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  • ENTREVISTA – Paulo Buss – “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    ENTREVISTA – Paulo Buss – “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    “O fim da Unasul impede a formação de uma frente continental contra a pandemia”

    Por Gilberto Maringoni

    Para Paulo Buss, ex-presidente da Fiocruz e um dos principais sanitaristas brasileiros, um sistema de saúde pública articulado internacionalmente seria decisivo para um combate mais eficiente à Covid-19. Em suas palavras, “O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS, e não agem pela lógica do mercado”. Na entrevista a seguir, ele fala de como o combate à doença poderia ser mais eficiente.

    A pandemia da Covid-19 poderia ter sido evitada? E o desenrolar poderia ter sido diferente no Brasil?

    Os profissionais que trabalham com doenças infecciosas e epidemiologia já sabiam que a emergência de uma pandemia nessas condições era algo previsível. Nos anos precedentes, aconteceram epidemias de influenza, de Sars-Cov e de MERS [síndromes respiratórias variantes anteriores ao coronavírus, identificadas entre 2002-12]. O surto de Ebola aconteceu em 2015 e foi contido a tempo, pois eclodiu em um lugar em que o transporte é muito precário. Apesar disso, houve casos nos EUA e na Europa. Mas ele despertou tremendo susto e houve uma reação importante, que pouca gente conhece, por parte das Nações Unidas. Foi um grupo de trabalho dirigido pela doutora Amina J. Mohammed, em que se desenvolveu um relatório com uma série de medidas sugeridas, mas nenhuma foi adotada. O mundo continuou fazendo de conta que aquele relatório era só mais uma peça das muitas da ONU. Já o Sars-Cov-2 – o novo coronavírus – aconteceu na China, em uma região altamente populosa, com um transporte abundante, pela infraestrutura negocial da região, e rapidamente se difundiu. Então, podemos dizer que seria evitável. Reduzir o impacto e a difusão também seria possível. Mas, para isso, deveria ter havido resposta e responsabilidade por parte dos dirigentes, que não fizeram o dever de casa proposto por aquele grupo de trabalho.

    De março de 2020, quando a OMS classificou a Covid-19 como pandemia, até dezembro, não havia vacina. Teria sido possível conter a doença com lockdowns e outras medidas não medicamentosas nesse período?

    Houve um desdém por parte das principais autoridades dos países afetados após a ocorrência na China. Os governos da Itália e do Reino Unido minimizaram o problema. Não queriam impacto sobre a economia. A China fez aquele estardalhaço de fechar tudo, mas os países acreditaram não ter sido aquilo que gerou a contenção, e sim a própria história natural da doença. Se tivessem tomado as medidas de contenção tal como a China, que tem uma experiência grande com esse tipo de doença, teriam reduzido não só o número de casos nesses países, como também dado tempo de organizar a resposta dos sistemas de saúde. O grande problema é que a massa de pessoas que passa a ter necessidade de cuidados médicos ultrapassa e muito qualquer capacidade instalada. O ex-ministro da Saúde do Brasil, Luiz Henrique Mandetta, alertou isso o tempo inteiro. Ele estava muito bem assessorado por profissionais competentes da área de vigilância, e que foram catapultados porque o mandatário maior da nação fez ouvidos moucos e operou exatamente como as lideranças da Europa que negligenciaram a questão. Mas lá, rapidamente voltaram atrás. No Brasil, infelizmente, foi o contrário. Continua a negligência e, como estava incomodando, Mandetta foi demitido.

    Parece claro que uma pandemia como esta só pode ser combatida por meio de políticas públicas. Qual tem sido o papel do Estado e da saúde pública nos principais países?

    Quando os casos começaram a se distribuir, a OMS convocou um grupo de especialistas imediatamente. Esses técnicos muito precocemente disseram que se deveria utilizar com rigor o regulamento sanitário internacional, fazendo isolamento, identificação de casos, fechando alguns lugares etc. E houve claramente um rechaço a isso porque os governantes sabem que a iniciativa privada não quer nunca reduzir os lucros. A própria arrecadação pública, que seria reduzida, fez com que os governos ficassem muito resistentes. Faltou esse reconhecimento do papel de autoridade sanitária internacional para a OMS. E esse é um defeito que continua. Foram apresentados três relatórios na Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2021. Um da comissão independente, liderada pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark, e a ex-presidenta da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf; outro do Comitê de Emergências da OMS; e o terceiro do comitê que analisa o funcionamento do regulamento sanitário internacional. Os três foram unânimes em dizer que a OMS atuou dentro dos limites, com razoável grau de acurácia, mas que seriam necessárias mudanças. Uma delas é a tensão entre a recomendação frente a uma pandemia e a soberania dos países. Essa tensão, que é do multilateralismo, não é específica da saúde. E os países, mais uma vez, decidiram agir por conta própria, sempre pensando nos atores econômicos e políticos internos.

    Um grande problema da América Latina foi a eliminação da cooperação em saúde que a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) promovia. Em abril de 2019, Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Mauricio Macri (Argentina) e Iván Duque (Colômbia) deram um tiro de misericórdia na Unasul. Se tivéssemos o conselho de ministros da época da entidade, poderíamos ter feito uma frente ampla contra a doença

    Muitas pessoas têm feito um paralelo com uma pandemia de 100 anos atrás, a da gripe espanhola, apesar das estatísticas muito precárias da época. Existe algum ensinamento que possamos tirar daquela situação?

    Antes de mais nada, é preciso lembrar que o mundo estava saindo da I Guerra Mundial naquele momento. Apesar das contradições a respeito, os movimentos de tropas foram responsáveis por imensas ondas de contaminação. Se estivessem vivendo um momento de paz, muito provavelmente a pandemia não teria sido tão intensa. Penso que a mudança demográfica, tecnológica, e de capacidade de mobilidade faz com que tenhamos poucas lições dessa pandemia de influenza, ocorrida de 1918 a 1920. Naquele momento, não tínhamos nem antibiótico, que só apareceu na década de 1940. A tecnologia era muito primitiva. A saúde pública se originou com a Revolução Industrial [na segunda metade do século XVIII, na Grã-Bretanha] e as práticas estatais apareceram com a Lei dos Pobres [de 1601, também na Grã-Bretanha], ocasião em que o então líder da saúde na Inglaterra disse: “não sei se são pobres porque são doentes ou se são doentes porque são pobres”. Mas não havia uma autoridade sanitária mundial. A Liga das Nações surgiu depois da I Guerra [em 1919], e logo se criou um comitê de saúde, que foi o anteprojeto de OMS, surgido em 1948.

    A América Latina ainda é o covidário global, como se tem falado há alguns meses?

    Sim, embora já se veja na África em um crescimento de casos muito preocupante, além do sudeste da Ásia. Já se sabe que essas curvas ascendentes estão relacionadas ao Ocidente rico, com a liberação precoce das atividades. Nesses outros países, que têm economias mais atrasadas – com menor mobilidade urbana, como é o caso da África –, a taxa de contato se reduz e o progresso da pandemia é mais lento, mas o crescimento de casos é inexorável, pois a pobreza dá outra sustentação para a expansão.

    Na Argentina, houve uma tentativa de lockdown na grande Buenos Aires, mas a taxa de vacinação não estava alta. Com isso, vimos uma alta de infecção nos últimos meses. O que contribuiu para o alastramento do vírus ali?

    A explicação dos especialistas locais é de que, no início da pandemia, houve uma séria intervenção estatal para o lockdown. Mas, quando o vírus começou a ter fôlego para circular, eles reabriram. Foi uma abertura precoce. Isso, associado a uma baixa taxa de imunização, facilitou muito. A abertura aconteceu porque parecia que o comportamento do vírus não seria como nos outros países, mas o resultado foi desastroso.

    Em Cuba, também houve um controle inicial pelo lockdown. O que contribuiu para a alta recente de casos ali? Seria a volta do turismo no início do ano?

    Sim, abriram a economia desesperadamente no verão. E os turistas, ao mesmo tempo em que poderiam estar levando a doença, poderiam também se contaminar. Por conta do bloqueio, acabou faltando seringa e agulha, entre outras coisas. E olhe que Cuba tem uma medicina de muito boa qualidade. Uma enfermagem muito boa, a mortalidade infantil muito baixa, mas a pandemia chegou por esse caminho.

    No Brasil, o governo federal tem jogado a responsabilidade para os estados. Mas é possível existir uma política nos entes subnacionais diferente da nacional? Nessas condições, seria possível fazer algo como uma contrapolítica sanitária?

    As afirmações do governo federal são falaciosas. Por exemplo, quem regula a mobilidade por meio das viagens interestaduais, dos aviões, são autoridades federais, como a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Um governo estadual pode ter feito uma política melhor do que outro, e muito melhor do que o governo federal, mas não foram realizadas ações controladas a partir de Brasília. O resultado é que a mobilidade continuou farta e fácil, particularmente nas rodovias federais e nas atividades dos caminhoneiros, que deveriam ter sido fortemente estimulados a adotar medidas sanitárias. Um exemplo bem-sucedido foi o do Maranhão. Mesmo quando detectaram casos da variante indiana por lá, atuaram com extrema habilidade e, de fato, tiveram uma das melhores performances a favor da saúde. Em compensação, há exemplos muito ruins, como o Rio de Janeiro, com uma péssima gestão da pandemia, com um governador e um secretário de saúde negociando por baixo do pano, e ao mesmo tempo construindo estruturas completamente inadequadas, apenas para inglês ver. Como consequência, a letalidade é muito alta no Rio.

    Como o senhor avalia a política implementada pelo governador de São Paulo, João Doria?

    Gosto muito de algumas pessoas que compõem a equipe. Por exemplo, levou João Gabbardo, que estava no Ministério na gestão Mandetta. O próprio grupo de gestão da crise funcionou razoavelmente, embora São Paulo não mostre um desempenho muito melhor do que os outros estados, permanecendo na média em termos de denominador. Mas ali temos o principal aeroporto internacional do país.

    Se os países da Europa tivessem tomado as medidas de contenção tal como a China, que tem uma experiência grande com esse tipo de doença, teriam reduzido não só o número de casos nesses países, como também dado tempo de organizar a resposta dos sistemas de saúde. O grande problema é que a massa de pessoas que passa a ter necessidade de cuidados médicos ultrapassa e muito qualquer capacidade instalada

    Se o senhor se tornasse Ministro da Saúde, quais seriam as primeiras medidas que tomaria hoje?

    A coisa mais importante é o fortalecimento da rede de atenção primária, qualificando e dando condições de trabalho aos profissionais. Estamos com uma rede de mais de 50 mil equipes de saúde da família, que é quase inigualável no mundo, mas que tem um subfinanciamento muito grande. Precisamos de um verdadeiro abastecimento de mão de obra, com presença de enfermagem, médicos, agentes comunitários etc. Isso se perdeu. Algo bem feito nos governos do PT, até à época do ex-ministro José Gomes Temporão, foi a enorme valorização da saúde da família. Mas atenção primária não é atenção imediata. Teríamos que, imediatamente, promover uma valorização no sentido de adequar os profissionais de saúde e os materiais. Se existe uma distribuição bem feita da rede, com regras bem definidas e indicadores de alerta, nós rapidamente detectaríamos onde a circulação de um vírus está mais intensa. E isso não é só para enfrentar a pandemia.

    Podemos ver no horizonte um mundo pós-pandemia na nossa região?

    Um grande problema da América Latina foi a eliminação da cooperação em saúde que a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) promovia. Em abril de 2019, Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Mauricio Macri (Argentina) e Iván Duque (Colômbia) deram um tiro de misericórdia na Unasul. Com isso, desmoronou todo o processo de cooperação. Além disso, o vírus não tem fronteira, a circulação é intensa entre esses países, e nós estamos até hoje sem um mecanismo de coordenação. A mesma coisa valeria para a aquisição de vacinas. Se tivéssemos o conselho de ministros da época da Unasul, poderíamos ter feito uma frente ampla de compra. Teríamos 12 países negociando fortemente com a indústria farmacêutica, segurando os pagamentos e recebendo imunizantes para toda a região. O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS e não agem pela lógica do mercado. Mas, apesar disso, o governo federal brasileiro não liderou as ações adequadamente, e todas as estruturas interestaduais continuaram na mesma operação antipopulação e pró-enfermidade.

    Uma vida voltada à Saúde Pública

    Paulo Buss é médico, doutor emtomada Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, instituição que presidiu entre 2001-08. Foi secretário executivo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (1979-83) e presidente da Federação Mundial de Saúde Pública (2008-10). Representou o Brasil no Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde (2008-2011) e participou da direção de outros organismos de saúde internacionais. É autor e organizador de diversos livros, entre eles Diplomacia da Saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho (juntamente com Luiz Eduardo Fonseca), disponível para baixar na página da Fiocruz.

  • Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Qual é a frente necessária para derrotar Bolsonaro?

    Quatro dirigentes do partido expõem suas concepções táticas para deter o avanço da extremo direita

    [1] É tempo de fortalecer o partido!

    Este é tempo de partido,
    tempo de homens partidos.
    …Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
    As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
    Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

    Carlos Drummond de Andrade

    No Brasil, é possível e imprescindível termos uma candidatura de esquerda radical. Essa candidatura deve apresentar um programa que diga ao povo que os bancos são nossos maiores inimigos, e não que vão ganhar muito com nosso governo. É necessário dizer que o latifúndio e o agronegócio não são heróis, mas os responsáveis pela fome e preços altos dos alimentos, por isso é preciso fazer a reforma agrária. É importante afirmar que qualquer projeto de país que deseje o mínimo de autonomia tem que partir de uma anulação das medidas encaminhadas pelos golpistas, como as privatizações de empresas estratégicas, teto de gastos, reformas da Previdência, Trabalhista, entre outras

    Berna Menezes

    O senso comum e com uma boa dose de razão diz: todos juntos contra Bolsonaro. É natural! Quando vemos desfilando pela grande imprensa e redes sociais as declarações de Bolsonaro, Guedes, Damares, os finados Salles e Weintraub, imaginamos que abriram as portas do inferno. Se olharmos em volta, mais de meio milhão de mortos pelo descaso e irresponsabilidade de Bolsonaro, metade da população em insegurança alimentar e o retorno da fome, milhões de desempregados e subempregados, famílias inteiras morando nas ruas, falência de pequenos agricultores, extermínio da juventude negra nas periferias e dos povos indígenas, fim dos direitos trabalhistas, incêndios florestais ameaçando biomas e espécies, constatamos: é a barbárie! Mas como nossa guerreira Rosa Luxemburgo dizia: Isso de entregar-se por inteiro às misérias de cada dia que passa é coisa inconcebível e intolerável para mim… precisamente um lutador é quem mais tem que esforçar-se para ver as coisas de cima, caso não queira encarrar a cada passo todas as mesquinharias e misérias…, sempre e quando, naturalmente, se trate de um lutador de verdade…

    Espaço amplo

    Por isso, defendemos a mais diversa unidade de ação, como um espaço mais amplo possível, inclusive policlassista, contra Bolsonaro. Portanto, nessa frente social, cabe todo mundo: Globo, CNBB, Maia, Ciro, Requião, PSDB, FHC. Como a frente construída contra a ditadura militar, no movimento pelas “Diretas Já!”, que foi dirigida pelo PMDB. Naquele momento, isso não significou como consequência uma frente eleitoral do PT com o PMDB. Ao contrário, reafirmamos o PT, como partido de classe e seu programa, apoiado na mobilização cotidiana, que se expressou de forma contundente durante o processo constituinte e nas eleições de 1989.

    Pode-se argumentar que a correlação de forças era outra, mas até isso é discutível. A ditadura caiu pela mobilização do povo, mas a transição foi conservadora, pactuada entre os setores da elite brasileira. Por isso, diferentemente da Argentina, a caserna ficou intacta e pode retornar ao poder como se nada tivesse acontecido.

    Defendemos a mais diversa unidade de ação, como um espaço o mais amplo possível, inclusive policlassista, contra Bolsonaro. Nessa frente social, cabe todo mundo: Globo, CNBB, Maia, Ciro, Requião, PSDB, FHC entre outros, como a frente construída contra a ditadura militar, no movimento pelas “Diretas Já!”, que foi dirigida pelo PMDB. Já uma frente eleitoral é definida, além da correlação de forças, por um programa, que delimitará a composição da frente

    A unidade de ação se dá em torno a um ou poucos pontos e cabem todos que tenham esse mesmo objetivo: abaixo a ditadura, Diretas já! Pela Legalidade! Reformas de base já!

    Já uma frente eleitoral é definida, além da correlação de forças, por um programa, já que se pressupõe, em caso de vitória, que se governará junto e que, portanto, deve apresentar uma saída para o país em questão. Por sua vez, o programa delimitará a composição da frente. As frentes eleitorais são uma tática privilegiada para intervirmos em processos nos quais os revolucionários são ainda minoritários.

    Dois exemplos de como enfrentar a ultradireita

    Recentemente, as eleições nos EUA e na Espanha puderam revelar a complexidade da aplicação desses conceitos.

    Após a crise de 2008, ressurge em nível internacional o fenômeno da ultradireita, polarizando com saídas mais à esquerda e o fantasma do comunismo. O governo Trump foi a expressão. Contra esse governo de ultradireita, nas prévias do Partido Democrata, apresentou-se Bernie Sanders, com um programa que, para a correlação de forças gringas, tocava em pontos que iam contra a lógica do capital: sistema de saúde universal e gratuito com a eliminação dos planos privados, perdão das dívidas de financiamento estudantil e sistema de ensino superior gratuito, salário mínimo de 15 dólares/hora. Essa candidatura mobilizou um exército de milhares de jovens e atuou junto a movimentos feministas e negros, além de imigrantes latinos e indígenas que percorreram o país mobilizando eleitores e debatendo programa.

    Após a crise de 2008, ressurge em nível internacional o fenômeno da ultradireita, polarizando com saídas mais à esquerda e o fantasma do comunismo. O governo Trump foi a expressão. Contra ele se apresentou Bernie Sanders, nas prévias do Partido Democrata, com um programa que tocava em pontos que iam contra a lógica do capital

    O final, todos acompanhamos, a elite fechou posição em torno de Biden e Bernie Sanders retira a candidatura, exigindo pontos programáticos do futuro governo. Sem fazer nenhum juízo de valor sobre o processo, o concreto é que a apresentação da candidatura de Sanders, o debate programático que mobilizou uma vanguarda progressista no coração do capital, acumulou para a esquerda norte-americana. O movimento social sai fortalecido e a esquerda ressurge como força importante naquele país.

    Olhemos agora o processo do Podemos na Espanha, partido considerado o irmão do PSOL naquele país. O Podemos foi parido nas gigantescas mobilizações da Praça Porta do Sol. Em um ano, tornou-se o segundo maior partido no país. Elegeu as prefeituras das duas principais cidades, a capital do Estado espanhol, Madri, e a capital da Catalunha, Barcelona.

    Com o discurso de barrar a direita, colou-se a velha política representada pelo decadente PSOE, fazendo parte do governo nacional. Consequência, perdeu 50% dos votos do processo eleitoral anterior e este ano perdeu a prefeitura de Madri, fato que levou o principal dirigente, Pablo Iglesias, declarar que vai abandonar a política. Quem ressurgiu das cinzas? A extrema direita, Fox. Além de fortalecer o PSOE como oposição, que vem engolindo ano a ano o eleitorado do Podemos.

    Situação em nosso continente

    Na América Latina, também temos exemplos de que há espaço para derrotar a ultradireita pela esquerda. Onde não se avançou no programa e ações, retrocedeu ou perdeu. Foi assim no Equador. No México, Morena encolheu. Por outro lado, no Chile, onde as mobilizações não pararam, avançou. No Peru, ganhou um dirigente de greves de professores que ninguém acreditava.

