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  • DOSSIER “BREXIT”

    DOSSIER “BREXIT”

    O Brexit inaugurou uma nova etapa da crise europeia. A política e a economia do Velho Continente vivem semanas de apreensão. Dias depois do referendo britânico, intelectuais progressistas do mundo inteiro compartilharam suas  reflexões iniciais. O Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos preparou um dossier com nove análises breves que contemplam as diferentes perspectivas que são encontradas no pensamento crítico à esquerda.

    Confira o índice dos artigos selecionados:

     

    Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos

    Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit

    John Weeks – Brexit e a extrema-direita

    Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia

    Raquel Varela – É a democracia, estúpido!

    George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas

    Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit

    Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação”

    Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores

     

     

     

     

    Yanis Varoufakis – Brexit: consequências e impactos

    Ganhou o Leave (sair), porque demasiados eleitores britânicos identificaram a UE com autoritarismo, irracionalidade e desapreço pela democracia parlamentar, e porque demasiado poucos acreditaram nos que sustentávamos que uma outra UE era possível.

    Eu fiz campanha a favor de um voto radical pelo Remain (permanecer), fazendo eco aos valores de nosso movimento pan-europeu Democracy in Europe Movement (DiEM25). Visitei distintas cidades na Inglaterra, em Gales, na Escócia e na Irlanda do Norte, buscando convencer aos progressistas de que devolver a UE não era a solução. Sustentei que sua desintegração desencadearia forças deflacionárias, que muito provavelmente significarão por todos os lugares um novo aperto no parafuso da austeridade e que terminarão favorecendo o establishmente e seus colaterais xenófobos. Junto com John McDonell, Caroline Lucas, Owen Jones, Paul Mason e outros, advoguei por uma estratégia de permanecer, porém contra a ordem e as instituições estabelecidas.

    Contra nós, uma aliança composta por:

    – David Cameron, cujas manobras com Bruxelas trazem à memória dos britânicos tudo o que desagrada na UE;

    – o Tesouro e seu grotesco alarmismo pseudo-econométrico;

    – a City, cuja insuportável arrogância ensimesmada pôs milhões de ya insufrible arrogancia ensimismada puso a millones de votantes contra la UE;

    – Bruxelas, tenazmente empregada em aplicar sua última tortura do “submarino” e o simulacro de asfixia sobre a periferia europeia;

    – o ministro das finanças alemão,  Wolfgang Schäuble, cujas ameaças aos eleitores britânicos galvanizaram o sentimento anti-alemão;

    – o penoso governo socialista francês;

    – Hillary Clinton e seus alegres garotos atlantistas, projetando uma UE incluída em outra perigosa “coalizão de vontades”;

    – e o governo grego, cuja persistente capitulação ante a punitiva austeridade da UE tornava muito difícil convencermos a classe operária britânica de que seus direitos estavam protegidos por Bruxelas.

    As forças subterrâneas insidiosas que serão agora ativadas

    As repercussões do voto serão calamitosas. Contudo, não serão aquelas contra as quais repetidamente advertiam Cameron e Bruxelas. Os mercados não tardarão em se estabilizar e as negociações provavelmente levarão a uma solução do tipo norueguesa, o que permitira ao próximo parlamento britânico encontrar a via até algum tipo de ajuste deliberado de comum acordo. Schäuble e Bruxelas baterão e soprarão, no entanto, inevitavelmente, buscarão um compromisso deste tipo com Londres. Os Tories vão se manter unidos, como sempre, guiados pelo potente instinto de seu interesse de classe. Todavia, apesar da relativa tranquilidade que seguirá ao atual choque, serão ativadas forças subterrâneas insidiosas dotadas de uma formidável capacidade para infligir danos à Europa e à Grã-Bretanha.

    Nem Itália, nem Finlândia, nem Espanha, nem França, nem, desde logo, Grécia são sustentáveis sob as atuais condições. A arquitetura do euro é garantia de estancamento e está aprofundando a espiral deflacionária da dívida que fortalece a direita xenófoba. Os populistas na Itália, na Finlândia, possivelmente na França, exigirão referendos ou outras sendas de desconexão.

    O único homem com um plano é o ministro alemão de finanças. Schäuble vê no pânico pós-Brexit sua grande oportunidade de implementar uma união permanentemente austeritária. As cenouras vêm em forma de um pequeno orçamento da eurozona destinado a cobrir parcialmente o desemprego e os seguros dos depósitos bancários. O garrote será um poder de veto sobre os orçamentos nacionais.

    Se eu estou correto e o Brexit leva à construção de uma jaula de ferro austeritária permanente para os estados membros que permanecem na UE, há dois resultados possíveis. Um é que a jaula de ferro se sustenta, em cujo caso a austeridade institucionalizada exportará deflação para a Grã-Bretanha, porém para a China (cujo ulterior desestabilização terá por sua vez negativas repercussões na Grã-Bretanha e na UE).

    Outra possibilidade é que a jaula se rompa (por abandono da Itália ou da Finlândia, por exemplo), resultando finalmente no abandono por parte da Alemanha de uma Eurozona em colapso. Porém, isso se tornará a nova  Deutschmark – que provavelmente se estenderá até a fronteira ucraniana – numa gigantesca máquina geradora de deflação (posto que a nova moeda vai se disparar em alta, e as fábricas alemãs perderão mercados internacionais). Grã-Bretanha e a China teriam, sob esse cenário, maiores possibilidades ainda de ser alcançadas por um choque deflacionário ainda maior.

    O horror desses possíveis desdobramentos, dos quais o Brexit não protegerá a Grã-Bretanha, é a razão de que eu e outros membros do DiEM25 buscamos salvar a UE do establishment que está levando o europeísmo ao abismo. Eu duvido muito de que, apesar do pânico que sentiram depois do Brexit, os dirigentes da UE sejam capazes de aprender a lição. Seguirão combatendo a democratização da UE e seguirão impondo-se através do medo. Pode surpreender que tantos progressistas britânicos tenham dado às costas a esta UE?

    Ainda que eu siga convencido de que o Leave era a opção equivocada, me congratulo da determinação do povo britânico para enfrentar a diminuição de soberania democrática causada pelo déficit democrático da UE. E me nego a ficar abatido, ainda que coloque entre os perdedores do referendo.

    O que agora devem fazer os democratas britânicos e europeus é aproveitar esse voto para enfrentar o establishment em Londres e em Bruxelas com mais afinco que antes. A desintegração da UE corre agora a toda velocidade. Estender pontes por toda Europa, unir os democratas através de todas as fronteiras e de todos os partidos: isso é o que a Europa necessita mais do que nunca para evitar deslizar para um abismo xenófobo e deflacionário como o dos anos 30 do século passado.

    Yanis Varoufakis é um economista, acadêmico e político grego, que ocupou o cargo de Ministro Grego das Finanças de janeiro a julho de 2015, quando ele renunciou.

    Fonte: http://www.sinpermiso.info/textos/brexit-consecuencias-e-impactos

     

     

    Miguel Urban – Dez teses sobre a crise do projeto europeu ao calor do Brexit

    Quando se secarem as lágrimas daqueles que há um ano chantagearam o povo grego com a expulsão da União Europeia caberá, como dizia Spinoza, “Nem rir, nem chorar, mas compreender”.

    1- O Brexit não é o começo da crise, mas o sintoma mórbido da mesma, consequência    de um processo falido de integração europeia desde seu início no começo dos anos 50.

    1. Este problema vem de longe e tem seus inícios na extensão à escala continental da revolução conservadora e do thatcherismo.     Um processo que favoreceu a mutação neoliberal da União Europeia    sentenciada no Tratado de Maastricht e que é a base da sabotagem do próprio projeto europeu. Com efeito,    o Tratado de funcionamento da União inscreve em seu terceiro artigo o objetivo de fomentar a a conexão econômica, social e territorial assim como a solidariedade entre seus estados-membro. Contudo, as    políticas efetivas da UE estão indo em sentido oposto: com uma União Monetária defeituosa desde seu começo, que contribuiu para polarizar a Europa entre um Sul devedor e um Norte credor, e umas políticas de austeridade e desmantelamento do Estado social que tem    recortado os direitos das classes populares.
    1. A crise política do projeto Europeu viveu seus primeiros sintomas no rechaço da Comissão Europeia nos referendos da França e da Holanda. Estas votações foram a expressão de um rechaço popular ao modelo de integração europeia que não só foram ignoradas pelas instituições e elites europeias, mas que ao contrário aceleraram a marcha das reformas estruturais do tratado de Lisboa com a máxima “melhor decretar do que perguntar”.
    1. O giro autoritário da UE teve sua maior demonstração no ano passado com o golpe de estado à vontade popular grega depois de um referendo onde mais de sessenta por cento da população votou contra a austeridade e ainda assim a troika aplicou um duríssimo corretivo em forma de “terceiro memorando que abundava em ajustes, recortes e privatizações. Uma medida que pretendia ser um aviso a navegantes para todas aqueles que ousassem questionar a ortodoxia austeritária, porém que ao cabo supôs uma ruptura do consenso    social sobre as instituições europeias.
    1. Durante estes anos temos contemplado a mutação da social-democracia em “social-liberalismo” com sua incorporação a uma elite política neoliberal que superou a tradicional divisão direita-esquerda convertendo-se no que o escritor Tariq Ali denomina “extremo-centro”. Em toda a Europa este processo supôs uma paulatina polarização da política e a substituição dos espaços    eleitorais tradicionais até opções políticas que até agora se encontravam em suas margens. Um bom exemplo desta situação é a    preponderância que tem ganhado um partido e algumas propostas como    as do UKIP na campanha do Brexit na Grã-Bretanha.
    1. É sintomático da crise do projeto europeu que os únicos que reivindicam as virtudes da UE de forma ritual são os membros de uma classe política muito desacreditada, que não parece ter nem memória nem ética. Quanto mais orgulho demonstram estas elites em decadência de sua crença na UE, mais a desqualificam, inclusive    ante muita gente que jamais deu mostras da menor simpatia pelo    anti-europeísmo conservador, nacionalista e xenófobo. Favorecendo que o voto de protesto anti-establishment seja fundamentalmente canalizado pelas opções de extrema-direita eurocéticas.
    1. Num ataque de sinceridade o comissário europeu de Imigração, Dimitris Avramópulos, afirmou há alguns meses que vivemos “um momento difícil para a Europa: o sonho europeu se desvaneceu”. Poderíamos dizer que mais do que um sonho se afastando, estamos nos adentrando progressivamente num pesadelo securitário que levanta muros entre    aqueles que devem ser protegidos e aqueles que estão excluídos de referida proteção.  A gestão da chegada de milhares de refugiados a Europa é outra fator que desponta na crise europeia, uma crise política, que está    demonstrando os limites da UE, sendo a mutação neoliberal e o recrudescimento da xenofobia institucional os motores da sabotagem do próprio projeto europeu, como temos comprovado no próprio debate sobre o Brexit. Podemos dizer que hoje mais do que nunca as fronteiras da Europa sangram e os alambrados brotam. E é assim que a UE está respondendo ao que possivelmente é seu maior desafio em décadas: levantando muros, instalando centros de internamento massivos e recortando direitos e liberdades a nativos e migrantes. Muros construídos sobre o medo ao outro, ao desconhecido e que    aumentam a brecha entre eles e nós. Muros entre os quais se reforçam os preconceitos identitários e os nacionalismos    excludentes. Muros que reavivam antigos fantasmas que hoje, de novo,    percorrem a Europa. Os mesmos fantasmas contra os quais supostamente aquele sonho europeu se levantou há décadas.
    1. Desde o início do giro neoliberal da UE, a desigualdade não parou de aumentar, acelerando-se de forma vertiginosa com a crise econômica e as políticas de ajuste estrutural. Assim, a pobreza, de igual forma para a migração, também se constrói como inimigo, porém o objetivo não é tanto acabar com a pobreza, mas acabar com os pobres. Deixamos de atender a pobreza a partir da extensão do Estado social, a combatê-la a partir do aprofundamento de um Estado policial que estigmatiza e criminaliza as pessoas pessoas empobrecidas. Ante a impossibilidade de solucionar a insegurança derivada das políticas de ajuste e austeridade, da precarização do mercado laboral e da perda de direitos e prestações sociais, se estigmatizam fenômenos como a migração ou a pobreza. As políticas de austeridade da UE estão construindo um imaginário de “escassez” que fomenta um mecanismo de exclusão e uma guerra entre pobres que canaliza o mal-estar social em seu elo mais frágil (o imigrante, o estrangeiro ou simplesmente o “outro”) eximindo assim as elites políticas e econômicas responsáveis da espoliação.

