O Brexit inaugurou uma nova etapa da crise europeia. A política e a economia do Velho Continente vivem semanas de apreensão. Dias depois do referendo britânico, intelectuais progressistas do mundo inteiro compartilharam suas reflexões iniciais. O Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos preparou um dossier com nove análises breves que contemplam as diferentes perspectivas que são encontradas no pensamento crítico à esquerda.
Confira o índice dos artigos selecionados:
Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos
Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit
John Weeks – Brexit e a extrema-direita
Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia
Raquel Varela – É a democracia, estúpido!
George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas
Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit
Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação”
Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores
Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos
Ganhou o Leave (sair), porque demasiados eleitores britânicos identificaram a UE com autoritarismo, irracionalidade e desapreço pela democracia parlamentar, e porque demasiado poucos acreditaram nos que sustentávamos que uma outra UE era possível.
Eu fiz campanha a favor de um voto radical pelo Remain (permanecer), fazendo eco aos valores de nosso movimento pan-europeu Democracy in Europe Movement (DiEM25). Visitei distintas cidades na Inglaterra, em Gales, na Escócia e na Irlanda do Norte, buscando convencer aos progressistas de que devolver a UE não era a solução. Sustentei que sua desintegração desencadearia forças deflacionárias, que muito provavelmente significarão por todos os lugares um novo aperto no parafuso da austeridade e que terminarão favorecendo o establishmente e seus colaterais xenófobos. Junto com John McDonell, Caroline Lucas, Owen Jones, Paul Mason e outros, advoguei por uma estratégia de permanecer, porém contra a ordem e as instituições estabelecidas.
Contra nós, uma aliança composta por:
– David Cameron, cujas manobras com Bruxelas trazem à memória dos britânicos tudo o que desagrada na UE;
– o Tesouro e seu grotesco alarmismo pseudo-econométrico;
– a City, cuja insuportável arrogância ensimesmada pôs milhões de ya insufrible arrogancia ensimismada puso a millones de votantes contra la UE;
– Bruxelas, tenazmente empregada em aplicar sua última tortura do “submarino” e o simulacro de asfixia sobre a periferia europeia;
– o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, cujas ameaças aos eleitores britânicos galvanizaram o sentimento anti-alemão;
– o penoso governo socialista francês;
– Hillary Clinton e seus alegres garotos atlantistas, projetando uma UE incluída em outra perigosa “coalizão de vontades”;
– e o governo grego, cuja persistente capitulação ante a punitiva austeridade da UE tornava muito difícil convencermos a classe operária britânica de que seus direitos estavam protegidos por Bruxelas.
As forças subterrâneas insidiosas que serão agora ativadas
As repercussões do voto serão calamitosas. Contudo, não serão aquelas contra as quais repetidamente advertiam Cameron e Bruxelas. Os mercados não tardarão em se estabilizar e as negociações provavelmente levarão a uma solução do tipo norueguesa, o que permitira ao próximo parlamento britânico encontrar a via até algum tipo de ajuste deliberado de comum acordo. Schäuble e Bruxelas baterão e soprarão, no entanto, inevitavelmente, buscarão um compromisso deste tipo com Londres. Os Tories vão se manter unidos, como sempre, guiados pelo potente instinto de seu interesse de classe. Todavia, apesar da relativa tranquilidade que seguirá ao atual choque, serão ativadas forças subterrâneas insidiosas dotadas de uma formidável capacidade para infligir danos à Europa e à Grã-Bretanha.
Nem Itália, nem Finlândia, nem Espanha, nem França, nem, desde logo, Grécia são sustentáveis sob as atuais condições. A arquitetura do euro é garantia de estancamento e está aprofundando a espiral deflacionária da dívida que fortalece a direita xenófoba. Os populistas na Itália, na Finlândia, possivelmente na França, exigirão referendos ou outras sendas de desconexão.
O único homem com um plano é o ministro alemão de finanças. Schäuble vê no pânico pós-Brexit sua grande oportunidade de implementar uma união permanentemente austeritária. As cenouras vêm em forma de um pequeno orçamento da eurozona destinado a cobrir parcialmente o desemprego e os seguros dos depósitos bancários. O garrote será um poder de veto sobre os orçamentos nacionais.
Se eu estou correto e o Brexit leva à construção de uma jaula de ferro austeritária permanente para os estados membros que permanecem na UE, há dois resultados possíveis. Um é que a jaula de ferro se sustenta, em cujo caso a austeridade institucionalizada exportará deflação para a Grã-Bretanha, porém para a China (cujo ulterior desestabilização terá por sua vez negativas repercussões na Grã-Bretanha e na UE).