    No Brasil, é possível e imprescindível uma candidatura de esquerda radical que apresente um programa para o povo afirmando que os bancos são nossos maiores inimigos e não que vão ganhar muito com nosso governo. É necessário dizer que o latifúndio e o agronegócio não são heróis, são responsáveis pela fome e preços altos dos alimentos, e que é preciso fazer a reforma agrária. Esse programa deve afirmar, também, que qualquer projeto de país que deseje o mínimo de autonomia tem que partir de uma anulação das medidas encaminhadas pelos golpistas, como as privatizações de empresas estratégicas, teto de gastos, reformas da Previdência, trabalhista, entre outras. Para isso, como uma das primeiras medidas, o novo governo deve encaminhar um referendo revogatório, para que abra o debate na sociedade como um gigantesco processo pedagógico de política feita pelo povo.

    Organizamos o primeiro ato contra o golpe no Rio Grande do Sul, quando sequer o PT chamava mobilização contra os golpistas, nem a direção majoritária nacional estava com essa posição, ou ainda, quando outros gritavam nas ruas “Fora Dilma”, nós já estávamos nos atos junto a ela ou nos atos do Paraná contra a prisão de Lula. Pagamos um preço alto, mas tínhamos a tranquilidade de estar do lado certo da história

    Nesse sentido, está claro, Lula não quer isso. Não quer uma frente de esquerda. Lula, mais uma vez, quer governar com a direita. Por isso, é contra a taxação das grandes fortunas, defende as estatais pero no mucho e reforma agrária nem pensar.
    Isso significa que não votaremos em Lula? Não! No segundo turno, é todo mundo contra Bolsonaro! Mas o PSOL não pode abdicar de discutir com nosso povo de que é possível uma saída. A candidatura de Glauber Braga é a possibilidade de reafirmar essa saída à esquerda para a crise.

    Antipetismo? Nem pensar! Organizamos o primeiro ato contra o golpe no Rio Grande do Sul, quando sequer o PT chamava mobilização contra os golpistas e nem a direção majoritária nacional estava com essa posição, ou ainda, quando outros gritavam nas ruas “Fora Dilma”, nós já estávamos nos atos juntos a ela ou nos atos do Paraná contra a prisão de Lula. Pagamos um preço alto, mas tínhamos a tranquilidade de estar do lado certo da História.

    Berna Menezes é da Executiva Nacional do PSOL


    [2] Da Diretas ao Fora Bolsonaro

    Tudo indica haver alguma similitude entre a campanha das Diretas, de ontem, e o Fora Bolsonaro, de hoje. Ontem, tratava-se de pôr fim a duas décadas de um regime que implantou um verdadeiro terrorismo de Estado em nosso país. Hoje, trata-se de defender o Estado de Direito Democrático e impedir que o Brasil resvale para uma abjeta ditadura, militar-miliciana, sob a liderança protofascista de Jair Bolsonaro. Como dizia Dr. Ulysses, “a única coisa que mete medo em político é povo na rua”

    Haroldo Saboia

    A convenção nacional do PMDB, no domingo 4 de dezembro de 1983, impôs severa derrota aos autênticos, aos progressistas e ao próprio Ulysses Guimarães ao eleger, com apoio do então governador de Minas, Tancredo Neves, o senador biônico paranaense Afonso Camargo para o importante cargo de Secretário Geral.

    Estava em jogo, então, a definição do PMDB, maior partido de oposição no Congresso, quanto à transição política em curso: aprovar as Diretas Já previstas pela Emenda Dante de Oliveira, participar do Colégio Eleitoral para “eleger” o sucessor do general Figueiredo ou, uma terceira hipótese, admitir um mandato-tampão em consenso com o Planalto.

    Em 25 de janeiro de 1984, quando os próprios organizadores esperavam 100 mil pessoas, São Paulo – no dia dos seus 430 anos de fundação – surpreendeu: mais de 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé. Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, José Richa, Mario Covas, Lula e centenas de artistas e lideranças sindicais estavam lá. Estava formada uma grande frente popular pelas Diretas Já! Da disputa institucional, a campanha ganhou as ruas fortalecida pela adesão dos movimentos sociais, sindicais e populares!

    Deputado estadual, participei dessa Convenção como Delegado do PMDB do Maranhão. Assisti ao plenário em ebulição, aplausos aos autênticos e vaias, muitas e ruidosas vaias, aos conservadores.
    A própria presença de Tancredo Neves foi objeto de apupos, e seus partidários – mesmo os antigos autênticos como o pernambucano Fernando Lira – praticamente impedidos de falar pelos militantes de esquerda (do PCdoB e de outras organizações) ainda abrigados no velho PMDB.

    O clima ao final era desolador. O deputado baiano, Chico Pinto, afastado da Secretaria Geral, e Ulysses Guimarães, mantido na Presidência de uma Executiva e de um Diretório majoritariamente conservador.
    No dia seguinte, segunda feira, ao final da manhã, fui à Presidência do PMDB encontrar com o antigo deputado maranhense Cid Carvalho, que fora colega de Câmara do Dr. Ulysses na década de 1950, cassado em 1968 com o AI-5, e de volta com a Anistia.

    Pouca gente na Casa. Não havia sessões às segundas pela manhã. Movimento menor ainda no Gabinete do derrotado da véspera, o bravo anticandidato de 1974! Em seu gabinete, um único deputado àquela hora. Logo ao chegar, mal o cumprimentei, Dr. Ulysses se dirigiu ao Cid e disse:

    – Convide o Saboia para almoçar conosco. Vamos ao Anexo IV.

    Não apenas “navegar era preciso” – como tanto gostava de repetir – era preciso também dar uma demonstração de altivez, de força, mostrar que a derrota não o abatera.

    Acompanhei, então, os dois deputados pessedistas dos anos 1950, que atravessaram os longos corredores do Salão Verde e do Anexo II até o restaurante do Anexo IV. No trajeto poucos parlamentares e jornalistas, e muitos funcionários surpresos com aquela presença tão inusitada.

    Para as ruas!

    À mesa, o até então taciturno Ulysses Guimarães se transformou:

    – É Dr. Cid, temos que ir para as ruas! Teremos diretas só se ganharmos as ruas!

    Era quase unanimidade entre os analistas políticos naquele momento de transição que, vitoriosa a Emenda Dante de Oliveira e restabelecidas as eleições diretas para Presidente da República, o nome escolhido seria o do Dr. Ulysses. Mantido o Colégio Eleitoral, emergiria com força o nome de Tancredo Neves, com bem mais trânsito juntos às lideranças do PDS que sucedeu a Arena, partido do “sim, senhor” dos anos de chumbo da ditadura.

    A campanha pelas Diretas Já tomou conta do país, mas não arrefeceu a disputa pela hegemonia do processo de transição em curso. No mesmo palanque, às vezes até mesmo com discursos mais inflamados, defensores da ida ao Colégio Eleitoral e da conversão conservadora do regime disputavam espaço com os setores mais combativos, as forças de esquerda que lideravam a oposição popular à ditadura militar

    Levar a luta pelas Diretas Já dos debates institucionais para os movimentos populares e sociais, do Congresso para as praças públicas, eis o grande desafio que se colocava ao Dr. Ulysses. E ele bem o sabia.

    Praticamente um mês depois, em 12 de janeiro de 1984, o primeiro grande comício das Diretas, em Curitiba, reunia mais de 50 mil pessoas. Fora convocado pelo governador José Richa instado pelo Dr. Ulysses. No 27 de novembro anterior, um comício convocado pelo PT (os outros partidos foram convidados apenas dois dias antes e suas principais lideranças mandaram apenas representantes) e por setores da Igreja Católica mal reuniu 15 mil pessoas no Pacaembu.

    A Frente pelas diretas

    Em 25 de janeiro, quando os próprios organizadores esperavam 100 mil pessoas, São Paulo – no dia dos seus 430 anos de fundação – surpreendeu: mais de 300 mil pessoas lotaram a Praça da Sé! (Saí do meu Maranhão para assistir de corpo presente esse momento de nossa História).

    Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, José Richa, Mario Covas, Lula, centenas de artistas e lideranças sindicais. Tancredo Neves, que esteve em Curitiba, não compareceu. Estava formada uma grande frente popular pelas Diretas Já! Da disputa institucional, a campanha ganhou as ruas fortalecida pela adesão dos movimentos sociais, sindicais e populares!

    Daí para a frente todos sabemos. Duas tiras – uma verde, outra amarela – pintadas como displicentes pichações, coloriram o Brasil inteiro…

    A campanha pelas Diretas Já tomou conta do país, mas não arrefeceu a disputa pela hegemonia do processo de transição em curso. No mesmo palanque, às vezes até mesmo com discursos mais inflamados, defensores da ida ao Colégio Eleitoral e da conversão conservadora do regime disputavam espaço com os setores mais combativos, as forças de esquerda que lideravam a oposição popular à ditadura militar.

    Similitudes ontem e hoje

    Por ironia da História, tudo indica haver alguma similitude entre a campanha das Diretas, de ontem, e o Fora Bolsonaro, de hoje.

    Ontem, tratava-se de pôr fim a duas décadas de um cruel regime que censurou, que reprimiu, que prendeu, que torturou, que matou… implantando um verdadeiro terrorismo de Estado em nosso país.

    Hoje, trata-se de defender o Estado de Direito Democrático instaurado com a Constituição de 1988 – com todas as debilidades, que conhecemos – e impedir que o Brasil resvale para uma abjeta ditadura, militar-miliciana, sob a liderança protofascista de Jair Bolsonaro.

    Ontem, setores oposicionistas se dividiam entre aqueles que queriam eleições imediatas, diretas verdadeiramente já, e outros que admitiam a transição lenta, com a ida ao Colégio Eleitoral.

    Hoje, temos certos setores que lutam pelo Fora Bolsonaro (impeachement já) por entenderem que – a depender da conjuntura – Bolsonaro pode ganhar tempo tanto para a disputa eleitoral em 2022 como para desfechar o tão almejado (e até mesmo propalado pelos apoiadores) golpe policial-militar.

    Ontem, a luta pelas Diretas Já saiu do Congresso para as ruas. Hoje, ao contrário, a luta está partindo das ruas e praças do País e acumulando forças – apesar das dificuldades impostas pela pandemia – para chegar ao Congresso e viabilizar o impeachment já

    Por outro lado, observamos outros setores que, embora acompanhem o coro do Fora Bolsonaro, não se empenham, de fato, na campanha pelo impeachement já por apostarem que o enfraquecimento de Bolsonaro é inexorável e que é preferível esperar – deitados no berço esplêndido das pesquisas – para derrotá-lo nas eleições presidenciais de 2022.

    Ontem, a luta pelas Diretas Já saiu do Congresso para as ruas.

    Hoje, ao contrário, a luta está partindo das ruas e praças do País e acumulando forças – apesar das dificuldades impostas pela pandemia – para chegar ao Congresso e viabilizar o impeachment já.

    Grito de partida

    A Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular, centrais sindicais, partidos políticos, movimentos sociais e populares e entidades da sociedade civil deram o grito de partida e foram às ruas, cada vez mais numerosos, nos quatro cantos do Brasil em 29 de maio,19 de junho, 3 e 24 de julho. Perceberam, como lembrou Guilherme Boulos, que “quando um governo é mais letal do que o vírus, é inevitável a necessidade de sairmos para o enfrentamento”.

    Manifestações populares em centenas de cidades brasileiras; um mega pedido de impeachment de Bolsonaro, que reuniu mais de cem denúncias apresentadas à Câmara dos Deputados (23 crimes previstos em lei), entregue em 30 de junho e assinado por mais de uma dezena de partidos, de organizações de categorias profissionais, um sem-número de renomados juristas; um manifesto com centenas de economistas, empresários, banqueiros e intelectuais liberais – revelam o crescente isolamento político e social de Jair Bolsonaro e seu governo.

    Lembremos que a PEC do voto impresso na Câmara Federal esteve longe de conquistar os 308 votos necessários para a aprovação em primeiro turno, o que representou a maior derrota do governo Bolsonaro no Congresso até o momento. Fato que pode vir a confirmar a sempre lembrada assertiva de que “o Centrão nunca se vende, sempre se aluga”!

    Como dizia Dr. Ulysses, “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. Não podemos descartar a hipótese das manifestações populares, convocadas pelas organizações do fora Bolsonaro, alcancem a amplitude e a dimensão necessárias para impor ao Legislativo a suspensão das funções presidenciais do atual presidente.

    Se ontem a não aprovação da emenda Dante de Oliveira contribuiu para que fosse configurado um caráter conservador à transição política (ida ao Colégio Eleitoral, Assembleia Constituinte não exclusiva e com a participação dos senadores biônicos de 1978); nos dias de hoje, o não afastamento imediato de Bolsonaro poderá levar o país, em 2022, a um quadro de esgarçamento social, político e institucional com desfecho imprevisível. Fora Bolsonaro! Impeachment já!

    Haroldo Saboia foi Deputado Federal Constituinte (1986-90) pelo PMDB-MA, Deputado Federal (1990-94) pelo PT-MA e membro do Diretório Nacional do PSOL.


    [3] A unidade possível

    A frente possível é uma frente das esquerdas. Ela é bastante diversa e reúne projetos distintos que vão de um tímido social-liberalismo a um programa de mudanças estruturais. Essa frente poderia redundar numa unidade eleitoral em 2022? Quem tiver a real dimensão da gravidade do momento que vivemos, lutará pela unidade até o último minuto

    Juliano Medeiros

    Durante meses as esquerdas se enredaram numa polêmica que, com o passar do tempo, mostrou-se sem sentido. De um lado, estavam os que defendiam uma “frente ampla”, leia-se, uma frente entre os todos os que estivessem dispostos a resistir aos ataques de Bolsonaro contra os direitos sociais, a democracia e a soberania nacional. Uma frente que reunisse as esquerdas e setores democráticos da centro-direita em oposição ao governo da extrema direita. De outro lado, estavam aqueles que defendiam uma frente das esquerdas, reunindo setores sociais e partidários dispostos a irem além da abstrata “defesa da democracia” e que denunciasse, ao mesmo tempo, a agenda antipopular de Guedes, Bolsonaro e do Centrão.

    A polêmica não é totalmente desprovida de sentido, ao menos teoricamente. Ambas as opções táticas têm vantagens e desvantagens. Uma frente mais ampla, como podemos supor, agregaria mais forças sociais contra o governo, alcançando setores que não simpatizam com posições de esquerda. Por outro lado, considerando as diferenças no plano econômico, exigiria um nível de ação mais rebaixado, circunscrito à defesa das liberdades democráticas e do Estado de Direito.

    Uma frente das esquerdas, por sua vez, seria politicamente mais coesa, com condições de opor-se à totalidade da agenda bolsonarista, incluindo o violento programa econômico. Por outro lado, ao restringir o diálogo aos setores progressistas da sociedade, uma frente dessa natureza teria muitas dificuldades em construir maioria social para barrar os ataques do governo.

    A velha direita e o governo

    Em que medida, então, considero que a polêmica se revelou “sem sentido”? Ora, por uma razão simples: não houve qualquer adesão significativa de setores da centro-direita à luta contra o governo Bolsonaro. No Congresso Nacional os partidos da velha direita – PSDB, DEM, MDB, PP, etc. – têm sustentado a agenda de ataques de Bolsonaro aos direitos e à soberania. Apoiaram a privatização dos Correios e da Eletrobras; viabilizaram o criminoso projeto de autonomia do Banco Central, além da legalização da grilagem e a criação de uma nova modalidade de subemprego, por meio da aprovação da MP 1045.

    O leitor, com razão, poderá contestar: mas há contradições! Sem dúvida. A extrema direita bolsonarista e a velha direita neoliberal não têm exatamente o mesmo projeto. E as diferenças se manifestam vez ou outra, especialmente diante dos arroubos autoritários de Bolsonaro e dos militares que o apoiam. Mas na agenda econômica e social, bolsonaristas e neoliberais estão em perfeita sintonia. Basta notar que Novo (86%), PSDB (87%), DEM (91%) e PL (93%) estão entre os partidos que mais votam com Bolsonaro na Câmara dos Deputados.

    Não houve qualquer adesão significativa de setores da centro-direita à luta contra o governo Bolsonaro. Apoiaram a privatização dos Correios e da Eletrobras; viabilizaram o criminoso projeto de autonomia do Banco Central, além da legalização da grilagem e a criação de uma nova modalidade de subemprego, por meio da aprovação da MP 1045

    A conclusão é simples: não há frente ampla porque não existe um “centro democrático” disposto a construí-la. Quando se trata de retirar direitos, enfraquecer a soberania nacional, precarizar as condições de trabalho e privilegiar o capital financeiro, a unidade entre o bolsonarismo e a direita neoliberal é total. As parcas exceções – como os três parlamentares de direita que assinaram o “superpedido” de impeachment – só confirmam a regra.

    O resultado é uma blindagem institucional que vai do “oposicionista” Rodrigo Maia ao “governista” Arthur Lira. Ambos, na presidência da Câmara dos Deputados, negaram-se a instalar o processo de impeachment, mesmo diante dos incontáveis crimes cometidos por Bolsonaro. Crimes que custaram a vida de milhares de brasileiras e brasileiros durante a pandemia da Covid-19.

    Portanto, a frente antibolsonarista realmente existente é uma frente das esquerdas, isto é, uma frente dos partidos, movimentos, intelectuais, artistas, influenciadores digitais, jornalistas que se identificam como progressistas e articulam ao mesmo tempo a defesa das liberdades democráticas e dos direitos sociais.

    O programa da unidade

    Essa frente tem unidade em torno de alguns pontos fundamentais. O primeiro é a necessidade de interditar imediatamente o projeto de Bolsonaro. Para tanto, reconhece a necessidade de instalar o processo de impeachment e tornar Bolsonaro inelegível, como prevê a lei. O segundo, é a necessidade de barrar a agenda bolsonarista. Ou seja, além de derrubar o governo, derrotar os projetos que avançam com apoio da direita neoliberal, pejorativamente chamada de Centrão. Terceiro, a defesa das liberdades democráticas.

    Em que pese a diferença entre projetos, em nenhum momento as esquerdas titubearam em denunciar as investidas golpistas de Bolsonaro ou de seus aliados militares. Quarto, a defesa das conquistas históricas da classe trabalhadora. Projetos como o da autonomia do Banco Central ou a privatização dos Correios contaram com a oposição da maioria dos partidos e movimentos de esquerda e centro-esquerda.

    Por tudo isso, podemos concluir que a frente possível é uma frente das esquerdas. Ela é bastante diversa e reúne projetos distintos, que vão de um tímido social-liberalismo a um programa de mudanças estruturais. Essa frente poderia redundar numa unidade eleitoral em 2022? Se considerarmos a gravidade do momento histórico que vivemos e o nível de unidade em torno de elementos programáticos mínimos, arrisco dizer que sim. Mas considerando os diferentes projetos eleitorais em curso – legítimos, a priori – é pouco provável que isso ocorra. Ainda assim, quem tiver a real dimensão da gravidade do momento que vivemos, lutará pela unidade até o último minuto.

    Juliano Medeiros é presidente nacional do PSOL e doutor em História pela UnB.