              9- O drama é que neste 23 de junho a impugnação da União com o Brexit não partiu de uma proposta de uma proposta europeísta de ruptura democrática e de conquista de direitos como pôde ser o referendo grego do OXI há um ano, desgraçadamente foi uma    combinação de nacionalismo excludente, demagogia anti-imigração e cansaço ante a desigualdade social que soube fazer eco, articulando o rechaço popular à institucionalidade europeia. Desta forma, o vazio que gera uma alternativa política crível europeia é ocupado pelo medo, a xenofobia, o preconceito identitário, o egoísmo estreito e a busca de bodes expiatórios.

    1. Quando mais Europa necessitávamos, mais fronteira interiores e exteriores estamos encontrando. Quando mais urgente resultava traduzir em políticas concretas aqueles valores de paz, prosperidade e democracia de que falavam os mitos fundadores da União, mais guerras, cortes e xenofobia vemos crescer ao longo do continente. Já conhecemos o resultado de combinar empobrecimento, capitalismo selvagem, intolerância e nacionalismo. A União Europeia pretende ser filha daquela vacina contra esses mesmos fantasmas do passado. Filha de um plano que começou como um sonho, porém que quando abandona os brilhantes painéis nos corredores e as comoventes declarações nos plenário, adota a forma de pesadelo crescente. Quando a austeridade se converte na única opção político-econômica de algumas instituições afastadas dos interesses da cidadania, esta UE realmente existente se torna um problema para as maiorias sociais e construir uma Europa diferente emerge como a única solução à deriva que vivemos.

    A UE tem hoje um plano que pouco ou nada se parece na prática com aqueles sonhos fundacionais. Um plano que engendra monstros e reaviva velhos fantasmas. Já sabemos como terminou aquela história, por isso uma mudança não é só possível ou desejável, mas que resulta urgente e necessário. Uma mudança de rumo que passa por construir um projeto Europeu que recupere as raízes democráticas do antifascismo dos partisan, da solidariedade, da paz e da justiça social. Um projeto europeu que exclua e expulse a ninguém, um    projeto do qual ninguém queira sair. Esta é a tarefa que hoje mais    do que nunca se torna imprescindível.

    Miguel Urbán é um ativista e político espanhol, co-fundador do PODEMOS e eurodeputado.

    Fonte: http://www.huffingtonpost.es/miguel-urban/diez-tesis-sobre-la-crisi_b_10669724.html

     

    John Weeks – Brexit e a extrema-direita

    Na quinta-feira, 23 de junho de 2016, a extrema-direita conquistou sua mais importante vitória na história eleitoral britânica. Sua campanha no referendo caminhou rumo a vitória em cima de uma questão: imigração.

    A percepção de que “outros” roubam os “empregos britânicos”, rebaixam os salários e sobrecarregam os serviços público dominou o debate da campanha e sobressaiu sobre todas as demais. Essa foi a vingança dos perdedores da globalização e dos marginalizados, com seus opressores liderando o processo.

    Todos os progressistas mais importantes – políticos, sindicalistas e jornalistas – apoiaram a adesão à UE. Jeremy Corbyn (o primeiro líder verdadeiramente progressista do Labour Party em décadas) e a executiva inteira dos trabalhistas defendeu continuar no bloco europeu. Todos os dirigentes sindicais mais importantes chamaram o voto pelo “Remain”, inclusive alguns dos mais progressistas.

    A suposição de que os progressistas, “a Esquerda”, ficou dividida no referendo representa não mais que wishful thinking de alguns grupos marginais (por exemplo, o Partido Comunista Marxista-Leninista da Grã-Bretanha e o Socialist Workers Party).

    Entre os que defenderam o Brexit, nós encontramos o protagonismo da extrema-direita. O primeiro e mais destacado é Nigel Farage e seu ultranacionalista UKIP. O programa econômico de Farage e dos tories brexiteers é uma versão extrema do neoliberalismo. Suas objeções à União Europeia incluem regulações que protegem consumidores e trabalhadores (inclusive, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), que em sua visão limita “livre-comércio” e o “livre fluxo de capitais”.

    A farsa mais descarada dos Brexiteer foi sua retórica ventilando temores sobre a imigração, enquanto planejam um pós-referendo com o programa de arrasar com os direitos humanos e civis do grupo-alvo. Sua estridente mensagem antiimigração carregou o subtexto: “impeçam os imigrantes de reduzir seus rendimentos e de prejudicar os serviços sociais para que nós possamos fazer isso mais profundamente através da privatização e da desregulamentação”.

    Ladeira abaixo

    O resultado do referendo sinaliza uma mudança fundamental na política britânica. Parafraseando Oscar Wilde, de repente nós temos o indizível controle da busca do inimaginável: Boris Johnson e/ou Michael Gove estão a passos do poder estatal.

    É possível que essa troca de guarda entre os Tories, da direita para mais à direita (ou a extrema-direita?) crie o espaço para os progressistas ocuparem? Poderia a desordem transitória na direita encorajar e inspirar a esquerda para a ação?

    Depois de semelhante choque político, todos deveriam ser extremamente cautelosos em se aventurar em predições sobre as coisas que estão por vir. No entanto, um processo pelo qual uma vitória eleitoral liderada pelos políticos mais direitistas do país poderia energizar a esquerda não me parece crível. Muito mais crível é o oposto, uma vitória da Direita fortalece a direita.

    A eleição de Jeremy Corbyn como líder do Labour Party é a mais importante mudança progressista no Reino Unido em décadas. Em vez de repreenderem o governo tory por criar a possibilidade e estabelecer as bases do Brexit, os parlamentares blairistas aproveitam o resultado do referendo para atacar a popularidade do líder eleito.

    Assim que os resultados apareceram na TV, a velha guarda do partido pediu a derrubada de Corbyn, acusando-o de culpado pelo resultado.

    Com um olho na divisão do Labour Party, o novo primeiro-ministro conservador pode realizar uma eleição rápida para solidificar seu poder. Isso combinado com um segundo referendo escocês poderia significar um golpe massivo para a política progressiva do que restaria na Grã-Bretanha.

    Nem tudo foi perdido no 23 de junho, mas uma grande parte já o foi.

    John Weeks é um economista e professor-emérito da School of Oriental and African Studies of the University of London

    Fonte: https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/john-weeks/brexit-and-rise-of-far-right

     

    Vladimir Safatle – O Estado-Nação como patologia

    Muito já foi dito a respeito da decisão inglesa de sair da União Europeia. Ela é certamente um dos fatos mais importantes deste curto século por aquilo que explicita.

    A União Europeia nasceu com a promessa de ser o início de uma era pós-nacional, na qual os Estados-nação se submeteriam paulatinamente a uma engenharia institucional capaz de garantir a existência de sujeitos políticos pós-nacionais.

    Aos poucos, atribuições dos parlamentos nacionais passaram ao Parlamento Europeu, a criação de uma moeda única levou a um banco central transnacional, as universidades criaram sistemas de intercâmbio contínuo tendo em vista a formação de cidadãos europeus.

    Nesse sentido, não se tratava apenas de um espaço de livre comércio, mas da tentativa de criação de um espaço político que deixaria para trás as estruturas dos Estados nacionais. Diferente da Organização das Nações Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum de debates, a União Europeia representou, pela primeira vez, um processo efetivo de transferência de poder.

    No entanto, mais de 20 anos depois de sua instauração, a ira de parcelas expressivas de populações do velho continente contra a União Europeia é visível. A decisão inglesa, por mais suicida que seja do ponto de vista econômico e político (com a saída iminente da Escócia do Reino Unido), é apenas a ponta do iceberg. A razão de tal ira talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua maior invenção, a saber, o euro. Há uma certa ironia em perceber como as notas de euro não representam seres vivos (personagens históricos, animais, flora), mas objetos mortos, como pontes, viadutos e outras construções de infraestrutura. A ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a circulação de riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática, nestas representações não há pessoas.

    De fato, durante todos estes anos a União Europeia foi uma engenharia institucional que só esteve de acordo em dois pontos: organizar políticas massivas de salvamento do sistema financeiro combalido desde a crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de circulação de imigrantes.

    Os projetos iniciais de criação de uma Europa social, com estruturas transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social, naufragaram rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia demonstrou toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante anos com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem disposição alguma para corrigir seus equívocos.

    No entanto, o voto britânico foi um dos mais impressionantes passos na direção errada da história recente. Ele foi animado por dois fatores: a crença de que o fortalecimento do Estado-nação serviria de contrapeso a estas políticas que levaram à pauperização do continente e o medo diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores da imprensa local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).

    O primeiro fator é apenas a tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado de vez.

    Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento.

    O Estado-nação não decide mais nada, mesmo quando ainda tem o controle de sua moeda, como no caso inglês. Apenas implementa políticas decididas por um sistema econômico global. Por isso, ele será usado todas as vezes que for o caso de desviar o eixo do descontentamento não para cima, ou seja, em direção àqueles que realmente decidem, mas para o lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode expiatório da vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.

    Nos últimos dias, os ingleses descobriram uma obviedade: sair da Comunidade Europeia é impossível, daí esta situação digna de Monty Python de um país tentando adiar a implementação de uma decisão que ele mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.

    Por essa razão, a luta pela defesa contra a espoliação econômica não passa pelos Estados nacionais, mas pela politização das decisões econômicas impostas por organismos transnacionais, como a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte de uma certa gestão da política atual desviar continuamente os eixos reais dos problemas para espaços imaginários.

    Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia da USP e colunista da Folha de São Paulo

    Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/07/1787343-o-estado-nacao-como-patologia.shtml

     

    Raquel Varela – É a democracia, estúpido!

    Bem sei que hoje acordamos ao som do Apocalipse da queda das bolsas. Só para avisar os mais distraídos – a queda das bolsas não significa a nossa crise, embora assim seja transmitida nos media, como a «crise de todos», pelo contrário, significa desvalorização dos activos ou activos futuros arriscados (investimento que se espera no futuro ter valorização), ou seja, a queda das bolsas significa desvalorização da propriedade. É o apocalipse só para quem vive não de trabalhar e produzir bens e serviços necessários mas da extracção da força de trabalho alheia e de produzir lucro – os chamados «mercados». A queda de 10 a 17% das bolsas significa desvalorização de capitais – bolsa para a maioria dos Europeus é uma coisa onde guardam o salário. Desconhecem a maioria dos europeus o significado de ter investido 400 mil em acções de uma fábrica onde se constrói automóveis, porque automóveis dão mais lucro que comboios, e onde a remuneração dessas acções é tanto maior quanto menos ganharem os operários e suas famílias, menos pagarem para a Segurança Social.

