Categoria: Socialismo

  • Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    Desafios da reorganização da esquerda brasileira

    por Juliano Medeiros*

     

        O resultado das eleições municipais deste ano ensejou, nos últimos dias, diversas análises sobre os rumos da esquerda. De todos os lados, analistas buscam compreender as razões que levaram à acachapante vitória eleitoral dos partidos associados ao golpe que conduziu Michel Temer à Presidência da República. A ideia de que o terreno perdido nos últimos meses exigirá uma necessária reconfiguração das forças progressistas parece encontrar eco em muitas vozes. No entanto, a “reorganização da esquerda” pode ter distintos significados a depender de como se interpreta a derrota que o impeachment e as eleições municipais deste ano representaram.

        Parece consenso que é chegada a hora de um profundo ajuste de contas na esquerda brasileira. O fim do ciclo do PT – que se anunciava desde junho de 2013 e se concretizou tragicamente com o impeachment de Dilma Rousseff – abriu um período de definições estratégicas para as forças populares. Um claro processo de reconfiguração da esquerda está em curso, dentro e fora das organizações tradicionais como partidos, sindicatos e entidades estudantis. No âmbito das organizações partidárias esse movimento é mais nítido. No PT, o movimento “Muda PT” representa para seus integrantes a derradeira batalha para salvar o simbolismo e a representatividade que o partido ainda detém entre parcela cada vez menor dos trabalhadores. Na Rede Sustentabilidade, as divisões internas chegaram a um limite insuportável, opondo lideranças de esquerda ao indecifrável projeto de Marina Silva. No PSOL, o crescimento do partido, que ocupou parte do espaço deixado pelo PT nas eleições municipais deste ano, exige definições sobre seu papel no novo ciclo que se abre para a esquerda brasileira. E até o pequeno e monolítico PSTU sofreu os efeitos da pressão em favor da reorganização: uma dissidência de centenas militantes deixou a legenda, rejeitando a tática do “fora todos” levada a cabo pelo partido durante o impeachment.

        Mas esse processo de reconfiguração da esquerda não se resume aos partidos. Aliás, é possível afirmar que é precisamente fora da vida partidária que essa reconfiguração se processa de forma mais dinâmica. O esgotamento do ciclo do PT – que nada mais é que o esgotamento de uma tática que envolveu centenas de organizações políticas e sociais em favor do chamado “pacto de classes” – já se nota no âmbito dos movimentos sociais há algum tempo. O surgimento de novas lutas, sobretudo nas grandes cidades, novos ativismos e formas de intervenção política, expressam também um novo momento para a esquerda social. Movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento Passe Livre (MPL), as ocupações de escolas em todo o país, o fortalecimento do movimento de mulheres contra o machismo e a violência, os novos movimentos de contracultura e o ativismo digital de coletivos como o Mídia Ninja, marcam o início de um novo ciclo na política brasileira. Isso não significa, é claro, que as formas “tradicionais” de organização política, como sindicatos, organizações de bairro ou entidades estudantis estão superadas. Significa apenas que esses instrumentos terão de ceder espaço a novas formas de ação política surgidas das transformações que o Brasil e o mundo vivenciaram nos últimos vinte anos, reinventando suas práticas e formas de organização para recuperar a legitimidade perdida.

    O impeachment como fim de um ciclo

        Afirmamos que o impeachment de Dilma marca o fim de um ciclo. Mas poderíamos ir além. Na verdade, o golpe que levou Michel Temer à presidência representa ao mesmo tempo o fim de dois ciclos. O primeiro é um ciclo mais geral da política brasileira, que começa com a Constituição de 1988. O golpe representa a ruptura do pacto que permitiu, ao longo de quase trinta anos, algum nível de estabilidade política e a garantia mínima da progressiva ampliação das políticas sociais. Mesmo no auge do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) direitos foram ampliados, apesar do retrocesso representado pela reforma do Estado promovida naquele período. Apesar de favorável às forças do conservadorismo, esse pacto permitiu o fortalecimento político e social do campo democrático-popular durante os anos 1990, a livre organização dos movimentos sociais e a vitória eleitoral da esquerda em 2002, mesmo que sob circunstâncias que se mostrariam fatais anos depois. Ao congelar os investimentos públicos por 20 anos, destruir o já insuficiente sistema que regulava a exploração do petróleo e retomar um agressivo ajuste no sistema de previdência, Temer implode o pacto que garantiu a estabilidade ao regime político brasileiro nas últimas duas décadas e encerra o clico instituído pela Constituição de 1988, abrindo um período de luta aberta pelos rumos do Estado.