    [4] Todas as táticas para derrotar Bolsonaro e uma estratégia por um Brasil dos trabalhadores e do povo

    No Brasil atual, a tática da unidade de ação, amplamente utilizada em todas as lutas importantes ao longo da história, principalmente contra regimes e governos autoritários e ditatoriais, é fundamental para que se imponha a derrota ao governo Bolsonaro. A unidade de ação não é uma tática para as eleições, mas para a luta cotidiana. Porém, pode ser também estendida ao terreno eleitoral se, num segundo turno, por exemplo, enfrentam-se Bolsonaro e outro candidato que tenha sido seu oponente

    Roberto Robaina

    Para ir direto ao ponto, na atual situação política brasileira, há três objetivos fundamentais que devem ser postos para o movimento socialista: 1) Derrotar, pela via que seja, o presidente Jair Bolsonaro; 2) Defender as liberdades democráticas, os direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e do povo; 3) Formular, desenvolver e lutar por propostas que apontem uma saída para a crise do ponto de vista dos interesses dos explorados e oprimidos.

    Desses três objetivos não contraditórios entre si, derivam-se táticas e orientações estratégicas, cada uma delas cuja especificidade responde, na mesma ordem, aos objetivos definidos, orientações que não apenas são complementares, mas se fortalecem mutuamente e fortalecem a luta pelos três objetivos: a) A tática da unidade de ação; b) A tática da frente única; e c) A estratégia da construção de um corpo político revolucionário independente.

    Unidade de ação

    No Brasil atual, a tática da unidade de ação, amplamente utilizada em todas as lutas importantes ao longo da história, principalmente contra regimes e governos autoritários e ditatoriais, é fundamental para que se imponha a derrota ao governo Bolsonaro. A importância deriva do fato de que o projeto de Bolsonaro é contrarrevolucionário de extrema direita, cuja realização implica ataque às liberdades democráticas, à liberdade de imprensa, de organização, de reunião, e, no caso concreto brasileiro, recentemente, na deslegitimação das eleições. Esse projeto de Bolsonaro despertou a oposição em todas as classes sociais. A própria classe dominante está dividida. Basta, como exemplo, a decisão de investigar Bolsonaro, tomada pelos ministros do STF e do TSE.

    A tática da frente única não abandona os objetivos da unidade de ação, mas constrói uma delimitação superior em conteúdo e método. Busca unir os partidos que se postulam como partidos de classe, dos trabalhadores, e as organizações sociais do movimento de massas para se oporem aos ataques do fascismo

    Unir na ação concreta ao redor desse ponto programático, isto é, de defesa das liberdades democráticas e, de preferência, pela bandeira do Fora Bolsonaro, é o que definimos como aplicação da tática da unidade de ação, que passa pela realização de atos, passeatas, pronunciamentos e manifestos, com todos que compartilhem desse objetivo. A unidade de ação não é uma tática para as eleições, mas para a luta cotidiana, mas pode ser também estendida ao terreno eleitoral se, num segundo turno, por exemplo, enfrentam-se Bolsonaro e outro candidato que tenha sido seu oponente. A unidade, nesse caso, expressaria-se na defesa do voto contra Bolsonaro. A tática da unidade de ação, entretanto, está longe de esgotar a orientação do movimento socialista. Limitar-se a ela seria confiar que as classes sociais têm o mesmo interesse e que a burguesia liberal é consequente na luta contra o fascismo. Os trabalhadores devem ser conscientes de que a continuidade do poder burguês significa uma constante ameaça aos seus interesses.

    Frente única

    A tática da frente única, formalizada pela primeira vez em junho de 1921, no III Congresso da Internacional Comunista, não abandona os objetivos da unidade de ação, mas constrói uma delimitação superior em conteúdo e método. Busca unir os partidos que se postulam como partidos de classe, dos trabalhadores, e as organizações sociais do movimento de massas para se opor à ofensiva patronal, seja aos ataques do fascismo, seja aos ataques contra os direitos sociais e econômicos dos trabalhadores levados adiante pelos capitalistas e seus governos.

    Trata-se de um acordo cujo objetivo é somar forças para impor derrotas aos planos capitalistas e fortalecer bandeiras de classe dos setores explorados e oprimidos. Tal tática não esgota, tampouco, a orientação do movimento socialista. Entre as organizações e partidos que reivindicam a classe trabalhadora há programas e estratégias diferentes e até opostas. O movimento dos trabalhadores se dividiu historicamente em posições revolucionárias, cuja estratégia é a destruição do capitalismo e a construção de um estado de novo tipo, uma nova institucionalidade baseada na auto-organização do movimento de massas, e as posições reformistas, cuja estratégia é atenuar as contradições de classe, buscando melhorias para os trabalhadores, mas num regime e num modo de produção burguês. Pois a tática de frente é a busca de acordo entre forças revolucionárias e reformistas que atuam no movimento de massas.

    O movimento dos trabalhadores se dividiu historicamente em posições revolucionárias, cuja estratégia é a destruição do capitalismo e a construção de um Estado de novo tipo, uma nova institucionalidade baseada na auto-organização do movimento de massas, e as posições reformistas, cuja estratégia é atenuar as contradições de classe, num regime e num modo de produção burguês

    A importância dessa unidade para fortalecer a capacidade de luta dos trabalhadores é evidente, mas não menos evidente são os limites dessa tática, já que os reformistas são contrários a uma estratégia de ruptura com a burguesia, como concretamente os 13 anos de governos do PT demonstraram. Assim, a tática da frente única não pode implicar acordo para realizar um governo comum entre revolucionários e reformistas, pela simples razão de que os revolucionários, nesse caso, estariam abrindo mão do seu programa ao aceitarem a hegemonia de um programa que não rompe com o capitalismo.

    Capitulações e compromissos

    Ao longo da História, tivemos muitos exemplos dessa capitulação, não tendo registro de experiências opostas, em que os revolucionários tenham sido apoiados por aparatos reformistas em sua estratégia de revolução social. Se não é uma tática por um governo comum, quer dizer que tampouco é uma tática e um acordo para as eleições. Mas a frente única pode também se estender ao terreno eleitoral. Tal opção deve ser feita em pelo menos dois casos: se há real ameaça de a candidatura da extrema direita vencer a eleição e se há uma ameaça real de um candidato da burguesia liberal ser o principal opositor contra a extrema direita, em detrimento de um candidato das forças reformistas. Nesse caso, o chamado ao voto e a participação na campanha não devem implicar compromisso de governo.

    Em relação à tática da frente única, além do seu conteúdo econômico e social de classe, agrega-se um método de luta mais claro, de combate permanente, que pode e deve incluir a necessidade de impulsionar a autodefesa dos partidos e das organizações, entidades sindicais, populares, camponesas, estudantis e dos direitos civis em geral. No Brasil, aliás, essa tarefa deve ser posta na ordem do dia, o que não tem sido discutido com a urgência que merece. A discussão tem se resumido ao terreno eleitoral.

    A via eleitoral é um caminho visível para derrotar Bolsonaro. E tal acordo é simples de ser feito numa eleição em dois turnos, seja apelando para a tática de unidade de ação, seja preferencialmente pela via do apoio a um candidato que integre os partidos que construam a frente única. Mas um compromisso eleitoral está longe de garantir a eficácia da frente única. A capacidade de organização e de luta nas ruas de cada classe social é decisiva para o futuro do país

    A via eleitoral é um caminho visível para se derrotar Bolsonaro. E tal acordo é simples de ser feito numa eleição em dois turnos, seja apelando para a tática de unidade de ação, seja preferencialmente pela via do apoio a um candidato que integre os partidos que construam a frente única. Mas um compromisso eleitoral está longe de garantir a eficácia da frente única. A capacidade de organização e de luta nas ruas de cada classe social é o decisivo para o futuro do país.

    Tarefa estratégica

    Não é por acaso que a terceira tarefa é denominada estratégica. A construção de um corpo político revolucionário que impulsione a mobilização e a luta pelo poder dos trabalhadores e do povo pobre é a única saída de fundo para a crise nacional. Ou o capitalismo é derrotado ou teremos sempre as forças da barbárie ganhando terreno tendencialmente, acompanhadas pela ameaça recorrente do fascismo. A denominação mais conhecida desse corpo político é a de partido político, embora a forma partido esteja desgastada por conta da identificação quase exclusiva entre partido e eleições, tarefa fundamental, mas que não resume a atuação de um corpo revolucionário digno desse nome. Hoje, os revolucionários são uma minoria. Essa razão não nos isenta da necessidade de construir esse corpo e se apresentar de modo claro, com bandeiras próprias ao movimento de massas. Somente se postulando, desenvolvendo as táticas necessárias para fortalecer as lutas democráticas, econômicas e sociais que respondam aos interesses dos trabalhadores e dos setores oprimidos, atuando como operador dessas lutas, pode-se construir um polo consciente, capaz de agrupar as parcelas mais avançadas do povo trabalhador. Esse desafio é o que permite fortalecer as tendências da revolução e derrotar de modo definitivo a contrarrevolução e seus representantes de hoje e de amanhã.

    Roberto Robaina é Vereador em Porto Alegre e membro do Diretório Nacional do PSOL.

  • Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    Baixe a Revista Socialismo e Liberdade N.32

    EDITORIAL

    A revista SOCIALISMO E LIBERDADE tem desempenhado um papel fundamental no aprofundamento dos debates políticos entre os filiados do PSOL e entre entrevistas dos movimentos sociais. Com análises, formulações políticas e inspirações artísticas, chegamos a mais uma edição de número 32. A capa já diz muito, pois a necropolítica que nos é imposta já nos era forçada nos ajustes fiscais e se ampliaram com a política de morte, compulsória para a maioria, e que foi ampliada quando iniciou a pandemia.

    Os “donos do poder” conduzem, por meio da força, da ideologia das mentiras e falsidades, das imposições desavergonhadas, a falsa defesa da democracia. É imposto, para a maioria das pessoas, uma ditadura por meio das leis de exceção que segrega a sociedade em alguns privilegiados em detrimento da maioria de explorados.

    Se não bastasse o descalabro político que nos é imposto, ainda somos empurrados para uma natureza destruída em nome do lucro. Porém, não devemos desistir de preservá-la, haja vista que se ela for destruída, inclusive nós, seres humanos, que somos parte desse grande universo natural, cairemos em extinção, pois várias formas de vírus surgirão com a falta da própria natureza para controlá-los.

    A relação destrutiva com o ambiente, afeta o sistema por inteiro e a chamada “crise ecológica” é, na verdade, mais uma face da crise estrutural do capitalismo. E persistindo essa lógica de crescimento infinito da destruição, em um planeta finito, rumaremos ao colapso. A intensa destruição da terra por meio da exploração de seus elementos é percebida pelos extremos climáticos, pandemias e o processo de morte coletiva, consequências do capitalismo que massacra a maioria de pessoas.

    Neste contexto, não podemos escorregar nas ilusões das eleições. Há o desafio de apresentar um projeto político de transformação social e de construção afirmativa de uma nação sustentada para a vida com dignidade. A transformação social, por meio de lutas cotidianas contra a opressão, a exploração, os rompantes fascistas, demanda construir um projeto de bem viver, e nossas contribuições, com repertórios históricos e políticos, como apresentamos na revista é um importante passo à frente.

    Quando Ivan Valente, em entrevista afirma que o PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno, demonstra que em cada pensamento, ação, sentimento de um partido comprometido com as pessoas que vivem da venda da força de trabalho, mercadoria única disponível, pode fazer avançar o lugar no ambiente de sujeitos em favor da dignidade humana. Assim, o PSOL apresenta-se como estratégico na grande onda para a ampliação da vida.

    Em sintonia sentimos para além do Brasil. Apresentar a América Latina, por meio do texto de Ana Carvalhaes e Israel Dutra, é uma abordagem que demonstra as veias abertas, mas não necrosadas, porque não a deixamos morrer. Avançamos mostrando em cada letra, desenho e abordagem um laço de solidariedade e compromisso com a liberdade. Assim como tratar da Nova Política Econômica, que continua nova, pois, nem nesse patamar sequer experimentamos, somos assertivos ao desembaralhar as asfixias que foram impostas na tragédia humanitária e sanitária que sofreram as pessoas de Manaus.

    Há colaborações neste número que contribuem para ampliar nossa capacidade de ação e acumular forças para superar o capitalismo. No caso do Brasil, não há dúvidas que acabar com o atual governo federal é passo fundamental para superar a jornada de enfrentamento do sistema que predomina no mundo. Nosso país vive uma enxurrada de destruições, fabricação de medos e imposições de mortes. Superar essa situação é sim um abraço internacional para a destruição do capitalismo e construção de uma sociedade socialista e com liberdade. Assim, não haverá mais décadas perdidas e vamos viver, como sujeitos que conquistam, mais e melhor. E há muito estímulo em nossa revista que é uma grande fonte de colaboração para superar a exploração, o controle e das opressões e, unificadamente, construir SOLICALISMO E LIBERDADE.

    Francisvaldo Mendes de Souza . Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

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  • Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária . Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Depressão solidária

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior de dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, criando ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço, mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas também depressiva no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, e por estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo

    Por Christian Ingo Lenz Dunker

    Segunda maior causa de afastamento do trabalho, causa difusa de separações familiares e indutora de alcoolismo crônico, usado como terapia selvagem, a depressão tornou-se nosso modo preferencial de sofrimento. Em nossos trabalhos recentes sobre O Neoliberalismo como gestão do sofrimento e Uma biografia da depressão , tentamos mostrar como essa prima pobre das doenças mentais se tornou uma superstar que está por toda parte. Nosso caso está montado sobre quatro coincidências suspeitas:

    1. Em 1973 se realiza, durante a ditadura de Pinochet no Chile, a primeira implantação real do neoliberalismo no mundo.
    2. Também em 1973 os manuais de psicopatologia começam a substituir antigos diagnósticos como neurose, histeria e paranoia por uma nova forma de sofrer: a depressão, que em 2013 chegou a compreender 14 tipos diferentes de transtornos mentais.
    3. Na década de 1970 e 1980, descobrem-se uma série de novas medicações antidepressivas, como fluoxetina e paroxetina, que são apresentadas como pílulas da felicidade e tratamento curativo para depressão.
    4. Entre 2014 e 2019 investiram-se US$ 20 bilhões em pesquisa neurocientífica e farmacológica majoritariamente sobre a depressão, mas também em outros transtornos, sem que com isso se alterasse nada na curva de bem-estar dos pacientes, no número de internações ou na qualidade da saúde mental dos norte americanos (pelo contrário a tendência é de piora).

    Depressão e governos neoliberais

    Ou seja, os últimos quarenta anos de “governo” da depressão, na saúde mental, foram também os do consenso neoliberal, admitindo-se que a crise de 2008 é uma crise deste modelo. Isso poderia ser explicado por uma acentuação da diferença entre a política liberal e a neoliberal com relação à saúde. Enquanto os modelos keynesianos enfatizavam a proteção do trabalhador, tendo no sofrimento um adversário perigoso para o andamento dos negócios, o neoliberalismo descobriu que é possível administrar calculadamente sofrimento no trabalho, de modo a extrair mais desempenho e produtividade.

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais

    Deixe todo mundo com medo de ser demitido e veja se as jornadas de trabalho, incluindo sábados e domingos, não se ampliam “naturalmente”. Faça um departamento concorrer com o outro para ver se a agressividade corporativa produzida em laboratório não faz “bem para os negócios”. Distribua bônus erraticamente e verifique se o clima paranoico de denúncia, predação e concorrência não fará todos trabalharem mais, sem organização de resistências sindicais. Finalmente, demita as pessoas em massa e prometa que agora elas serão livres, pois terão um CNPJ que as tornará verdadeiros empresários. Crie sistemas de microgestão e avaliação permanente para ver se a coerção entre funcionários não faz a competição “benéfica” criar mais resultados no final do quarter.

    Fato é que fomos nos acostumando a olhar para nossas próprias vidas como se fôssemos uma empresa, que tem que dar lucro, que precisa investir em renovação (senão a empregabilidade cai), que precisa olhar para os riscos tributários e para as metas e métricas, em sistema permanente de auto-observação, avaliação e punição. Esse conjunto articulado parece ter se implantando como moralidade hegemônica. E dentro dela o depressivo é o caso chave e problemático. O sintoma de um sistema que só consegue individualizar culpas e excluir desvios improdutivos. O depressivo não tem aquele “gosto” permanente pelo trabalho, não é que ele não “vista a camisa da empresa”, ele não veste a própria camisa, individualizando culpas e reduzindo o consumo, ele é o protótipo do sintoma criado pelo neoliberalismo.

    A era da depressão

    Podemos descrever o reinado da depressão, dividindo-o em três momentos.

    No primeiro período, que vai de 1973 a 1980, a depressão ainda é considerada uma espécie de febre, ou sintoma transversal de diferentes quadros clínicos, mas passa a ser definida, cada vez mais, no eixo de oposição entre o infantil e o adulto. Nessa narrativa a depressão é uma espécie de recusa ao crescimento, uma paralização do desenvolvimento ou uma regressão produzida por certos encontros traumáticos com a realidade. Haveria, por assim dizer, tanto para psicanalistas quanto para psicólogos cognitivos, uma espécie de estado básico de depressão, representado pela falta de amparo, estado este que teria sido vivido em momentos críticos da infância, os quais o sujeito regrediria diante de situações de alta complexidade.

    No segundo período, de 1980 a 2000, a depressão se expande e ganha uma personalidade própria, não mais reduzida a uma espécie e infantilismo ou de covardia moral, mas ao eixo mais genérico da impotência e da impossibilidade. Aqui, o paradigma não será mais a experiência originária e infantil, mas a perda de performance a recusa a operar segundo um certo regime específico de individualidade. O depressivo sofreria com uma dificuldade de enquadramento narcísico, ou seja, com uma gramática desviante de reconhecimento. Ele pode se identificar idealizadamente como um grande empreendedor, vocacionado para incríveis realizações e um destino glorioso no mundo dos negócios, dos amores e da família, para logo sofrer um “tombo” inesperado diante de uma demissão inesperada ou de uma decepção amorosa. A mesma narrativa compreende o polo oposto dos indivíduos que cronicamente se experimentam como inadequados, com sentimento de si rebaixado ou com uma limitação insidiosa para tomar riscos e avançar posições subjetivas e desejantes. Manter-se perfazendo um “papel”, torna-se uma experiência postiça, inautêntica e uma artificialidade cujo trabalho parece a um tempo infinito e impraticável. É o famoso realismo depressivo, que usualmente é interpretado pelos que estão a sua volta como um pessimismo ou como um gosto por desmanchar o prazer alheio. Isso ocorre porque o prazer alheio remete a esse complexo de imposturas e falsidades que é como o sujeito se lê nas trocas sociais e desejantes.

    Os tratamentos para a depressão passam a ser as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilíbrio de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação

    No terceiro período, de 2000 a 2008, a depressão torna-se algo crônico. Os antidepressivos tomados por décadas começam a reduzir os efeitos promissores. A depressão torna-se uma diabete mental, falta de um ingrediente químico no cérebro que temos que repor com medicação, indefinidamente. Junto a isso aparece a alegoria do revólver, que tem gatilhos que disparam a depressão, pois ela já está lá, geneticamente dada e à espreita permanente do sujeito. O termo “depressão” parece ter sido eficaz primeiro na economia e depois na psicopatologia.

    Os tratamentos para a depressão são as “políticas de austeridade”. Redução de gastos sociais, equilibração de contas públicas e contenção de investimentos. Assim, a depressão clínica passa a ser descrita a partir de estados de distanciamento, desligamento e de auto-observação. Estar nos lugares, participar das relações e extrair delas parece uma tarefa impossível.