Outra possibilidade é que a jaula se rompa (por abandono da Itália ou da Finlândia, por exemplo), resultando finalmente no abandono por parte da Alemanha de uma Eurozona em colapso. Porém, isso se tornará a nova Deutschmark – que provavelmente se estenderá até a fronteira ucraniana – numa gigantesca máquina geradora de deflação (posto que a nova moeda vai se disparar em alta, e as fábricas alemãs perderão mercados internacionais). Grã-Bretanha e a China teriam, sob esse cenário, maiores possibilidades ainda de ser alcançadas por um choque deflacionário ainda maior.
O horror desses possíveis desdobramentos, dos quais o Brexit não protegerá a Grã-Bretanha, é a razão de que eu e outros membros do DiEM25 buscamos salvar a UE do establishment que está levando o europeísmo ao abismo. Eu duvido muito de que, apesar do pânico que sentiram depois do Brexit, os dirigentes da UE sejam capazes de aprender a lição. Seguirão combatendo a democratização da UE e seguirão impondo-se através do medo. Pode surpreender que tantos progressistas britânicos tenham dado às costas a esta UE?
Ainda que eu siga convencido de que o Leave era a opção equivocada, me congratulo da determinação do povo britânico para enfrentar a diminuição de soberania democrática causada pelo déficit democrático da UE. E me nego a ficar abatido, ainda que coloque entre os perdedores do referendo.
O que agora devem fazer os democratas britânicos e europeus é aproveitar esse voto para enfrentar o establishment em Londres e em Bruxelas com mais afinco que antes. A desintegração da UE corre agora a toda velocidade. Estender pontes por toda Europa, unir os democratas através de todas as fronteiras e de todos os partidos: isso é o que a Europa necessita mais do que nunca para evitar deslizar para um abismo xenófobo e deflacionário como o dos anos 30 do século passado.
Yanis Varoufakis é um economista, acadêmico e político grego, que ocupou o cargo de Ministro Grego das Finanças de janeiro a julho de 2015, quando ele renunciou.
Fonte: http://www.sinpermiso.info/textos/brexit-consecuencias-e-impactos
Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit
Quando se secarem as lágrimas daqueles que há um ano chantagearam o povo grego com a expulsão da União Europeia caberá, como dizia Spinoza, “Nem rir, nem chorar, mas compreender”.
1- O Brexit não é o começo da crise, mas o sintoma mórbido da mesma, consequência de um processo falido de integração europeia desde seu início no começo dos anos 50.
- Este problema vem de longe e tem seus inícios na extensão à escala continental da revolução conservadora e do thatcherismo. Um processo que favoreceu a mutação neoliberal da União Europeia sentenciada no Tratado de Maastricht e que é a base da sabotagem do próprio projeto europeu. Com efeito, o Tratado de funcionamento da União inscreve em seu terceiro artigo o objetivo de fomentar a a conexão econômica, social e territorial assim como a solidariedade entre seus estados-membro. Contudo, as políticas efetivas da UE estão indo em sentido oposto: com uma União Monetária defeituosa desde seu começo, que contribuiu para polarizar a Europa entre um Sul devedor e um Norte credor, e umas políticas de austeridade e desmantelamento do Estado social que tem recortado os direitos das classes populares.
- A crise política do projeto Europeu viveu seus primeiros sintomas no rechaço da Comissão Europeia nos referendos da França e da Holanda. Estas votações foram a expressão de um rechaço popular ao modelo de integração europeia que não só foram ignoradas pelas instituições e elites europeias, mas que ao contrário aceleraram a marcha das reformas estruturais do tratado de Lisboa com a máxima “melhor decretar do que perguntar”.
- O giro autoritário da UE teve sua maior demonstração no ano passado com o golpe de estado à vontade popular grega depois de um referendo onde mais de sessenta por cento da população votou contra a austeridade e ainda assim a troika aplicou um duríssimo corretivo em forma de “terceiro memorando que abundava em ajustes, recortes e privatizações. Uma medida que pretendia ser um aviso a navegantes para todas aqueles que ousassem questionar a ortodoxia austeritária, porém que ao cabo supôs uma ruptura do consenso social sobre as instituições europeias.
- Durante estes anos temos contemplado a mutação da social-democracia em “social-liberalismo” com sua incorporação a uma elite política neoliberal que superou a tradicional divisão direita-esquerda convertendo-se no que o escritor Tariq Ali denomina “extremo-centro”. Em toda a Europa este processo supôs uma paulatina polarização da política e a substituição dos espaços eleitorais tradicionais até opções políticas que até agora se encontravam em suas margens. Um bom exemplo desta situação é a preponderância que tem ganhado um partido e algumas propostas como as do UKIP na campanha do Brexit na Grã-Bretanha.
- É sintomático da crise do projeto europeu que os únicos que reivindicam as virtudes da UE de forma ritual são os membros de uma classe política muito desacreditada, que não parece ter nem memória nem ética. Quanto mais orgulho demonstram estas elites em decadência de sua crença na UE, mais a desqualificam, inclusive ante muita gente que jamais deu mostras da menor simpatia pelo anti-europeísmo conservador, nacionalista e xenófobo. Favorecendo que o voto de protesto anti-establishment seja fundamentalmente canalizado pelas opções de extrema-direita eurocéticas.