        Por outro lado, na esquerda também se encerra um ciclo. A hegemonia do PT e do bloco histórico que o sustentou desde os anos 1980 chegou definitivamente ao fim. O historiador Lincoln Secco, em livro sobre a história do PT,1 afirma que o partido viveu três momentos em sua história. O primeiro foi marcado por um partido radical que liderava a oposição social à ditadura militar. O segundo momento é aquele em que o PT se consolida como oposição parlamentar ao neoliberalismo, quando o partido se institucionaliza e passa a viver a experiência de governar importantes municípios. O terceiro momento, que se inicia com a vitória de Lula em 2002, é aquele caracterizado pela ascensão do PT à condição de “partido de governo”. Nessa terceira e última etapa do processo de aggiornamento2 do partido à dinâmica do sistema político brasileiro, o PT incorpora plenamente a estratégia do pacto de classes, isto é, de uma aliança reformista assentada no crescimento econômico com distribuição de “dividendos” para todas as classes. Com o processo de impeachment e a implosão do pacto que o PT mantinha com diferentes frações da burguesia brasileira, o partido e seu campo de aliados tende a perder definitivamente a hegemonia sobre a esquerda brasileira. É o fim desse outro ciclo que exige definições urgentes sobre os rumos da reorganização das forças populares.

    Três tarefas urgentes para a reorganização da esquerda no Brasil

        Nossa situação política é inédita. Diferente de outros momentos da história, quando a esquerda foi coagida fisicamente pelas forças do conservadorismo e da reação, o que vemos hoje é um processo de “demonização” das organizações de esquerda que alcançou níveis inéditos desde a redemocratização. Combinando o desgaste promovido pela crise econômica e seus efeitos sobre os mais pobres com as denúncias de corrupção envolvendo altos dirigentes do governo e do PT, a mídia monopolista construiu com relativo sucesso uma associação quase automática entre “esquerda” e “corrupção/ineficiência”. Os partidos que compuseram o governo, como PT e PCdoB, sentiram mais fortemente os efeitos dessa narrativa no recente processo eleitoral. Mas ela não poupou nem aqueles partidos que jamais mantiveram qualquer envolvimento com atos de corrupção e nunca compuseram o governo Dilma, como o PSOL. A luta que se trava em torno das responsabilidades sobre a recessão econômica e a corrupção atingiu em cheio a esquerda.

        Quais seriam, então, as tarefas para contornar essa situação? Evidentemente, não há um “manual de reorganização da esquerda brasileira”. Mas há alguns elementos indispensáveis para enfrentar esse gigantesco desafio, que podemos sintetizar no tripé balanço / renovação programática / promessa. Vejamos como se apresentam cada uma dessas tarefas:

        a) Balanço:A mais urgente das tarefas para a reorganização da esquerda brasileira refere-se ao balanço da experiência dos governos petistas. Por mais de uma década, a esquerda brasileira se dividiu entre aqueles que apoiavam ou não o projeto liderado por Lula e Dilma. Por vezes, essa divisão tomava formas absurdas, onde uns se tornavam incapazes de ver os flagrantes limites dos governos de conciliação, enquanto outros fechavam os olhos para os inegáveis avanços que foram promovidos na expansão de alguns direitos sociais. Com o fim do ciclo do PT à frente do governo federal, torna-se possível desenvolver um balanço crítico e honesto dos avanços e limites que os governos petistas produziram. Exemplos não faltarão. Se por um lado é evidente que o crescimento econômico de quase uma década proporcionou uma melhoria nas condições de vida de parte expressiva da população mais pobre, com acesso a crédito, aumento real do salário mínimo e mais políticas sociais, por outro, não se pode esconder que a natureza do projeto de conciliação de classes não permitiu avanços mais profundos, manteve o país vulnerável à dinâmica do capital financeiro, fortaleceu o agronegócio predatório e deixou intocado o controle da informação nas mãos da mídia monopolista. Além disso, o mito conservador da “governabilidade” se impôs de tal forma sobre as iniciativas de participação direta da população sobre a política, favorecendo o fisiologismo e as alianças pragmáticas, que muitos terão dificuldades em admitir que o governo foi enredado em acordos que jamais deveria ter firmado. Por isso um balanço crítico e desapaixonado é indispensável para extrair as lições dos limites da conciliação de classes. Sem isso será impossível pensar um novo projeto político independente e comprometido com os interesses populares.

        b) Renovação programática:O bloco histórico surgido com o PT na luta contra a ditadura militar representou uma grande novidade na cena política brasileira. Aquela esquerda, renovada pelos novos atores políticos que entraram em cena no final dos anos 1970, construiu um programa ao mesmo tempo radical e inovador para enfrentar os séculos de atraso e exploração que marcavam nossa formação social. Ele estava muito à frente do reformismo que caracterizava, já naquela época, os partidos comunistas no Brasil. O chamado “Programa Democrático-Popular”, aprovado no 5º Encontro Nacional do PT, em 1987, reunia um conjunto de tarefas anti-monopolistas, anti-imperialistas e anti-latifundiárias que conferiam à estratégia do partido um caráter profundamente anti-capitalista e radicalmente democrático. Esse programa, rompendo com a tradição que fora hegemônica na esquerda até então, apresentava uma nova interpretação do estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e preconizava uma tática de fortalecimento das organizações de base do campo popular, rechaçando a conciliação de classes em favor da independência política dos trabalhadores e trabalhadoras. O abandono desse programa por parte do PT e sua relativa desatualização deixaram a esquerda brasileira, no século XXI, com um enorme “déficit programático”. Ao mesmo tempo em que foram incorporadas novas demandas à agenda política da esquerda nos últimos anos, especialmente no campo dos direitos civis, pouco se avançou na correta interpretação das mudanças que o Brasil viveu durante as últimas três décadas. A consolidação do processo de urbanização do capital e suas contradições trouxeram novas formas de dominação política e econômica que ainda precisam ser incorporadas à análise da esquerda. Essa renovação programática – econômica, política, social, cultural, ideológica – é uma condição indispensável para “reconectar” a esquerda ao Brasil real.