    No lugar disso, o sujeito se coloca em recuo, como que a observar a festa humana como um teatro mal executado e imperfeito. Quando esse recuo é rompido artificialmente pela aproximação da realidade, seja por um comentário desavisado, seja por um mal encontro, isso colhe o sujeito em um estado de sensibilidade extrema e reatividade, muitas vezes agressiva ou impulsiva.

    As condições sociais de transmissão da depressão

    Notemos que com a depressão não estamos mais no registro do sofrimento mental como consequência de um conflito, da luta contra o proibido ou a revolta contra o que se reprime, mas da soberania do forte ou do fraco, do que se sustenta ou do que cai, da eficiência do egoísta contra a solidariedade depressiva. Encontramos aqui o que Maria Rita Kehl descreveu como as condições sociais da transmissão da depressão: a aceleração do tempo, o incremento da prontidão para a resposta à demanda, à demissão das posições de autoridade na relação entre pais e filhos, à recusa da partilha social do gozo e às paixões da segurança, que demanda do indivíduo que este se transforme em um ser genérico, indefinidamente comparável e substituível com os outros. Surge aqui a narrativa do depressivo como alguém que se perdeu de si mesmo, que se desgarrou do sistema da produção e consumo, que não consegue empreender a si mesmo, que oscila perpetuamente entre ser alguém superior e especial ou um nada, vazio dissolvido na multidão informe da insignificância.

    Nesse terceiro tempo do reinado depressivo, ela começa a ser pensada cada vez mais como uma síndrome com sintomas corporais: dores que andam pelo corpo, como na fibromialgia, corpo em cansaço permanente, como na fadiga crônica que explode na queima de toda energia, como no burn-out, ou que se mostra resistentes aos manipuladores químicos da libido ou do sono. A novidade dos antidepressivos cessa de funcionar, curiosamente quando as patentes vão sendo liberadas e os preços caem. Os novos antidepressivos não prometem mais a cura, mas o alívio das versões “corporais” da depressão, bem como a redução desses indesejáveis, mas por muito tempo pouco tematizados efeitos colaterais.

    Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. O quadro configura uma nova posição diante do sofrimento

    À medida que a depressão passou a ser pensada como um quadro dotado de uma etiologia indiferente ao conflito psíquico, ela foi reforçando o conflito com a realidade. As terapias cognitivas interpretavam a depressão como uma deformação do pensamento e propunham um roteiro bem estruturado baseado em princípios e evidências. Um dos manuais mais populares dessa abordagem apregoa que a terapia se baseia:

    a. No “contínuo desenvolvimento do paciente e de seus problemas cognitivos”.
    b. Realizado por meio de uma “aliança segura” e a “colaboração e participação ativa” do paciente.
    c. Orientada para “metas e soluções de problemas” enfatizando o “presente”.
    d. Visando “ensinar o paciente a evitar recaídas” durando um “tempo limitado”.
    e. As sessões são estruturadas de modo “a ensinar o paciente a avaliar e responder a pensamentos e crenças disfuncionais” usando uma variedade de técnicas para mudar o “pensamento, humor e comportamento”.

    Essa abordagem, que durante anos foi elevada à condição de protocolo no tratamento das depressões, associada permanentemente à administração de medicação antidepressiva, tornou-se dominante e globalmente exportada para os países da África, da Ásia e da América Latina, criando diferentes cenários de recepção, conforme o choque se desse com relação a crenças animistas e formas religiosas, tipos de individualização não ocidentais ou culturas previamente informadas por narrativas de interiorização do conflito.

    A neuroliteratura

    Críticos literários como Marco Roth e Paulo Werneck apontam como nossa forma de produzir romances teria se desligado das antigas narrativas psicanalíticas repletas de interioridade, conflitos de desenvolvimento, tramas familiares e divisões da consciência, seja no sonho, seja nos sintomas. A neuroliteratura, como por exemplo Amor sem Fim (1997) de Ian McIvan, destacou síndromes neurológicas, como a síndrome de Huntington e Tourrete ou e de linhagem psicóticas, como a síndrome de Clerambault, o autismo. Esse movimento de reapropriação literária de novas formas de sofrer, em oposição aos romances modernos, como os de Balzac, Flaubert, Joyce ou Proust tem um impacto direto na depressão. Enquanto verdadeiros quadros neurológicos são indiferentes às formas como são descritos, a depressão depende de como se fala dela. Isso envolve tanto como o sujeito “se fala”, quanto à forma como ele “é falado” de tal modo a ter o sofrimento incluído em discursos, ganha legitimidade e reconhecimento. Isso significa uma nova posição diante do sofrimento. Ele tem uma origem que transcende decisões: ele emana de uma avaria no cérebro ou em cadeias de desenvolvimento que afetaram a evolução da espécie ou a genética com a qual cada um foi determinado.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto

    Confirma-se aqui a ideia de que na depressão a causa do problema vem de fora. Ela não emana da alçada moral ou de nosso campo de escolhas ou decisões. Isso não significa que não exista nada a falar, mas trata-se de recriar a experiência a partir dessa posição de aceitação e conformidade. Não devemos desvalorizar essa narrativa porque ela sempre esteve presente nos modos de subjetivação e de narrativização dos sintomas. Aliás, essa tendência remete a narrativas transcendentais ou teológicas, nas quais as razões de nosso destino pertencem a “outros mundos”. A aceitação ou autorreconhecimento de que sintomas não são apenas decorrentes de falta de fé ou de força de vontade, mas que eles nos impõem um limite a nossa própria liberdade deveria inspirar uma discussão sobre os paradoxos de nosso desejo, mas ele parece ter sido capturado por uma dicotomia mais simples que divide as coisas entre a esfera na qual “podemos” agir e aquelas nas quais é “impossível” atuar.

    O segundo aspecto importante da emergência desse discurso literário-científico para a depressão é que ela passa a abranger formas tradicionalmente incorporadas ao registro da psicose. Isso aconteceu pela progressão da categoria de transtorno bipolar, dividido em três subtipos. Ou seja, a gravidade das depressões começa a ser reconhecida tanto porque ela responde cada vez menos aos tratamentos quanto pelo fato de que ela admite formas muito graves, com relação às quais não sabemos muito bem quais são os critérios de diferenciação.

    A narrativa do neoliberalismo

    Mas vejamos agora como as três figuras da depressão, a infantil, a narcísica e a corporal parece traduzir passo a passo a narrativa do neoliberalismo, como discurso econômico. Isso compreende a retomada de certos aspectos da teoria moral dos pais do liberalismo, com Stuart Mill e Adam Smith. Eles criticavam a infantilidade daqueles que não conseguiam se inibir, ou seja, conter o impulso para gastar e transformar isso em um adiamento temporal da satisfação, conhecido como poupança.

    A grande metáfora do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano. Von Mises, patriarca do neoliberalismo, inventou a “síndrome de Fourrier” que consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o papel incontornável do trabalho como um sacrifício. Ou seja, a dúvida ou crítica quanto a realidade da escassez de recursos, da lógica do sacrifício e do medo natural da violência alheia, seriam uma traição da forma correta de percepção da realidade.

    A grande narrativa do neoliberalismo vai apregoar metáforas como a da necessidade de austeridade ao mesmo tempo que advogará o caráter essencialmente egoísta e competitivo do ser humano

    Essa estratégia ilustra bem como para esse discurso não estamos diante de um conflito de interpretações sobre a realidade, com a correlativa concorrência entre interesses, mas da patologização daqueles que duvidam de como as coisas realmente são. Eles estarão imbuídos de má-fé, desonestos, pois divergem da realidade e não de como nós percebemos ou construímos a realidade.

    Junto ao neoliberalismo o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto. Ora, essa dissociação entre a produção econômica, identificada com a realidade, e o pensamento ou nossa forma de ler e interpretá-la vai operar no fulcro psicológico da depressão explicando porque ela é o correlato necessário desse tipo de forma econômica.

    Individualização do fracasso

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação ao fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu. Isso se mostra, como vimos no raciocínio de auto-observação, de crítica de si mesmo com a inversão em ilações idealizadas.

    O depressivo é aquele que fracassa e por outro lado tem um sucesso demasiado em tornar-se um empreendedor de si mesmo. Ele não consegue usufruir da gramática da competição de todos contra todos, que tornaria a vida uma espécie de esporte permanente, de viagem contínua ou de teatro de estrelas nas quais há um prazer em representar. A anedonia, este sintoma central da depressão, a incapacidade de experimental de sentir prazer com o outro, consigo e no mundo, o torna uma espécie de ditador de si mesmo, em um impasse com as próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve para iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e indiscutivelmente desejável.

    De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra, ela luta contra a perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço, ela é a greve e ao mesmo tempo a lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido o reinado da depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do prazer dócil e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da autorrealização que sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado.

    A individualização do conflito, a transformação em forma de culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertida em uma agressividade orientada para o próprio eu

    Daí que o depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela é, mas um fragmento de verdade sobre porque não conseguimos perceber a coisas. Em certa medida ele responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado do seu papel. A resposta insiste na coerência, na unidade e na síntese em um universo no qual a produção se torna deslocalizada, onde os manuais de gerenciamento nos ensinam como criar mais sofrimento para incitar mais produção, assim como fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em blocos de potencialidades e listas de traços desejáveis e funcionalmente adequados. Assim, como para o neoliberalismo o mercado é outro compacto e fechado, idêntico a si mesmo em suas regras imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei consistente e soberana que só podemos nos apresentar como corpos-mercadorias, crianças-amparáveis ou narcisos-impotentes.

    A regressão conservadora

    Coincidentemente, 2008 foi o ano no qual a aplicação irrestrita dos princípios neoliberais na economia começou a ser mais seriamente questionada. A crise americana no mercado imobiliário não foi deixada a sua própria sorte, desencadeando uma série de falências, mas sobre ela o Banco Central agiu no melhor e mais antigo keynesiano amparando e protegendo a economia. As crises da Europa periférica, envolvendo Islândia, Portugal e Grécia, começaram a colocar em xeque o sistema de contenção por austeridade. A insatisfação com a progressiva financeirização da economia, ausência de resposta ao problema do desemprego e da emergência de monopólios, deu origem a um período de turbulência que envolveu primaveras e ocupações, assim como a regressão conservadora na América de Trump ou na Inglaterra do Brexit.

    Por volta de 2010, as suspeitas contra o reinado da depressão começaram a se desdobrar. Há boatos de que os efeitos colaterais, notadamente, a redução da libido, foi na verdade o princípio ativo, ou seja, ao diminuir a libido diminuímos ao mesmo tempo todos os conflitos que vêm junto a ela: desejos insatisfeitos, frustrações e intensidades muito elevadas são “inibidas” pelos antidepressivos. Essa espécie de colchão contra as dores causadas pelo “choque de realidade” ou pela excessiva sensibilidade, protege o sujeito. Assim, como a hiperatividade pode ser tratada por um acelerador derivado das anfetaminas, como a ritalina, a depressão poderia ser tratada por um verdadeiro “depressivo” agindo sobre nossa libido, não só no sentido sexual.

    Em certa medida, o depressivo responde demasiadamente bem à demanda de abrir mão de si mesmo, ao tematizar-se apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado de seu papel

    Começam os primeiros processos jurídicos contra as companhias que produzem antidepressivos em função dos danos cerebrais derivados de um uso continuado. As narrativas clínicas de usuários de antidepressivos por décadas, que não conseguem superar os efeitos da abstinência, a associação de antidepressivos à irrupção de violência e suicídio, bem como a consciência crescente de que uma cultura da medicação permanente é no fundo uma variante da drogadição generalizada, vem a público. Essa literatura tem a mesma perspectiva que vai da crítica que vimos nos textos antipsiquiátricos de Tomas Sazs, Deleuze, Guatarri e Franco Basaglia, nos anos 1970, mas também a mesma perspectiva de denúncia que a psicanálise sofreu nos anos 1990-2000.

    O pior dos mundos

    O governo Bolsonaro consegue reunir o pior dos dois mundos. Como falso liberal retira garantias e desprotege o trabalhador, cria ansiedade, desemprego e incerteza e como neoliberal postiço mantém a política de empreitamento do Estado em benefício próprio, ou das milícias. A forma como a Pandemia está sendo enfrentada no Brasil não é apenas necropolítica, mas é também depressiva, no sentido de dividir o ordenamento simbólico de obediência a regras sanitárias, o que envolve estimular o dissenso e a negação sistemática do perigo e das estratégias biopolíticas para enfrentá-lo. Sem tratamento ordenado do futuro, sem acolhimento do luto, sem reconhecimento de qualquer instância de mediação, seja a ciência, o direito ou a razão sanitária, ele personifica a potência pessoal, diante da qual é preciso ajoelhar e pedir proteção, confirmando assim o estado de melancolia e impotência diante da realidade.

    *Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de A arte da quarentena para principiantes (Boitempo).

  • “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    “O PSOL se tornou grande, mesmo sendo pequeno” – Ivan Valente

    Por Gilberto Maringoni

    Ivan Valente tinha 18 anos de idade quando foi dado o golpe de 1964. A interrupção da democracia e seu valor marcaram para sempre aquele estudante de cursinho que aspirava entrar num curso de Engenharia. Ao longo dos 56 anos seguintes a militância passou pelo movimento estudantil, pela vida clandestina na ditadura, pela prisão e pelas torturas, pela fundação do PT e pela construção do PSOL. Ivan exerce seu sexto mandato de deputado federal, depois de se eleger por duas vezes para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Nesta entrevista, ele comenta os impasses do Brasil de Bolsonaro e relembra pontos marcantes da sua trajetória política.

    Como se explica o fenômeno Bolsonaro e por que o Brasil, depois de 35 anos de democracia, resolveu elegê-lo?

    Bolsonaro é um fenômeno que vem desde, pelo menos, a crise de 2008 e foi impulsionado a partir de 2013. Naquela situação de disputas, a direita surgiu como movimento de massas. Percebendo a instabilidade reinante, uma elite econômica sem projeto de Nação resolveu chutar o balde do regime democrático de forma agressiva e oportunista. Houve, claro, uma decepção com o governo Dilma em setores populares e de esquerda, mas além disso houve uma manipulação política por parte da grande mídia, que ajudou a criar um carimbo de corrupto no PT. Cresceu na base da sociedade uma forte tendência antipetista, que impulsionou um processo de impeachment absurdo. Abriu-se a oportunidade para a imposição de um projeto de hegemonia do capital financeiro e do neoliberalismo, implementado a todo vapor com Michel Temer. Paralelo a isso, o que chamamos de lavajatismo – uma prática falsamente moralista, punitivista e parcial –ajudou a criar o caminho que desembocou em Bolsonaro. Isso nos deu uma lição: futuros governos de esquerda, mais contundentes que o PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo etc. E defendendo a ditadura militar, citada todo dia, com AI-5 e tortura. Há quase um terço da população que não se arrepende do voto dado em 2018. Isso é grave.

    “Futuros governos de esquerda, mais contundentes que os do PT, devem ter a consciência de que a reação de setores conservadores vai ser mais dura ainda. Trata-se de gente contra a igualdade social e a distribuição de renda. São contra as empregadas domésticas terem direito à carteira assinada e qualquer projeto político minimamente igualitário. É interessante observar que o fenômeno Bolsonaro foi eleito na base da negação da política, da intolerância, do ódio, com racismo, com homofobia, com machismo”

    A mesma sociedade brasileira que deu a vitória à extrema direita elegeu por quatro vezes um governo de centro-esquerda. Como isso se explica?

    A primeira eleição de Lula assustou bastante a burguesia. O PT fez a “Carta ao povo brasileiro”, colocou o Palocci na Fazenda, atendeu ao mercado e Lula partiu para uma ação de alguma distribuição de renda aos pobres e de grandes ganhos para os ricos. Assim, deixou de assustar. Isso se confirmou ao vermos que, em 2006, mesmo após o mensalão e de tudo o que a Globo fez, ele foi muito bem reeleito. A economia ia bem, os de cima ganhavam mais e os de baixo ganhavam alguma coisa. Teve a oportunidade de pegar um boom de commodities. Frei Betto diz algo com o qual concordo totalmente. Uma coisa é ter consciência do valor das conquistas e outra é estar bem servido no consumo. Lula sempre foi isso, de servir no consumo. Claro que, contra a fome, temos que almoçar, jantar e tomar café da manhã. Mas, depois, todo mundo tinha que ter as utilidades domésticas de linha branca, o carro etc. Isso pegava bem no sentido geral do consumo, mas não mudava as consciências. Quando veio uma crise com o impacto da de 2008, a direita, que estava sendo bem acomodada no governo, começou a querer mudar de barco. Há um aspecto adicional: Lula não contribuiu para mexer em nada na hegemonia do capital financeiro no Brasil. Por que não se fala em acabar de vez com subsídios? Em reforma tributária? Em taxação das grandes heranças e fortunas? Não houve nada disso nos governos do PT. A linha geral era de atrair capital e investimento para o Brasil, especulativo ou não, mas sem mexer nas estruturas, no problema da dívida pública e no tripé macroeconômico.


    Uma vida de combate: Ivan por Ivan

    O esforço foi grande, mas valeu a pena!

    “O rumo neoliberal do primeiro governo Lula não nos deixou alternativa a não ser sair do PT e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.

    “Infância e estudos

    Nasci em São Paulo, em 1946. Meu pai, involuntariamente, participou da chamada Intentona Comunista de 1935. Ele era sargento da Aeronáutica e, quando houve a rebelião, estava no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para fazer o curso de piloto. O campo foi cercado e ele ficou preso seis meses, foi expulso da Aeronáutica e depois se tornou comerciário. Não tinha uma formação socialista, mas sempre esteve ao lado dos de baixo e sempre me inclinou para a esquerda. Toda a minha educação básica e do ginásio foram na escola pública.

    Início da militância

    Entrei para a Escola de Engenharia Mauá, em 1966. No ano seguinte, comecei a participar intensamente do movimento estudantil. E montamos e lideramos o Centro Acadêmico da Escola de Engenharia.

    Em contato com lideranças da USP e de outras faculdades, acabei me ligando ao Partido Operário Comunista (POC), organização formada por outras, como a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP). O POC rachou em 1970, entre aqueles que queriam ir para a luta armada e quem queria ficar na luta de massas. Eu não achava que aquele era o caminho mais correto. Com o tempo, o POC foi literalmente extinto e seus dirigentes foram assassinados. Só escapou quem foi para o exterior.

    Clandestinidade e prisão

    Em 1972, fiquei clandestino em São Paulo por oito meses. Como era liderança estudantil, encontrava muita gente pela rua. E o pessoal do Rio achou que eu deveria ir para lá, onde eu não era conhecido. Com isso, a militância e a formação de nossa nova organização, o Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP, em 1976), se deu com a participação de importantes lideranças estudantis e operárias. No total, fiquei cinco anos e meio na clandestinidade.

    Fui preso pela primeira vez em julho de 1977 e fiquei quatro meses e meio encarcerado com outros 25 companheiros. Nesse período, fizemos duas greves de fome. A tortura era algo sistemático. Foram dez dias no DOI-CODI, nos quais passei por porrada, cadeira do dragão e pau de arara, dia e noite. E geladeira, aquele cubículo gelado onde te observavam por meio de câmeras e isolamento térmico.