- Num ataque de sinceridade o comissário europeu de Imigração, Dimitris Avramópulos, afirmou há alguns meses que vivemos “um momento difícil para a Europa: o sonho europeu se desvaneceu”. Poderíamos dizer que mais do que um sonho se afastando, estamos nos adentrando progressivamente num pesadelo securitário que levanta muros entre aqueles que devem ser protegidos e aqueles que estão excluídos de referida proteção. A gestão da chegada de milhares de refugiados a Europa é outra fator que desponta na crise europeia, uma crise política, que está demonstrando os limites da UE, sendo a mutação neoliberal e o recrudescimento da xenofobia institucional os motores da sabotagem do próprio projeto europeu, como temos comprovado no próprio debate sobre o Brexit. Podemos dizer que hoje mais do que nunca as fronteiras da Europa sangram e os alambrados brotam. E é assim que a UE está respondendo ao que possivelmente é seu maior desafio em décadas: levantando muros, instalando centros de internamento massivos e recortando direitos e liberdades a nativos e migrantes. Muros construídos sobre o medo ao outro, ao desconhecido e que aumentam a brecha entre eles e nós. Muros entre os quais se reforçam os preconceitos identitários e os nacionalismos excludentes. Muros que reavivam antigos fantasmas que hoje, de novo, percorrem a Europa. Os mesmos fantasmas contra os quais supostamente aquele sonho europeu se levantou há décadas.
- Desde o início do giro neoliberal da UE, a desigualdade não parou de aumentar, acelerando-se de forma vertiginosa com a crise econômica e as políticas de ajuste estrutural. Assim, a pobreza, de igual forma para a migração, também se constrói como inimigo, porém o objetivo não é tanto acabar com a pobreza, mas acabar com os pobres. Deixamos de atender a pobreza a partir da extensão do Estado social, a combatê-la a partir do aprofundamento de um Estado policial que estigmatiza e criminaliza as pessoas pessoas empobrecidas. Ante a impossibilidade de solucionar a insegurança derivada das políticas de ajuste e austeridade, da precarização do mercado laboral e da perda de direitos e prestações sociais, se estigmatizam fenômenos como a migração ou a pobreza. As políticas de austeridade da UE estão construindo um imaginário de “escassez” que fomenta um mecanismo de exclusão e uma guerra entre pobres que canaliza o mal-estar social em seu elo mais frágil (o imigrante, o estrangeiro ou simplesmente o “outro”) eximindo assim as elites políticas e econômicas responsáveis da espoliação.
9- O drama é que neste 23 de junho a impugnação da União com o Brexit não partiu de uma proposta de uma proposta europeísta de ruptura democrática e de conquista de direitos como pôde ser o referendo grego do OXI há um ano, desgraçadamente foi uma combinação de nacionalismo excludente, demagogia anti-imigração e cansaço ante a desigualdade social que soube fazer eco, articulando o rechaço popular à institucionalidade europeia. Desta forma, o vazio que gera uma alternativa política crível europeia é ocupado pelo medo, a xenofobia, o preconceito identitário, o egoísmo estreito e a busca de bodes expiatórios.
- Quando mais Europa necessitávamos, mais fronteira interiores e exteriores estamos encontrando. Quando mais urgente resultava traduzir em políticas concretas aqueles valores de paz, prosperidade e democracia de que falavam os mitos fundadores da União, mais guerras, cortes e xenofobia vemos crescer ao longo do continente. Já conhecemos o resultado de combinar empobrecimento, capitalismo selvagem, intolerância e nacionalismo. A União Europeia pretende ser filha daquela vacina contra esses mesmos fantasmas do passado. Filha de um plano que começou como um sonho, porém que quando abandona os brilhantes painéis nos corredores e as comoventes declarações nos plenário, adota a forma de pesadelo crescente. Quando a austeridade se converte na única opção político-econômica de algumas instituições afastadas dos interesses da cidadania, esta UE realmente existente se torna um problema para as maiorias sociais e construir uma Europa diferente emerge como a única solução à deriva que vivemos.
A UE tem hoje um plano que pouco ou nada se parece na prática com aqueles sonhos fundacionais. Um plano que engendra monstros e reaviva velhos fantasmas. Já sabemos como terminou aquela história, por isso uma mudança não é só possível ou desejável, mas que resulta urgente e necessário. Uma mudança de rumo que passa por construir um projeto Europeu que recupere as raízes democráticas do antifascismo dos partisan, da solidariedade, da paz e da justiça social. Um projeto europeu que exclua e expulse a ninguém, um projeto do qual ninguém queira sair. Esta é a tarefa que hoje mais do que nunca se torna imprescindível.
Miguel Urbán é um ativista e político espanhol, co-fundador do PODEMOS e eurodeputado.
