorme espaço aberto para a sociedade organizada participar da luta. O verbo é “somar” – não “dirigir”. Quem se recusa a entender isso, simplesmente não compreendeu nada do que houve nas ruas de São Paulo, e do Brasil, de 2013 para cá.

    Essa espaço de abertura de participação está no princípio do movimento e foi o que tornou possível o entendimento da realidade das escolas por parte das redes de apoiadores, muitas vezes ausentes da escola há mais de dez anos. Professores de outras escolas, jornalistas, médicos, enfermeiros, socorristas, artistas, cozinheiros e toda sorte de gente que vê na luta dos secundaristas algo em que se apoiar para o futuro esteve nas centenas de escolas ocupadas ao longo das últimas semanas oferecendo oficinas, aulas públicas e rodas de conversa. Foi em um desses eventos que este Correio pôde estar mais próximo da realidade de uma das escolas ocupadas.

    E.E. Maria José Ocupada

    Na sexta-feira, 27 de novembro, a declaração de guerra não havia sido verbalizada nas redes, mas os estudantes já estavam em alerta. Ao chegar, por volta das 8h:30m na Escola Estadual Maria José, na rua Treze de Maio, centro de São Paulo, encontrei alunos sérios e cautelosos na porta, conversando entre si sobre as insistentes abordagens da Polícia Militar nos portões. “Estão vindo todo dia fazendo e um monte de perguntas, mas estamos preparados. Eles perguntam quantas pessoas tem aqui e nós só falamos que tem muitas, que tem bastante, mas não damos o número”, relataram.

    A escola atualmente comporta três ciclos educacionais: infantil, primário e secundário. De acordo com a proposta de reorganização do Governo do Estado, os ensinos primário e secundário seriam fechados e seus alunos transferidos para outras unidades, deixando a escola apenas para o ensino infantil. “Não queremos sair daqui, gostamos muito desse lugar e queremos melhorá-lo, como já estamos fazendo”, comentou um aluno do terceiro ano durante a roda de conversa sobre mídia e ativismo.

    A aluna Lilith Cristina, do primeiro ano do ensino médio, levou a reportagem do Correio da Cidadania para uma caminhada pela escola, e foi explicando em linhas gerais o que vêm acontecendo há anos por trás dos muros. Atravessamos o refeitório que fica logo na entrada e subimos uma rampa para visitar as salas de aula. “O que incomoda são essas grades, parece que estamos na Fundação Casa”, lamentou. Foi a primeira frase que lhe ocorreu. Depois mostrou as infiltrações na parede, carteiras em estado lastimável e os ventiladores quebrados – praticamente feitos sucata, sem a mínima limpeza e manutenção, com fios desencapados, poeira e tudo o que anos de descaso dão direito.

    Também cheio de pó estão os corredores e com as carteiras empilhadas. “Já era da rotina da escola antes da ocupação. Isso já estava assim, nós não mexemos. Inclusive eles começaram obras em algumas salas durante o período de aulas, tínhamos de prestar atenção na aula com um barulho de britadeira vindo do outro lado do corredor”, narrou.

    No andar de baixo, a quadra está em reforma, sem aula de educação física há 6 meses. Como paliativo, a jovem estudante explica que abriram um espaço ao lado da quadra, antes tomado por carteiras e entulho, para que as crianças batessem bola e jogassem boliche ao visitar a ocupação, algo que a diretoria não tem medido esforços para impedir. “A sala de recursos foi reformada pela ocupação e ninguém sabia que ela existia. Eu trouxe muitos jogos de tabuleiro de casa para o pessoal passar o tempo e, principalmente para as crianças, mas aqui tem muito mais jogos do que os que eu trouxe e eles ficavam trancados. Se eu soubesse que eles existiam, não precisaria ter trazido os meus”, contou Lilith.

    Mas o acesso negado à infraestrutura escolar não para por aí: “tem sala de informática, mas não podemos usar, não tem aula de informática para o ensino médio”. Também os instrumentos musicais, três violões e instrumentos de percussão sempre estiveram fora do alcance dos alunos, que sequer têm aulas de música e os descobriram após a ocupação.

    Uma queixa frequente, tanto da moça que conversou conosco quanto de conversas aleatórias com outros alunos é de que os professores não apoiam a ocupação e a diretoria faz todos os esforços para boicotá-la. Uma das atividades que Lilith Cristina explicou que estava sendo desenvolvida pelos estudantes ocupados era a criação de uma espécie de creche na ocupação, não exatamente nessas palavras, onde as crianças do ensino infantil pudessem passar o dia e participar de atividades enquanto os pais trabalham.

    “Nossa ideia é de até ajudar os pais e mostrar para eles que o que nós queremos aqui na escola é do interesse deles também, que a reorganização vai ser muito pior. Mas todos os dias, meia hora antes das crianças entrarem, o diretor fica na porta falando um monte de mentira sobre a ocupação, orientando mal os pais e alunos e nos impedindo de recebê-los aqui na escola por isso. Hoje faremos uma comissão especial para receber as crianças e pais”, contou.