        c) Promessa: Os efeitos da derrocada do PT terão efeitos de longo prazo. Uma geração inteira de militantes, desiludida com as inaceitáveis concessões feitas pelo partido ao longo de quase catorze anos, já não acredita que outro instrumento partidário possa responder à tarefa histórica de liderar a reorganização da esquerda brasileira. Isso é natural. A decepção é profunda, tanto quanto a indignação pelos erros cometidos – em especial em relação à corrupção e à retirada de direitos dos mais pobres, marca do último ano de governo Dilma. Por isso, além de realizar um balanço crítico da experiência petista no governo federal e promover uma profunda atualização programática, a esquerda deverá lançar mão de uma promessa: a de que é possível construir um caminho diferente no futuro. Numa de suas principais obras,3 Hannah Arendt afirma que é a promessa que valida o perdão; isto é, apenas o compromisso de que algo novo está sendo construído no lugar do velho é que permite expiar os pecados do passado. Mesmo aqueles que nada tiveram a ver com os erros cometidos terão de consignar seu compromisso com a promessa de que nada será como antes. O perdão, que exime a esquerda das consequências dos erros cometidos, só pode ser validado pela promessa do novo. E esse novo que é reclamado pela nova geração de lutadores e lutadoras que está nas ruas não pode ser nada menos que uma esquerda horizontal, pluralista, radicalmente democrática e profundamente comprometida com os interesses dos explorados e oprimidos. Uma esquerda anticapitalista, socialista e classista, mas também feminista, negra, jovem, disposta a combater qualquer tipo de opressão. Perdão e promessa: eis o binômio do qual a reorganização da esquerda não pode fugir.

    Os atores da reorganização

        Consideramos que as tarefas que mencionamos – balanço / renovação programática / afirmação do novo – não poderão ser bem-sucedidas sem atores dispostos a encará-las como indispensáveis à reorganização da esquerda brasileira. Para isso será necessário um amplo processo de diálogo entre aqueles dispostos a enfrentar o momento de defensiva estratégica que os setores populares vivem e dar um novo sentido à luta em favor de um amplo instrumento político que unifique os que lutam contra a opressão e a exploração.

        Mesmo que os efeitos da ofensiva conservadora tenham sido devastadores, há diversos atores discutindo os rumos da reorganização da esquerda brasileira. No PT e na Rede Sustentabilidade há setores dispostos a debater a construção de uma nova síntese política “pós-PT”. Outras organizações políticas não partidárias também iniciam essa discussão. No âmbito dos movimentos sociais, novos atores já se apresentam como expressão concreta de um novo ciclo político que rechaça como limitadas as promessas do lulismo.4 Há ainda uma grande quantidade de intelectuais críticos que reivindicam uma profunda reflexão sobre os rumos do campo popular e democrático no Brasil, em favor de uma “nova esquerda” que se apresente como tal já a partir das eleições presidenciais de 2018. No meio desse turbilhão está o PSOL.

        O PSOL é hoje o polo mais dinâmico da reorganização da esquerda brasileira e o partido mais bem localizado politicamente para enfrentar esse desafio. Isso se deve a algumas razões específicas que garantem a ele uma posição privilegiada nesse processo. O primeiro e mais evidente é o fato do partido ter mantido, ao longo de seus onze anos de vida institucional, uma profunda crítica à estratégia de conciliação de classes levada a cabo pelo PT. Por essa razão o PSOL é visto como um partido coerente, capaz de arcar com as pesadas consequências de ser oposição de esquerda aos governos petistas para conservar suas posições. Além disso, a tática que o partido assumiu durante o impeachment, quando sua militância e suas figuras públicas se engajaram plenamente na luta contra o golpe, permitiu ao PSOL conectar-se com o mais importante movimento de massas ocorrido no país desde junho de 2013. Para os milhares de lutadores e lutadoras que tomaram as ruas contra o golpe, o PSOL foi visto como um partido capaz de deixar as diferenças de lado para unir forças em favor de um objetivo maior: a defesa da democracia. Por fim, vivendo toda a sua existência fora da dinâmica do Estado, o partido compreende melhor os novos atores sociais que emergiram na última década. Esses lutadores e lutadoras têm uma forte empatia com o partido e muitos concorreram pelo PSOL nas eleições deste ano. Portanto, se o partido tiver a sabedoria política necessária para se colocar à altura do momento histórico, ele pode se tornar a expressão “natural” de uma nova síntese política para essa nova esquerda que está se formando no Brasil. Mas para isso, será necessário responder às inadiáveis tarefas que mencionamos neste ensaio.

    * Presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.

     

    1 Lincoln Secco. História do PT – 1978-2010. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.

    2 Termo em italiano que signfica atualização ou adaptação.

    3 Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2000.

    4 Para saber mais sobre o lulismo como expressão da política de pacto de classes nos governos petistas ver André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

     

  • O legado revolucionário de Fidel Castro

    O legado revolucionário de Fidel Castro

    por Juliano Medeiros*

     

       Fidel Castro não é apenas o principal líder de uma das mais extraordinárias páginas da história universal – a Revolução Cubana – ou o longevo líder de um povo que resiste há quase sete décadas às investidas do imperialismo contra sua liberdade. Fidel é o símbolo de um tempo: o tempo em que homens e mulheres enfrentavam corajosamente a morte em busca da liberdade, como fizeram antes dele Martí e Bolívar, como fizeram depois dele milhares de revolucionários em todo o mundo. Mas Fidel é também um homem do nosso tempo. O século XXI é pródigo naquilo que as enciclopédias antigamente chamavam de “vultos da humanidade”. E Fidel é um dos poucos nomes da envergadura de nomes como Lenin, Mao Tsé Tung, Ho Chi Min, Mandela e Gandhi, que chegaram aos dias de hoje.

       Neste 13 de agosto Fidel Castro completa 90 anos. E diante desta data extraordinária para qualquer ser humano, estive pensando, nos últimos dias, que tipo celebração a data mereceria. Já li muito sobre Fidel e aprendi a admirá-lo desde meus primeiros dias de militância política. Mas se tratando do líder cubano, sempre há formas de nos surpreender. Buscando algumas declarações recentes de Fidel, me deparei com seu breve discurso na sessão de encerramento do VII Congresso do Partido Comunista de Cuba. Nele, do alto de seus quase 90 anos, Fidel reafirma seu compromisso histórico com o socialismo, a revolução e a luta contra as opressões. Quantos chegaram a essa altura da vida sem renegar tais compromissos? Quantos não teriam deixado se levar pelo caminho fácil da conciliação? Quantos não teriam se curvado ante as promessas do inimigo?

       Em seu discurso, Fidel lembrou o lugar da história na luta pela transformação. Citou os exemplos dos pais da luta contra o imperialismo em Cuba: Maceo, Gómez e Martí. Com eles Fidel conclamou a revolução cubana a “melhorar com a máxima lealdade e força unida”. Citou, ainda, Lenin. E afirmou que seria inimaginável ver a obra do grande revolucionário de outubro ultrajada setenta anos depois, numa referência à restauração capitalista na Rússia no início dos anos 90. Mais do que isso, disse que “não devem transcorrer outros 70 anos para que ocorra outro evento como a Revolução Russa, para que a humanidade tenha outro exemplo de uma grande Revolução Social”, numa clara exortação à revolução como direito inalienável dos povos, tal como defendera em 1953 durante sua defesa no tribunal que o processara pelo fracassado assalto ao Quartel Moncada.

       Mas seu discurso não foi uma ode ao passado. Fidel dispensou uma atenção especial ao presente e ao futuro. Ele mencionou a necessidade da humanidade repensar sua relação com a natureza, sem a qual todos estaremos condenados à aniquilação. Peguntou Fidel: “como alimentar os milhares de milhões de seres humanos cujas realidades inevitavelmente colidem com os limites para a água e os recursos naturais que necessitam?” Ora, do alto de seus 90 anos, o líder da revolução cubana não deixa de adicionar preocupações a seu repertório.

       Estas palavras demonstram a grandeza de Fidel, que segue reafirmando sua fé na humanidade, na revolução e no marxismo. Por isso considero Fidel Castro um exemplo de revolucionário: nunca cedeu às tentações do voluntarismo ou da conciliação, como fizeram muitos outros líderes políticos de seu tempo; manteve a unidade do povo e da revolução através do exemplo revolucionário; apoiou a luta dos oprimidos em todos os continentes, mesmo sendo Cuba uma pobre ilha que teve que reorganizar completamente seu sistema econômico depois da revolução; apostou na transformação cultural do povo para construir o que Guevara chamou de “o novo homem e a nova mulher”; não se curvou jamais aos ditames do imperialismo e seus aliados; lutou pela paz mundial sem abrir mão da defesa ao direito inalienável dos povos à insurgência contra seus governos; construiu um modelo socialista que, apesar de suas limitações, alcançou conquistas inimagináveis. É claro que Fidel não é perfeito e, como qualquer líder político, cometeu seus erros. Mas até nisso ele é diferente de outros revolucionários: a autocrítica é uma de suas marcas mais impressionantes, que o diferencia não só de outros líderes mundiais, mas da maioria dos seres humanos.