    Protesto amplo

    Saímos da cadeia por meio de uma greve de fome. Escrevemos uma denúncia da situação dos presos políticos, a “carta dos presos do MEP”. O texto saiu integralmente no Jornal do Brasil e no Le Monde, e trechos foram publicados na Folha, no Globo e no Estadão. Ali, relaxaram a preventiva, pois nossa prisão estava tendo repercussão pública. Marcaram nosso julgamento para novembro de 1978. Tínhamos a decisão a tomar: ou ir para a clandestinidade ou para o julgamento. E nós fomos para o julgamento por acharmos que já havia um movimento de anistia forte na sociedade. No dia, havia mais de mil pessoas na porta da sala da Auditoria da Aeronáutica, no Rio. Fizemos um banzé, subimos na mesa, gritamos “Abaixo a ditadura!”. Saí de lá carregado pela polícia da aeronáutica sem pisar no chão. E pegamos três anos de cana.

    No presídio da rua Frei Caneca, ficamos mais seis meses. Após intensa batalha política e jurídica, fomos libertados em maio de 1979, quatro meses antes da Anistia.

    Do PT ao PSOL

    Quando voltei a São Paulo, participei da fundação do PT, em 1980, um marco essencial nas lutas populares brasileiras. Já havíamos lançado no ano anterior o jornal Companheiro, do MEP, que durou três anos.

    De 1983 a 1986, fui assessor do mandato de deputado federal do José Genoíno, enquanto lecionava matemática na escola pública. A partir de 1986, fui eleito para dois mandatos de deputado estadual em São Paulo (1987-95) e seis de deputado federal. Fomos oposição e governo. Essa última fase foi difícil.

    O primeiro governo de Lula (2003-07) foi bastante controverso, com a designação de Antônio Palocci para a Fazenda e Henrique Meirelles para o Banco Central. Começamos batendo no aumento dos juros e, depois, veio a reforma da Previdência. Dos vários tensionamentos com o conservadorismo do PT, a questão da Previdência representou uma batalha particularmente insana, com quase 400 reuniões, em poucos meses. O rumo neoliberal da política governamental não nos deixou alternativa a não ser sair do partido e vir para o PSOL. Ou seja, deixamos um transatlântico e desembarcamos em uma canoa. Como toda a nossa história, o esforço foi imenso. Mas valeu a pena. Hoje, nossa canoa é uma das principais referências dos lutadores populares brasileiros”.


    No governo Lula, as Forças Armadas continuaram tão ou mais fortes do que antes e os meios de comunicação não foram regulados. Que mudanças reais o PT proporcionou ao País?

    O caso das Forças Armadas é complexo. Na época da discussão da Comissão da Verdade (2011-14), havia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um projeto da Luíza Erundina – que eu coassinava – segundo o qual era a hora de punir os torturadores. Mas o projeto não passou. Como você não mexe nos torturadores e nos mandantes, eles continuam falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido. Isso passa a ser uma conivência. No caso das comunicações, vamos lembrar quem foram os ministros: Miro Teixeira, Helio Costa – que foi da Globo por 30 anos – e Paulo Bernardo. No fundo, eles achavam que havia democracia com a Globo mandando. Ao não mexer no sistema econômico, quando acabou a onda de commodities e a conjuntura internacional favorável, não se asseguraram direitos dos trabalhadores e houve até retrocesso. Faltou contundência, um diálogo de massa, manter mobilizado o movimento social e popular, na medida do possível. O MST, por exemplo, não queria a Lei Antiterrorismo, sancionada pela Dilma. Agora, a extrema direita quer aprofundá-la. Isso tudo é resultado de coisas que fizemos errado lá atrás. Falo disso tudo sem contar as coisas feitas no oba-oba, como a questão da Copa do Mundo e esses elefantes brancos que estão aí até hoje, que são as arenas. Houve uma euforia com a elite, e uma ilusão do PT com partes enormes do topo da pirâmide social, que se mostrou falsa e se expressou em ódio de classe contra o partido. Também houve muita ilusão com a governabilidade conservadora do Congresso Nacional.

    “Sem punir torturadores e mandantes, eles continuarão falando que 1964 foi um movimento de pacificação nacional. A impunidade seguiu em frente. Veja o caso daquele capitão terrorista, Wilson Machado, que iria colocar a bomba no Riocentro em 1981, no show de 1º. de maio e que poderia ter matado milhares de jovens. Ele foi pego com a boca na botija e estava com a bomba na mão. Não só não foi punido, como foi promovido”

    Atualmente, o PSOL está sendo acusado de se reaproximar do PT e de ser um puxadinho do partido. É verdade?

    A posição nítida do PSOL é a de que o ano de 2022 passa por 2021. Agora – neste ano! – nós precisamos fazer uma grande frente entre todos que lutam contra o bolsonarismo e contra o estreitamento da democracia, e a favor de uma resposta pronta do Estado brasileiro em relação à pandemia. É hora de unir forças e produzir muita mobilização contra Bolsonaro. No ano que vem, se ele for competitivo, temos que derrotá-lo com a candidatura de esquerda mais bem posicionada nas pesquisas. E essa candidatura precisa ter um programa que mobilize os trabalhadores e o povo. Repito, isso vai ser visto em 2022. É o momento de tornar o PSOL presente na conjuntura, no combate ao bolsonarismo e garantir protagonismo no processo.

    O PSOL é um partido que galvaniza a juventude na esquerda, mais do que qualquer outro. E tem uma geração de quadros novos muito promissores. Como você vê essa renovação?

    Vejo de forma muito positiva. E isso tem explicação. O PSOL tem sido vanguarda em várias lutas importantes, como a luta contra o racismo, a homofobia, o machismo e pelos direitos civis e humanos. Isso tem sido uma marca, mas ela não é suficiente. Por exemplo, a candidatura do Boulos com a Erundina em São Paulo representou uma proposta de mudança popular e massiva. Ela propunha mudanças estruturais. É por isso que Boulos se tornou uma figura tão expressiva. Da mesma forma, Erundina cumpriu um papel muito importante, e mostra que a candidatura de ambos foi, antes de tudo, programática – a favor do combate à pobreza, à desigualdade – e com uma cara socialista. Conquistar 40% dos votos no segundo turno foi uma vitória e mostra o enorme potencial do PSOL.

    O PSOL se consolidou como uma corrente de opinião e lançou candidatos majoritários na maioria dos estados. Qual foi o principal ponto de virada do partido, depois de sua criação?

    Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós. Ela estava insatisfeita no PSB e a convidei para entrar no PSOL. E ela aceitou. A Erundina dá um grande salto de qualidade ao partido, uma dimensão de massas. É notável também a entrada de Guilherme Boulos, maior expressão do movimento social nesse último período, além de outras figuras públicas que reforçam a representatividade do PSOL na conjuntura. A ética na política, a coerência na ação e a questão programática do PSOL foram três pilares que preservaram o partido e o tornaram respeitado nos movimentos sociais. Nós nos tornamos grandes mesmo sendo pequenos. O PSOL é grande, por ser muito respeitado por esses três pilares. Ao mesmo tempo, é ainda um partido pequeno em expressão e capilaridade de massa.

    “Há muitas conquistas nesses mais de quinze anos. Sempre lutamos por mudanças profundas na sociedade e isso se traduziu em várias ações concretas. Na última década, penso que a entrada da Luíza Erundina representou um novo patamar para nós”

    Estamos na maior crise da história republicana. Você é otimista, realista ou pessimista?

    Mesmo com todo esse retrocesso bolsonarista, é óbvio que confio que o povo brasileiro vai virar essa situação. É claro que, para isso, temos que acumular força e ter movimentos de massas. Há um percalço pelo caminho. Estamos em meio a uma pandemia e não podemos sair para a rua! Não vai ser fácil, vai ter muita luta e mobilização, mas nós vamos superar isso. E vamos deixar o pessimismo para momentos melhores.

  • A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista

    O atual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos à pesquisa, a política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais, em particular, além dos cortes de verbas do SUS. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência

    Por B. Boris Vargaftig

    Meu objetivo aqui é discutir uma estratégia sanitária em tempos de pandemia. Como as circunstâncias dificultam os procedimentos usuais, o momento é de luta pelos meios ao alcance, redes sociais, panelaços, faixas, ações de defesa da saúde e da vacinação e defesa do SUS. Não escrevo um artigo técnico, mas político, baseado na Ciência. Procuro levantar pistas para que a volta ao “normal”, o que quer que seja, se faça com avanço e não com a volta ao programa regressivo liberal em curso.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com uma espécie de maquiavelismo de extrema direita e liberalismo

    O momento é também de reflexão: o que explica o recuo da esquerda e como ultrapassá-lo? Como avançar quando a Covid-19 tiver sido contida? O programa de intervenção que a esquerda deve defender, não representa só uma lista de desejos, mas um planejamento para hoje e para o futuro.

    Quando pertinente, procuro ligar as propostas e análises a medidas anticapitalistas, seguindo o proposto por Trotsky em 1938, no livro O Programa de transição. Esse conceito pretende resolver a aparente contradição entre medidas mínimas realizáveis dentro do capitalismo, e máximas, a caminho do socialismo. Que isso é importante, basta ver os esforços dos burgueses mais lúcidos para resolverem a contradição entre tratamento científico da pandemia (vacinas, lockdown, etc) e a produtividade do trabalho, atualmente em queda brutal, o que lhes é essencial.

    Objetivos progressivos e populares

    O “programa de transição” consiste na formulação e aplicação de objetivos progressivos e populares, realizáveis sem mudança de regime. São exemplos: o aumento dos impostos para os ricos, os aumentos salariais, a cobrança das dívidas patronais ao erário e ao seguro social, ou a chamada quebra das patentes das vacinas – que não é quebra, mas negociação forçada pontual e reversível. A luta por essas medidas e a ação se dão nos limites do capitalismo, mas a extensão e perenização invadem um território não capitalista.

    Assim, o acordo que levou Tancredo e Sarney ao poder impediu que as conquistas obtidas após o fim da ditadura se projetassem em lutas anticapitalistas, como poderia ter sido. Tal progresso se dá em meio às crises contra as quais as medidas foram tomadas e se pereniza para além do imediato, fora do capitalismo, daí ser de “transição”.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com maquiavelismo de extrema direita e liberalismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça

    Hoje, como o reconhecem 500 banqueiros, capitalistas e economistas, é absolutamente necessária a coordenação entre os setores da administração na luta contra a pandemia que ameaça a vida e o mercado, cabendo, entretanto, a pergunta: com que objetivo? O propósito é óbvio, pois assistir a municípios fecharem e em seguida abrirem, ou abrirem e em seguida fecharem, as atividades não essenciais, mostra a incapacidade de entender o que ocorre, ou pior, a impotência.

    Tomar decisões opostas, a alguns quilômetros de distância, neutraliza o impacto das medidas restritivas, destinadas a reduzir as contaminações. Nessa situação, o lockdown se tornou uma necessidade absoluta, por impedir a contaminação, sobretudo por portadores assintomáticos.

    Burguesia e controle

    O objetivo da alta burguesia não se limita ao gesto de autoproteção e de proteção de “sua” mão de obra. Não quer perder o controle da situação, ameaçada pela incompetência e aventureirismo governamentais e, mais importante, quer a todo custo manter o controle do que ocorrerá após uma incerta normalização. Os excessos de hoje, com a morte atroz de centenas de milhares de pessoas, grande parte da qual poderia ter sido salva pelas medidas antecipadas preconizadas pelos sanitaristas e mídia, podem levar, conforme as circunstâncias, a lutas sociais inesperadas, contra as quais essa mesma burguesia criou e mantém em reserva, o bolsonarismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça.

    A Covid-19 não afeta todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram para a extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US $3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram

    As inacreditáveis carências dos ditos “especialistas” facilitaram a política deliberada do Presidente. Este desmoralizou a Ciência com medicações extravagantes e inoperantes, pós de pirlimpimpim de Monteiro Lobato, com chistes que desrespeitam as vítimas, passeios em torno do palácio presidencial, com fanáticos despreparados e desprovidos de máscaras e de bom senso. Este governo atacou iniciativas como as do Instituto Butantã para depois tentar se apropriar do sucesso e, a despeito dos números de mortos, alardeia vantagens ao pretender ter o melhor programa antiepidemia do mundo. Note-se a inexistência de um Comitê Científico em nível federal, como o que o governo Dória instalou, a menos que se considere que bastem o Sr. Pazuello ou o sucessor Queiroga, que diz uma coisa e o contrário.

    Pandemia e guerra social

    A Covid-19 não afeta a todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram à extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US$3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram. Querem repará-lo, contanto que as “reformas” reacionárias persistam, mesmo se embrulhadas em fantasias reformistas. Alguns oferecem serviço para tanto, referindo-se à associação entre trabalho e capital – e depois dizem que é o socialismo que é vetusto!

    Antes de detalhar as medidas que me parecem corretas e a projeção num programa de transição, notemos, como diz a revista Jacobin, que “em todo mundo, os ricos furam filas, enquanto 130 países, onde vivem 2,5 bilhões de pessoas, esperam por uma única dose”.

    Isolamento social

    Os Estados Unidos hoje são o país com a mais elevada mortalidade do continente (164,38/100.000), seguidos pelo Panamá (160,11/100.000), pelo Peru (158,94/100.000), pelo México (156,03/100.000) e pelo Brasil (136,06/100.000). A Alemanha enfrenta uma forte retomada da circulação do vírus, com 91.78 mortes/100.000 habitantes. A Suécia não havia registrado tantos óbitos desde a epidemia de fome de 1869 (a miséria após a I Guerra Mundial, explica a grande migração de suecos para a América do Norte).

    Com a população cerca de cinco vezes maior que a do Brasil, a China manteve o lockdown por mais de três meses em Wuhan e em cidades ao redor. Bloquearam as entradas da cidade e das escolas, restringiram viagens e suspenderam a circulação de automóveis e do transporte público, cancelaram eventos, interromperam o funcionamento de equipamentos públicos e de atividades não essenciais. Isso tudo acompanhado de intensa campanha de informações e recomendações de práticas de prevenção que se revelaram corretas.

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde

    Pesquisa em 375 cidades chinesas, publicada na revista Science, demonstrou que o isolamento social é essencial. Em meio à pandemia, um grande número de pessoas infectadas mostra sintomas leves ou ausentes. Ao se deslocarem, respondem majoritariamente pela transmissão do vírus Sars-Cov-2. Finalmente, países de economia ainda ao menos em parte estatizada (China, Vietnã, Cuba) enfrentaram a pandemia com medidas coercitivas ajustadas, ganhando a aposta, como Israel – embora neste caso excluindo a população palestina das medidas de defesa, um crime contra a humanidade.

    O que fazer?

    Em 1904, V. I. Lenin, advogado convertido à política revolucionária, escreveu um livro que fez história, com título inspirado por um romance de Nikolai Tchernichévski (1828-1889). É a pergunta de hoje.

    Constatemos primeiro a incompatibilidade intrínseca do atual governo que apresenta um posicionamento e uma prática sanitária consequentes. Não se trata simplesmente de um governo capitalista que se adapta ao presente, como o é o de Dória, mas de aplicar um plano colonial, fazer do país um produtor de commodities, grande fazenda colonial moderna. O regime do país não é fascista, mas o chefe e acólitos o são. Portanto, nenhuma confiança nas promessas, mesmo quando são, o que é raro, pontualmente adequadas. A relação é de força e o “Fora Bolsonaro’’ está associado às medidas sanitárias indispensáveis e de “salvação nacional”.

    Antes de listar as medidas e as consequências, alguns questionamentos: como proceder para levar adiante a luta em defesa e salvação física de todos, incluindo, evidentemente, as direções da burguesia, que nos massacrariam sem dificuldade (o têm demonstrado em todos os países do mundo), latifundiários e milicianos, supremacistas brancos assassinos de negros, além dos trabalhadores e da pequena burguesia e intelectuais que queremos como aliados? Não nos transformemos em pregadores da união nacional, mas em promotores de medidas de defesa social, que agem no sentido da defesa da vida de todos, e se posicionam num terreno de classe favorável, com continuidade na luta pelo socialismo.

    Trata-se de um programa de medidas exequíveis e indispensáveis, a serem aplicadas sob o controle das organizações dos trabalhadores, da saúde, da função pública, das organizações de bairro, LGBTQIA+, negros, intelectuais em geral. Esse controle é indispensável e garantirá a execução das medidas aprovadas democraticamente. Um exemplo: chega um lote de vacinas, a quem será destinado? A decisão técnica e demográfica não será exclusiva e secreta se estiver sob controle de usuários e trabalhadores. A presença organizada dos trabalhadores não é inédita, existiu em condições políticas mais favoráveis, mas é perfeitamente justificada dentro do marasmo atual.

    É urgente a realização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular, pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde. Esse é o corolário da total desconfiança para com as decisões do presente governo e do quarto Ministro da Saúde que, aliás, é mais experimentado em gestão privada que no SUS, ou outro sistema social de referência.

    Pontos de um programa sanitário

    Os pontos que me parecem constituir o centro de um programa popular, protossocialista, factível dentro do capitalismo, e sob controle dos trabalhadores, são:

    1. A organização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde, para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa. Esse Comitê incorporaria os ativistas nomeados pelos movimentos atuais que não perderiam a autonomia.

    2. Apelar à organização de um lockdown nacional de 15-30 dias para interromper a contaminação, com a participação dos trabalhadores da saúde e do Congresso dos Trabalhadores pela Saúde.

    3. Promover campanha pelo auxílio emergencial mensal de R$ 600,00 a todos necessitados, controle popular e dos usuários.

    4. Garantir a estabilidade no emprego enquanto durar a pandemia.

    5. Congelar preços da cesta básica e dos combustíveis.

    6. Suspender reembolso de financiamentos ou aluguéis, contas de água e de energia das famílias de baixa renda.

    7. Oferecer auxílio financeiro imediato aos pequenos negócios, por um programa de empréstimo dos bancos públicos.

    8. Defender e ampliar a autoridade e funcionamento democrático do SUS, dos servidores e dos serviços públicos.

    9. Cobrar, sob controle dos trabalhadores organizados, as dívidas patronais para com o fisco e seguridade social e encampação em caso de recusa.

    10. Coordenar, sem coibir a autonomia dos movimentos espontâneos, a solidariedade efetiva material aos trabalhadores necessitados.

    11. Propugnar um acordo com países não imperialistas, alguns aliás produtores de vacinas, como Índia e Cuba, outros de insumos (Venezuela, que envia oxigênio ao Brasil) e outros.

    12. Planejar e efetivar contatos e ações coordenadas em defesa da saúde com trabalhadores da indústria de vacinas e de medicamentos e insumos, por meio de lives e encontros presenciais ulteriores.

    13. Abolir a “Lei de Segurança Nacional”, herdada da ditadura, que é inconstitucional e só serve aos interesses do patronato e da extrema direita.
    Inúmeras organizações de luta contra a pandemia surgiram ultimamente, e são bem-vindas, como a Frente em Defesa da Saúde pela Vacina Pública. Isso é prova da crescente vitalidade das oposições e a presente proposta não tem por objetivo fazer mais uma delas, mas oferecer um formato nacional e unitário, uma coordenação interna e com organizações locais de propósitos idênticos.

    As patentes

    Entendi, ao consultar juristas, que, no caso das vacinas contra a Covid, não se trata de uma quebra, a licença compulsória, sendo reconhecida internacionalmente desde 1925. Há 20 anos, a Organização Mundial do Comércio enquadrou essa concessão na necessidade de saúde pública, entre outras condições. O problema é que países como o Brasil, podem não ter plena capacidade tecnológica para a produção imediata.

    O Instituto Butantã conseguiria produzir o IFA, talvez em um ano. A dificuldade é política. Primeiro, o Brasil deveria negociar em posição de força com as sociedades farmacêuticas concorrentes, o que é hoje mais difícil do que ontem, devido ao desgaste da imagem do país com a inacreditável política exterior em curso.