Fonte: http://www.huffingtonpost.es/miguel-urban/diez-tesis-sobre-la-crisi_b_10669724.html
John Weeks – Brexit e a extrema-direita
Na quinta-feira, 23 de junho de 2016, a extrema-direita conquistou sua mais importante vitória na história eleitoral britânica. Sua campanha no referendo caminhou rumo a vitória em cima de uma questão: imigração.
A percepção de que “outros” roubam os “empregos britânicos”, rebaixam os salários e sobrecarregam os serviços público dominou o debate da campanha e sobressaiu sobre todas as demais. Essa foi a vingança dos perdedores da globalização e dos marginalizados, com seus opressores liderando o processo.
Todos os progressistas mais importantes – políticos, sindicalistas e jornalistas – apoiaram a adesão à UE. Jeremy Corbyn (o primeiro líder verdadeiramente progressista do Labour Party em décadas) e a executiva inteira dos trabalhistas defendeu continuar no bloco europeu. Todos os dirigentes sindicais mais importantes chamaram o voto pelo “Remain”, inclusive alguns dos mais progressistas.
A suposição de que os progressistas, “a Esquerda”, ficou dividida no referendo representa não mais que wishful thinking de alguns grupos marginais (por exemplo, o Partido Comunista Marxista-Leninista da Grã-Bretanha e o Socialist Workers Party).
Entre os que defenderam o Brexit, nós encontramos o protagonismo da extrema-direita. O primeiro e mais destacado é Nigel Farage e seu ultranacionalista UKIP. O programa econômico de Farage e dos tories brexiteers é uma versão extrema do neoliberalismo. Suas objeções à União Europeia incluem regulações que protegem consumidores e trabalhadores (inclusive, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), que em sua visão limita “livre-comércio” e o “livre fluxo de capitais”.
A farsa mais descarada dos Brexiteer foi sua retórica ventilando temores sobre a imigração, enquanto planejam um pós-referendo com o programa de arrasar com os direitos humanos e civis do grupo-alvo. Sua estridente mensagem antiimigração carregou o subtexto: “impeçam os imigrantes de reduzir seus rendimentos e de prejudicar os serviços sociais para que nós possamos fazer isso mais profundamente através da privatização e da desregulamentação”.
Ladeira abaixo
O resultado do referendo sinaliza uma mudança fundamental na política britânica. Parafraseando Oscar Wilde, de repente nós temos o indizível controle da busca do inimaginável: Boris Johnson e/ou Michael Gove estão a passos do poder estatal.
É possível que essa troca de guarda entre os Tories, da direita para mais à direita (ou a extrema-direita?) crie o espaço para os progressistas ocuparem? Poderia a desordem transitória na direita encorajar e inspirar a esquerda para a ação?
Depois de semelhante choque político, todos deveriam ser extremamente cautelosos em se aventurar em predições sobre as coisas que estão por vir. No entanto, um processo pelo qual uma vitória eleitoral liderada pelos políticos mais direitistas do país poderia energizar a esquerda não me parece crível. Muito mais crível é o oposto, uma vitória da Direita fortalece a direita.
A eleição de Jeremy Corbyn como líder do Labour Party é a mais importante mudança progressista no Reino Unido em décadas. Em vez de repreenderem o governo tory por criar a possibilidade e estabelecer as bases do Brexit, os parlamentares blairistas aproveitam o resultado do referendo para atacar a popularidade do líder eleito.
Assim que os resultados apareceram na TV, a velha guarda do partido pediu a derrubada de Corbyn, acusando-o de culpado pelo resultado.
Com um olho na divisão do Labour Party, o novo primeiro-ministro conservador pode realizar uma eleição rápida para solidificar seu poder. Isso combinado com um segundo referendo escocês poderia significar um golpe massivo para a política progressiva do que restaria na Grã-Bretanha.
Nem tudo foi perdido no 23 de junho, mas uma grande parte já o foi.
John Weeks é um economista e professor-emérito da School of Oriental and African Studies of the University of London
Fonte: https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/john-weeks/brexit-and-rise-of-far-right
Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia
Muito já foi dito a respeito da decisão inglesa de sair da União Europeia. Ela é certamente um dos fatos mais importantes deste curto século por aquilo que explicita.
A União Europeia nasceu com a promessa de ser o início de uma era pós-nacional, na qual os Estados-nação se submeteriam paulatinamente a uma engenharia institucional capaz de garantir a existência de sujeitos políticos pós-nacionais.
Aos poucos, atribuições dos parlamentos nacionais passaram ao Parlamento Europeu, a criação de uma moeda única levou a um banco central transnacional, as universidades criaram sistemas de intercâmbio contínuo tendo em vista a formação de cidadãos europeus.
Nesse sentido, não se tratava apenas de um espaço de livre comércio, mas da tentativa de criação de um espaço político que deixaria para trás as estruturas dos Estados nacionais. Diferente da Organização das Nações Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum de debates, a União Europeia representou, pela primeira vez, um processo efetivo de transferência de poder.