    Uma das acusações da diretoria é de que possa haver uso de substâncias ilícitas na ocupação, prática que a reportagem do Correio da Cidadania não presenciou, pelo contrário, diversos cartazes proibindo o uso de drogas foram espalhados pela escola.

    A guerra

    Declarada a guerra em reunião dominical pelo chefe de gabinete da secretaria de educação, já na segunda-feira os estudantes da E.E. Fernão Dias e outras da zona oeste ampliaram a tática. Ao invés de simplesmente ocuparem suas escolas, levaram as carteiras para a esquina das Avenidas Faria Lima e Rebouças e ocuparam a rua. Em resposta, houve um verdadeiro massacre da polícia militar sobre os estudantes secundaristas.

    Paralelamente, pais e diretores contrários à ocupação contaram com o apoio da polícia para invadirem – sem mandato judicial – a E.E. Maria José. Depois de muitas “cenas lamentáveis”, os estudantes expulsaram os invasores e retomaram, dentro dos preceitos legais, a ocupação. Não só a “Ocupação Mazé”, como carinhosamente chamam os estudantes, mas houve a retomada em todas as outras escolas que sofreram o mesmo tipo de ataque. O preço dessas retomadas foram mais agressões a estudantes, ameaças, intimidações até mesmo à imprensa independente e a entrada de canais de televisão atrelados aos interesses daqueles que fecham escolas (e abrem prisões), que armaram a já obsoleta montagem do “vandalismo”.

    Acontece que assim como em 2013, a PM acrescentou à mistura um ingrediente sangrento que se voltou contra aqueles que a ordena e sua mídia aliada. Novamente, a narrativa alternativa às versões oficiais e burocráticas reverteram o fluxo informacional, principalmente nas redes. Essa outra narrativa, vinda dos próprios estudantes e dos veículos de comunicação que se solidarizam com eles começou a ganhar a opinião pública. Afinal de contas, apesar de realidade, essa situação tem contornos de ficção, tão absurda que é.

    Na terça, quarta e quinta-feira, mais estudantes ocuparam escolas, ruas, fizeram manifestações, barraram mais tentativas paramilitares de invasão das escolas ocupadas e colocaram a grande mídia de joelhos. Novamente vimos um certo apresentador da TV Bandeirantes se embananar ao vivo e matérias progressistas nos tabloides, ainda que alguns vídeos do canal de um desses tabloides na internet tenha sido reeditado, coincidentemente, no mesmo dia em que o governador visitou sua redação. A reação foi brutal. Prisões, balas de borracha, bombas, intimidação, força tática, choque, só faltaram os cavaleiros templários da ordem católica a qual pertence o governador, bem oposta à do Papa Francisco citado por ele no pronunciamento da tarde do dia 4.

    Alckmin perdeu força. Sua incapacidade de dialogar sem apontar uma arma na cabeça da outra parte fez com que sua popularidade e aprovação caíssem, segundo estatística Datafolha. Também o Ministério Público e a Defensoria Pública, em conjunto, se colocaram no caminho e pediram, na última quinta-feira, a suspensão da reorganização em todo o estado, a legitimidade da permanência dos estudantes nas escolas e a apresentação de um calendário de debate para o ano de 2016 em torno do assunto. A Justiça deu ganho de causa, deixando um prazo de 72 horas para que a Fazenda do Estado se manifestasse.

    O governador Geraldo Alckmin foi ele mesmo fazer o já citado pronunciamento, com a feições claramente cansadas e a derrota estampada no rosto. Puro teatro. Acatou as determinações da Justiça e adiou a reorganização para o ano que vem. Resta saber se o calendário de debates vai ser cumprido, se os estudantes serão respeitados enquanto ocupações e, principalmente, se todos os presos, feridos e agredidos durante essa semana de guerra imposta pelo Estado a um movimento de pessoas muito jovens serão devidamente indenizados e receberão pedidos públicos de desculpas dos seus agressores, mandantes e executores, públicos e privados.

    Como bem resumiu o colega jornalista Carlos Eduardo Alves: “quem não é de São Paulo talvez não entenda o significado do que aconteceu aqui hoje. Então faz assim: imagine seu estado dominado pela mesma força política há, no mínimo, 20 anos. Nunca nenhuma categoria organizada, seja sindicato, partido político ou qualquer outra força conseguiu deter projetos dos sábios tecnocratas, impostos na base do ‘eu sei tudo o que é melhor para vocês’. Aí, sem que ninguém esperasse, meninas (muitas) e meninos de 14, 15 e 16 anos enfrentam revólveres na cara, bombas, ameaças de brucutus e fizeram um governador sair transfigurado, quase correndo, de um pronunciamento em que admite a derrota do fuzil contra o estilingue. Foi isso o que aconteceu em 4 de dezembro de 2015 em São Paulo”, declarou.