       Ser “castrista” no século XXI, portanto, não significa defender a tomada do poder por uma pequena guerrilha mal equipada e inexperiente, mas cheia de disposição revolucionária e idealismo. Ser castrista significa, ao contrário, compartilhar dos valores da solidariedade internacional, da paz mundial, da luta pela construção de uma cultura de fraternidade. Ser castrista é acreditar na revolução como um processo historicamente possível, é ser radicalmente anti-imperialista, é buscar uma visão crítica dos demais processos revolucionários sem julgá-los. Ser castrista é reconhecer que o processo iniciado por Fidel e seus camaradas em Cuba é parte de um movimento continental que ainda não se concluiu historicamente e do qual todos os socialistas latino-americanos fazem parte, gostem ou não.

       Como escreveu Florestan Fernandes, pela passagem do 25º aniversário do triunfo revolucionário liderado pelos homens e mulheres do Movimento 26 de Julho: “A revolução cubana desvenda o futuro da América Latina. Uma nova civilização já começou a ser criada, em uma sociedade nova e por homens novos, libertos das servidões do colonialismo e do neocolonialismo. O que está em jogo não é mais o que se imaginou, na década de sessenta, ser a ‘via cubana’ para a revolução e o socialismo – a guerrilha. Após vinte e cinco anos de vitória e aprofundamento da revolução, Cuba dá uma lição de humildade, de firmeza e de determinação, inclusive que a revolução possui vários caminhos na América Latina. (…) Ela é um dos países socialistas mais autênticos e o único que imprimiu vida estuante própria ao princípio da liberdade igualitária”. Não por acaso o artigo de Florestan Fernandes levou o título de 25 anos de castrismo. A extraordinária obra a qual o grande sociólogo brasileiro se refere não é mérito de Fidel Castro, mas de todo o povo cubano. No entanto, ela dificilmente teria chegado tão longe sem a determinação, a firmeza e o compromisso revolucionário de Fidel Castro. Por isso ele é, sem sombra de dúvidas, o maior revolucionário americano do século XX e merece todas as homenagens na passagem de seus 90 anos.

     

    *Presidente da Fundação Lauro Campos e dirigente do PSOL.

  • “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         No dia 20/06 ocorreu mais uma reunião do Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, com mesas pela manhã e à tarde. Coordenado por Gilberto Maringoni, foi a primeira atividade realizada na nova sede da fundação após a inauguração, ocorrida na sexta-feira (17/06).

         Pela manhã, o tema foi “A politização do Judiciário”. Compuseram a mesa Eloísa Machado de Almeida (FGV-SP), Silvio Almeida (Mackenzie) e Alysson Mascaro (USP).

       A professora de direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado de Almeida, centrou sua fala na caracterização e atuações do Supremo Tribunal Federal para avançar no debate sobre o tema proposto, buscando uma “análise mais pragmática da politização do judiciário, que vem se acentuado nesses últimos oito meses”.

          O Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Poder Judiciário, tem a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não é constitucional, inclusive negando qualquer alteração na Constituição que, por sua leitura, possa ferir seus princípios. Se isto, nos últimos anos, representou o avanço de algumas pautas, como a permissão para o aborto do feto anencéfalo, o casamento e a união estável homoafetivas, entre outras pautas (em ações denominadas como contra-majoritária – já que não passariam pelo sistema político conservador como o nosso) por outro lado, ressaltou a pesquisadora, há a necessidade de se refletir sobre essa forma de atuação do STF.

     

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    (Parcela dos participantes da reunião do Coletivo de Conjuntura)

           “Se isto pode ser visto com uma função positiva para o país, por outro lado o tribunal vem sendo usado, desde 1988, como um grande tutor do sistema político”, atestou Eloísa. Os partidos perdedores do debate político acabam levando suas questões para o Judiciário, se valendo deste para mudar a lógica das votações, mesmo em questões que pertencem exclusivamente à esfera política. “Todas as reformas políticas, por exemplo, foram corroboradas pelo Judiciário. E aqui eu posso falar de ‘verticalização’, da proibição da doação empresarial para campanhas e também a ação que permitiu a existência do PSOL, que é a ação sobre a ‘cláusula de barreira’”, e continuou “o que é relevante nesse espaço de debate da Fundação, de formação, é refletir o quanto que isso é favorável a um partido fazer, ou seja, não fazer de uma forma ingênua, porque quando você desloca o tema que originariamente deveria se dar nas arenas do sistema político para as arenas do Judiciário você está certamente alterando a lógica de se tratar determinada decisão”, o que pode acarretar num processo de deslegitimação de seu próprio espaço de atuação, que é o espaço político, como se dissesse que “eu prefiro que onze juízes decidam do que eu comprar essa briga na arena política”.