    E quando se compraram tantos robots e máquinas para produzir ainda mais automóveis e de repente ficaram com a fábrica cheia de automóveis que ninguém compra chamam os Estados para emitir dívida pública e pagar esses 400 mil, e despedem as pessoas dizendo «não há dinheiro» – nem para automóveis, nem para comboios, é a «crise». É o famoso «investimento que cria emprego». Financiar comboios e transportes públicos não criava emprego? Criava mas não mantinha as bolsas em «terreno positivo». Só com mistificação e ignorância se confunde produção de lucro e riqueza.  Na verdade, hoje, a produção de lucro implica destruição de riqueza – é assim que um hospital dá mais lucro se despedir médicos e menos riqueza porque não cura pessoas – e as bolsas, pagas através da remuneração da dívida pública com o despedimento do médico ficam em «terreno positivo». E um investidor inglês fica agora preocupado por causa da desvalorização cambial dos seus investimentos na dívida pública, nos carros ou em comprar títulos de um hospital privado, para onde foi o médico despedido do público trabalhar. Contra a desvalorização cambial a desvalorizaçao salarial de manter-se dentro da UE – é isso que defende a confederação patronal Inglesa – porque manter-se dentro da EU significa pela concorrência de salários e migrações a valorização das acções. A esquerda tinha uma oportunidade para defender um contrato igual de trabalho para toda a Europa – essa é a nossa Europa Unida mas anda atrás deste jogo de espelhos. Sem horizonte, sem projecto, sem coragem.

    O maniqueísmo é que resolve tudo com um «ou estás connosco ou contra nós». O Brexit foi liderado pela direita. Foi. Mas o Remain também. A esquerda aliás não lidera nada há muito nada, desde logo porque a esquerda que temos com voz massiva – a social-democracia, a la PS ou a la Syriza, está aprisionada às propostas da direita. A União Europeia tem sido a Desunião Europeia. Se há racistas que votaram no Brexit há zonas inteiras tradicionais de esquerda que votaram no Brexit. A imprensa em Portugal tem sido parcial, ao contrário de uma parte da imprensa mainstream inglesa onde se puderam ouvir as vozes de esquerda pela saída da União Europeia.

    A UE cada vez que é submetida a referendos cai como um castelo de cartas – França, Holanda, Irlanda, Grécia, Inglaterra. A UE – também conhecida como o Sindicato Internacional de Banqueiros – apesar de toda a chantagem que faz sobre os povos cada vez que ameaçam romper e que reúne os maiores lideres mundiais a pedir de 5 em 5 minutos para ficarem se não virá uma invasão de gafanhotos do deserto – não resiste cada vez que se ouve a voz dos seus povos.

    Que os Europeus acordem antes da guerra – porque a guerra virá da construção da UE, da natureza da UE, do que é a UE, e a resistência ou virá dos povos europeus ou não virá.

    Raquel Varela é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa

    Fonte: https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2016/06/24/e-a-democracia-estupido/

     

    George Monbiot – Brexit é um desastre, mas nós podemos construir sobre as ruínas

    Esta é uma crise de proporções espantosas, mas também é uma oportunidade para as mudanças que a esquerda há muito tem procurado

    Vamos despedir o eleitorado e nomear um novo: essa é uma demanda feita pelos deputados, advogados e os 4 milhões que assinaram a petição convocando um segundo referendo. É um grito de dor, e portanto compreensível, mas é também uma má política e uma má democracia. Reduzido a sua essência, isso equivale a graduados dizendo para não-graduados: “Nós rejeitamos a sua escolha democrática”.

    Se essa votação fosse anulada (não será), o resultado seria uma guerra entre classes e de cultura em larga escala, motins e talvez pior, progressistas de classe média investindo contra aqueles em cujo nome eles têm reivindicado falar, e permanentemente alienando as pessoas que passaram suas vidas sentindo-se sem voz e sem poder.

    Sim, o voto pelo Brexit empoderou a mais horrível coleção de ardilosos, ludibriadores, mentirosos, extremistas e marionetes que a política britânica produziu na era moderna. O Brexit ameça invocar uma nova era de demagogia, uma ameaça aguçada pelo pensamento que se isso pode acontecer, pode assim Donald Trump.

    Ele provocou o ressurgimento do racismo e de uma crise econômica, cujas dimensões permanencem desconhecidas. Esta situação compromete o mundo vivente, NHS, a paz na Irlanda e o restante da União Europeia. Promove o que o bilionário Peter Hargreaves alegremente antecipou como “insegurança fantástica”.

    Mas nós estamos presos a ele. Não há outra opção, a menos que você esteja a favor dos anos de limbo e de caos que resultariam de uma falha continuada ao acionar o artigo 50. Não é apenas que nós não temos nenhuma escolha a não ser aceitar o resultado; nós devemos abraçá-lo e fazer dele o que podemos.

    Não é como se o sistema que agora está ruindo a nossa volta estava funcionando. A votação pode ser vista como uma ferida auto-infligida, ou pode ser vista como a erupção de uma ferida interna causada ao longo de muitos anos por uma oligarquia econômica sobre os pobres e os esquecidos. As teorias falsas sobre as quais se fundaram nossa política e economia estavam em vias de se colidir com a realidade algum dia. As únicas questões eram como e quando.

    Sim, a campanha do Brexit foi conduzida por uma elite política, financiada por uma elite econômica e alimentada por uma elite midiática. Sim, a ira popular foi canalizada para os alvos que não mereciam – os imigrantes.

    Mas a votação também foi um grito de raiva contra a exclusão, a alienação e a autoridade remota. É por isso que o slogan “retome o controle” ressoou. Se a esquerda não pode trabalhar com isso, para que servimos?

    Então aqui é onde nós nos encontramos. O sistema econômico não está funcionando, exceto para os gostos de Philip Green. O neoliberalismo não entregou o nirvana meritocrático que seus teóricos prometeram, a não um paraíso para os rentistas, oferecendo retornos impressionantes para quem agarra o primeiro castelo enquanto deixa trabalhadores produtivos no lado errado do fosso.

    A era da empresa tornou a era dos lucros não-realizados, a era do mercado em era da falha de mercado, a era da oportunidade em uma gaiola de aço de contratos zero-hora, de precariedade e vigilância.

    O sistema político não está funcionando. Independente de quem você vota, as mesmas pessoas ganham, porque onde o poder afirma estar não é onde o poder está.

    Parlamentos e conselhos encorporam força paralisada, gesto sem movimento, uma vez que as verdadeiras decisões são tomadas em outro lugar: pelo dinheiro, para o dinheiro. Os governos têm conspirado  ativamente nesse desvio, negociando tratados comerciais falsos pelas costas de seus eleitores para impedir que a democracia controle o capital social.

    Financiamento político não-reformado garante que os partidos precisem ouvir o farfalhar das notas antes da agitação dos votos. Na Grã-Bretanha, esses problemas são agravados por um sistema eleitoral que garante que a maioria dos votos não contam. É por isso que um referendo é quase o único meio pelo qual as pessoas podem ser ouvidas, e por que tentar substituí-lo é uma ideia terrível.

    A cultura não está funcionando. A visão de mundo que insiste que tanto as pessoas quanto os lugares são fungíveis é inerentemente hostil à necessidade de pertencimento. Há anos que nos vem sendo dito que nós não pertencemos, que nós devemos partir sem reclamar enquanto outros serão girados para tomar nosso lugar.

    Quando as peculiaridade da comunidade e do lugar são varridas para longe pelas marés do capital, tudo aquilo que é deixado é uma cultura globalizada de shopping, no qual nós nos envolvemos com a passividade envidraçada. O homem nasceu livre, e ele está em toda parte nas redes de lojas.

    Em todas essas crises estão oportunidades – oportunidades para rejeitar, conectar e erigir, construir dessas ruínas um sistema que funcione para as pessoas desse país em vez de funcionar para uma elite offshore que se alimenta de insegurança.

    Se é verdade que a Grã-Bretanha terá que renegociar seus tratados comerciais, não é essa a melhor chance que temos em décadas para conter o poder das corporações – de insistir que as companhias que operam aqui devem oferecer contratos adequados, compartilhar seus lucros, cortar suas emissões e pagar seus impostos? Não é uma chance para recuperar o controle dos serviços públicos que escorregam de nossas mãos?

    Como a política nessa nação esclerótica mudará sem um turbilhão? Nesse caos nós podemos, se formos rápidos e inteligentes, encontrar uma oportunidade de chegar a um novo contrato: representação proporcional, devolução real e uma reforma radical do financiamento de campanha para garantir que milionários jamais possam novamente se apropriar de nossa política.

    A autoridade remota foi rejeitada, e por isso vamos usar esse momento para enraizar nossa política numa celebração comum do lugar, para combater a epidemia de solidão e reacender o propósito comum, transcendendo as tensões entre imigrantes recentes e imigrantes menos recentes (ou seja, todos os outros). Ao fazê-lo, nós podemos encontrar uma linguagem em que graduados liberais podem falar com o povo alienado da Grã-Bretanha, ao invés de para eles.

    Mas o mais importante: vamos abordar a tarefa que a esquerda e o centro têm catastroficamente negligenciado: desenvolver uma filosofia política e econômica para o século 21, em vez de repetidamente requentar no microondas as sobras do século 20 (neoliberalismo e keynesianismo). Se a história dos últimos 80 anos nos conta algo, é que pouco muda sem uma nova e feroz estrutura de pensamento.

    George Monbiot  é um jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido

    Fonte: https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/jun/28/brexit-disaster-crisis-changes-left

     

    Slavoj Žižek: Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit

    Quando perguntaram ao camarada Stalin no final dos anos 1920 o que ele achava pior, a direita ou a esquerda, ele imediatamente rebateu: “Os dois são piores!” E essa é minha primeira reação ao Brexit. A Europa está presa agora em um círculo vicioso, oscilando entre dois falsos opostos: de um lado, a rendição ao capitalismo global, e de outro, a sujeição a um populismo anti-imigração. É preciso colocar a pergunta: qual é o tipo de política capaz de nos tirar desse impasse?

    O capitalismo global tem se caracterizado cada vez mais por acordos comerciais negociados a portas fechadas como o TISA ou o TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Discuti a dimensão e o significado do TISA aqui, e também não há dúvida sobre o impacto social do TTIP: ele representa nada menos do que um ataque brutal à democracia. Talvez o exemplo mais explícito seja o caso dos ISDSs (Mecanismos de Resolução de Litígios entre Investidores e o Estado), que basicamente permitem que empresas processem governos se suas políticas ferirem sua margem de lucro. Para resumir, isso significa que corporações transnacionais (que não foram eleitas) podem simplesmente ditar as políticas de governos democraticamente eleitos.

    Então como avaliar o Brexit nesse contexto? É preciso entender em primeiro lugar que de uma certa perspectiva de esquerda há até justificativas para ter apoiado o referendo: afinal, um forte Estado-nação, livre do controle dos tecnocratas de Bruxelas pode estar numa situação melhor para proteger o Estado de bem-estar social e reverter políticas de austeridade. No entanto, o que é perturbador é o pano de fundo ideológico e político dessa posição. Da Grécia à França, uma nova tendência está surgindo a partir do que sobrou da “esquerda radical”: a redescoberta do nacionalismo. De uma hora para outra, deixou-se de falar em universalismo – ideia que passou a ser descartada como uma simples contraparte política e cultural (“superestrutural”, se quiser) do capital global “desenraizado”.