    Enquanto isso, os estudantes permanecem nas ocupações. Segundo o seu próprio pronunciamento, feito às 19h30, horas depois da coletiva do governador, eles, organizados, decidiram manter as ocupações e estarão atentos aos movimentos institucionais. Foram enfáticos: “o recuo do governador é para nos desmobilizar”.

    Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

    Fonte: Correio da Cidadania, segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

  • Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

    Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

    Ricardo Antunes
    Ricardo Antunes

    Em entrevista do início do ano, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes já afirmava que “a falência do PT gera instabilidade política”, dentro de um governo praticamente “natimorto”. Em nova conversa com o Correio da Cidadania, além de reafirmar tais análises, Antunes descreveu todo o quadro de “crises econômica, política e social profundas”, o que torna tudo imprevisível até 2018, inclusive uma possível “reaparição heroica” de Lula. “Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência”.

    No entanto, como se trata de uma crise generalizada, que nega credibilidade a toda a classe política, a paralisia se estende a todos os atores em cena. “Como existe relativa autonomização do judiciário e da Polícia Federal, torna-se tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Não é apenas coleira (no sentido de oposição e partidos fisiológicos interditarem o governo). Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte, por outro, uma paralisia da economia é assustadora. É inaceitável também para os assalariados”, sintetizou.

    De toda forma, Antunes faz uma ampla análise do atual momento de Lula e do próprio processo histórico já denominado de lulismo, com seus traços “nefastos” e “centralizadores”, a impedir qualquer movimento de mudança dentro do PT. “É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT”, explicou.

    Diante do quadro, Ricardo Antunes lamentou que ainda não se tenha criado uma alternativa viável e prática no campo da esquerda, o que será ainda mais sofrível, em sua visão, nos próximos pleitos. Ainda assim, também destaca que no atual momento essa mesma esquerda alijada do jogo de poder não deve gastar demasiada energia em eleições, o que dá a ideia de urgência da reorganização através “das bases”, afirmação compartilhada por algumas outras lideranças.

    “Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso”, criticou.

    Por fim, além de prever uma nova era de rebeliões (ou “contrarrebeliões”), Antunes reitera o que ele e muitos outros chamaram de mitos desenvolvimentistas e seu voo de galinha, que agora volta a terra nada firme. “O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem”.

    A entrevista completa com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.

    Correio da Cidadania: No início do ano, você nos concedeu entrevista na qual afirmou estarmos diante de “governo natimorto”, fruto da “falência do PT”. Como enxerga essas assertivas diante da crise política, ética e econômica que já marcou todo o quinto ano de Dilma Rousseff na presidência da República?

    Ricardo Antunes: O quadro atual confirma minha formulação provocativa de meses atrás. A eleição que Dilma ganhou sinalizava uma vitória eleitoral difícil e uma acentuação ainda mais profunda de um governo antipopular, completamente favorável aos grandes e dominantes interesses, em particular do capital financeiro. E seguidor dos constrangimentos e imposições indicados pelo FMI e o receituário da ordem, qual seja, o governo deveria implementar, o mais rápido possível, um ajuste fiscal profundamente destrutivo em relação ao mundo do trabalho, cortar conquistas, reduzir outras dos assalariados em geral, aumentar juros e garantir superávit primário. De tal modo que, ao encontrar respaldo dos interesses dominantes, do mundo financeiro e produtivo (ainda que num contexto de crise), acreditou que poderia iniciar seu segundo mandato.

    De lá pra cá, além do agravamento da crise econômica, veio simultaneamente o agravamento exponencial da crise política. A Operação Lava Jato chegou aos núcleos dominantes do PT e aos laços de setores dominantes que controlavam as finanças do partido, inclusive com o empresariado mais destrutivo e corruptor, a exemplo da “burguesia empreiteira”. Tal crise foi ampliada pelo fato de o ajuste fiscal penalizar os setores assalariados (que garantiram a vitória de Dilma), empobrecidos e dependentes de Bolsa Família. Vale lembrar que Dilma perdeu apoio de parcelas dos assalariados e Aécio ganhou no ABC Paulista, mostrando como o derretimento petista se dá até no cinturão industrial de seu núcleo originário.

    As duras medidas do ajuste corroeram parte do que resta da base de apoio de Dilma entre os assalariados. Tanto que vemos com frequência manifestações de movimentos como MST e MTST contra o ajuste fiscal e a política econômica de Dilma, ainda que contra o impeachment. Só em poucos casos é claramente a favor do governo também.

    Porém, é visível que 10 meses depois da posse de Dilma o quadro é de completa imprevisibilidade. Em 13 de outubro, por uma liminar concedida pelo STF, Dilma conseguiu se livrar de um processo de impeachment, mas lembremos que é só uma liminar, a ser julgada mais adiante, além de outras iniciativas ainda em curso.