         A grande participação do Judiciário no sistema político não é uma característica brasileira, sendo comum a provocação de Cortes Constitucionais por partidos em países que possuem uma “Constituição tão audaciosa”, informou, o que muitas vezes contribui para que o sistema político, sobretudo o Poder Legislativo, caia em descrença frente ao conjunto da população: “quando analisamos os índices de confiança do Judiciário, é impressionante que a população acaba confiando mais no Judiciário do que no sistema político; o que não faz nenhum sentido, porque temos um judiciário que atua de maneira seletiva, que serve a pessoas e a grupos muito específicos, sobretudo aos interesses financeiros. E isso é um grande problema do ponto de vista democrático, porque a população confia em um Poder que é pouco transparente, seletivo e não representativo”, alertou a professora.

         Do ponto de vista da seletividade, por exemplo, Eloísa foi tachativa ao afirmar que no Brasil as violações aos Direitos Humanos só se perpetuam porque o Judiciário participa para perpetuá-las. “Nós temos ainda um país misógino, racista, que mata as pessoas, que tortura os presos porque o Judiciário é o grande poder que renova e permite que essas violações continuem. Por isso é importante pensar para que serve o Judiciário no Brasil ao invés de dotar nossas esperanças em um Poder tão seletivo e pouco transparente”.

     

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    (Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL-CE, faz seu questionamento à mesa)

       O debate teve sequência com a intervenção de Sílvio Almeida, professor do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, que logo de início questionou: “quando é que o Judiciário não foi politizado?”. Só é possível começar a falar em Poder Judiciário a partir das revoluções liberais que começam a fazer a separação entre Estado e Sociedade Civil. Assim, o Judiciário “sempre foi o fiador da ordem liberal”, e para entendê-lo é fundamental compreender três aspectos: como o liberalismo e o judiciário estão conectados de uma maneira que não permite compreender um sem compreender o outro; como a atuação do Poder Judiciário e as suas mudanças devem ser compreendidas por meio das transformações das atividades econômicas historicamente; e ver que os juízes são o produto mais bem acabado daquilo que eles mesmos dizem conter: da ideologia, e da ideologia liberal, da ideologia do capital – comprometendo seu discurso de imparcialidade.

       “Não existe golpe de Estado sem a participação do Judiciário, historicamente não existe isso”, lembrou o professor: “o Poder Judiciário sempre chancelou todos os golpes de Estado que ocorreram, inclusive aqui no Brasil”.

       Citando três exemplos históricos ocorridos no Judiciário dos Estados Unidos, Sílvio de Almeida lembrou de como essas transformações foram fundamentais para garantir a estabilidade política, lembrando que por estabilidade política deve ser entendido o bom funcionamento da ordem liberal. No caso brasileiro, voltando a Era Vargas, o professor lembrou da sua medida de aposentar compulsoriamente 100 juízes, além de reduzir o poder do Supremo Tribunal Federal.

       Sobre a chamada “independência do Judiciário”, Sílvio de Almeida afirma que essa bandeira esconde a orientação de que este Poder deve ser “independente em relação ao povo, e não às outras forças que atuam fortemente sobre ele”. E, por fim, atestou que “é uma ilusão liberal acreditar no Judiciário” e, assim, é necessário avançar “num debate político que estabeleça uma conexão com as questões do povo e com os anseios populares.”

     

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     (Armando Boito, professor da Unicamp, também participou do debate)

          Encerrando a mesa da manhã, Alysson Mascaro, professor de Direito da USP, foi claro ao dizer que não é a força que garante a propriedade, mas o Direito: “o mundo do Direito é exatamente o mundo que garante o capital e a propriedade privada, e ele só serve para isto. E como só serve para isto, e isto é chocante, não pode nem sequer ser contado assim, também não pode ficar nisto que é o fundamental: ele tem que ser salpicado de coisas que pareçam ser o contrário”.

         O professor apontou o que, na visão dele, seria uma contradição da esquerda em “defender mais direitos e nenhum retrocesso”, citando as bandeiras da preservação da CLT, criada na Era Vargas, e do FGTS, instituído durante o Regime Militar. A contradição residiria no fator de que “se nós defendermos os direitos, nós somos obrigados a defender a ordem”. E continuou, referindo-se ao PSOL, pedindo para que “um partido que tem socialismo no seu nome, precisa desta reflexão de que o Direito é um horror, e não que a atual fase do Direito é um horror”; e por isso que vivemos num momento no qual devemos “dobrar a aposta em uma luta política de esquerda: nossa luta é contra o capital e contra a ordem”, e de que “não devemos sacralizar o Estado de Direito”, já que o Estado é a forma do capital.