No entanto, mais de 20 anos depois de sua instauração, a ira de parcelas expressivas de populações do velho continente contra a União Europeia é visível. A decisão inglesa, por mais suicida que seja do ponto de vista econômico e político (com a saída iminente da Escócia do Reino Unido), é apenas a ponta do iceberg. A razão de tal ira talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua maior invenção, a saber, o euro. Há uma certa ironia em perceber como as notas de euro não representam seres vivos (personagens históricos, animais, flora), mas objetos mortos, como pontes, viadutos e outras construções de infraestrutura. A ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a circulação de riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática, nestas representações não há pessoas.
De fato, durante todos estes anos a União Europeia foi uma engenharia institucional que só esteve de acordo em dois pontos: organizar políticas massivas de salvamento do sistema financeiro combalido desde a crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de circulação de imigrantes.
Os projetos iniciais de criação de uma Europa social, com estruturas transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social, naufragaram rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia demonstrou toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante anos com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem disposição alguma para corrigir seus equívocos.
No entanto, o voto britânico foi um dos mais impressionantes passos na direção errada da história recente. Ele foi animado por dois fatores: a crença de que o fortalecimento do Estado-nação serviria de contrapeso a estas políticas que levaram à pauperização do continente e o medo diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores da imprensa local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).
O primeiro fator é apenas a tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado de vez.
Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento.
O Estado-nação não decide mais nada, mesmo quando ainda tem o controle de sua moeda, como no caso inglês. Apenas implementa políticas decididas por um sistema econômico global. Por isso, ele será usado todas as vezes que for o caso de desviar o eixo do descontentamento não para cima, ou seja, em direção àqueles que realmente decidem, mas para o lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode expiatório da vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.
Nos últimos dias, os ingleses descobriram uma obviedade: sair da Comunidade Europeia é impossível, daí esta situação digna de Monty Python de um país tentando adiar a implementação de uma decisão que ele mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.
Por essa razão, a luta pela defesa contra a espoliação econômica não passa pelos Estados nacionais, mas pela politização das decisões econômicas impostas por organismos transnacionais, como a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte de uma certa gestão da política atual desviar continuamente os eixos reais dos problemas para espaços imaginários.
Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia da USP e colunista da Folha de São Paulo
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/07/1787343-o-estado-nacao-como-patologia.shtml
Raquel Varela – É a democracia, estúpido!
Bem sei que hoje acordamos ao som do Apocalipse da queda das bolsas. Só para avisar os mais distraídos – a queda das bolsas não significa a nossa crise, embora assim seja transmitida nos media, como a «crise de todos», pelo contrário, significa desvalorização dos activos ou activos futuros arriscados (investimento que se espera no futuro ter valorização), ou seja, a queda das bolsas significa desvalorização da propriedade. É o apocalipse só para quem vive não de trabalhar e produzir bens e serviços necessários mas da extracção da força de trabalho alheia e de produzir lucro – os chamados «mercados». A queda de 10 a 17% das bolsas significa desvalorização de capitais – bolsa para a maioria dos Europeus é uma coisa onde guardam o salário. Desconhecem a maioria dos europeus o significado de ter investido 400 mil em acções de uma fábrica onde se constrói automóveis, porque automóveis dão mais lucro que comboios, e onde a remuneração dessas acções é tanto maior quanto menos ganharem os operários e suas famílias, menos pagarem para a Segurança Social.
E quando se compraram tantos robots e máquinas para produzir ainda mais automóveis e de repente ficaram com a fábrica cheia de automóveis que ninguém compra chamam os Estados para emitir dívida pública e pagar esses 400 mil, e despedem as pessoas dizendo «não há dinheiro» – nem para automóveis, nem para comboios, é a «crise». É o famoso «investimento que cria emprego». Financiar comboios e transportes públicos não criava emprego? Criava mas não mantinha as bolsas em «terreno positivo». Só com mistificação e ignorância se confunde produção de lucro e riqueza. Na verdade, hoje, a produção de lucro implica destruição de riqueza – é assim que um hospital dá mais lucro se despedir médicos e menos riqueza porque não cura pessoas – e as bolsas, pagas através da remuneração da dívida pública com o despedimento do médico ficam em «terreno positivo». E um investidor inglês fica agora preocupado por causa da desvalorização cambial dos seus investimentos na dívida pública, nos carros ou em comprar títulos de um hospital privado, para onde foi o médico despedido do público trabalhar. Contra a desvalorização cambial a desvalorizaçao salarial de manter-se dentro da UE – é isso que defende a confederação patronal Inglesa – porque manter-se dentro da EU significa pela concorrência de salários e migrações a valorização das acções. A esquerda tinha uma oportunidade para defender um contrato igual de trabalho para toda a Europa – essa é a nossa Europa Unida mas anda atrás deste jogo de espelhos. Sem horizonte, sem projecto, sem coragem.