    Assim, respondendo a pergunta, o governo Dilma é um governo que não governa. Um governo que levita. Não no ar, pois não tem mais condições de voo; ele derrapa no chão molhado. Cada medida que toma é uma “desmedida”, pois não se efetiva. É claro que assim começa a perder uma base de sustentação importante, junto a amplos setores do empresariado, especialmente o industrial, que em função da alta de juros e da falta de perspectiva para a economia nos próximos meses começa a retirar o apoio que era forte até recentemente. Esse empresariado não se bandeia completamente para o lado do impeachment porque sabe que abriria uma crise social no país. Muitos fazem oposição ao governo Dilma, mas não aceitam uma medida tomada por um parlamento cujo nível de comprometimento está visceralmente degradado. Basta dizer que o presidente da Câmara está completamente envolvido nas corrupções que vêm impregnando a política brasileira nas últimas décadas.

    Portanto, não é possível que um parlamento dirigido por um político completamente envolvido em práticas de corrupção, conforme recente indicação do procurador geral da República, tenha legitimidade para depor o governo Dilma. Se o PT está envolvido até a medula em práticas de corrupção (o que está ainda sendo investigado), desde os inícios do governo Lula, não há ainda elementos que incriminem a presidência. Não há um elemento factível a dizer que a presidente da República, até o presente, envolveu-se diretamente com corrupção, contas e outros casos apresentados pela Operação Lava Jato.

    O quadro, portanto, é de crises econômica, política e social profundas. E gera uma completa imprevisibilidade sobre se Dilma governará nesse voo rasante e derrapante até 2018, ou se sofrerá impeachment nos próximos tempos, ou se conseguirá algum soerguimento em função da retomada de algum crescimento econômico, o que nenhuma avaliação minimamente lúcida indica – na melhor das hipóteses, apenas em 2017. Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência.

    E tem um elemento importante: em caso de queda de Dilma, seu vice também fica comprometido, de modo que aquela ideia que meses atrás ganhava força, de ter Michel Temer como espécie de paladino da ordem e da “frente amplíssima” pra preservar o impreservável, não cola mais. Afinal, o comprometimento da Dilma seria a partir das contas de campanha, que envolvem a presidência, ou das chamadas pedaladas, à medida que estendidas a 2015, supondo que levadas adiante, também envolveriam a vice-presidência da República.

    Assim, veja o tamanho da tragédia. Ou farsa. Dilma cai acusada de corrupção junto de Temer, o presidente da Câmara (Cunha) toma posse de 90 dias, e o flanco fica aberto, pois este seria atacado por todos os lados por ter deixado rastros em todos os pontos por onde passou.

    Correio da Cidadania: Desse modo, é precipitado reduzir a hipótese do impeachment à mera coleira política do mandato de Dilma, a ser usada pelo maior tempo possível.

    Ricardo Antunes: Certamente. Não é apenas coleira. Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte no país, por outro, uma paralisia completa da economia é assustadora para o empresariado. É inaceitável também para os assalariados. O que os trabalhadores(as) estão vendo? Milhares de demissões. Quando não são demitidos, têm de negociar com uma faca no coração e uma espada nas costas para aceitar uma redução da jornada com redução salarial, a antessala do desemprego.

    O capital financeiro, claro, percebe a alta dos juros e a ciranda financeira favorável, mas na medida em que tem de controlar o crédito quase sem poder emprestar, pois o risco de calote é enorme, cria toda uma paralisia econômica. E o movimento de rua das classes médias conservadoras, hoje, digamos, mais retraído, pode voltar, naturalmente. Pra completar, 2016 é ano eleitoral.

    Não havendo o impeachment, se tenta uma alternativa onde o governo reina, mas não governa. Mas Dilma nem sequer reina. Isso é feito pelo “primeiro-ministro”, que até semanas atrás pautava a vida política do país, mas não sabe até quando será presidente da Câmara. Por certo tem o risco, crescente, de perder até o mandato, pois deixou rastro em todos os lugares por onde andou: contas esparramadas em varias áreas, com digitais, passaporte diplomático… E como existe relativa autonomização do poder judiciário e da Polícia Federal, não é possível controlar tais movimentos, o que torna tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado.

    Correio da Cidadania: Como enxerga a figura de Lula em meio à crise política? O que se pode esperar deste político, ou deste ‘personagem’, ou do que se chama de lulismo, para os próximos tempos?

    Ricardo Antunes: Primeiramente, o fenômeno do lulismo é muito recente. Fui dos primeiros a tratar algumas pistas a respeito, em dois livros de artigos – A Desertificação Neoliberal do Brasil e A Esquerda Fora do Lugar. A figura do lulismo é ainda pouco conhecida entre nós, embora se possa ter muitas pistas, como vem se dando desde 2002 pelo menos.