         Encerrando, Alysson afirmou que vivemos numa sociedade na qual o direito é hiperlouvado e a política hipercombatida, porque o direito deixa de permitir a existência de uma luta aberta e passa a permitir a existência de uma luta modulada. “E isto resultou numa geração de juristas, que é a geração que temos hoje, de pessoas absurdamente mal formadas, lixos intelectuais, mas que sabem muito bem procedimentos jurídicos mas são burríssimas em termos de horizontes políticos”. E, concluindo, afirmou que nós não devemos opor ao “direito” outro “direito”, ou “ao fim de tais direito, mais direitos. Nós devemos opor o contraste: o direito é o que é por causa do capital, então a nossa luta é contra o capital”. E assim, portanto, “a nossa luta tática do presente é desmontar este horror liberal que fala que é imparcial, mas imparcial nunca foi, nunca é e nunca será. Esta é a fórmula pela qual nós temos a pedra na mão no dia de hoje”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

     

     

  • Curso de Formação em Belo Horizonte – MG

    Curso de Formação em Belo Horizonte – MG

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    Estudar o passado para compreender o presente e pensar no futuro. Essa é a idéia do curso de formação política promovido pela Fundação Lauro Campos em Belo Horizonte e que terá por base conceitos políticos básicos do marxismo.

    Irá ministrar o curso o sociólogo Bernardo Correa, da Fundação Lauro Campos e presidente do PSOL Porto Alegre.

    Para participar entre em contato pelo e-mail: sara@juntos.org.br

  • O que não se disse sobre Martin Luther King

    O que não se disse sobre Martin Luther King

    Este artigo de Vicenç Navarro assinala os silêncios sobre Martin Luther King nos maiores meios de comunicação a fim de minimizar o carácter socialista de suas análise e propostas de mudança nos EUA.

    martin_0A propósito do quinquagésimo aniversário da Marcha de Washington, onde o Reverendo Martin Luther King fez o seu famoso discurso “Eu tenho um sonho” (I Have a Dream), escreveram-se muitas reportagens sobre aquela marcha e sobre Martin Luther King, referindo-se a este último como uma figura inspiradora que, atuando como a consciência da nação norte-americana, exigiu àquela sociedade o fim da discriminação contra a população negra, de origem africana. É difícil ver ou ouvir aquele discurso sem relacioná-lo com a sua causa.

    Esta imagem inspiradora de Martin Luther King foi construída à custa de esquecer e fazer esquecer o outro Martin Luther King, o Martin Luther King verdadeiro, que via esta discriminação como resultado de umas relações de poder baseadas numa exploração, não só de raça, mas também de classe social. Silenciou-se que Martin Luther King (a partir de agora MLK) era um socialista que, sem dúvida alguma, foi muito crítico para com as sucessivas políticas, tanto domésticas como internacionais, levadas a cabo durante todos estes anos pelos governos federais, incluindo a administração Obama.

    MLK esteve contra a guerra do Vietname, como teria estado contra as guerras do Iraque e do Afeganistão, e não só pelo seu pacifismo, mas também pelo seu antimilitarismo e anti-imperialismo. Definiu o governo dos EUA como “o agente máximo da violência hoje no mundo… gastando mais em instrumentos de morte e destruição do que em programas sociais vitais para as classes populares do país”. Era profundamente anti capitalista, como consta no seu discurso de que “deveríamos denunciar aqueles que resistem a perder os seus privilégios e prazeres que provêm dos benefícios adquiridos dos seus investimentos, ganhando a sua riqueza através da exploração”.

    E, em 1967, condenou com contundência os três diabos que – em seu parecer – “caracterizavam o sistema de poder norte-americano, a saber, o racismo, a exploração económica e o militarismo”, acentuando que “as mesmas forças que conseguem enormes benefícios através das guerras são as responsáveis pela enorme pobreza no nosso país” (todas estas notas procedem do excelente artigo de Michael Parenti “I Have a Dream, a Blurred Vision”, 29.08.13).

    E o seu último discurso, de apoio às reivindicações dos trabalhadores dos serviços de saneamento que estavam em greve, findou com a famosa frase de que “a luta central nos EUA é a luta de classes”. Duas semanas mais tarde foi assassinado, sem que nunca se tenha esclarecido tal facto. Um fugitivo da prisão de Missouri, James Earl Ray, foi acusado do assassinato. Foi detido no aeroporto de Heathrow, em Londres, com grande quantidade de dinheiro em sua posse. Nunca se esclareceu quem lhe deu esse dinheiro.

    MLK foi um socialista radical na sua análise e nas suas propostas

    Uma coisa é que MLK foi a consciência dos EUA, exigindo que não se discriminassem os negros, petição com um forte conteúdo moral à qual era difícil opor-se. Mas outra coisa muito distinta e ameaçante para a estrutura de poder era sublinhar que a origem da pobreza e da discriminação (que inclui também amplos setores da classe trabalhadora branca, para além da negra, pois a maioria de pobres nos EUA são brancos) requer uma mudança revolucionária (por muito não violenta que seja) das estruturas capitalistas daquele país. E a eleição do Presidente Obama prova, precisamente, a certeza do diagnóstico de MLK. Hoje, o Presidente dos EUA é um afro-americano e, não haja nenhuma dúvida, é um grande avanço. Mas a pobreza entre negros (e entre brancos), nos EUA, não mudou desde então.