    A razão que explica esse movimento dessa esquerda parece evidente: o fenômeno da ascensão do populismo nacionalista de direita na Europa Ocidental. Por incrível que pareça, é o populismo nacionalista de direita que aparece agora como a mais expressiva força política a reivindicar a proteção dos interesses da classe trabalhadora, e ao mesmo tempo, a mais forte força política capaz de mobilizar verdadeiras paixões políticas. Então, a lógica é a seguinte: por que a esquerda deve deixar esse campo de paixões nacionalistas à direita radical? Por que ela não poderia disputar com o Front National de Le Pen a reivindicação da “pátria amada” [la patrie]?

    Nessa vertente de populismo de esquerda, a lógica do “Nós” contra “Eles” permanece, mas aqui o “Eles” não aparece na forma de pobres refugiados ou imigrantes, mas na figura do capital financeiro e da burocracia tecnocrática do estado. Esse populismo também vai além do velho anticapitalismo da classe trabalhadora; ele visa reunir uma multiplicidade de lutas, da ecologia ao feminismo,

    do direito ao emprego à saúde e à educação gratuitas.

    A tragédia recorrente da esquerda contemporânea é a velha história do líder ou partido que é eleito com entusiasmo universal junto à promessa de um “novo mundo” (o caso de Mandela e de Lula são emblemáticos aqui), mas que uma hora ou outra (geralmente depois de alguns dois anos), se vê diante do dilema fundamental: será que me atrevo a mexer com os mecanismos capitalistas, ou opto por “jogar de acordo com as regras do jogo”? E, claro, quando ousa-se perturbar os mecanismos do capital, logo vem o rebote das perturbações do mercado, o caos econômico e por aí vai… Então como pensar uma verdadeira radicalização passado o primeiro estágio de promessa e entusiasmo?

    Estou convicto de que nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global. O Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam. Então ao invés de se opor aos eurocratas em nome de interesses nacionais, por que não começar tentando formar uma esquerda europeia? Não vamos competir com os populistas de direita. Não vamos permitir que eles definam os termos da luta. O nacionalismo socialista não é a forma certa de combater o nacional socialismo.

    * A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

    Slavoj Zizek é um filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno

    Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/24/zizek-precisamos-entender-a-esquerda-que-apoiou-o-brexit/

     

    Eric Toussaint – “O Brexit é a maior crise da UE desde a sua criação

    O Brexit constitui a crise mais importante da UE desde a sua criação. É uma derrota das classes dominantes europeias e da Comissão europeia. Até esta data, a UE constituía um marco do qual não se podia sair. Porém, agora este marco – ou esta camisa de força – está arrebentando. Claro que teria sido melhor que a iniciativa partisse da esquerda britânica e não da direita, a qual lhe dá um conteúdo racista detestável. No entanto, estamos diante de um país que representa um oitavo da população da UE e que vai deixá-la. O debilitamento da UE é uma boa notícia e agora é preciso trabalhar uma alternativa de esquerda a favor de uma integração dos povos em favor dos povos. “A integração que foi levada a cabo no marco da UE foi contra os povos e a favor das grandes empresas. Uma integração para defender os interesses particulares do 1% mais rico contra a grande maioria da população e contra os bens comuns. Somos profundamente internacionalistas, antirracistas e portanto, queremos uma refundação radical da Europa, o que um implica um processo constituinte real.

    Eric Toussaint é um cientista político e historiador belga, membro do  Committee for the Abolition of the Third World Debt

    Fonte:

    http://cadtm.org/Eric-Toussaint-El-Brexit

     

     

    Rosana Pinheiro-Machado O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores

    Essa madrugada, para muitas pessoas no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair da União Europeia. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres, Oxford e Cambridge são ilhas.

    Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora das ilhas.

    Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.

    Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.

    Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.

    Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, certo?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe.

    Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro tampouco é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.

    Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política. “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.

    Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.

    Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o Partido Trabalhisa – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora.

    Uma massa – como diria o historiador E. P. Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.

    Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, ameaçado de perder o posto. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.

    Por fim, uma questão que não quer calar: Quem é de esquerda e acredita na democracia teve de se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos do referendo. Eu tenho ouvido muitos políticos que admiro se perguntando “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”.

    Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então, não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer?

    Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos trabalhistas dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.

    Esse tipo de questão abre diversas frentes de discussão que se referem ao próprio Brasil, sua democracia representativa e a possibilidade de chamar eleições novamente. Afinal, o povo é soberano ou não é? É um momento para pensar o que entendemos por democracia e, finalmente, olharmos seriamente para os anseios e as penúrias das classes trabalhadoras sacrificadas no Reino Unido, no Brasil e no mundo.

    Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford

    Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-brexit-e-o-fim-da-identidade-dos-trabalhadores


  • “Direitos sociais em tempos de ajuste”: síntese do Coletivo de Conjuntura

    “Direitos sociais em tempos de ajuste”: síntese do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         A segunda mesa da reunião do Coletivo de Conjuntura, que ocorreu na tarde do dia 20 de junho, foi dedicada ao tema “Direitos sociais em tempos de ajuste” e contou com a participação de Paulo Schier (Unibrasil/PR), Denise Lobato Gentil (IE-UFRJ), Bernadete Menezes (Intersindical), Eduardo Fagnani (IE-Unicamp) e a mediação de Gilberto Maringoni, coordenador da atividade.

         Iniciando o debate, Paulo Schier alertou que a leitura que faria seria diferente daquela realizada na mesa da manhã (veja a síntese do debate aqui) em relação às perspectivas jurídicas da nossa Constituição e do próprio Direito, uma vez que não se pode perder de vista que o Direito “é um espaço de luta, tanto no que diz respeito ao reconhecimento de direitos quanto à sua efetivação”. Sobre a Constituição de 1988, o professor ressaltou seu caráter “esquizofrênico”, uma vez que ela protege um grande número de direitos sociais ao mesmo tempo que também garante fundamentos orientados pelos valores da livre iniciativa. “Ela não é uma Constituição liberal, mas ao reconhecer a propriedade privada e ao atribuir à propriedade privada uma função social, ela está de certa forma assumindo um certo modelo de Estado Social quando ela se projeta para um modelo de capitalismo, que não é qualquer modelo de capitalismo”.

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         Nós temos duas Constituições, afirmou Paulo Schier, sendo aquela que declara os seus objetivos sociais mas, por outro lado, a que instaura “a organização institucional que parte da questão da organização fiscal, orçamentária e até mesmo a organização política do Estado, e que desmente esse comprometimento social”. E esse conflito acaba por ser um empecilho à efetivação dos direitos sociais existentes nela mesma, levando à “judicialização dos direitos sociais”, já que o Judiciário é instado a posicionar-se sobre a não-efetivação de determinados direitos que deveriam ser garantidos. Esse processo acaba por “elitizar” os direitos sociais porque, uma vez judicializados, acabam se efetivando individualmente para aquele que consegue determinada liminar, por exemplo, retirando verba que deveria auxiliar à universalização destes direitos. Citando pesquisas realizadas, Paulo Schier afirmou que na maior parte das demandas judiciais por direitos sociais há um corte sócio-econômico claro: elas se concentram em fatias da população mais abastadas e nos grandes centros urbanos.

         A proposta de emenda constitucional 241/2016, que traz o chamado “novo regime fiscal brasileiro”, e que praticamente congela o orçamento por 20 anos, tende a dificultar o processo de efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição, na visão do professor, causando um “retrocesso em termos de direitos sociais no campo de políticas públicas”. O combate à não aprovação dessa PEC deve ser prioritário na luta da esquerda, porque “nós não podemos retroceder em termos de políticas públicas”, concluiu Paulo Schier.

         A atividade teve sequência com a participação de Denise Gentil, que informou que, a partir e 2011, houve um recuo planejado da intervenção estatal na economia, dando um maior espaço para o capital privado e havendo uma contenção do investimento público. Nos cinco anos do governo Dilma, em três houve uma taxa de crescimento negativo do investimento público, o que “representou um recuo enorme do Estado, o que puxa o investimento agregado (a soma dos investimentos públicos e privados) para baixo”. A professora lembrou ainda que no governo Dilma “o processo de privatização de infraestrutura foi brutal”, incluindo portos, aeroportos rodovias e o campo de Libra do pré-sal.
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         Na área de saúde a privatização também foi intensa, concretizada por meio das deduções e isenções oferecidas pelo Estado tanto para pessoas físicas quanto jurídicas. “Esses recursos que o governo abre mão do setor de saúde poderiam ser canalizados para o SUS”, e continuou, “a gente tira recursos que poderiam estar no setor de saúde pública e injeta no privado. Nós sustemos os planos de saúde”. O montante de desoneração somente no setor de saúde se intensificou a partir de 2011, quando foram na casa de R$ 13 bilhões, passando para R$19 bi em 2012, R$ 20 bi em 2013, R$ 23 bi em 2014 e alcançando a casa dos R$ 25 bilhões em 2015. “Mas o fato é o seguinte: quando você sucateia o setor de saúde, quando você nega à saúde pública num só ano R$ 25 bilhões, e deixa a população à míngua, você está dizendo o quê àquela população? Vá se socorrer no setor privado de saúde…”. E, para Denise Gentil, o mesmo processo acontece no setor da previdência pública: “a reforma da previdência não é um caso isolado, ela faz parte de um contexto de privatização e financeirização que vem sendo construído há um certo tempo e que se intensificou a partir de 2011”.

         O governo alardeia que há um déficit de R$ 85 bilhões de reais (2015), e “o tempo todo falando isso, as pessoas acreditam, não há quem ignore: as pessoas do governo acreditam, meus colegas da universidade, economistas, acreditam, o ser humano comum, que não entende nada de previdência, acredita nisso, porque é dito de uma forma tão massacrante que vira uma verdade insofismável”. E esse discurso acaba por estimular as pessoas a procurarem uma previdência complementar em algum banco, privado ou público. “Você compra um plano privado de saúde, você compra um plano privado de previdência… Assim, a renda das pessoas vai diminuindo cada vez mais. E ao invés do Estado ser o provedor de bens e de serviços públicos, que complementam a renda do trabalhador, o Estado desloca a renda dos cidadãos para os bancos”.

         Denise Gentil informou que essa dinâmica está sendo estudada atualmente por um coletivo de pesquisadores da UFRJ, que defendem a tese de que mesmo as políticas sociais – como a bolsa família – estão servindo de “colateral” (garantia) para a tomada de empréstimos nos bancos. “As pessoas hoje estão completamente endividadas, principalmente os funcionários públicos e os aposentados, que recebem crédito consignado, para sua própria sobrevivência”, uma vez que os serviços públicos estão completamente sucateados e há a necessidade de se recorrer à iniciativa privada para ter aquilo que deveria ser garantido pelo Estado.