    Em rápidas palavras, o lulismo é a figura carismática e em momentos de apogeu foi quase messiânica, de um líder que conseguia atingir as duas pontas da classe trabalhadora. No apogeu do Lula, ele tinha um respaldo quase inquebrantável da classe trabalhadora organizada brasileira, aquela classe trabalhadora que tem formas de associação sindical ou de algum outro nível, onde Lula era sua principal liderança. Não sem razão. É preciso dizer que Lula foi, talvez, a maior liderança sindical do século 20 brasileiro. É passado, mas foi. E foi com base nessa trajetória, de 1975 até 1989, e depois até 2002, algo real, que ele se tornou uma liderança nacional.

    O lulismo, e em particular seu personagem, está também atado de forma indissolúvel à figura do Lula – assim como o varguismo está atado a Vargas e o brizolismo à figura do Brizola. Mas o lulismo não tem herdeiros. É um limite entre tantos outros do Lula. É tão autocentrado e personalizado que não tem herdeiros. O varguismo ao menos teve o janguismo e o brizolismo como herdeiros, entre outros que não eram Vargas, mas tentaram remar de forma similar. O lulismo não tem herdeiro algum.

    No entanto, como dito anteriormente, com a crise do mensalão, a primeira devassa que se abateu na alta cúpula do PT, mostrando a corrupção política e, como sabemos hoje, com grandes traços de corrupção privada e enriquecimento pessoal, foi uma crise profunda. E a crise de 2005 tem muitas similaridades com a atual. Não tenho dúvida de que o Lula esteve a alguns segundos de sua renúncia naquele fatídico ano. Não tenho nenhuma dúvida disso, embora não tenha elementos objetivos. É pura intuição. Não sei se os leitores lembram de uma entrevista que ele deu na França, a uma jovem jornalista, completamente perdido. Seus olhos rodopiavam mais que pião. Só girava, não sabia o que responder. Dizia-se alvo de traição de dentro do próprio PT.

    Depois de passado aquele período, Lula ganhou as eleições em 2006 e começou seu segundo governo. Houve uma mudança importante, conforme escrevi na época: “Lula começava a migrar da classe trabalhadora mais organizada para os setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, que vivenciam os trabalhos mais precarizados, até o completo não trabalho e desemprego, típicos das populações pobres dos rincões brasileiros, onde o programa Bolsa Família teve incidência”. Vamos lembrar que o Bolsa Família começou no segundo mandato. No primeiro mandato o programa era o Fome Zero e foi um fracasso completo.

    O Bolsa veio com um novo desenho, atingiu milhões de famílias e criou um bolsão eleitoral, que no fundo era uma tragédia política. O Bolsa Família garantia a sobrevida de famílias paupérrimas. A miséria poderia ser eliminada através de reformas estruturais profundas, pra diminuir a miséria brasileira, a exemplo do que seriam reformas agrária e urbana profundas e mudança do padrão capitalista brasileiro… Nada. O governo passou longe disso e o Bolsa Família passou a ser um modus operandi perpetuador do governo Lula. Com o Bolsa, o PT teria uma base excedente garantidora das vitórias eleitorais.

    Esse segundo substrato de apoio ao lulismo garantiu a perda de apoio do Lula em setores organizados da classe trabalhadora. Quando vimos que nas eleições o Aécio – essa figura grotesca da direita brasileira – teve mais votos no ABC do que a Dilma, mostrou-se o tamanho da perda de apoio ao lulismo nos estratos organizadas da classe trabalhadora brasileira – embora no ABC haja uma classe média expressiva, ainda é um cinturão industrial. E a perda também atingiu as periferias.

    É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. E quando a criatura vai à falência, como a Dilma, uma parte expressiva da conta vai para o criador, pois é corresponsável pela falência política do governo de sua criatura, a exemplo de Paulo Maluf com Celso Pitta em São Paulo. Aliás, outro erro grave de Lula é a indicação de uma pessoa completamente inexperiente, pois qualquer um com o mínimo de lucidez sabia que na crise a Dilma não daria conta – e sou obrigado a dizer de novo que meus artigos apontavam isso na época.

    Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT. Ninguém faz nada dentro do PT que não seja completamente dependente de Lula. Qualquer mínimo exercício de autonomia é tolhido por Lula, outro traço certamente nefasto do lulismo.

    A intuição que tenho é que para Lula ganhar uma eleição vai ter de suar muito a camisa, vai ter que usar muito a voz, que já sabemos não ser mais a mesma, nem literal, nem metaforicamente. Vai ter de suar demais, porque o desgaste do PT é poli e multiclassista. Esse é o dado novo. Ele perdeu o apoio decisivo das classes ricas, dominantes e proprietárias. De forma devastadora, perdeu apoio das classes médias tradicionais – o mito de que o PT criou uma nova classe média não pode ser levado a sério. E perde apoio, também exponencial, nos vários estratos distintos, “compósitos e heterogêneos”, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, que fazem parte da nossa classe trabalhadora. E Lula sabe de tudo isso.