    Daí a enorme hostilidade do establishment norte-americano, na qual a Policia Federal, o FBI, foi um elemento chave. Dirigida por uma das figuras mais nefastas da história dos EUA, J. Edgar Hoover (definido pelo famoso jornalista Russell Baker, do New York Times, como um “tirano patético”) tentara convencer o Fiscal Geral do Estado Federal, Robert Kennedy, “que o cérebro dos negros era vinte e cinco por cento mais pequeno que o dos brancos”. Era politicamente próximo do senador segregacionista da Carolina do Sul, Strom Thurmond, tentando por todos os meios desacreditar o movimento anti segregacionista e os seus dirigentes, grande número dos quais eram socialistas e comunistas.

    Na realidade, foram os sindicatos, e muito particularmente, o sindicato do automóvel, o UAW (United Automobile Workers) que financiaram em grande parte a tal marcha. E à esquerda de MLK na marcha estava Walter Reuther, o seu secretário geral, socialista e branco. Uma terça parte dos quatro milhões que participaram na marcha de Washington eram brancos, grande número deles sindicalistas e membros de partidos de esquerda. O slogan da marcha era “liberdade, justiça e trabalho”. E o organizador da marcha, Asa Philip Randolph, era o sindicalista afro americano mais conhecido nos EUA, dirigente do sindicato ferroviário (Paul Le Blanc, “Revolutionary Road, Partial Victory. The March on Washington for Jobs and Freedom”, Monthly Review, Sept 2013).

    E quando o Presidente Kennedy, a instâncias de Hoover, chefe do FBI, pôs como condição para apoiar a marcha, que fossem despedidos da liderança aqueles radicais, MLK negou-se. A pressão da rua era tal que o Presidente Kennedy decidiu à última hora apoiar a marcha, recebendo MLK na Casa Branca. E o bispo católico de Washington, Patrick O’Boyle, ameaçou não participar na marcha a não ser que os discursos (que tinham sido distribuídos antecipadamente) fossem moderados.

    Últimas observações. Em 1986, o dia do nascimento de MLK foi declarado como festa nacional anual. Mas nesta captura da imagem popular de MLK foi transformada deliberadamente a sua mensagem e figura para reciclá-lo como figura inspiradora, consciência do país, a favor dos direitos civis da população afro americana (com especial finca pé no seu poder de votar), esquecendo-se deliberadamente do MLK verdadeiro, que pediu uma mudança profunda, não só nas relações de raça, mas também de classe social. Desta última não se fala.

    A história repete-se: las campanhas de Jesse Jackson

    Eu tive a oportunidade de experimentar uma situação parecida durante a minha participação na campanha eleitoral do Reverendo Jesse Jackson (que estava com MLK quando foi assassinado), nas primárias para a eleição do candidato presidencial do Partido Democrata. Em resposta ao seu convite, fui assessor especial, na sua campanha de 1984, e mais tarde na de 1988. Em 1984, e contra os meus conselhos, apresentou-se como a voz da minoria negra, exigindo a sua incorporação na sociedade americana. Naquela campanha, o establishment liberal norte-americano (cujo maior porta voz era e é The New York Times) escreveu um editorial enormemente positivo acerca da sua candidatura. A razão por que eu o desaconselhara dessa estratégia era fácil de entender. Um representante dos interesses de uma minoria dificilmente poderia alcançar o apoio maioritário da população votante. Apresentar-se como candidato de uma minoria defendendo primordialmente os interesse dessa minoria, não era a melhor maneira de ganhar o apoio da maioria, para ser Presidente dos EUA.

    Em 1988, não se apresentou como a consciência dos EUA ou a voz dos negros, mas a voz da classe trabalhadora dos EUA. E quando os meios de comunicação lhe perguntaram como ele – negro – obteria o voto do trabalhador branco, contestou: “fazendo-lhe ver que tem mais em comum com um operário negro, por ser operário, que com o seu patrão por este ser branco”. Quando se somam todas as cores (negro, branco, amarelo, cinzento, etc.) a classe trabalhadora dos EUA é a maioria da população. Num discurso de classe, mobilizou as bases do Partido Democrata (que estão mais à esquerda que a sua direção), e conseguiu 40% de todos os delegados no congresso do Partido Democrata. Nunca antes, nem depois, as esquerdas nos EUA tiveram tanto poder desde os anos 50. O New York Times escreveu um editorial muito negativo dizendo que Jesse Jackson, em caso de ser eleito, destruiria os EUA. Quer dizer, os seus EUA.

    A lição desta situação é clara. A estrutura de poder deriva da enorme influência do seu poder de classe (assim como de género e raça). E não permite que se toque nesse poder, absorvendo as legítimas vontades do fim da discriminação de género e raça, reciclando-as (incluindo elementos dos tais grupos discriminados dentro da estrutura de poder) para as poder adaptar à estrutura social dominante. Existe hoje um Presidente afro americano e uma classe média negra que não existia antes, o que é motivo de celebração. Mas o nível de vida da maioria de negros e brancos (pertencentes à classe trabalhadora) não melhorou durante todo este período.

    Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Pensamento Crítico” no diário PÚBLICO, 3 de setembro de 2013.

    Tradução: António José André