    Essa discussão, quando ocorrer, deverá incluir as organizações de usuários e trabalhadores. É necessário um acordo internacional para garantir a vacina aos países mais pobres, enquanto os países ricos pretendem prioridade. Esta e negociações associadas devem também ocorrer sob controle das organizações populares e de usuários, nesse caso, sobretudo, a participação dos trabalhadores dos países envolvidos.

    A prioridade consiste em medidas que não prejudiquem a necessidade de importarmos vacinas e implementos, medicamentos etc. O bom planejador político prevê os passos após as decisões drásticas.

    Acredito que devemos favorecer um plano estratégico de uso das tecnologias vacinais, não como reivindicação aplicável imediatamente, mas como pressão sobre preços e preparo para o futuro, uma palavra de ordem estratégica. Evidentemente, ao mesmo tempo promover e assegurar o desenvolvimento da indústria estatal, como Butantã e Fiocruz, que mostraram competência e seriedade.

    Batalhas prioritárias

    O socialismo é nosso objetivo, mas não gritamos “Socialismo já”. Não se trata de ganhar a batalha dos slogans, mas a batalha da vida e das ideias. Hoje, ao propugnarmos uma medida propagandística, o preço das vacinas subiria, elas se esgotariam rapidamente e o terreno se tornaria fértil para levantar o povo contra os “irresponsáveis” (nós e os que tiverem nos acompanhado).

    A boa pergunta é: se estivéssemos em condições de influenciar um governo de esquerda, em meio à catástrofe sanitária, será que desencadearíamos a luta pela quebra das patentes – mesmo se, até o momento, não tenha havido recusa do fornecimento de vacinas? Os exemplos não faltam: Lenin e Trotski souberam recuar diante da pressão irresistível das Potências Centrais, nas negociações de Brest-Litovsk, que permitiram a paz entre as partes, ao final da guerra de 1914-1918 e a sobrevivência da revolução.

    Financiamento à pesquisa

    Termino constatando que o eventual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos para a pesquisa e pela política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais em particular. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência e técnica. Enquanto isso, os Estados Unidos se preparam a dobrar o financiamento do “National Sciences Foundation”!

    Bernardo Boris Vargaftig é médico e Doutor em Ciências pela Universidade de Paris. Foi professor do Instituto Pasteur, em Paris, e professor-titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

  • O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou várias limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro, impulsionado pela mobilização popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, à defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude. E essa agenda espalhou-se pelo Brasil

    Por Cris Duarte

    Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja . Eduardo Galeano

    Caminhando no contrafluxo

    Comumente as utopias se apresentam de forma propícia em tempos de crises, propondo, naturalmente, inversão à realidade imposta, levando-nos à reflexão sobre o mundo em que vivemos e o mundo que podemos construir: paz em tempos de violências; igualdade social diante das desigualdades; defesa da vida, contrapondo a banalização da morte; educação e ciência, em contraposição ao negacionismo.

    Há consenso entre diversos intelectuais e militantes políticos que, nas últimas décadas, houve um distanciamento gradativo do ideal utópico em vários segmentos da esquerda, que perderam a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em um processo equivocado e cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância latente na juventude brasileira.

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento, em grande parte, da sociedade brasileira, o PSOL se propôs, em sua trajetória, a revigorar as utopias

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento em grande parte da sociedade brasileira, o PSOL se propôs a revigorar as utopias, cumprindo a sua função de contrafluxo, de cautela em relação às certezas, de oposição à tendência de repetição e rompendo com a excessiva naturalização com a qual percebemos os acontecimentos.

    A travessia que definiu destinos

    Por mais difícil que seja, torna-se necessário narrar nosso pesadelo histórico como forma de esburacar o véu de cegueira que causou a resignação generalizada, a sensação de espanto emudecedor dos movimentos históricos de esquerda que sonhavam com mudanças estruturais e revolucionárias do país.

    Sob a sedução do “lulismo” e das consecutivas derrotas eleitorais, o Partido dos Trabalhadores inaugurou, a partir de 2002, um dos processos mais contraditórios de sua história, que brutalmente levou o partido de maior referência na esquerda mundial para longe de seus valores e das lutas populares que sempre defendeu.

    Firmou alianças trágicas com a direita tradicional, alinhando o discurso e a imagem de Lula aos valores da classe média, recebendo apoio de oligarquias do Nordeste, da parcela da elite industrial paulista e lançando ao longo da primeira campanha a “Carta ao Povo Brasileiro”, ficou selado definitivamente, o compromisso de Lula com o modelo neoliberal e o jogo do mercado financeiro nacional e internacional.

    A vitória de Lula aconteceu gerando grandes expectativas, porém, realizando concessões e recuos programáticos que deslocou a praxis petista para outro terreno logo no início do mandato. Com a decisão de colocar Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, no controle das finanças do país, a senadora Heloísa Helena, manifestou-se contra essa indicação. Posteriormente, iniciou um novo confronto ao votar contra a indicação de José Sarney para a presidência do Senado.

    Diante das contradições entre a história do partido e as promessas de campanha, as ações concretas do governo começaram a aflorar e a inquietar muitos militantes, simpatizantes e eleitores, gerando conflitos internos no PT. Eles se agravaram após a proposta nefasta da PEC de Reforma da Previdência do setor público, apresentada por Lula ao Congresso, em 2003, e que sem dúvida, seria extremamente danosa aos interesses dos trabalhadores.

    Foi uma travessia marcada por inúmeras vozes de oposição no interior do próprio PT e que reverberaram no Congresso, na CUT, entre os servidores públicos e em amplos setores da sociedade. Após uma série de confrontos, foi instalada uma comissão de ética para encaminhar o processo de expulsão por “indisciplina” da senadora Heloísa Helena (AL), e dos deputados, Joao Batista Babá (PA), Luciana Genro (RS) e João Fontes (SE), que não aceitaram tal rebaixamento político-programático em nome da governabilidade conservadora.

    Arrumando os desertos

    Impulsionados por todas as controvérsias, em dezembro de 2003, os parlamentares expulsos do PT, iniciaram um movimento nacional pela consolidação de um novo partido de esquerda, das massas, socialista e democrático. Isso significou ter capilaridade com os movimentos sociais, estar presente na luta cotidiana para ser capaz de pensar saídas efetivas para a população brasileira.

    Em janeiro de 2004 foi realizado um encontro no qual criou-se a Esquerda Socialista Democrática (ESD), movimento originário que definiu as bases de um programa provisório para a formação do novo partido. Posteriormente, deu-se a fundação do Partido Socialismo e Liberdade, PSOL, com a criação do primeiro Estatuto datado do dia 6 de junho de 2004, e assinado pela primeira presidenta do partido, a senadora Heloisa Helena.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964, que levou ao poder, pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército, que nunca fez questão de esconder seu viés ideológico bem próximo ao fascismo

    Logo, à formalização do PSOL junto ao TSE, em 2005, outro grupo de descontentes com os rumos do PT e do governo, juntou-se ao partido, entre os quais os deputados federais Ivan Valente (SP), Chico Alencar (RJ), a ex-deputada federal Maninha (DF), o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio e militantes de outras legendas, em especial do PSTU. Nesse processo, o PSOL obteve o apoio de intelectuais socialistas de renome, sociólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos.

    Em 2006 o PSOL participou pela primeira vez de eleições e conseguiu resultados positivos. A candidatura da senadora Heloísa Helena à presidência da República alcançou 6,85% do eleitorado, contabilizando 6.575.393 votos.

    Nas eleições de 2008, o PSOL manteve o aspecto da primeira eleição em relação à grande quantidade de candidaturas ao Executivo das principais localidades do país, lançando prefeitos em 22 capitais. O partido conseguiu eleger 25 vereadores em 13 estados diferentes (22 municípios), mas não elegeu prefeitos.

    Apesar de aparecer com boas perspectivas eleitorais, a ex-senadora Heloísa Helena, desistiu da candidatura à presidência no pleito de 2010, declarando apoio à candidatura de Marina Silva do PV. Dessa forma, houve grande indefinição sobre a candidatura do PSOL ao pleito do executivo federal até meados de 2010, algo que só foi revertido com o lançamento da candidatura de Plínio de Arruda Sampaio.

    Antes do final do mandato à presidência do PSOL, Heloísa Helena abandonou a direção do partido alegando incompatibilidade de dirigir a legenda sem apoio interno no Diretório Nacional.

    No pleito de 2010, o partido não conseguiu eleger nenhum candidato ao executivo. Foram eleitos dois senadores (AP e PA), três deputados federais (RJ e SP) e quatro deputados estaduais (RJ, SP e PA).

    Além do quarto lugar de Luciana Genro na disputa presidencial de 2014, em que obteve 1,6 milhão de votos, o PSOL também aumentou a bancada na Câmara dos Deputados de três para cinco deputados. O partido não elegeu ninguém para o Senado. E, nos estados, 13 deputados estaduais foram eleitos pela legenda.

    Os atentados à democracia

    No biênio 2015-2016 uma articulação orquestrada entre agentes públicos provenientes de frações do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, todas elas retroalimentadas pelos oligopólios midiáticos, mobilizaram-se e exigiram o impeachment de Dilma Rousseff (PT), presidenta reeleita em 2014. Ela foi afastada definitivamente do cargo em agosto de 2016, sendo substituída pelo vice-presidente Michel Temer (PMDB).

    O contexto era de efervescência política, desencadeando numa série de manifestações populares nas ruas no decorrer de 2015 e 2016. Nessa conjuntura, a bancada parlamentar do PSOL, mesmo sendo oposição ao governo federal tanto de Lula, quanto de Dilma, declarou-se contrário ao processo de impeachment, por este ser a concretização de um grande golpe jurídico-parlamentar.

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo. Como ele mesmo afirmou após o resultado do segundo turno em SP: “A gente apontou um futuro. É, apenas, o começo de um Brasil sem autoritarismo”

    Não foram desconsideradas nesse período, as permanentes tentativas de criminalização dos movimentos sociais e da ação e do pensamento crítico. Além disso, proliferou-se nas casas legislativas de todo o país, projetos que tentaram impedir o avanço de direitos de minorias e da liberdade de pensamento e construção do conhecimento, como a obscurantista lei elaborada pelo movimento “Escola sem partido”.

    Rastros de ódio

    Em 2018, enquanto Michel Temer implementava uma agenda de ataques aos direitos trabalhistas e decretava uma intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, o Brasil vivenciou a crescente escalada do ódio que se manifestou na execução da vereadora, negra, lésbica, com origem na favela, defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, junto ao motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A notícia reverberou no país e no mundo e ampliou o debate sobre violência política.

    Após, a caravana de Lula sofreu ataque a tiros no Paraná e múltiplos casos de violência se intensificam contra ativistas sociais, população negra e LGBT+.

    Em abril de 2018, foi decretada a prisão do ex-presidente Lula em uma escancarada perseguição judicial desencadeada pela Operação Lava Jato. O PSOL se manifestou publicamente contra a decisão do STF por considerar que a súmula 122 do STF é “flagrantemente inconstitucional” porque a carta magna prevê o início do cumprimento de penas após o trânsito em julgado.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964 que levou ao poder pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército que nunca fez questão de esconder o viés ideológico bem próximo ao fascismo.

    A campanha de Bolsonaro, dirigiu-se a um público previamente conhecido, basicamente de classe média, e o povo que na maioria aderiu, foi fisgado pela insatisfação com o desemprego e a violência urbana. O objetivo foi potencializar e transformar a insatisfação em ódio.

    Vimos uma campanha da extrema direita bem azeitada por uma máquina de propaganda eleitoral no WhatsApp e Facebook que difundia fake news de forma maciça contra os candidatos das chapas do PT e do PSOL.

    Chapa histórica

    Apesar das dificuldades de um cenário de fragmentação das esquerdas, tempo reduzido de propaganda eleitoral gratuita, desigualdade na distribuição do fundo especial de financiamento de campanha, o PSOL apresentou nesse pleito uma chapa histórica com o líder social do MTST, Guilherme Boulos, e Sônia Guajajara, a principal liderança indígena do país e reconhecida internacionalmente como uma ativista da pauta ambiental.

    O partido avançou significativamente com a resistência negra, feminista e LGBT, impulsionadas pelo legado de Marielle, ampliando a presença na Câmara dos Deputados em uma bancada com dez parlamentares composta por 50% de mulheres.

    Em uma eleição marcada pelo ódio, o PSOL plantou sementes de esperança para o futuro, levando pautas importantes para o debate, como a da reforma agrária, a luta por moradia, a defesa dos movimentos sociais, a defesa de pautas das mulheres, dos negros e negras e LGBT+.

    Crise e disputa

    Na resolução do Diretório Nacional do PSOL, publicada em outubro de 2019, já estava explícita a importância das próximas eleições para o partido, considerando o cenário político nacional.

    O que não se esperava era que 2020 seria o ano da mais grave crise sanitária mundial, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, causando um incalculável prejuízo humano.

    A campanha aconteceu de forma atípica, tendo que se adaptar aos protocolos de biossegurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias, o que forçou o adiamento da votação de outubro para novembro e a mudança na legislação que impediu as coligações para as eleições proporcionais.

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou todas as limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro impulsionado pelo poder popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a Prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, a defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude.

    Capital político

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo.
    Em Belém (PA), mesmo com a avalanche de fake news, Edmilson Rodrigues chegou ao segundo turno e conquistou a prefeitura com 51,76% dos votos.

    Em outros três municípios o PSOL também saiu vitorioso das eleições. Elegeu Salomão Gurgel em Janduís (RN), Edson Veriato em Potengi (CE), João Alfredo em Ribas do Rio Pardo (MS), e Cido Sobral em Marabá Paulista (SP).

    O PSOL vem crescendo e criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, fazendo da democracia nossa casa comum

    O compromisso histórico do PSOL com um projeto coletivo, amplo e contínuo de emancipação e transformação social segue se confirmando nas urnas a cada eleição. Agora, o partido também conta com 90 mandatos nas câmaras municipais, nas cinco regiões do país, sendo 34 deles liderados por mulheres, 43 negras e negros eleitos pelo partido, 4 mandatos de mulheres trans e outros 10 mandatos coletivos. Do total de mandatos, 53 foram eleitos em capitais ou cidades acima de 200 mil habitantes.

    Com a substituição de Edmilson Rodrigues na Câmara dos Deputados pela jovem negra Vivi Reis, a bancada do PSOL passou a ser a única do país a ter maioria feminina.
    O PSOL vem crescendo de forma orgânica e consistente, criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores do Brasil, dos movimentos sem-teto e dos coletivos de cultura e educação popular fazendo da democracia nossa casa comum.

    O partido tem mostrado compromisso nas discussões sobre raça, gênero, pautas LGBT e indígenas. Falar sobre tais temas é falar sobre a desigualdade, a pobreza e a violência no Brasil agravadas radicalmente pelo cenário alarmante da pandemia e do governo genocida de Jair Bolsonaro.

    *Cris Duarte é psicóloga, Diretora da revista Empodere e Dirigente do PSOL/Campo Grande.

  • Qual é o lugar do PSOL na crise nacional? . Por José Correa Leite

    Qual é o lugar do PSOL na crise nacional? . Por José Correa Leite

    Qual é o lugar do PSOL na crise nacional?

    A palavra “crise” é tão repetida que tende a se tornar banal. Ela funciona como sinônimo de retrocesso e desconstrução sistemáticos ou recorrentes. Há uma particularidade no Brasil atual. Tudo indica que rumamos para mudanças de qualidade diferente, de acúmulo explosivo de conflitos e de indeterminação. Seria um tempo que os gregos – em contraposição a chronos – chamavam de kairós. Ou seja, um tempo qualitativo, das oportunidades, no qual se pode tragar rapidamente o que foi pacientemente construído. Mas ele também abre oportunidades de novos começos

    Por José Correa Leite

    Estamos em meio à mais grave crise da história do Brasil. É possível que terminemos 2021 com 800 mil ou mesmo um milhão de mortos pela Covid-19. As estatísticas demográficas já registravam, em maio, não apenas os 400 mil mortos oficiais, porém 600 mil mortos a mais do que se esperaria sem a pandemia. A miséria cresce de maneira galopante e a fome ressurge no país. A expectativa de vida média da população já regrediu em dois anos. A floresta Amazônica está no limiar de um colapso que pode impactar toda a humanidade. Jair Bolsonaro, um extremado expoente da direita neofascista, promove a destruição da vida como política.

    O ex-capitão chegou ao Palácio do Planalto como catalisador de uma vasta coalizão de interesses, prometendo uma rota de fuga ultraliberal para uma crise nacional. Essa crítica “antissistema” da extrema direita ao globalismo cosmopolita neoliberal esteve, desde o início, animada por Trump e prosperou em sua esteira depois. Ela agora se enfraquece com a derrota diante de Joe Biden

    O quadro de decadência e crise do Brasil já vem de longe, assim como o mal-estar que ele gera, que permitiu a eleição do atual presidente. Seu marco é global: a civilização capitalista, financeirizada, produz bens supérfluos e deixa de produzir os essenciais, comprometendo os processos de reprodução social. Essa civilização agrava as desigualdades sociais – de classe, gênero, raça -, regionais e internacionais; aprofunda por toda parte o autoritarismo político; e continua a nos conduzir para uma hecatombe climática, com uma sexta extinção em massa da vida no planeta. Não parece haver dúvidas que vivemos, nos dias que correm, deslocamentos tectônicos, mudanças de alcance secular, só análogos aos que ocorreram nas grandes guerras da primeira metade do século XX. O caso do Brasil é, de qualquer forma, extremo e a luta para derrotar Bolsonaro organiza, hoje, a disputa política no país.

    Crise é um termo tão repetido que parece se tornar banal, sinônimo de retrocesso e desconstrução sistemáticos ou recorrentes. Mas tudo indica que estamos sendo conduzidos, ao menos em nosso país, a um tempo de qualidade diferente, de acúmulo explosivo de conflitos, indeterminação e escolhas, um tempo que os gregos – em contraposição a chronos – chamavam de kairós. Um tempo que, se pode tragar com rapidez o que foi pacientemente construído, também abre oportunidades de novos recomeços.

    O país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, com a abertura da economia por Collor, mantendo forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, essas camadas priorizaram suas raízes fundiárias, extrativistas, predadoras, primário-exportadoras e autoritárias, representadas pelo Centrão e defendidas em políticas executadas tanto pelos governos do PSDB como do PT

    A pergunta da qual não podemos escapar é: o que é e será do PSOL em meio a tudo isso? Criado há 15 anos como ferramenta de resistência, mas também com grandes ambições estratégicas, ele parece, hoje, deixar-se levar pelas ondas de uma grande tempestade. Tocar uma política rotineira, mesmo com as justificativas mais sensatas, é, numa situação muito extraordinária, uma insensatez.

    Decadência, crise nacional e mal-estar

    Grande parte das esquerdas críticas no Brasil compartilham de um diagnóstico: Bolsonaro e o bolsonarismo expressam determinações mais profundas dos processos em curso, nacionais e internacionais. O ex-capitão chegou ao Palácio do Planalto como catalisador de uma vasta coalizão de interesses, prometendo uma rota de fuga ultraliberal para uma crise nacional. Fez isso como parte de um projeto global – uma resposta nacionalista de setores burgueses de muitas partes à nova era de estagnação da acumulação produtiva e reorganização geopolítica do mercado mundial, cujo centro de gravidade se deslocou, depois de 2008, para o Pacífico. Essa crítica “antissistema” da extrema direita ao globalismo cosmopolita neoliberal esteve, desde o início, animada por Trump, prosperou na sua esteira depois de 2016 e, agora, enfraquece-se com a derrota frente a Biden. Foi a incapacidade de responder à pandemia que rapidamente golpeou a popularidade de Trump e acentuou as fragilidades e contradições do projeto e do bloco que o sustentava.