         Encerrando, a pesquisadora revelou o tamanho das desonerações tributárias promovidas pelo governo, que somavam R$ 201 bilhões em 2011, R$ 227 bi em 2012 e R$ 282 bi em 2015 em valores atuais, e desses R$ 282 bilhões, R$ 157 bi foram em renúncias de receitas que iriam para a Seguridade Social, e sem a exigência de nenhuma contrapartida. E provocou: “vocês acham que é minimamente razoável um governo que abre mão deste patamar estratosférico de receitas pedir para ajustar do lado dos custos com reformas da Seguridade Social que vão punir a renda dos trabalhadores?”. E prosseguiu, lembrando do gasto do governo com os juros dos títulos da dívida, que em 2015 foi na casa de R$ 501 bilhões, beneficiando somente 70 mil pessoas, enquanto que todos os gastos com a Seguridade Social foram de R$ 380 bilhões, e beneficiou 28 milhões de famílias: “e o governo quer que a gente entenda que a reforma da hora é a da previdência, e não a da política monetária? Tá me tirando, né?”. Parafraseando o profeta Gentileza, que dizia que “gentileza gera gentileza”, Denise Gentil atestou que, no “no campo político, gentileza não gera gentileza. Toda essa gentileza do governo gerou o impeachment”.
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         A mesa teve sequência com a intervenção de Bernadete Menezes, da Intersindical, para quem “os direitos trabalhistas estão vinculados diretamente com a correlação de força das classes”, lembrando o contexto de ascensão da luta de classes no início do século XX e suas consequências na criação de leis trabalhistas, no Brasil e o mundo. “A CLT não é só um produto de Vargas”, disse, afirmando que não se pode esquecer das fortes mobilizações das camadas trabalhadoras no país nas décadas que antecederam sua promulgação. Mesmo as garantias previstas na Constituição de 1988 também são conquistas oriundas das lutas travadas durante a década de 1980 no país que, a despeito do contexto internacional de avanço do neoliberalismo, com figuras como Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido), representou ao Brasil o momento de reorganização da classe trabalhadora e o fortalecimento das entidades sindicais, havendo, inclusive, a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

         Entretanto, Bernadete Menezes alerta que vivemos um período de perda de direitos trabalhistas, relacionado à fragmentação e desarticulação das organizações que outrora foram fundamentais para conquistá-los. “Esse processo é global. Quem fica atrás com a sua mão de obra ‘cara’ está perdendo a disputa internacional. Há uma verdadeira corrida dos governos para atacar os direitos da classe trabalhadora, para diminuir o chamado ‘custo’ de cada país (‘custo Brasil’, ‘custo França’, ‘custo Espanha’ etc.) E em geral todos entram com a reforma da previdência, o aumento da jornada de trabalho, a diminuição do valor da hora-extra e do seguro-desemprego”.

         Sobre os desafios colocados pela atual conjuntura, Bernadete conclui que “nós estamos construindo um novo espaço, um novo momento de consolidação de frentes, porque o que construímos no passado está fragmentado. E nós estamos tentando à duras custas costurar novos espaços de luta que unifiquem a classe”, inclusive sendo necessário esquecer as fórmulas que cumpriram sua função histórica mas que se mostram insuficientes na atual conjuntura.

         A última intervenção da mesa coube a Eduardo Fagnani, já iniciando com o diagnóstico de que o que está em jogo atualmente no Brasil é um processo de radicalização do projeto liberal, tanto no plano social quanto econômico: “o golpe é uma oportunidade que os detentores da riqueza estão criando para implementar no país um projeto que eles tentam há mais de 40 anos. E por que uma oportunidade? Porque é algo que você dificilmente faria com o voto popular”, e complementou dizendo que com apenas uma canetada foram destruídos 20 anos de políticas voltadas aos direitos humanos, além daquelas voltadas à Cultura, à Ciência e Tecnologia e ao Desenvolvimento Agrário.

         No tocante ao âmbito econômico, Fagnani reafirmou que o objetivo do atual governo interino é o de restabelecer o tripé macroeconômico “meta de inflação”, “câmbio flutuante” e “superávit primário”. Entretanto, este modelo está sendo questionado até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, que em recentes publicações apontou a deficiência deste modelo para economias emergentes. “Desde a crise de 2008, nenhum país no mundo adota este tripé macroeconômico, e, se adota, o flexibiliza”, afirmou o pesquisador.
    Fagnani apontou como preocupantes as intenções de autonomia do Banco Central, como também as que estabelecem autoridades fiscais independentes. “Se o câmbio é flutuante, se a política monetária é definida por meia dúzia de burocratas e a política fiscal é definida por outra meia dúzia de burocratas, como nós vamos conseguir fazer política econômica?”, questionou. Outra iniciativa prejudicial na visão do pesquisador é a PEC que cria o chamado “orçamento de base zero” que, na prática, desobriga qualquer tipo de vinculação orçamentária como as que estão presentes atualmente na Constituição e que abarcam as áreas sociais como saúde, seguridade e educação. “Por que você vincula constitucionalmente recursos para as áreas sociais? Porque se você não vincular, vai tudo para custear a dívida financeira. É simples assim”, afirmou, e prosseguiu dizendo que “o que está acontecendo agora é a destruição de todas as pontes, todos os mecanismos monetários, fiscais, tributários, enfim, tudo que se pode imaginar para que se tenha uma sociedade civilizada no futuro”.

         Sobre as tarefas colocadas no presente, Eduardo Fagnani também reafirmou a necessidade de união de todos os campos políticos que tenham uma visão diferente de projeto de país desta que agora está sendo explicitada, e concluiu dizendo que “é uma luta muito difícil, muito angustiante, porque a correlação de força é muito desfavorável”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

  • “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    “A politização do Judiciário”: síntese do debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

     

         No dia 20/06 ocorreu mais uma reunião do Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, com mesas pela manhã e à tarde. Coordenado por Gilberto Maringoni, foi a primeira atividade realizada na nova sede da fundação após a inauguração, ocorrida na sexta-feira (17/06).

         Pela manhã, o tema foi “A politização do Judiciário”. Compuseram a mesa Eloísa Machado de Almeida (FGV-SP), Silvio Almeida (Mackenzie) e Alysson Mascaro (USP).

       A professora de direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado de Almeida, centrou sua fala na caracterização e atuações do Supremo Tribunal Federal para avançar no debate sobre o tema proposto, buscando uma “análise mais pragmática da politização do judiciário, que vem se acentuado nesses últimos oito meses”.

          O Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Poder Judiciário, tem a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não é constitucional, inclusive negando qualquer alteração na Constituição que, por sua leitura, possa ferir seus princípios. Se isto, nos últimos anos, representou o avanço de algumas pautas, como a permissão para o aborto do feto anencéfalo, o casamento e a união estável homoafetivas, entre outras pautas (em ações denominadas como contra-majoritária – já que não passariam pelo sistema político conservador como o nosso) por outro lado, ressaltou a pesquisadora, há a necessidade de se refletir sobre essa forma de atuação do STF.

     

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    (Parcela dos participantes da reunião do Coletivo de Conjuntura)

           “Se isto pode ser visto com uma função positiva para o país, por outro lado o tribunal vem sendo usado, desde 1988, como um grande tutor do sistema político”, atestou Eloísa. Os partidos perdedores do debate político acabam levando suas questões para o Judiciário, se valendo deste para mudar a lógica das votações, mesmo em questões que pertencem exclusivamente à esfera política. “Todas as reformas políticas, por exemplo, foram corroboradas pelo Judiciário. E aqui eu posso falar de ‘verticalização’, da proibição da doação empresarial para campanhas e também a ação que permitiu a existência do PSOL, que é a ação sobre a ‘cláusula de barreira’”, e continuou “o que é relevante nesse espaço de debate da Fundação, de formação, é refletir o quanto que isso é favorável a um partido fazer, ou seja, não fazer de uma forma ingênua, porque quando você desloca o tema que originariamente deveria se dar nas arenas do sistema político para as arenas do Judiciário você está certamente alterando a lógica de se tratar determinada decisão”, o que pode acarretar num processo de deslegitimação de seu próprio espaço de atuação, que é o espaço político, como se dissesse que “eu prefiro que onze juízes decidam do que eu comprar essa briga na arena política”.

         A grande participação do Judiciário no sistema político não é uma característica brasileira, sendo comum a provocação de Cortes Constitucionais por partidos em países que possuem uma “Constituição tão audaciosa”, informou, o que muitas vezes contribui para que o sistema político, sobretudo o Poder Legislativo, caia em descrença frente ao conjunto da população: “quando analisamos os índices de confiança do Judiciário, é impressionante que a população acaba confiando mais no Judiciário do que no sistema político; o que não faz nenhum sentido, porque temos um judiciário que atua de maneira seletiva, que serve a pessoas e a grupos muito específicos, sobretudo aos interesses financeiros. E isso é um grande problema do ponto de vista democrático, porque a população confia em um Poder que é pouco transparente, seletivo e não representativo”, alertou a professora.

         Do ponto de vista da seletividade, por exemplo, Eloísa foi tachativa ao afirmar que no Brasil as violações aos Direitos Humanos só se perpetuam porque o Judiciário participa para perpetuá-las. “Nós temos ainda um país misógino, racista, que mata as pessoas, que tortura os presos porque o Judiciário é o grande poder que renova e permite que essas violações continuem. Por isso é importante pensar para que serve o Judiciário no Brasil ao invés de dotar nossas esperanças em um Poder tão seletivo e pouco transparente”.

     

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    (Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL-CE, faz seu questionamento à mesa)

       O debate teve sequência com a intervenção de Sílvio Almeida, professor do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, que logo de início questionou: “quando é que o Judiciário não foi politizado?”. Só é possível começar a falar em Poder Judiciário a partir das revoluções liberais que começam a fazer a separação entre Estado e Sociedade Civil. Assim, o Judiciário “sempre foi o fiador da ordem liberal”, e para entendê-lo é fundamental compreender três aspectos: como o liberalismo e o judiciário estão conectados de uma maneira que não permite compreender um sem compreender o outro; como a atuação do Poder Judiciário e as suas mudanças devem ser compreendidas por meio das transformações das atividades econômicas historicamente; e ver que os juízes são o produto mais bem acabado daquilo que eles mesmos dizem conter: da ideologia, e da ideologia liberal, da ideologia do capital – comprometendo seu discurso de imparcialidade.

       “Não existe golpe de Estado sem a participação do Judiciário, historicamente não existe isso”, lembrou o professor: “o Poder Judiciário sempre chancelou todos os golpes de Estado que ocorreram, inclusive aqui no Brasil”.

       Citando três exemplos históricos ocorridos no Judiciário dos Estados Unidos, Sílvio de Almeida lembrou de como essas transformações foram fundamentais para garantir a estabilidade política, lembrando que por estabilidade política deve ser entendido o bom funcionamento da ordem liberal. No caso brasileiro, voltando a Era Vargas, o professor lembrou da sua medida de aposentar compulsoriamente 100 juízes, além de reduzir o poder do Supremo Tribunal Federal.

       Sobre a chamada “independência do Judiciário”, Sílvio de Almeida afirma que essa bandeira esconde a orientação de que este Poder deve ser “independente em relação ao povo, e não às outras forças que atuam fortemente sobre ele”. E, por fim, atestou que “é uma ilusão liberal acreditar no Judiciário” e, assim, é necessário avançar “num debate político que estabeleça uma conexão com as questões do povo e com os anseios populares.”

     

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     (Armando Boito, professor da Unicamp, também participou do debate)

          Encerrando a mesa da manhã, Alysson Mascaro, professor de Direito da USP, foi claro ao dizer que não é a força que garante a propriedade, mas o Direito: “o mundo do Direito é exatamente o mundo que garante o capital e a propriedade privada, e ele só serve para isto. E como só serve para isto, e isto é chocante, não pode nem sequer ser contado assim, também não pode ficar nisto que é o fundamental: ele tem que ser salpicado de coisas que pareçam ser o contrário”.

         O professor apontou o que, na visão dele, seria uma contradição da esquerda em “defender mais direitos e nenhum retrocesso”, citando as bandeiras da preservação da CLT, criada na Era Vargas, e do FGTS, instituído durante o Regime Militar. A contradição residiria no fator de que “se nós defendermos os direitos, nós somos obrigados a defender a ordem”. E continuou, referindo-se ao PSOL, pedindo para que “um partido que tem socialismo no seu nome, precisa desta reflexão de que o Direito é um horror, e não que a atual fase do Direito é um horror”; e por isso que vivemos num momento no qual devemos “dobrar a aposta em uma luta política de esquerda: nossa luta é contra o capital e contra a ordem”, e de que “não devemos sacralizar o Estado de Direito”, já que o Estado é a forma do capital.