    Só uma mudança muito profunda de situação, com expansão econômica em 2017, a apagar um pouco da tragédia atual, pode dar-lhe sobrevida. Hoje não tem, e se imaginar que tem sobrevida garantida estará errando mais uma vez. Sua sorte é que a oposição mais à direita – porque o PT tem um amplo leque de direita ao seu lado – não tem candidato forte. Aécio saiu fortalecido da última eleição, porque seu nome tornou-se mais nacional, mas o próprio PSDB não se entende, e o Alckmin não quer deixar que as Minas Gerais novamente carreguem a bandeja.

    Já as esquerdas do PT não foram capazes de esboçar até hoje uma confluência política de tantos movimentos sociais e sindicais que pudessem gerar novas lideranças. De certo modo, já vemos novas lideranças aparecendo em movimentos. Na última eleição, Luciana Genro qualificou-se como jovem candidata de esquerda, corajosa e capaz de tratar temas contemporâneos com qualidade. Mas ainda não conseguimos criar confluência social e política. Há algumas lideranças como a de Luciana Genro – à medida que tem ligações fortes com PSOL e a juventude – ou o Boulos do MTST, em São Paulo, mas estamos aquém de ter uma alternativa. Portanto, o quadro para 2018 também é muito nebuloso.

    A única coisa que me parece evidente é que imaginar o Lula vencedor das eleições em 2018 significa não ter ideia do nível de corrosão que o PT e todos os seus dirigentes vêm sofrendo, de modo devastador.

    Correio da Cidadania: Já que você falou de Boulos e Genro, o que pensa das iniciativas de reação a esse quadro de retrocessos generalizados, tanto dentro quanto fora do escopo governista, a exemplo da Agenda Brasil (mais governista) e da conformação da Frente Povo sem Medo?

    Ricardo Antunes: São manifestações distintas, embrionárias e num quadro defensivo. Quanto à primeira das citadas, pensar numa Frente de Esquerda com liderança do PT enseja a pergunta jocosa: “a Odebrecht vem junto?” É uma piada. Se não fosse verdadeiro, seria piada. Frente de Esquerda com o governo que está em seu quarto mandato e ainda não tomou nenhuma medida de esquerda, nenhuma, que minimamente contrariasse os interesses dominantes, é piada. De novo: não tomou nenhuma medida de esquerda. Não houve nada no sentido de falar “agora o governo é popular e o país não vai ser mais o mesmo”.

    Não houve taxação de grandes fortunas; não houve reforma tributária progressiva, algo elementar, no sentido de tributar mais quem tem mais e destributar a classe trabalhadora; não houve nenhuma mudança da estrutura agrária, pelo contrário, o PT foi espetacular para o agronegócio. A burguesia agrária, devastadora, que não faz outra coisa se não aprofundar o uso de transgênicos e pesticidas, foi inteiramente beneficiada pelos governos do PT.

    Portanto, uma “Frente Popular” ou “Frente de Esquerda” com o PT é provocação. Só se for uma Frente de Esquerda para carregar cadáver político. O PT tem de ser responsabilizado por suas atitudes. Claro que me refiro à ala dominante do partido e separo certos núcleos de base, as pessoas sérias, a militância que acreditava num partido diferente, como nos anos 80.

    Mas o núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos movimentos, e dizer “vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda”. Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso.

    Naturalmente, sou contrário ao impeachment. Até prova cabal de que a presidência esteve diretamente envolvida em corrupções, como se prova hoje em relação a Cunha (e como deveria se provar com as muitas “Lava Jatos” de governos de PSDB, DEM etc.). As pedaladas podem ser reprováveis, mas aí teríamos de “cassar” os mandatos de FHC e de todos os governos e prefeitos que fizeram e fazem o mesmo. Elas podem ser reprováveis, mas não podem valer somente com um governo.

    Iniciativas como a “Frente Povo Sem Medo” e vários outros movimentos têm uma dificuldade interna. São muito importantes para dizer, por exemplo, que o Levy é, sim, o governo Dilma. Ele não foi imposto contra a vontade. Primeiro, ela tentou o Luiz Carlos Trabuco e por sorte deus nos livrou desse trambolho, como o próprio nome indicava. Aí veio o Levy. E as medidas do Levy são as medidas de Dilma. E do PT também, pois o Lula tem dito que é preciso apoiá-las.