    Todavia, o Brasil, à diferença dos EUA, vive uma crise muito mais profunda e aguda, que se tornou patente para todos, pelo menos, desde 2013. Então, a percepção do longo processo de decadência de suas estruturas produtivas, desarticulação da capacidade de ação do Estado, escalada da precariedade e insegurança sociais, falta de sentido para a participação em projetos coletivos e crise ambiental, manifestou-se como mal-estar de amplos setores frente à ausência de perspectivas e projetos de todas as forças políticas em cena.

    O marco constitutivo dessa crise nacional é extenso. O Brasil foi capaz de transformar-se, na segunda metade do século XX, em um país urbano-industrial, com a produção manufatureira (excluindo mineração e construção civil) atingindo, em 1985, 21,6% do PIB. A indústria brasileira era então uma das mais modernas do mundo.

    Quinto país com maior território e população do mundo, o Brasil parecia estar destinado a se transformar em um grande pólo capitalista e reestruturou suas esquerdas a partir das lutas da classe operária fordista. Mas o país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, com a abertura da economia por Fernando Collor de Mello, mantendo uma forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, essas camadas priorizaram suas raízes fundiárias, extrativistas, predadoras, primário-exportadoras e autoritárias, representadas pelo Centrão e defendidas em políticas executadas tanto pelos governos do PSDB quanto do PT.

    Dessa maneira, a inserção do país na ponta da divisão internacional do trabalho refluiu e a economia se reprimarizou: em 2004 a participação da indústria era de 17,9% do PIB; e em 2015 havia caído para apenas 9% – um ônus colossal da aposta dos governos petistas no boom das commodities. O Brasil passou de sétima para a 12ª economia do mundo e voltou a ser um país agroexportador, com poucas ilhas de excelência industrial e tecnológica. Dos anos 1990 em diante, o país entregou passivamente os setores digital e farmacêutico – para mencionar só dois – para as corporações norte-americanas, em um momento em que todas as “potências intermediárias” procuravam dominar essas tecnologias. O agronegócio, a mineração e a extração petroleira se tornaram bem mais capital-intensivos, mas em uma sociedade que 85% da população é urbana e o setor de serviços somente se sofistica associado à inovação tecno-científica. Em paralelo e em decorrência dessa decadência, a estrutura social voltou a se simplificar e os horizontes de mobilidade social se fecharam.

    Essas mudanças regressivas não são somente reflexo da reorganização global do capitalismo ou da dominação imperialista (embora também o sejam), mas resultado de escolhas feitas pelos atores políticos. Elas advieram internamente, de um lado, do “presidencialismo de coalizão”, consagrado com a Constituição de 1988 e uma nova “política de governadores”.

    De outro lado, da política econômica neoliberal, mantida intacta nos oito anos de governo do PSDB sob FHC e nos quase 14 anos de governos do PT, sob Lula e Dilma: a manutenção do tripé macroeconômico neoliberal de taxa de câmbio flutuante, metas de inflação e austeridade fiscal.

    Celso Furtado falava, em 1992, da construção interrompida do Brasil. Isso não era uma fórmula retórica, mas um diagnóstico arguto do que se passava; essa construção jamais foi retomada, porque isso exigiria uma política “re-industrializante”. E todos esses governos compartilharam também do extrativismo e da predação do meio ambiente, que derivam do lugar do país na nova divisão internacional do trabalho – que hoje coloca o Brasil no epicentro da crise climática.

    O resultado da transformação da população brasileira em consumidora sem cidadania ativa foi a neoliberalização da sociedade como um todo, a “destruição das estruturas coletivas capazes de barrar a lógica do mercado puro” (a definição de Bourdieu do neoliberalismo).

    Evidentemente, os governos Temer e Bolsonaro levaram as tendências regressivas a um ponto suicidário – o que não é desprezível – mas elas já vinham sendo ativamente construídas por FHC, Lula e Dilma com a “inserção pelo consumo”. O mal-estar incontido, crescendo há duas décadas, manifestou-se em 2013, sob Dilma, quando ficou evidente que o Brasil estava “perdendo o bonde da história”. O Brasil aparece para o povo como um país sem futuro nas correntes da História que vem se impondo no século XXI.

    Essa regressão e falta de perspectiva criada pelas políticas neoliberais atingem todo o tecido social. A precarização da vida nas últimas décadas não está ligada apenas às heranças do passado (do escravismo, do autoritarismo…), nem somente às idas e vindas da formalização das relações trabalhistas – que avançou sob os governos do PT, para depois retroceder. Elas se vinculam principalmente à natureza das atividades exercidas após o esgotamento da industrialização fordista, quando a geração de empregos urbanos passou a se dar em um crescente, amorfo e pauperizado setor terciário.

    Foi a mercantilização generalizada da vida que resultou numa sociedade em desagregação, de indivíduos desamparados, “empreendedores” jogados no mercado sem freios, que se tornou neopentecostal (na sequência da destruição da Teologia da Libertação por João Paulo II), acolheu Bolsonaro e elogia o darwinismo social, porque ele expressa suas condições de vida. Bolsonaro, como outros dirigentes neofascistas, não discute políticas sociais, defende – contra o liberalismo cosmopolita – uma concepção de mundo orgânica a essa nova realidade do capitalismo ultraliberal. Nenhuma outra esteve à altura de se contrapor a ela!

    A precarização da vida nas últimas décadas não está ligada apenas às heranças do passado (do escravismo ao autoritarismo), nem somente às idas e vindas da formalização das relações trabalhistas. Elas se vinculam principalmente à natureza das atividades exercidas após o esgotamento da industrialização fordista

    A economia brasileira percorreu, nos últimos trinta anos, um caminho inverso ao que tinha seguido entre 1930 a 1990, e também ao de muitos países do Leste Asiático. A tessitura da sociedade brasileira é, hoje, quase irreconhecível em comparação a dos anos 1980, que formou a última grande geração política da esquerda no país – esta que não conseguiu apresentar uma saída do Brasil do neoliberalismo e terminou criando as condições nas quais viceja uma extrema direita reciclada. Essa é a raíz, para qualquer análise estrutural e materialista, do profundo mal-estar que acomete todas as classes populares no Brasil, que as colocam contra o que, de conjunto, percebem como sendo o “sistema” e a política nele institucionalizada. É para essa crise que a esquerda ainda precisa apresentar, ao menos, um horizonte de saída.

    Bolsonaro aprofunda a crise de perspectivas

    O governo Bolsonaro, prometendo uma saída para a crise nacional, a agudizou, acelerando o desmanche e o isolamento do país. A combinação de ultraliberalismo com neofascismo não atingiu apenas as camadas populares, mas contribuiu também para deteriorar o ambiente de negócios para o grande capital nas condições do capitalismo global. O que viceja, sob seu império, é uma lumpen-burguesia incapaz de estabelecer sua hegemonia no seio da classe dominante, mas cujos dirigentes ambicionam acaudilhar uma mobilização permanente da revolta popular.

    Na coalizão instalada no Planalto em janeiro de 2019, todo mundo vigiava todo mundo. Com a saída de Sérgio Moro do governo, em abril de 2020, foi Rodrigo Maia que passou, desde a presidência da Câmara, a cumprir o papel de limitar os danos que o presidente e seu círculo promoviam aos negócios da grande burguesia globalizada. Porém, buscando se livrar da tutela de Maia, Bolsonaro se aliou e teve que entregar grande parte do seu governo ao Centrão – vitorioso nas eleições deste ano para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

    Um mês depois, em março de 2021, o ex-presidente Lula teve as condenações contra ele retiradas pelo ministro Edson Fachin, até então um dos ativos defensores da lawfare encabeçada por Moro. A volta de Lula à cena foi uma admissão de derrota do centro neoliberal, de sua incapacidade de lidar sozinho com a extrema direita.

    A habilitação dos direitos políticos do ex-presidente pelo STF – o mesmo que chancelou sua condenação em 2018 – redefiniu o quadro político, que vem se tornando crítico para a grande burguesia. Essa iniciativa busca canalizar as energias da oposição a Bolsonaro para o processo eleitoral de 2022. O que move o andar de cima não é uma identidade com Lula, mas uma tentativa de constranger Bolsonaro, embaralhar o jogo e tentar cavar um espaço que viabilize uma candidatura da direita tradicional. É uma iniciativa para organizar o jogo político, focando também as aspirações populares para a institucionalidade eleitoral.

    A disputa de 2022

    Agora, toda a política institucional está se posicionando para a disputa eleitoral de 2022, trabalhando para “sangrar Bolsonaro”. Os cálculos pragmáticos começam a imperar entre as lideranças que se consideram com densidade eleitoral. Na esquerda, tudo parece girar ao redor da candidatura presidencial de Lula, que emerge fortalecida do reconhecimento da parcialidade de sua condenação. Mas a instabilidade vai se agudizar e não arrefecer, como já percebemos com a dinâmica da CPI no Senado sobre a Covid e o agravamento da pandemia. A própria presença de Bolsonaro na presidência é, depois da tentativa de golpe de Trump nos EUA, um convite à aventura. Dar o processo institucional por garantido é uma temeridade.

    A habilitação dos direitos políticos de Lula pelo STF redefiniu o quadro político, que vem se tornando crítico para a grande burguesia. O que move o andar de cima não é uma identidade com Lula, mas uma tentativa de constranger Bolsonaro, embaralhar o jogo e tentar cavar um espaço que viabilize uma candidatura da direita tradicional

    A pergunta-chave para decifrar o atual emaranhado político é: o Brasil poderá continuar mais 18 meses nesta situação? Em todo o continente, com os mesmos problemas da pandemia que o Brasil, a resposta está sendo a impaciência das massas que saem às ruas.


    A pandemia produz um trauma inédito em nossa história

    Sem desprezar a importância da luta pelas vacinas, essenciais para combater de forma duradoura a Covid-19, a realidade que vemos pelo mundo é que ainda não há no horizonte soluções duradouras para as atuais crises sanitárias

    Seja no dimensionamento da crise e na luta social, seja na luta contra Bolsonaro, seja na articulação institucional, o tema da pandemia é chave, condicionando os demais. E ela tem uma urgência e um impacto definidor, análogo ao de uma guerra civil de grandes dimensões pelo número de mortos.

    A doença é radicalmente agravada em nosso país pelo apartheid social e pelas desigualdades amplificadas por quarenta anos de neoliberalismo. Ela estabelece uma sinergia perversa com a crise econômica e social e com uma política deliberada de genocídio. Quantos mortos teremos em outubro de 2022 se Bolsonaro seguir no palácio do Planalto?

    Sem desprezar para nada a importância da luta pelas vacinas, essenciais para combater de forma duradoura a Covid-19, a realidade que vemos pelo mundo é que ainda não há no horizonte soluções duradouras para as atuais crises sanitárias. Elas parecem cada vez mais complexas, com variantes do vírus e escassez de imunizantes, divisões sociais deletérias e desespero dos pequenos negócios, nacionalismo de vacinas e luta pela suspensão de patentes, disputas geopolíticas e sinais de uma agressiva transição produtiva conduzida por Washington. Além disso, somam-se os problemas da novidade da doença: temos indicações que uma parcela daqueles que contraem a enfermidade ficam com sequelas significativas. A doença atinge cada vez mais jovens e reinfecções são possíveis. O caso do Chile mostra que a vacina reduz o número de mortos, mas é bem menos eficaz para barrar a transmissão do vírus.

    As esquerdas precisam romper com o senso comum (que a mídia e os governantes inoculam) de que a imunização seria o bastante para conter a pandemia e “voltar à normalidade”. O Brasil não é uma ilha (como a Inglaterra ou a Austrália), ou uma sociedade de vigilância total (como Israel ou a China).

    A pandemia é, em nosso país, radicalmente agravada pelo apartheid social e pelas desigualdades amplificadas por quarenta anos de neoliberalismo. Ela estabelece uma sinergia perversa com a crise econômica e social e com uma política deliberada de genocídio.

    Não há como o país conter as ondas de contágio que se sucederão no abre e fecha dos negócios e a sequela de mortos. Necessitaríamos uma combinação de vacinas com políticas nacionalmente articuladas de distanciamento social – que se revela impossível sob o governo Bolsonaro. A probabilidade de que a pandemia se encerre no Brasil em 2021 é zero. Quantos mortos teremos em outubro de 2022 se Bolsonaro seguir no palácio do Planalto? Quantos milhões carregarão as cicatrizes da enfermidade pelo resto de suas vidas? Por isso, também, a tática de deixar Bolsonaro “sangrar” até as eleições de 2022 é um equívoco profundo.


    O partido, um projeto rebelde e suas fragilidades

    Em 2022 o Brasil completará 200 anos de existência como Estado formalmente independente, com a construção da nação soberana ainda por ser empreendida. O lugar do PSOL na política brasileira será definido pelo que ele tiver a dizer sobre isso, pela capacidade de intervir no tempo crítico que nos toca viver

    O PSOL surgiu para acolher as esquerdas socialistas que se rebelavam contra o enquadramento do governo Lula pela ordem neoliberal. Foi um pequeno, mas importante espaço de resistência das ideias e práticas socialistas quando grande parte das esquerdas se deslocavam para um pragmático reformismo social-liberal. Isso não se passou somente com o PT e o campo democrático e popular no Brasil, mas com o progressismo latino-americano, embora a corrente bolivariana desdobrasse mais contradições com a ordem geopolítica vigente.

    O papel do PSOL ficou mais nítido no contexto global de sublevações populares contra as políticas de austeridade depois de 2011 e sua expressão nas mobilizações de 2013. O PSOL também soube se mover na conjuntura do golpe institucional de 2016, compreendendo a ameaça que se assomava para a democracia no país

    O PSOL foi, com o Bloco de Esquerda em Portugal, uma referência de partido socialista amplo e pluralista, capaz de fazer convergir o essencial do que a imprensa costuma chamar de extrema esquerda para processos sinérgicos de construção comum. E foi capaz, como o Bloco e diferente de outras experiências (como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha), de resistir à tentação de projetos reformistas de governo. Pelo menos até agora.

    O lugar do PSOL – como o partido das esquerdas rebeldes na cena brasileira – ficou mais nítido no contexto global de sublevações populares contra as políticas de austeridade depois de 2011 e a expressão aqui nas mobilizações de 2013. O partido ganhou mais sintonia com as manifestações da juventude feminista, antirracista e anti-homofóbica. O PSOL também soube se mover na conjuntura do golpe institucional de 2016, compreendendo a ameaça que se assomava para a democracia no país, por vezes com mais coerência que o próprio PT, defenestrado do governo.

    O Partido Socialismo e Liberdade se formou como uma federação de tendências, organizações e correntes – um barco capaz de dar guarida a todos os socialistas -, ao mesmo tempo em que buscava oferecer espaços de militância para ativistas não filiados a nenhuma delas. As correntes se alinhavam e realinhavam ao sabor das disputas das conjunturas. Todavia, não fomos capazes de avançar em nada na democratização da vida partidária

    O partido foi, assim, capaz de acolher deslocamentos políticos de outros partidos e, em 2018, sob o impacto do assassinato de Marielle Franco, dar um salto como espaço que acolhia lutadores sociais de várias esferas. Se com Guilherme Boulos dialogava mais fluidamente com bases sociais petistas, com Sonia Guajajara, o PSOL começava a assumir, na prática, uma crítica ecossocialista mais consistente ao desenvolvimentismo e à visão progressista da sociedade. O resultado foi o atual perfil da representação parlamentar do partido, com a eleição de 10 deputados federais e 18 estaduais, além de Edmilson Rodrigues como prefeito de Belém – mais da metade mulheres com grande número de negres e LGBTs.

    Todavia, essa trajetória se deu empiricamente, sem debater e enfrentar uma série de problemas decisivos para qualquer projeto político de caráter antissistêmico.

    Enuncio a seguir alguns deles:

    1) A clássica “questão parlamentar”, debatida desde os tempos da operária social-democracia alemã (século XIX), ganhou, por todas as partes, contornos muito mais decisivos nas últimas décadas, com o sequestro da política pelo mercado e a perda de credibilidade da representação partidária nas democracias liberais. Mas, para além disso, em uma estrutura social tão absurdamente desigual, como a brasileira, a intervenção parlamentar é completamente insuficiente como agenda de disputas. Ela precisa se vincular aos setores mais dinâmicos da luta social e política, às contradições candentes e atores decisivos da formação social brasileira, às tarefas históricas não resolvidas e aguçadas pela crise nacional.

    Nos marcos do sistema político brasileiro, em que o voto é nominal, os mandatos sempre se configuraram em elementos de esgarçamento da dinâmica autônoma dos partidos políticos. No PT, esses centros autônomos de poder já semeavam o terreno, na década de 1990, junto a executivos municipais e estaduais, de cooptação do partido pelo aparato do Estado. Mas, depois de 2013, com o reflexo de autoproteção das oligarquias abrigadas no sistema partidário e a proscrição do financiamento empresarial de campanhas, tivemos uma grande expansão do uso dos fundos públicos pelos partidos.

    Fundo partidário, fundo eleitoral, verbas para a Fundação partidária, gabinetes de liderança em cada nível, tempo de televisão e verbas, por vezes muito vultosas, de gabinete tornam qualquer partido com uma representação partidária significativa, uma máquina que busca se autorreproduzir de eleição em eleição. Completando a pressão pela institucionalização e estatização da política, acresce-se uma cláusula de barreira que pressiona pelo desempenho eleitoral crescente. Parlamentares, por vezes, projetam-se por cima do partido, particularmente quando fortalecidos em disputas majoritárias, algo em nada estranho às tradições caudilhescas da política latino-americana.

    Mas não criemos mal-entendidos: nenhuma dessas observações deve ser entendida como antiparlamentarismo; parlamentares assumem um papel central na visibilização de agendas, na iniciativa política junto ao estado, no acesso midiático, no diálogo público contemporâneo. Precisamos de um partido forte, democrático e politizado para potencializar a intervenção de nossos melhores parlamentares. Mas cada um dos problemas apontados e ainda mais todos juntos carregam questões para a atual “forma partido” que não podemos naturalizar em um projeto antissistêmico. Que isso não seja tematizada no PSOL mostra o quanto estamos navegando em piloto automático.

    2) O PSOL pactuou, em sua trajetória, sucessivas variações de um projeto antineoliberal. Das candidaturas presidenciais de Heloísa Helena, Plínio Sampaio e Luciana Genro, seguimos uma trajetória que, com idas e vindas, foi cumulativa.

    Posteriormente, adentramos às sucessivas conjunturas de aguçamento da crise nacional e aceleração brutal da história – e não só no Brasil: as corporações de plataforma ocuparam o lugar das grandes empresas fordistas; a financeirização escala; a China se candidata a hegemon do capitalismo global; a emergência climática e a perda de biodiversidade vão para o centro da agenda progressista, desigualdades de toda ordem também se aprofundam e um projeto neofascista disputa o descontentamento com o globalismo cosmopolitismo. Analiticamente, isso significa alteração na morfologia das classes, identidades sociais, relação da sociedade com o estado, relação do nacional e do global, na própria ideia de uma sociedade que “domina” a natureza.