         Encerrando, Alysson afirmou que vivemos numa sociedade na qual o direito é hiperlouvado e a política hipercombatida, porque o direito deixa de permitir a existência de uma luta aberta e passa a permitir a existência de uma luta modulada. “E isto resultou numa geração de juristas, que é a geração que temos hoje, de pessoas absurdamente mal formadas, lixos intelectuais, mas que sabem muito bem procedimentos jurídicos mas são burríssimas em termos de horizontes políticos”. E, concluindo, afirmou que nós não devemos opor ao “direito” outro “direito”, ou “ao fim de tais direito, mais direitos. Nós devemos opor o contraste: o direito é o que é por causa do capital, então a nossa luta é contra o capital”. E assim, portanto, “a nossa luta tática do presente é desmontar este horror liberal que fala que é imparcial, mas imparcial nunca foi, nunca é e nunca será. Esta é a fórmula pela qual nós temos a pedra na mão no dia de hoje”.

         Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.

     

     

  • Mohamed Abdelaziz, presente!

       Filho de um suboficial do exército marroquino, foi ao final dos anos de 1960 que Mohamed Abdelaziz encontrou os primeiros militantes nacionalistas saarauis que frequentavam as universidades de Casablanca e de Rabat. Depois de fazer suas primeiras atuações políticas no meio universitário, ele se engaja na luta armada primeiramente de forma clandestina, depois abertamente.

    Em maio de 1973, junto com Mustafá Sayed El-Ouali, se torna um dos membros fundadores da Frente Polisario, criada pelo conselho constitutivo reunido em Zouerat, na Mauritânia, sendo também um dos principais chefes militares do movimento.

    Três anos mais tarde, em 1976, é eleito secretário geral da Frente, que proclama a República Árabe Saarauí Democrática, ainda que este Estado nãos seja amplamente reconhecido pela comunidade internacional. Continua exercendo suas atividades como líder militar do movimento até se consagrar inteiramente às funções políticas, com sua eleição à presidência da República Saaraui em 1982.

    Depois de um primeiro encontro com o rei do Marrocos Hassan II, em 1989, as negociações prosseguem até a conclusão de um cessar-fogo em 1991. Um referendo sobre a autodeterminação da região, sob a égide da ONU, também está previsto. Entretanto, após 27 anos, Mohamed Abdelaziz morreu sem que este referendo fosse realizado, pois sofre a resistência do Marrocos que busca manter a região sob seu domínio, ainda que dando algum grau de autonomia. “O povo saaraui seguirá o combate”, prometeu Mohamed Keddad, dirigente da Polisário, e prossegui: “as qualidades de Mohamed Abdelaziz vão iluminar o caminho à conclusão da liberação do Saara Ocidental”.

    A Fundação Lauro Campos lamenta a morte do companheiro Mohamed Abdelaziz e se solidariza com a luta do povo saaraui pela sua independência.

    (Fontes: RFI Afrique, France24, AFP. Tradução: Rodolfo Vianna)

  • PSOL denuncia golpe em evento nos EUA

    PSOL denuncia golpe em evento nos EUA

    Entre os principais temas do evento estão as perspectivas abertas pela histórica campanha de Bernie Sanders, que disputa a prévia do Partido Democrata contra a ex-Secretária de Estado Hilary Clinton. Em diversos painéis o tema foi discutido e o colaborador da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL, Fred Henriques, chegou a estabelecer contatos com dirigentes da campanha do senador democrata com vistas à realização de um debate no Brasil.

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        Outro momento que contou com a participação do PSOL foi o debate realizado no domingo. Com o tema “Entendendo o Brasil hoje: luta de classes e democracia sob ameaça”, o painel contou com a presença do presidente da Fundação Lauro Campos, Juliano Medeiros, que apresentou a análise do partido sobre as razões do golpe ocorrido recentemente por aqui. Além dele, participaram do debate Baraham Jendi, dirigente doGreen Party, e Aline Piva, dos Amigos do MST.

         Com um plenário lotado, os participantes tiraram dúvidas sobre a situação brasileira, as razões que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff e as medidas necessárias para ampliar a rede de denúncia contra o golpe. O sociólogo Márcio Rosa, dirigente do PSOL/SP e que acompanhou o evento, destaca a importância do momento: “há um enorme interesse sobre a situação política do Brasil, ao mesmo tempo em que uma visível desinformação sobre o que está acontecendo. Eventos como esse, com a presença do PSOL, têm uma importância vital”. A salvadorenha Marta Hernández, participante do Left Forum, afirma que “eventos desse tipo deveriam se multiplicar por todo o mundo”. Nesta terça-feira (24), Juliano Medeiros e Márcio Rosa falam sobre a situação brasileira em evento promovido pelo coletivo Solidarity, além de realizar outros encontros com lideranças políticas em Nova Iorque e Washington.

  • Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    Comunicação em debate: se a cidade fosse nossa

    por Rodolfo Vianna

       A etapa realizada do Ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa” realizada em Fortaleza, Ceará, no dia 7 de maio teve duas mesas de discussão. Pela manhã, o Direito à Comunicação foi a pauta e, à tarde, discutiu-se Ecossocialismo. A atividade foi realizada no Espaço de Capacitação, Formação e Pesquisa Frei Humberto, e contou com o apoio do diretório Estadual do PSOL-CE (que transmitiu ao vivo o debate em sua página do Facebook – e o registro pode ser conferido AQUI).

       O deputado estadual Renato Roseno e o vereador de Fortaleza João Alfredo participaram das atividades, conjuntamente com filiados do PSOL e militantes da temática abordada de diversas cidades do interior do estado do Ceará.

       A primeira mesa de facilitadores da discussão contou com a participação de Helena Martins, do Coletivo Intervozes, Roger Pires, do Coletivo Nigéria e de Aldenor Jr., ex-secretário de comunicação da gestão de Edmilson Rodrigues da prefeitura de Belém do Pará.

       Ao iniciar, Helena Martins lembrou da formulação da Unesco que diz que “todas as pessoas têm o direito de produzir, receber e fazer circular informações. É mais do que o direito de liberdade de expressão, que já está consagrado em todas as cartas de Direitos Humanos”. Assim, a ideia de Direito à Comunicação é romper com o desnível existente dos fluxos comunicacionais e garantir de fato que as pessoas possam produzir informação e cultura, fazendo com que essas produções possam chegar até as demais.

      Sobre a legislação que trata da Comunicação no país, Helena acredita que a Constituição brasileira possui aspectos importantes na garantia ao Direito à comunicação, como a previsão da repartição do espectro entre entidades públicas, privadas e estatais de comunicação como também a proibição da formação de monopólios e oligopólios. Entretanto, ressalta a militante, estas restrições não são postas em prática, faltando a regulamentação dos dispositivos constitucionais que não foi realizada até hoje: “nós temos um princípio geral que é progressista mas que na prática não se revela como política”.

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       Roger Pires deu sequência à discussão, informando que o Coletivo Nigéria é uma produtora de audiovisual que, enquanto coletivo de comunicação, funciona como uma cooperativa de comunicadores e de realizadores de vídeos, já com seis anos de produção de conteúdo alternativo. Roger focou sua intervenção sobre como a comunicação no âmbito municipal reflete a segregação existente na própria cidade: a representação dos centros é hegemônica, enquanto que as periferias não se apresentam representadas nos grandes veículos: “qual é o Ceará que nós vemos na televisão?”, questionou, dizendo que sempre que se “vê” a cidade de Fortaleza se “vê” a região da orla da cidade, a Beira-Mar. Porém, para quem vive na cidade mas que não frequenta ou frequenta pouco a região nobre, qual é a significação que essa imagem possui? “Significa muita desigualdade e, apesar de não ser um discurso direto, é um discurso de imagens muito forte”.

       Outra distorção apontada por Roger Pires é a imagem existente da produção jornalística e seus profissionais envolvidos. Enquanto é raro ver negros ou índios frente às câmeras, a imagem dos jornalistas engravatados não representa as condições precárias de trabalho desse segmento profissional, de alta cobrança de produção e de baixos salários. A isso, soma-se a crise dos sindicatos dos profissionais que sofrem de baixa adesão, acarretando uma crise de representatividade e uma perda de força na disputa por melhores condições trabalhistas.

       Como medidas a serem encampadas pelos programas de governo, o militante ressaltou a bandeira da Banda Larga gratuita, que possibilitaria uma maior democratização da comunicação tanto na produção de conteúdo como na sua circulação: “para nós do Coletivo Nigéria, sem internet a gente não distribuiria os vídeos e filmes que a gente faz. A gente acredita muito no potencial da internet para libertar as pessoas seja da TV, seja do rádio ou desses tipos de modelos”.

       Último a oferecer a sua contribuição, Aldenor Jr. apresentou a sua experiência como Secretário de Comunicação da Prefeitura de Belém durante os dois mandatos do então prefeito Edmilson Rodrigues (1997-2005). Em consonância com o eixo da protagonismo popular que orientou a experiência do Executivo da qual participou, Aldenor Jr. lembrou que a comunicação não foi pensada “como uma empresa”, mas sim “a partir do olhar ‘dos de baixo’, como uma ferramenta para educar, para organizar e para politizar o povo” e emendou dizendo que tanto na campanha eleitoral quanto na gestão, a comunicação foi uma ferramenta decisiva como uma política contra-hegemônica na disputa de valores.

       “Um governo de esquerda sempre vai ser um governo sob cerco”, alertou o ex-secretário, narrando que a desconstrução da experiência protagonizada por Edmilson Rodrigues em Belém começou antes mesmo de ele assumir o mandato, partindo das forças contrárias às transformações propostas pelo seu programa de governo: “e, aliás, quando ele não é um governo sob cerco, é porque ele não é um governo de esquerda”, alertou.

       A primeira arma da “comunicação militante”, conceito basilar da proposta desenvolvida à frente da prefeitura de Belém, seria a presença física junto àqueles a quem se quer dirigir a mensagem. A intervenção urbana também é essencial, com a presença das marcas, mensagens, logotipos, etc. nas ruas, prédios e obras. Outra arma é o incentivo e a aposta na mídia espontânea, que foge da dinâmica convencional concentrada nos grandes veículos de comunicação; o que não implica descartar a mídia tradicional, que também precisa ser ocupada de forma inteligente. Sobre os mandamentos da “comunicação militante”, está o respeito ao povo e às suas tradições; manter a política sempre no comando e criar as comunidades reais, e não virtuais, já que estas são voláteis. “A comunicação como um chamado à ação: esta é a mensagem que a comunicação militante traz”, ressaltou Aldenor Jr.

       Encerrada as primeiras falas, o debate foi aberto aos participantes. Na parte da tarde houve a discussão com os presentes sobre Ecossocialismo, cujo relato se encontra em texto separado.

  • Nota da Fundação Lauro Campos contra o golpe

    Nota da Fundação Lauro Campos contra o golpe

    Na manhã de 12 de maio, a democracia brasileira sofreu mais um ataque com a admissão pelo Senado Federal do “processo de impeachment” da presidenta Dilma, que culminou com seu afastamento temporário por 180 dias.

       Michel Temer, vice-presidente que assume interinamente a Presidência da República, foi um dos conspiradores e grande articulador da manobra política que invalidou o resultado das urnas. No dia de hoje ele já anunciou um novo governo que contempla o projeto político que foi derrotado pela vontade popular nas eleições de 2014.