O maniqueísmo é que resolve tudo com um «ou estás connosco ou contra nós». O Brexit foi liderado pela direita. Foi. Mas o Remain também. A esquerda aliás não lidera nada há muito nada, desde logo porque a esquerda que temos com voz massiva – a social-democracia, a la PS ou a la Syriza, está aprisionada às propostas da direita. A União Europeia tem sido a Desunião Europeia. Se há racistas que votaram no Brexit há zonas inteiras tradicionais de esquerda que votaram no Brexit. A imprensa em Portugal tem sido parcial, ao contrário de uma parte da imprensa mainstream inglesa onde se puderam ouvir as vozes de esquerda pela saída da União Europeia.
A UE cada vez que é submetida a referendos cai como um castelo de cartas – França, Holanda, Irlanda, Grécia, Inglaterra. A UE – também conhecida como o Sindicato Internacional de Banqueiros – apesar de toda a chantagem que faz sobre os povos cada vez que ameaçam romper e que reúne os maiores lideres mundiais a pedir de 5 em 5 minutos para ficarem se não virá uma invasão de gafanhotos do deserto – não resiste cada vez que se ouve a voz dos seus povos.
Que os Europeus acordem antes da guerra – porque a guerra virá da construção da UE, da natureza da UE, do que é a UE, e a resistência ou virá dos povos europeus ou não virá.
Raquel Varela é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa
Fonte: https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2016/06/24/e-a-democracia-estupido/
George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas
Esta é uma crise de proporções espantosas, mas também é uma oportunidade para as mudanças que a esquerda há muito tem procurado
Vamos despedir o eleitorado e nomear um novo: essa é uma demanda feita pelos deputados, advogados e os 4 milhões que assinaram a petição convocando um segundo referendo. É um grito de dor, e portanto compreensível, mas é também uma má política e uma má democracia. Reduzido a sua essência, isso equivale a graduados dizendo para não-graduados: “Nós rejeitamos a sua escolha democrática”.
Se essa votação fosse anulada (não será), o resultado seria uma guerra entre classes e de cultura em larga escala, motins e talvez pior, progressistas de classe média investindo contra aqueles em cujo nome eles têm reivindicado falar, e permanentemente alienando as pessoas que passaram suas vidas sentindo-se sem voz e sem poder.
Sim, o voto pelo Brexit empoderou a mais horrível coleção de ardilosos, ludibriadores, mentirosos, extremistas e marionetes que a política britânica produziu na era moderna. O Brexit ameça invocar uma nova era de demagogia, uma ameaça aguçada pelo pensamento que se isso pode acontecer, pode assim Donald Trump.
Ele provocou o ressurgimento do racismo e de uma crise econômica, cujas dimensões permanencem desconhecidas. Esta situação compromete o mundo vivente, NHS, a paz na Irlanda e o restante da União Europeia. Promove o que o bilionário Peter Hargreaves alegremente antecipou como “insegurança fantástica”.
Mas nós estamos presos a ele. Não há outra opção, a menos que você esteja a favor dos anos de limbo e de caos que resultariam de uma falha continuada ao acionar o artigo 50. Não é apenas que nós não temos nenhuma escolha a não ser aceitar o resultado; nós devemos abraçá-lo e fazer dele o que podemos.
Não é como se o sistema que agora está ruindo a nossa volta estava funcionando. A votação pode ser vista como uma ferida auto-infligida, ou pode ser vista como a erupção de uma ferida interna causada ao longo de muitos anos por uma oligarquia econômica sobre os pobres e os esquecidos. As teorias falsas sobre as quais se fundaram nossa política e economia estavam em vias de se colidir com a realidade algum dia. As únicas questões eram como e quando.
Sim, a campanha do Brexit foi conduzida por uma elite política, financiada por uma elite econômica e alimentada por uma elite midiática. Sim, a ira popular foi canalizada para os alvos que não mereciam – os imigrantes.
Mas a votação também foi um grito de raiva contra a exclusão, a alienação e a autoridade remota. É por isso que o slogan “retome o controle” ressoou. Se a esquerda não pode trabalhar com isso, para que servimos?
Então aqui é onde nós nos encontramos. O sistema econômico não está funcionando, exceto para os gostos de Philip Green. O neoliberalismo não entregou o nirvana meritocrático que seus teóricos prometeram, a não um paraíso para os rentistas, oferecendo retornos impressionantes para quem agarra o primeiro castelo enquanto deixa trabalhadores produtivos no lado errado do fosso.
A era da empresa tornou a era dos lucros não-realizados, a era do mercado em era da falha de mercado, a era da oportunidade em uma gaiola de aço de contratos zero-hora, de precariedade e vigilância.