    Outro ponto: dizem que Levy não tem apoio do PT. Mas nunca vi uma nota pública do Lula desqualificando Levy. O Lula, pícaro que é, vai no MST e faz um discurso bravio. Depois vai na Dilma e fala “maneira, Dilma, entrega tudo ao PMDB, até a alma”. Importante é ver que a tragédia, que ruiu em 2015, foi toda arquitetada por Lula: uma frente de conciliação entre modos de ser incompatíveis e antagônicos. Mas Lula tem uma habilidade política espetacular, é um homem da conciliação. E a Dilma é da rejeição. O que ouvimos dizer é que a convivência diária com a Dilma é infernal. Ela é autoritária, autocrática, mandonista, impositiva. O oposto do Lula, uma figura “encantadora” para praticar, espetacularmente, a conciliação.

    Ou seja, o PT foi fagocitado justamente por aquilo que criticou. O PT nasceu nos anos 80 criticando a política de conciliação de classes do velho PCB. O PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação na qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. Agora o demônio quer de volta os velhos executores de sua política.

    A questão dessas manifestações é: muito dificilmente se pode criticar o Levy e defender Dilma. Eu não concordo com isso. Criticar o Levy nos obriga a dizer que o governo Dilma é nefasto e antipopular. Mas é muito difícil dizê-lo e, ao mesmo tempo, também conforme penso, afirmar que não dá pra aceitar a derrubada do governo. Hoje seria com a Dilma, mas amanhã poderia ser contra Luciana Genro ou qualquer governo popular. É inaceitável. Não falo de golpe militar, mas parlamentar. Como todos sabem, em 1964, quando Jango saiu de Brasília a Porto Alegre para buscar forma de resistir ao golpe, o parlamento e os Cunhas de então legitimaram a “vacância do cargo” e o golpe militar.

    Por isso que o atual parlamento está na sarjeta. É das instituições mais repudiadas e tenho impressão de ser mais rejeitada que a Dilma, com essa bancada BBB, mais o capital financeiro e tudo o mais que há por lá, salvo pequenos núcleos ligados às esquerdas, que são minoritários.

    Correio da Cidadania: Estamos diante da maior taxa de desemprego dos últimos cinco anos. Já se pode fazer um balanço contundente a respeito das políticas de ajuste fiscal ditadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e suas graves consequências sociais em geral e para o mundo do trabalho em particular?

    Ricardo Antunes: Existe a aparência de algo nefasto porque esse projeto é essencialmente nefasto. É o projeto do sistema financeiro, no sentido de ser momento de enxugar o Estado em tudo que diz respeito às suas atividades públicas e sociais. O que se gasta com a dívida pública e juros que se remuneram ao sistema financeiro é muito maior que todo o arrocho praticado pelo ajuste fiscal de 2015.

    Bastaria outra política, de contenção de juros, antiespeculativa, com outro rumo, o que neste momento, com esse governo, seria impossível. Mas ninguém poderia esperar em outubro de 2014 uma guinada à esquerda do PT, depois de 12 anos servindo as direitas e aos capitais.

    A Dilma não poderia fazer diferente, portanto. Podia continuar o que já vinha fazendo, o que daria em curto-circuito, ou jogar a conta em cima dos assalariados, como feito. O ajuste se resume ao mesmo que as classes dominantes sempre fizeram em tempos de crise: jogar a conta para a classe-que-vive- do-trabalho, que depende do salário pra sobreviver. E hoje não tem emprego, não tem seguro-desemprego e vivemos uma situação mais triste que anteriormente.

    O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Era uma redistribuição por dentro dos assalariados. Os capitais só engordaram e cresceram no Brasil da era Lula.

    Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem. As respostas da classe trabalhadora serão duras contra o PT. E será triste se não formos capazes de ao menos germinar alternativas à esquerda, capazes de canalizar o descontentamento e não deixá-lo ir pra direita, desse modo tosco e bruto que vemos.

    Que ao menos comecemos a reinventar a ideia de outro modo de vida, outro modo de produção, outra organização da política, que recuse essa institucionalidade. Um modelo mais democrático, mais popular, mais fundado na soberania do povo, com mais assembleias e plebiscitos. Enfim, o exercício de alguma coisa de novo tipo.

    Correio da Cidadania: Diante do que você espera de uma continuidade do mandato de Dilma e suas consequências na vida política nacional, o que restará para a população, em termos de condições de vida e trabalho?

    Ricardo Antunes: Vários movimentos. Deterioração das condições de vida, destroçamento do que resta da res publica, com a saúde e a educação públicas ficando mais precarizadas. O governo estadual do PSDB fecha escolas! Ou seja, a coisa passa por todas as esferas de governo. Quando Levy anunciou suas primeiras medidas, a pasta que mais sofreu cortes foi a Educação. Essa tendência vai aumentar.

    Paralelamente, vamos ter aumento das revoltas e rebeliões. É evidente. A população das periferias adquiriu um novo patamar de consciência de seus direitos e das tragédias que permeiam o país. A Copa das Confederações (em junho de 2013) conjugou três movimentos: as rebeliões do mundo inteiro (Oriente Médio, EUA e Europa), a percepção da falência do mito do projeto lulista e, por fim, o fato de os megaeventos esportivos mostrarem que havia dinheiro pra estádio, pra Copa, pras transnacionais, mas não pra educação e saúde.