    Mas esse fato não chega a ser uma novidade. As classes dominantes no Brasil são pródigas em golpes. A primeira Constituição do país foi promulgada por Dom Pedro I, em 1824, depois de prender deputados e cercar com as tropas imperiais a Assembleia Constituinte. No início dos anos 1840, o chamado “Golpe da Maioridade” daria início ao segundo reinado com o objetivo de debelar as insurreições regionais que tomavam o país. Duas décadas depois, seguindo os passos do pai, Dom Pedro II destituiria o Gabinete Liberal e restauraria o poder dos Conservadores através de um golpe. A monarquia chegaria ao fim por um golpe militar em 1889.

    Dois anos depois o então presidente Floriano Peixoto fecharia o Congresso Nacional e se manteria no poder após a renúncia de Deodoro da Fonseca, contrariando o que mandava a Constituição Federal: convocar novas eleições. Em 1937, apenas três anos após a promulgação de uma nova Constituição, um golpe liderado por Getúlio Vargas instauraria um estado parafascista que reprimiu com violência seus adversários políticos. Ironicamente, o Estado Novo chegaria ao fim com a deposição forçada de Vargas pelos comandantes militares em dezembro de 1945, através de um novo golpe.

    Em 1961 a instalação do parlamentarismo, embora justificado como forma de contornar uma nova crise institucional, foi mais um golpe que contrariou a Constituição Federal para impedir a posse de Jango. Em 1964 o mais célebre dos golpes instaurou uma ditadura militar amparada por um forte aparato político-econômico-midiático.

    O ocorrido em maio de 2016 é uma nova face de um mesmo processo de impor um projeto político que não é referendado pelo voto popular. Com o acionamento de manobras parlamentares, com o auxílio da grande mídia (que sempre teve papel preponderante nos ataques à democracia em tempos recentes), dos grandes interesses econômicos nacionais e internacionais, tentou-se dar um aspecto de “legalidade” e “institucionalidade” à velha disposição dos grandes interesses de impôr o seu projeto político à revelia da vontade popular.

    Que a democracia brasileira tem suas fragilidades é sabido, principalmente por aqueles que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária. Que o governo liderado pelo PT passou longe de enfrentar efetivamente os grandes interesses do capital, também. Entretanto, o que está em marcha agora é um ataque às mínimas premissas democráticas existentes, e nenhum retrocesso às garantias democráticas duramente conquistadas por décadas de luta e sangue devem ser admitidas.

    A Fundação Lauro Campos, em consonância com a posição das instâncias do PSOL e de sua bancada na Câmara dos Deputados, não reconhece a legitimidade de Michel Temer como presidente da República Federativa do Brasil. É hora de desatar um ampla campanha pelo imediato afastamento de Temer, com a convocação de eleições presidenciais antecipadas, como prevê a Constituição Federa. A defesa da democracia brasileira passa pelo enfrentamento desse golpe travestido de “impeachment” e evitar, assim, que novamente a História se repita como farsa.

    Fundação Lauro Campos – 12/05/2016

  • Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    Cidades Negras: etapa de debate realizada em Salvador

    por Rodolfo Vianna

    Ocorreu no último dia seis de maio em Salvador, Bahia, mais uma etapa do ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa”. Promovidas pela Fundação Lauro Campos, as atividades têm como objetivo incentivar as discussões e dar subsídios à formulação dos programas municipais a serem apresentados pelo PSOL nas eleições deste ano. Na etaparealizada na última sexta-feira, o tema foi “Cidades Negras: racismo, territorialidade e identidades no contexto urbano” e teve o apoio do Setorial de Negros e Negras e do diretório estadual do PSOL-BA.

    A mesa foi composta por Dennis de Oliveira, professor da USP e militante da Rede Quilombação; pelo advogado e professor da UFBA Samuel Vida e pela professora da UESF, Linesseh Ramos. Os trabalhos tiveram a coordenação de Fábio Nogueira, pré-candidato à prefeitura de Salvador neste ano. Militantes de nove estados brasileiros participaram do debate, assim como o vereador de Salvador Hilton Coelho e o candidato ao senado em 2014, o professor Hamilton Assis.

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    Primeiro a usar a palavra, Dennis de Oliveira frisou a necessidade de compreender os três aspectos centrais da constituição do Estado brasileiro. O primeiro, é o de ser um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, na qual a violência não é episódica. Apesar de vivermos em uma sociedade com um regime democrático institucional, Dennis de Oliveira lembrou que nas periferias ainda existe uma prática característica dos regimes autoritários: “você tem invasões de domicílios sem mandato de busca, você tem execuções extrajudiciais, prisões ilegais e tortura nas delegacias. Isso significa o quê? Isso significa que você tem ainda o contexto de um regime autoritário”.

    Retomando as três características do Estado brasileiro, Dennis de Oliveira entende que o “racismo é a ideologia que vai estar de forma transversal nesses três elementos. O racismo vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa crivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”. Esses elementos acabam por colocar a população negra na “franja da sociedade”, e essa posição acarreta aos negros e negras a perda do direito à cidade. “O conceito de periferia tem uma dimensão espacial, mas também uma dimensão simbólica: o que é periferia? Periferia é estar excluído do centro da política”, atestou o professor, “e essa periferia é para a gente a reconstrução simbólica da senzala”.

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    Na sequência, o professor Samuel Vida fez a sua contribuição. Para ele, há três questões importantes para se abordar o tema das “cidades”, como também para discutir o país e a sociedade brasileira. O primeiro é o “racismo institucional”, que apesar de ter sido formulado há quase 50 anos pelos jovens ativistas dos Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, na obra “Black Power: The Politics of Liberation”, “vem enfrentando um rebaixamento conceitual e interpretativo em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o de dizer que o racismo institucional é o fracasso do provimento de serviços equânimes do ponto de vista racial e étnico pelos organismos de serviços públicos e privados”. Essa compreensão para o professor é equivocada por vários aspectos, dos quais ele destacou dois: “primeiro, ao falar em fracasso presume que essas instituições são neutras e estão aptas a operar políticas de diversidade, o que é um grande equívoco: essas instituições nunca foram concebidas para operar políticas de diferença. Segundo, pressiona o enfrentamento do racismo institucional em torno dos funcionários, dos servidores” sendo que a solução muitas vezes proposta restringe-se à programas de reeducação de servidores. “Não é esta a questão principal”, afirma Samuel Vida.

    O segundo aspecto é 0 da necessidade de se dialogar mais com os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”. “Há a necessidade de se aprofundar o entendimento sobre o porquê que algumas vidas, alguns corpos, algumas culturas persistem como vulneráveis”. E, como terceiro aspecto, a importância de se dialogar com o conceito de “Estado de exceção”, com o reconhecimento de que, para além das experiências formais de ditaduras ou de autoritarismo, há uma funcionalidade excludente dirigida focalmente contra certos setores “e que foi amplamente acolhida por todas as experiências de gestão de todos os matizes, inclusive as dos matizes de esquerda, e que se traduz numa normalização da exceção”. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.

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    Encerrando as contribuições dos convidados da mesa, a professora Linesseh Ramos centrou sua fala na luta antiproibicionista que desenvolve, especialmente como repercute para as mulheres negras. A política de guerra à drogas tem um marco histórico no Brasil que coincide com uma política internacional de contenção de grupos que é o período da Lei Áurea, fator que é fundamental para compreender que a política da guerra à drogas “é uma política essencialmente racista”. A professora lembrou que muitas drogas, especialmente a maconha e alguns chás, tinham um papel simbólico e ritualístico na cultura negra, e por isso sofreram uma política de estigmatização e de construção de uma relação negativa ao uso feito pelos negros.

    Lançando mão de dados do Ipea, Linesseh Ramos informou que o Brasil é o quinto país que mais encarcera mulheres negras, e o principal motivo para isso é a política de guerra às drogas, que serve de cobertura para a utilização do aparato repressivo do Estado de forma a violentar as mulheres negras, invadir seus espaços e matar seus filhos. “Muitos de nós, e falo de nós da esquerda em geral, inclusive muitos dos companheiros brancos, não assumem ou não podem assumir que fumam maconha por uma diversidade de estigmas, e não assumem também esse debate porque ele é colocado como um tabu. E, reparem, a gente trata na sociedade como um tabu uma política que mata jovens todos os dias”.

    Continuando, a professora deixou claro que “o empoderamento da mulher negra é algo que não volta mais atrás: a questão de colocar que nós podemos assumir espaços de poder na academia, na política e na própria vida não volta mais atrás, e isso é fundamental na luta democrática”, e atestou: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”.

    Encerrada as falas da mesa, a palavra foi aberta aos participantes do evento que deram prosseguimento ao debate com diversas intervenções sobre o tema. Encerrada a discussão, todos foram convidados para a inauguração da nova sede do PSOL estadual da Bahia, já apelidada pela militância de “Casa Amarela”, que fica na Avenida Sete de Setembro, em frente ao antigo Hotel da Bahia, no bairro de Campo Grande.

    Em breve a Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro da atividade na integra.

  • Economia e crise política foram os temas do último debate do Coletivo de Conjuntura

    Economia e crise política foram os temas do último debate do Coletivo de Conjuntura

    por Rodolfo Vianna

       O Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, coordenado por Gilberto Maringoni, reuniu-se no dia 25 de abril em São Paulo e contou com a participação de mais de cem pessoas, entre convidados e público em geral. Divididas em dois períodos, as discussões centraram-se sobre a situação econômica do país, pela manhã, e sobre a crise política na parte da tarde. Os deputados federais do PSOL Chico Alencar, Glauber Braga e Ivan Valente participaram do evento, assim como dirigentes do partido, militantes e intelectuais. A Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro na íntegra da atividade.

       Antes do início dos trabalhos, “Grândola, vila morena” foi tocada no auditório como homenagem aos 42 anos da Revolução dos Cravos. A transmissão da música, de autoria de Zeca Afonso, feita pela Rádio Renascença na madrugada do dia 25 de abril de 1974 serviu como sinal para que se iniciasse a movimentação que derrubou a ditadura portuguesa.

       “Economia ladeira a baixo”, nome dado à primeira mesa de debate, teve a contribuição dos economistas Pedro Paulo Zaluth Bastos, professor da Unicamp, e José Luís Fevereiro, dirigente do PSOL. O deputado federal Chico Alencar abriu a discussão com um breve panorama dos acontecimentos recentes no Congresso Nacional. Sobre a votação da admissibilidade do processo de impeachment, ocorrida no dia 17 de abril, o parlamentar disse: “o que que na verdade a gente viu ali? A expressão verbal condensada, predominante de maneira avassaladora, da degradação política do nosso sistema político de maneira geral”, e que foi exposto de forma clara o “intestino grosso da pequena política”. “A ‘pequena política’ no Brasil tornou-se a ‘grande’, e só não se tornou a única por que existem os heróis da resistência”, afirmou Chico.

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       A intervenção do economista Pedro Paulo apresentou o diagnóstico que a direita faz da realidade atual da economia, para se ter mais clareza de qual projeto ela busca implementar. “A ideia básica deles é a seguinte: o pacto social da redemocratização, cristalizado na Constituinte de 1988, implica uma forte ampliação do gasto social, do gasto corrente”, e esta visão é o que sustenta o projeto que agora eles apresentam. Após a explanação das razões que levaram ao crescimento da economia nacional a partir de 2003, afirmou que “o entendimento neoliberal é completamente errado a respeito do motivo do crescimento da economia brasileira na década anterior”, e elencou quatro limitadores estruturais do modelo do crescimento econômico que se impuseram no primeiro mandato da presidenta Dilma.