O sistema político não está funcionando. Independente de quem você vota, as mesmas pessoas ganham, porque onde o poder afirma estar não é onde o poder está.
Parlamentos e conselhos encorporam força paralisada, gesto sem movimento, uma vez que as verdadeiras decisões são tomadas em outro lugar: pelo dinheiro, para o dinheiro. Os governos têm conspirado ativamente nesse desvio, negociando tratados comerciais falsos pelas costas de seus eleitores para impedir que a democracia controle o capital social.
Financiamento político não-reformado garante que os partidos precisem ouvir o farfalhar das notas antes da agitação dos votos. Na Grã-Bretanha, esses problemas são agravados por um sistema eleitoral que garante que a maioria dos votos não contam. É por isso que um referendo é quase o único meio pelo qual as pessoas podem ser ouvidas, e por que tentar substituí-lo é uma ideia terrível.
A cultura não está funcionando. A visão de mundo que insiste que tanto as pessoas quanto os lugares são fungíveis é inerentemente hostil à necessidade de pertencimento. Há anos que nos vem sendo dito que nós não pertencemos, que nós devemos partir sem reclamar enquanto outros serão girados para tomar nosso lugar.
Quando as peculiaridade da comunidade e do lugar são varridas para longe pelas marés do capital, tudo aquilo que é deixado é uma cultura globalizada de shopping, no qual nós nos envolvemos com a passividade envidraçada. O homem nasceu livre, e ele está em toda parte nas redes de lojas.
Em todas essas crises estão oportunidades – oportunidades para rejeitar, conectar e erigir, construir dessas ruínas um sistema que funcione para as pessoas desse país em vez de funcionar para uma elite offshore que se alimenta de insegurança.
Se é verdade que a Grã-Bretanha terá que renegociar seus tratados comerciais, não é essa a melhor chance que temos em décadas para conter o poder das corporações – de insistir que as companhias que operam aqui devem oferecer contratos adequados, compartilhar seus lucros, cortar suas emissões e pagar seus impostos? Não é uma chance para recuperar o controle dos serviços públicos que escorregam de nossas mãos?
Como a política nessa nação esclerótica mudará sem um turbilhão? Nesse caos nós podemos, se formos rápidos e inteligentes, encontrar uma oportunidade de chegar a um novo contrato: representação proporcional, devolução real e uma reforma radical do financiamento de campanha para garantir que milionários jamais possam novamente se apropriar de nossa política.
A autoridade remota foi rejeitada, e por isso vamos usar esse momento para enraizar nossa política numa celebração comum do lugar, para combater a epidemia de solidão e reacender o propósito comum, transcendendo as tensões entre imigrantes recentes e imigrantes menos recentes (ou seja, todos os outros). Ao fazê-lo, nós podemos encontrar uma linguagem em que graduados liberais podem falar com o povo alienado da Grã-Bretanha, ao invés de para eles.
Mas o mais importante: vamos abordar a tarefa que a esquerda e o centro têm catastroficamente negligenciado: desenvolver uma filosofia política e econômica para o século 21, em vez de repetidamente requentar no microondas as sobras do século 20 (neoliberalismo e keynesianismo). Se a história dos últimos 80 anos nos conta algo, é que pouco muda sem uma nova e feroz estrutura de pensamento.
George Monbiot é um jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido
Fonte: https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/jun/28/brexit-disaster-crisis-changes-left
Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit
Quando perguntaram ao camarada Stalin no final dos anos 1920 o que ele achava pior, a direita ou a esquerda, ele imediatamente rebateu: “Os dois são piores!” E essa é minha primeira reação ao Brexit. A Europa está presa agora em um círculo vicioso, oscilando entre dois falsos opostos: de um lado, a rendição ao capitalismo global, e de outro, a sujeição a um populismo anti-imigração. É preciso colocar a pergunta: qual é o tipo de política capaz de nos tirar desse impasse?
O capitalismo global tem se caracterizado cada vez mais por acordos comerciais negociados a portas fechadas como o TISA ou o TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Discuti a dimensão e o significado do TISA aqui, e também não há dúvida sobre o impacto social do TTIP: ele representa nada menos do que um ataque brutal à democracia. Talvez o exemplo mais explícito seja o caso dos ISDSs (Mecanismos de Resolução de Litígios entre Investidores e o Estado), que basicamente permitem que empresas processem governos se suas políticas ferirem sua margem de lucro. Para resumir, isso significa que corporações transnacionais (que não foram eleitas) podem simplesmente ditar as políticas de governos democraticamente eleitos.
Então como avaliar o Brexit nesse contexto? É preciso entender em primeiro lugar que de uma certa perspectiva de esquerda há até justificativas para ter apoiado o referendo: afinal, um forte Estado-nação, livre do controle dos tecnocratas de Bruxelas pode estar numa situação melhor para proteger o Estado de bem-estar social e reverter políticas de austeridade. No entanto, o que é perturbador é o pano de fundo ideológico e político dessa posição. Da Grécia à França, uma nova tendência está surgindo a partir do que sobrou da “esquerda radical”: a redescoberta do nacionalismo. De uma hora para outra, deixou-se de falar em universalismo – ideia que passou a ser descartada como uma simples contraparte política e cultural (“superestrutural”, se quiser) do capital global “desenraizado”.