    Não é difícil imaginar, novamente, uma situação de curto-circuito com esses três fios se interseccionando e reaparecendo um quadro favorável a rebeliões de massa. Se não caminhar em tal direção, teremos rebeliões episódicas e moleculares em todo o país, mais ou menos passivas. Greves também, coisa que o Brasil só viu crescer nos últimos anos. Em 2013 e 2014 o número se ampliou ainda mais, conforme dados do Dieese. E em 2015, quem está empregado teme o pior. Quem está no desemprego, não tem muito a perder.

    Imagino uma nova era de rebeliões. Se mais ou menos moleculares, não sabemos. Tomara que essas manifestações de rua, greves, de caráter polissêmico, que marcam as lutas sociais do país, comecem a encontrar alguns polos de confluência que permitam um salto. Uma ideia que venho elaborando mais recentemente, uma triste constatação, é que as direitas, em 2015, politizaram as rebeliões de 2013 para seu campo, isto é, da contrarrevolução, do ódio ao comunista, ao socialista. Todos são comunistas, o PT é comunista, até os liberais! A direita vê comunista até no rabanete das feiras livres.

    Correio da Cidadania: Conclui-se que a esquerda agora vê o preço de não ter acelerado sua reorganização nos últimos tempos?

    Ricardo Antunes: As esquerdas dos movimentos sociais não conseguiram dar um salto, a partir das manifestações de massa e populares, para um patamar mais ofensivo. Tomara que saibamos avançar. O caminho, que em geral nossas esquerdas têm dificuldade de encarar, é não ficar focado na próxima eleição. Não adianta pensar nas eleições de 2016, 2018! Precisamos de um campo social e político organizado pela base, em manifestações cotidianas, decisões plebiscitárias, avanço de ações coletivas, sejam sindicais ou sociais. É necessária uma articulação mais generosa dessa enorme multiplicidade de movimentos sociais e das esquerdas, onde isoladamente cada um de nós somos poucos. Mas juntos, não!

    Outro ponto é que trabalhamos muito com a dicotomia movimentos sociais x partidos. Um ou outro. Não estou de acordo que são dicotômicos. Os movimentos são muito importantes por estarem atados à vida cotidiana. A questão da terra é o sentido da vida para o MST, o assalariado rural, a camponesa. Terra, alimentação, casa e vida nova. Os sem teto sabem que na arquitetura do “planeta favela” os ricos vivem fechados em guetos com segurança à lá Robocop e fazem as periferias serem expulsas para lugares ainda mais periféricos. O estádio Itaquerão é exemplo perfeito: a região se valorizou e teve gente que foi expulsa para a periferia da periferia.

    Os movimentos, portanto, têm muita colação com a vida cotidiana, mas têm mais dificuldade, até pelos seus métodos e necessidades, de terem projetos mais longevos, de pensar no amanhã e também no depois de amanhã e combinar com a atualidade. Falo isso deixando de lado as excepcionais exceções, trata-se mais de uma síntese. Os partidos de esquerda ao menos reconhecem que precisam adentrar o século 21 pensando o novo. Refiro fundamentalmente a PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupamentos que procuram se inserir no mundo e na vida real, e em geral têm um olhar mais longevo, a respeito de que sociedade queremos e como caminhar. Mas têm uma grande dificuldade de se vincular às lutas cotidianas, que são exatamente a força dos movimentos sociais. A força de uns é o limite de outros e vice-versa.

    Estou fazendo uma síntese, repito. Não sou da ideia de que “os partidos acabaram, viva os movimentos sociais”! Os movimentos podem ter muita vinculação com a vida concreta, mas é difícil um movimento ter a longevidade, por exemplo, do MST. Este, é um movimento forte porque tem dinâmica e vida de base, não só de luta cotidiana. As mulheres do MST podem discutir ações e atitudes, assim como os assentados, pois têm autonomia na base que lhes permite avançar um pouco. E creio que o mesmo possa se dizer, em certa medida, no MTST. Mas eles também têm dificuldades.

    Muitos movimentos sociais nascem e desaparecem. Os partidos ao menos têm se mostrado mais longevos, porém, perdem capilaridade com a vida cotidiana, de tal modo que o salto positivo no século 21 seria a aproximação desses dois polos orgânicos do mundo do trabalho. A energia que ainda tenho invisto nessa direção, que talvez nos permita sair de um momento, para lembrar Florestan Fernandes, de contrarrevolução. Das rebeliões de 2013 às “contrarrebeliões”. Do flagelo dos imigrantes na Europa à construção de muros pelo Estado fascista húngaro, para que não atravessem o continente. Assim como as, até agora, balas de chumbinho nos haitianos em São Paulo o demonstram.

    Fonte: Correio da Cidadania, 09/11/2015