       O primeiro, “não houve nenhuma tentativa de mudar a ordem tributária, de forma a deixá-la mais progressiva, e essa é uma limitação essencial para se entender o motivo pelo qual o resultado fiscal piorou tanto em 2014, antes mesmo da virada para a austeridade”. O segundo problema foi o de não ter se evitado o custo fiscal e apreciação cambial determinados pela entrega do Banco Central para os rentistas, e isso “tem um enorme impacto fiscal”. De 1997 até 2013, o Brasil teve superávits fiscais primários superiores a 2% do PIB, e a dívida pública, principalmente a líquida, caiu muito pouco “basicamente pela política de juros”.

       O terceiro ponto refere-se à limitação da expansão da infraestrutura social e de bens públicos, devido ao alto custo fiscal da política monetária, que faz com que mesmo com o aumento da arrecadação não sobre recursos para sua ampliação; e, por fim, o fator de que o crescimento do mercado interno não assegurou a reintegração das cadeias produtivas perdidas na década de 90, o que permitiria a ampliação do investimento produtivo na indústria.

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       José Luís Fevereiro iniciou sua exposição apontando as cinco grandes reformas que eram necessárias com a eleição de Lula em 2002. “Falávamos da necessidade de acelerar a reforma agrária, de forma a democratizar a propriedade do campo; fazer uma reforma tributária, que fizesse com que a renda e o patrimônio pagassem a maior parte dos impostos, e não o consumo e a produção; pensávamos num enfrentamento ao sistema financeiro, para que nós deixássemos de ser o país recordista em taxas de juros no mundo; pensávamos numa reforma política e numa regulamentação dos meios de comunicação. Uma por uma, o governo Lula não fez nenhuma dessas reformas, rigorosamente nenhuma delas”.

       Sobre a questão da dívida pública, o economista afirmou que “dívida pública é algo necessário à construção de uma economia, porque ela ajuda o governo a regular a liquidez e a criar os estímulos ao crescimento ou à redução do crescimento para segurar a inflação”, e é um “mecanismo para fazer com o que se possa realizar investimentos em infraestrutura e diluir o custo disto no tempo”. É para isso que a dívida pública existe em quase todos os país do mundo, “mas no Brasil não é assim”, contestou.

       O problema da dívida não é a sua existência e nem é o seu tamanho (a dívida líquida brasileira não chega a 40% do PIB, sendo relativamente pequena, já que a dos EUA chega a quase 100% do PIB, a grega a 180% e a japonesa a 230% do PIB), mas sim o seu custo. E a dívida brasileira é extremamente cara. Desde 1997 o Brasil realiza superávits contínuos, com exceção de 2014 e 2015, e mesmo assim “nós continuamos tendo uma dívida pública que, grosso modo, se mantém nos mesmos patamares em que ela estava há 10, 15 anos atrás”, e continuou “quando se tem taxa de juros da ordem da existente no Brasil, essa dívida não serve ao desenvolvimento, não serve ao financiamento de longo prazo, para a construção de infraestrutura, ela serve apenas para criar uma transferência regressiva de renda de baixo para cima”.

       Sobre o projeto apresentado por Michel Temer, o “Ponte para o Futuro”, José Luís Fevereiro acredita que, se ele assumir a presidência, não vai implementá-lo de forma imediata do jeito que está anunciado, “eles vão fazer todas as sinalizações de longo prazo, vão mexer na regulamentação do pré-sal, vão mexer na variação de correção do salário mínimo – o que não tem nenhum impacto nos próximos dois anos, porque não há variação positiva do PIB e, portanto, não haverá aumento real do mínimo -, vão fazer todas as sinalizações ao mercado para tentar criar o tal ‘milagre’, que é convencer o empresário a investir num mercado que não tem demanda”, entretanto não vão fazer tudo o que se comprometeram agora, como a desvinculação do reajuste do piso da previdência com o salário mínimo ou mesmo a extinção do Bolsa Família. “Precisamos racionar que podemos enfrentar um governo Temer que vai agir com pragmatismo”, e a batalha política pela legitimação do governo Temer está na rua: “de um lado nós, os movimentos sociais, e do outro lado Michel Temer e os grupos empresariais com os quais ele está articulado que vão ter que, por um lado, ponderar as suas necessidades estratégicas que motivaram o golpe e, por outro lado, construir alguma legitimidade social para esse governo”, concluiu.

       Depois das falas dos convidados para a primeira mesa, a atividade do Coletivo de Conjuntura seguiu com a abertura da palavra aos presentes e a discussão sobre o tema.

    “Política, até onde irá a crise?”

       A segunda mesa, cujo enfoque foi a crise política, foi aberta pelo deputado federal pelo Rio de Janeiro Glauber Braga, cuja declaração de voto contrário à abertura de processo de impeachment teve grande repercussão e na qual chama de “gângster” Eduardo Cunha. Sobre ele, o parlamentar disse que é necessário entender que o atual presidente da Câmara dá sustentação e é sustentado por uma base de deputados que constantemente cobram sua fatura. “Se empoderou aqueles que representam a direita mais extremada dentro do parlamento”, continuou, e disse que “quem fazia e quem dava os gritos de guerra em nome do impeachment, não deixando essa bandeira morrer, é exatamente esse campo, e é esse campo que se fortaleceu a partir da agenda formulada por Cunha”. Num possível governo Temer, questionou Braga, “esse campo vai ser enquadrado ou o governo vai ter que continuar o processo de conciliação também com esses segmentos?”

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       Relatando que somente em uma manhã chegou a receber mais de 60 mensagens em seu telefone celular com insultos e ameaças, Glauber Braga atestou que esses segmentos e suas lideranças na Câmara necessitam da violência que seus discursos promovem: “essas lideranças são também violentas por sobrevivência, porque elas são vazias do ponto de vista dos argumentos daquilo que eles defendem”. Sobre o cenário que se aproxima, o deputado afirmou que, dentro do campo institucional, é necessária a luta constante pela deslegitimação do possível governo Temer, “não importa se as reformas dele serão realizadas a prazo ou à vista”. Essa luta deve ser feita no campo institucional, mas também nas ruas, porque serão as ruas que darão a sustentação a essa batalha dentro do parlamento.

       O jornalista Cid Benjamin foi o que deu sequência às falas, afirmando que a estratégia do PSOL deve ter por centralidade a defesa da democracia, e que “não podemos ter uma relação oportunista, utilitarista com a democracia, o que não nos impede de criticarmos os limites da democracia no capitalismo, em particular em um país capitalista tão desigual quanto o nosso”. Sobre o possível governo Temer, a avaliação feita foi a de que “a nossa oposição ao governo Michel Temer deverá ser diferente da oposição que fazemos ao governo Dilma, porque o governo Dilma é um péssimo governo, e um governo de direita, mas é um governo cuja legitimidade nós não questionamos. É diferente de um governo de Michel Temer, que é um governo ilegítimo e que não devemos reconhecer, e isso dá um outro tipo de relação política”.

       Um governo Michel Temer terá muitas dificuldades, ainda na avaliação de Cid Benjamim, já que terá questionamentos sobre sua legitimidade e enfrentará uma situação econômica dificíl. Há ainda um outro elemento complicador que é a Operação Lava Jato: “parar a Lava Jato hoje não é fácil, e figuras de proa desse novo governo estão implicados nela”. Diante desse quadro, a política assumida pelo PSOL, em seu entendimento, deve ser a de “questionar de cabo a rabo a legitimidade do governo de Michel Temer” uma vez que o processo de impeachment já deve ser considerado como um jogo jogado, não havendo a possibilidade do não afastamento da presidenta Dilma. Nesse quadro, a saída deve ser a bandeira das novas eleições presidenciais, por dois motivos: “primeiro, porque isso parece ser algo que a população quer e, em segundo lugar, tem tudo a ver com você não reconhecer o governo como legítimo”, chamando o povo a se manifestar “sobre o que deve ser posto no lugar dele”.

       O professor de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Jr., iniciou dizendo que, por não ser membro do PSOL, sua fala não se ateria à atuação do partido nesse momento atual e que tocaria num ponto central: “o caráter profundo e prolongado da crise que estamos vivendo”. Em 2013 houve as grandes manifestações de rua, o ano de 2014 foi tomado pela polarização fruto da disputa eleitoral e 2015 foi, desde o início, marcado pela discussão do impeachment, o que seriam sucessivas e diferentes fases da crise que se apresenta, e “nós temos que entender a sua natureza, entender a sua dinâmica”.

       “Eu entendo que a crise é tão profunda e prolongada porque se trata, sim senhor, de luta de classes. E não adianta a gente ficar estudando teoria das classes sociais, ou a gente, no partido, ficar o tempo todo falando da luta da classe trabalhadora, e quando se defronta com o aguçamento da luta de classes, tropeça, não reconhece e vai em frente”. Mas por que se aguçou assim a luta de classes?, pergunta Boito, para responder que, em sua visão, esse acirramento foi derivado do fato de que “o governo do PT não é, de jeito nenhum, igual ao governo do PSDB”. E não é por que? Porque os interesses de classe que o PT representou são distintos, o que não significa que o governo do PT seja um governo marcado pelos interesses da classes trabalhadoras: “pelas medidas que tomou e pelas medidas que não tomou, não dá para falar que é um governo da classe trabalhadora”.

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       Seguindo sua explanação, o professor da Unicamp afirmou se tratar de uma forma peculiar do acirramento da luta de classes porque o PT representou uma fração da burguesia que é a “grande burguesia interna”. “Essa fração controla a construção pesada, os fornecedores da Petrobrás, a construção naval, grande parte do agronegócio, parte da industria de transformação. Essa parte de burguesia apoiou de forma ativa o governo do PT”. Foi uma frente política policlassista que deu sustentamento ao governo do PT, “e o governo está em crise hoje porque essa frente está em crise”. O outro campo é o capital financeiro internacional e a fração da burguesia a ele integrada. “Sem entender essa cisão no seio da burguesia, não dá para entender o aprofundamento e o prolongamento da crise atual”, concluiu Armando Boito Jr.

       O último convidado da mesa da tarde foi Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e militante do movimento negro, que ressaltou que o debate sobre a natureza do Estado é fundamental para se analisar a conjuntura, e a natureza do Estado brasileiro tem três aspectos: “o primeiro, é um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania; e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, a violência não é episódica, mas sim prática política central”. Diferentes governos tentam trabalhar com essa natureza do governo brasileiro, afirmou o professor. O governo do PT dos último anos, em sua visão, não realizou nenhuma reforma estrutural que pudesse transformar esses aspectos, ainda que de forma pontual, apesar de certas políticas de inserção social realizadas por meio do acesso ao consumo de parcelas da população antes excluídas. “Ao mesmo tempo que você percebeu uma certa inserção social a partir de programas de transferência de renda e de políticas públicas, uma melhoria relativa nas condições sociais, foi feita num período que se recrudesceu, por exemplo, o que o movimento negro chama de ‘genocídio da juventude negra’, um aumento da violência e do extermínio de jovens negros nas periferias”.

       Como forma de enfrentamento, Dennis de Oliveira acredita ser central o desenvolvimento de estratégias para potencializar essas novas formas de organização que surgem nas periferias, “construídas a partir da luta contra o racismo e contra o machismo”, e que existem dois atores políticos importantes nessa conjuntura que são a juventude negra e as mulheres negras, cujas lutas apontam que a questão racial é “a fronteira que define quem tem ou não tem patrimônio, quem é o autor e quem é a vítima da violência e quem é cidadão e quem não é cidadão”, e que é fundamental se construir uma narrativa inclusiva e política que incorpore esses segmentos e suas inovadoras formas de organização no debate político, concluiu o professor.

       A partir das falas dos convidados, outra sessão de debate foi aberta com a participação dos presentes e a reunião do Coletivo de Conjuntura se encerrou por volta das 18h. O registro em vídeo da atividade será disponibilizado na página da Fundação Lauro Campos.