A razão que explica esse movimento dessa esquerda parece evidente: o fenômeno da ascensão do populismo nacionalista de direita na Europa Ocidental. Por incrível que pareça, é o populismo nacionalista de direita que aparece agora como a mais expressiva força política a reivindicar a proteção dos interesses da classe trabalhadora, e ao mesmo tempo, a mais forte força política capaz de mobilizar verdadeiras paixões políticas. Então, a lógica é a seguinte: por que a esquerda deve deixar esse campo de paixões nacionalistas à direita radical? Por que ela não poderia disputar com o Front National de Le Pen a reivindicação da “pátria amada” [la patrie]?
Nessa vertente de populismo de esquerda, a lógica do “Nós” contra “Eles” permanece, mas aqui o “Eles” não aparece na forma de pobres refugiados ou imigrantes, mas na figura do capital financeiro e da burocracia tecnocrática do estado. Esse populismo também vai além do velho anticapitalismo da classe trabalhadora; ele visa reunir uma multiplicidade de lutas, da ecologia ao feminismo,
do direito ao emprego à saúde e à educação gratuitas.
A tragédia recorrente da esquerda contemporânea é a velha história do líder ou partido que é eleito com entusiasmo universal junto à promessa de um “novo mundo” (o caso de Mandela e de Lula são emblemáticos aqui), mas que uma hora ou outra (geralmente depois de alguns dois anos), se vê diante do dilema fundamental: será que me atrevo a mexer com os mecanismos capitalistas, ou opto por “jogar de acordo com as regras do jogo”? E, claro, quando ousa-se perturbar os mecanismos do capital, logo vem o rebote das perturbações do mercado, o caos econômico e por aí vai… Então como pensar uma verdadeira radicalização passado o primeiro estágio de promessa e entusiasmo?
Estou convicto de que nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global. O Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam. Então ao invés de se opor aos eurocratas em nome de interesses nacionais, por que não começar tentando formar uma esquerda europeia? Não vamos competir com os populistas de direita. Não vamos permitir que eles definam os termos da luta. O nacionalismo socialista não é a forma certa de combater o nacional socialismo.
* A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
Slavoj Zizek é um filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/24/zizek-precisamos-entender-a-esquerda-que-apoiou-o-brexit/
Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação”
O Brexit constitui a crise mais importante da UE desde a sua criação. É uma derrota das classes dominantes europeias e da Comissão europeia. Até esta data, a UE constituía um marco do qual não se podia sair. Porém, agora este marco – ou esta camisa de força – está arrebentando. Claro que teria sido melhor que a iniciativa partisse da esquerda britânica e não da direita, a qual lhe dá um conteúdo racista detestável. No entanto, estamos diante de um país que representa um oitavo da população da UE e que vai deixá-la. O debilitamento da UE é uma boa notícia e agora é preciso trabalhar uma alternativa de esquerda a favor de uma integração dos povos em favor dos povos. “A integração que foi levada a cabo no marco da UE foi contra os povos e a favor das grandes empresas. Uma integração para defender os interesses particulares do 1% mais rico contra a grande maioria da população e contra os bens comuns. Somos profundamente internacionalistas, antirracistas e portanto, queremos uma refundação radical da Europa, o que um implica um processo constituinte real.
Eric Toussaint é um cientista político e historiador belga, membro do Committee for the Abolition of the Third World Debt
Fonte:
http://cadtm.org/Eric-Toussaint-El-Brexit
Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores
Essa madrugada, para muitas pessoas no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair da União Europeia. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres, Oxford e Cambridge são ilhas.
Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora das ilhas.
Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.
Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.
Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.
Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, certo?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe.
Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro tampouco é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.
Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política. “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.
Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.
Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o Partido Trabalhisa – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora.
Uma massa – como diria o historiador E. P. Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.
Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, ameaçado de perder o posto. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.
Por fim, uma questão que não quer calar: Quem é de esquerda e acredita na democracia teve de se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos do referendo. Eu tenho ouvido muitos políticos que admiro se perguntando “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”.
Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então, não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer?
Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos trabalhistas dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.
Esse tipo de questão abre diversas frentes de discussão que se referem ao próprio Brasil, sua democracia representativa e a possibilidade de chamar eleições novamente. Afinal, o povo é soberano ou não é? É um momento para pensar o que entendemos por democracia e, finalmente, olharmos seriamente para os anseios e as penúrias das classes trabalhadoras sacrificadas no Reino Unido, no Brasil e no mundo.
Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-brexit-e-o-fim-da-identidade-dos-trabalhadores