    Por todas as partes o socialismo vem se metamorfoseando em ecossocialismo, mas o que seria uma transição ecossocial no Brasil? Como requalificar o sentido do progresso, nesta fase crítica da nossa história? No mundo em que as corporações de plataformas desqualificam o trabalho e promovem o colonialismo global de dados, como garantir renda e emprego, cooperativas e redução da jornada? Como limitar o impacto do comércio internacional sem recair nos velhos autarquismos? Como retomar o projeto do altermundialismo e estruturar hoje uma prática de solidariedade internacionalista – cada vez mais decisiva – a partir do Brasil, em uma América Latina em chamas? Já que a conflitividade social escala por todas as partes, com a luta das mulheres e das populações racializadas ocupando um lugar estratégico e galvanizado o movimento de conjunto, como impulsionar o sujeito popular interseccional? Como promover a mudança social a partir da auto-organização popular?

    Essas e outras questões análogas não serão respondidas nas disputas de encontros dominados pela “contagem de garrafas”. Exigem articulação entre teoria e prática por um partido que tenha abertura política, vida pluralista e autoridade moral junto a largos segmentos sociais. Aqui, como no ponto anterior, seguimos, por enquanto, navegando no rumo previamente estabelecido pelo piloto automático.

    3) O PSOL se formou, corretamente, como uma federação de tendências, organizações e correntes – um barco capaz de dar guarida a todos os socialistas -, ao mesmo tempo que buscava oferecer espaços de militância para filiados não alinhados a nenhuma delas. As correntes se alinhavam e realinhavam ao sabor das disputas das conjunturas. Frente a polarizações sempre existiam posições capazes de estabelecer as mediações entre os pólos e oferecer sínteses parciais. Mas, em 2016/18, com as posições táticas distintas frente ao golpe institucional e, posteriormente, com o PSOL integrando uma aliança eleitoral com outros componentes, essa dinâmica se alterou. Novos setores se integraram ao partido e crispações internas se aprofundaram, pretendendo ganhar ares estratégicos.

    Todavia, não fomos capazes de avançar em nada na democratização da vida partidária; o PSOL não é, enquanto tal, um espaço de organização para ativistas sociais que querem um espaço acolhedor de debate e organização fraternos, de alcance estratégico. O mundo digital também está transformando a maneira como se informam, agem e organizam o ativismo socialista contemporâneo, porém o partido até agora não conseguiu nem dinamizar o acesso horizontal à informação e ao debate entre os militantes nem montar uma intervenção nas redes sociais para além daquela dos mandatos e das candidaturas. O PSOL é, agora mais do que antes, um partido de correntes internas de muito peso que precisam conviver nesta difícil conjuntura crítica no Brasil.

    Mas uma estrutura de partido centrada na dinâmica das correntes e da disputa entre elas limita a capacidade de fazermos grandes debates estratégicos e construirmos coletivamente visão de médio e longo prazo. Precisamos potencializar estruturas partidárias voltadas às lutas concretas, como núcleos territoriais e ferramentas setoriais, que têm demonstrado muito mais capacidade de articulação das lutas sociais e permeabilidade a construções outras que não as de disputa de correlação de forças. Precisamos democratizar uma estrutura engessada que não pode ser naturalizada.

    A estrada adiante é árdua

    Temos diante de nós a luta crítica contra Bolsonaro, mas também o enfrentamento da pandemia, o encaminhamento de uma saída para a crise nacional e um PSOL com uma enorme importância estratégica, mas que também acumulou fragilidades críticas. “Qual é o lugar do PSOL na crise nacional?” é uma interrogação que está em aberto.

    O caminho até aquilo que muitos veem como o próximo ponto de encontro na luta de classes no Brasil, as eleições de 2022, é árduo. Não negamos a importância, mas tomá-lo como dado é temerário; para que isso acontecesse, Bolsonaro precisaria já ter sido derrotado.

    Vamos ter, em qualquer cenário, que articular a disputa social, a intervenção institucional e a busca de protagonismo de nossos porta-vozes, inclusive candidatos aos postos centrais em jogo, sob risco de desaparecermos da cena política, dominada pela polarização Bolsonaro e Lula. O PT, disputando alianças no centro e na direita, certamente não tem interesse em nos abrir a porta para um debate programático; vamos ter que arrombá-la, no diálogo com amplos setores. Temos a tarefa de conduzir nosso partido e o projeto estratégico para a conjuntura pós-2022, à quente, enfrentando nossas debilidades.

    Nenhum dos problemas reais com os quais se defrontam os militantes de uma agremiação de esquerda que se propõe a mudar a sociedade será resolvido pelos jogos de maiorias e minorias fugazes em disputas congressuais, ainda mais nas condições excepcionais da pandemia

    Pode-se argumentar: como enfrentar tais desafios em uma conjuntura tão adversa? Mas é precisamente a conjuntura adversa que nos força a enfrentarmos essas questões, como foi o caso de toda formação partidária que soube cumprir o papel que se propôs na história. A invenção, diz o ditado, surge da necessidade! O que vamos propor para aqueles que nos acompanharam na trajetória de construção do PSOL até agora? Que leiam um caderno de teses para o Congresso do partido?

    Definiu-se um processo de Congresso que, muito provavelmente, enfrentará muitas dificuldades operacionais por conta da pandemia. Estamos, no final do primeiro semestre, em um platô de dois mil mortos por dia, e em breve entraremos no inverno, desaconselhando qualquer forma de reuniões presenciais (lembremos que os países do hemisfério norte estão agora na primavera rumando para o verão…).

    O processo de vacinação no Brasil – que não resolve o problema, mas já ajuda – somente ganhará escala no final do ano, quando os países centrais terminarem a imunização. Não é o que muitos gostariam, mas é o que a realidade está nos impondo.

    De qualquer forma, nenhum dos problemas reais com os quais nos defrontamos no PSOL será resolvido pelos jogos de maiorias e minorias fugazes em disputas de Congressos, ainda mais nas condições excepcionais da pandemia.

    Em 2022 o Brasil completará 200 anos de existência como Estado formalmente independente, com a construção da nação soberana ainda por ser empreendida. O lugar do PSOL na política brasileira será definido pelo que ele tiver a dizer sobre isso, pela capacidade de intervir no tempo crítico que nos toca viver. Os desafios colocados exigem uma resposta que combine deslocamentos políticos com o debate e a pactuação interna entre correntes, blocos e campos que permitam a construção de um projeto estratégico e uma hegemonia política legítima, que ainda não existem.

    *José Correa Leite é professor universitário e ativista ambiental.

  • Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Toda a lógica do esporte profissional, com patrocínios milionários, investimento em bolsas, transmissões em rede mundial, marketing associado e fortunas destinadas a quem chega ao topo da carreira reproduzem a lógica acelerada dos mercados globais. Seria uma surpresa se os agentes dessa estrutura – aí incluídos os atletas – não tivessem em mente o objetivo de se darem bem a qualquer custo

    Por Gilberto Maringoni

    “O atleta, por definição, no exercício da carreira, é um ser individualista, voltado para o próprio umbigo, para bater recordes, para ganhar o jogo no domingo, para ser campeão, para aproveitar ao máximo o tempo curto de sua trajetória, e enriquecer. Essa é a razão pela qual aqueles que são bem-sucedidos, em regra, reproduzem o discurso do poder e da elite.

    Querem carro blindado, morar em condomínios fechados e pena de morte para quem sai da linha. ‘Não me venha tomar aquilo que conquistei a tão duras penas’. Como visão de coletividade, atendem, no máximo, à família, aos amigos e a sua corriola. A sociedade que se dane.

    Isso tanto é verdade, que você conta nos dedos os esportistas, no mundo todo, que se notabilizaram por posições políticas corajosas e libertárias. É o caso do Muhammad Ali, que perdeu o cinturão dos pesos-pesados por se recusar a ir ao Vietnã; é o caso de Tommie Smith e John Carlos, americanos que fizeram a saudação Black Power no pódio dos 200 metros rasos nas Olimpíadas do México (1968), e se ferraram, perderam as medalhas e nunca mais competiram; é o caso da Democracia Corintiana, do Bom Senso Futebol Clube, do Maradona e do Sócrates, para ficarmos em alguns.

    Você conta nos dedos os esportistas, no mundo todo, que se notabilizaram por posições políticas corajosas e libertárias. É o caso do Muhammad Ali, que perdeu o cinturão dos pesos-pesados por se recusar ir ao Vietnã; é o caso de Tommie Smith e John Carlos, americanos que fizeram a saudação Black Power nas Olimpíadas do México (1968), e se ferraram; é o caso da Democracia Corintiana, do Bom Senso Futebol Clube, do Maradona e do Sócrates, para ficarmos em alguns

    Atletas dessa linhagem podem ser vistos num filme que está no YouTube, chamado ‘Os rebeldes do futebol’, cujo âncora é craque francês Éric Cantona, que ficou famoso ao dar uma voadora num torcedor fascista do Crystal Palace. O vídeo foca cinco jogadores que se notabilizaram pela atividade política. São eles Sócrates, Carlos Caszely – o chileno que se recusou a cumprimentar o Pinochet –, um africano, e dois da velha Iugoslávia que se posicionaram durante a guerra dos Bálcãs.

    Posso agregar nessa turma também o Tostão. Ele ficou conhecido como ‘antiditadura’ por dizer ser um absurdo o jogador de futebol ganhar o que ganhava, e professor ganhar tão pouco.

    Contando nos dedos de uma mão

    Um dia, telefonou-me o Daniel Cohn-Bendit, o Dany Le Rouge, do Maio de 1968 francês, dizendo que viria ao Brasil para fazer um documentário sobre a Copa do Mundo de 2014. Ele pegou uma Kombi e saiu pelas periferias, entrevistando gente. Ficou muito interessante. Ao me entrevistar, perguntou: ‘O que explica o fato de o jogador de futebol brasileiro ser tão consciente politicamente?’ Eu perguntei de onde ele havia tirado aquilo, e ele falou sobre Sócrates, Afonsinho, Reinaldo, Paulo Cézar Caju… E eu respondi: ‘Continue e você não vai encher os dedos de duas mãos’. Daniel falou do Wladimir, do Casagrande, e parou por aí. Realmente não tinha mais. E me provocou: ‘Agora me diga 10 jogadores europeus’. E eu também não sabia dizer, porque não tinha.

    Oportunismo dos clubes

    Recentemente o Boca Juniors e o River Plate se uniram num movimento de denúncia da ditadura argentina, no aniversário do golpe de 1976. Ótimo! Mas por que esse movimento atual não aconteceu, por exemplo, quando Mauricio Macri era presidente? O Macri se fez na política via Boca Juniors, e ninguém no período dele contestou os aniversários do golpe na Argentina. Ou seja, aí também há um pouco de oportunismo. Os presidentes de clubes do Brasil bajularam Lula enquanto esteve no poder. Essa é a realidade do esportista, infelizmente. Não é muito diferente.

    No caso do Brasil, há algo que não é exclusivo do esporte: a baixa consciência política do cidadão. Isso acontece até mesmo no movimento sindical. Os sindicatos de jogadores na Argentina e no Uruguai são fortíssimos, fazem greve quando os clubes cortam salários. Se um clube da segunda divisão parar de pagar, a primeira divisão para inteira. Aqui, não. E por quê? Os caras não foram à escola, não têm curso secundário completo. Isso se expressa até no entendimento do jogo. Os jogadores argentinos e uruguaios são muito mais capazes de obedecer a um esquema tático do que os brasileiros.

    Universo racista

    Lamentavelmente, a miscigenação existente no Brasil não é um fator de democratização das consciências, quando nos comparamos a outros países. Tanto é que só agora, muito recentemente, a questão do racismo começou a aparecer para jogadores e treinadores brasileiros. E o futebol é um universo particularmente racista. Basta você olhar quais são os treinadores brasileiros negros. Qual treinador negro brasileiro dirigiu a seleção? Não há um cartola negro. Como treinador, tivemos o Didi, que foi à Copa do Mundo dirigir o Peru, mas não o Brasil. Depois do Barbosa, convocado entre 1949-53, levamos anos para termos um goleiro negro na seleção brasileira. Houve o Manguinha, em 1966, que se deu mal, e depois o Dida, nos anos 1990, que foi o primeiro titular desde o Barbosa.

    A Democracia Corintiana

    Os próprios integrantes da Democracia Corintiana não gostam nem um pouco que eu diga, e eu não digo para todo mundo, mas a primeira coisa a se levar em conta, e que não diminui em nada o movimento é que ele se deu com a anuência da direção do clube – do Adilson Monteiro Alves, que depois se perdeu no governo Quércia. Hoje, o filho é presidente do Corinthians, em acordo com Andrés Sanchez. São da mesma corriola. Adilson foi o cara que chegou lá, pegou aquele grupo que estava na então série B do campeonato brasileiro a Taça de Prata, e disse: ‘Não sei como fazer, só sei que o que estamos fazendo está errado. Qual é o jeito certo?’ Começou-se uma discussão e despontaram Sócrates, Wladimir e Casagrande.

    Só agora, muito recentemente, a questão do racismo começou a aparecer para jogadores e treinadores brasileiros. E o futebol é um universo particularmente racista. Qual treinador negro brasileiro dirigiu a seleção? Não há um cartola negro. Como treinador, tivemos o Didi, que foi à Copa do Mundo dirigir o Peru, mas não o Brasil. Quase não há goleiros negros

    O Magro era um médico com um pai de esquerda, que ele viu queimando livros no dia do golpe de 1964 e ficou muito marcado com isso. O Wladimir era um negro com uma capacidade de mobilização, de persuasão e de uma simpatia contagiantes. E havia um jovem revoltado chamado Walter Casagrande Júnior. Começou assim e a torcida impulsionou muito o movimento. A torcida do Corinthians sempre agiu de forma politizada. A primeira faixa aberta em público pela Anistia foi em um jogo do Corinthians contra o Santos, no Morumbi, com Chico Malfitani e Antônio Carlos Fon. Havia um clima favorável, que animou os jogadores e a direção do clube. Mas acabou. Como?

    Sempre dou o exemplo de como uma caçada de patos mudou a História da humanidade É o que Isaac Deutscher conta em seu livro sobre Trotsky. Diz ele que Trotsky, cansado, pediu férias para Lênin e foi caçar patos em uma região da Sibéria, em 1922. Mas pegou uma pneumonia e ficou por lá, ao mesmo tempo em que Lênin sofreu o primeiro baque do derrame. Enquanto Lênin ficava no hospital e Trotsky estava se recuperando da pneumonia, Stálin, que era subalterno do Partido Comunista da URSS, articulou para ser ele o número 1.

    Ali no Corinthians, de alguma maneira, aconteceu uma coisa semelhante. A Democracia Corintiana ganhou uma eleição com sócios, mas perdeu a seguinte, com conselheiros, elegendo aquele Roberto Pásqua, uma múmia, contra o Adilson. O Corinthians tinha acabado de ser bicampeão paulista e perdido um tricampeonato para o Santos num jogo lotérico, ou seja, estava tudo bem.

    O ambiente do futebol não é apenas conservador, é profundamente reacionário, avesso a qualquer tipo de mudança. Isso tem uma influência direta do fim da Democracia Corinthiana.

    Políticas públicas para o esporte

    Os governos petistas não fizeram uma política de esporte democrática. Perderam uma oportunidade de ouro. Primeiro, porque não se olhou para o esporte como atividade num país nas condições do Brasil. Aqui, o esporte deve ser um fator de saúde pública, antes de mais nada. Segundo a OMS, a cada dólar investido em democratização ao acesso à prática esportiva, economizam-se três dólares em saúde pública. Nós tínhamos de ter investido em prática esportiva como fator de saúde. Num país com as dimensões do Brasil, com essa quantidade de jovens, você tiraria qualidade com a mão, e poderia entregar para a iniciativa privada cuidar disso.

    A função do Estado era ter posto a população brasileira para fazer esporte, e criar uma política esportiva para o Brasil. O que não ocorreu, e eu os questionei por isso. A ideia de fazer campeões é absolutamente fora de contexto num país como o Brasil, embora, evidentemente, o campeão emule a população a fazer esporte. Tem esse aspecto, mas não se pode eleger como prioridade o ‘fazer campeão’ num país com os nossos problemas. Isso acaba, inclusive, sendo injusto com os atletas de alto rendimento, pois se exigia deles aquilo que não podiam dar. E muita gente dizendo: ‘Ah, o brasileiro, na hora H, treme. Quebra a vara da Fabiana Murer…’. Mas por quê? Porque toda a expectativa de vencer todos os nossos fracassos era colocada em cima deles. E eles eram poucos.

    Revelação de craques

    Tirando o futebol, que não precisava (e hoje precisa) ter grandes estruturas, os outros esportes sempre foram de geração espontânea no Brasil. O Guga, no tênis, apareceu porque o pai dele patrocinava, o chamado paitrocínio. No atletismo aparecia mais gente, por ser um esporte que exigia menos equipamento. Tivemos os campeões de salto triplo, Adhemar Ferreira da Silva, Nelson Prudêncio, João do Pulo. Podiam perguntar o que tem no Brasil para sermos bons em salto triplo, mas é o mesmo que perguntar o que temos para sermos bons em Fórmula 1. Manoel dos Santos, recordista mundial dos 100 metros livres na Olimpíada de Roma, em 1960, também era a exceção da exceção.

    Olimpíadas e Copa no Brasil

    O saldo, para nós, não foi positivo. As Olimpíadas são um evento que um país pode fazer para fechar uma política esportiva. Na hora em que uma Nação se transforma em olímpica, competitiva, aí se faz uma Olimpíada. Esse Carlos Arthur Nuzman, para enriquecer, convenceu Lula de que o evento seria o primeiro passo para fazer do Brasil um país poliesportivo.

    Não fez e não ficou nada. Ao contrário. Hoje, o bolsa atleta virou poeira, e os equipamentos estão todos sucateados no Rio de Janeiro. O que havia de instalações anteriores no Rio foi derrubado para se fazer Olimpíada, e não se fez nada no lugar. Foi um desastre do ponto de vista de legado. A festa foi linda, isso é inegável. A cerimônia de abertura e de encerramento, a Olimpíada em si transcorreu bem, mas nada justificava que o Brasil fizesse aquilo.

    Os governos petistas não fizeram política democrática de esporte. Perderam uma oportunidade de ouro. A função do Estado era ter posto a população brasileira para fazer esporte, e criar uma política esportiva para o Brasil. O que não ocorreu, e eu os questionei por isso. A ideia de fazer campeões é absolutamente fora de contexto num país como o Brasil

    É diferente de uma Copa do Mundo. Tudo justificava que o Brasil, que tinha feito em 1950, voltasse a fazer em 2014, um país cinco vezes campeão do mundo. Mas tínhamos que ter realizado a Copa do Brasil no Brasil, não a Copa da Ásia no Brasil, ou a Copa da Alemanha no Brasil, construindo 12 estádios quando a própria FIFA pedia oito. Fizemos 12 e queríamos ter feito 16. Dona Marina Silva queria fazer um estádio em Rio Branco, no Acre! Não há o que justifique não terem usado o Morumbi para os jogos em São Paulo, em vez de construírem um estádio em Itaquera.

    Os Estados Unidos da América não construíram nenhum estádio para fazer a Copa em 1994. A França construiu dois. Aqui, fizemos 12. Aqueles que estavam prontos derrubamos para fazer outros em cima. Maracanã, Mineirão… Derrubamos a cobertura do Maracanã, tombada pelo Iphan. Fizemos uma arena na Amazônia, em Manaus. Foi um absurdo. E, ainda, estimulou-se aquela coisa do ‘padrão FIFA’. Queremos uma escola padrão FIFA, um SUS padrão FIFA. Havia ali uma semente que redundou em tudo o que a gente sabe. Lula até hoje briga comigo quando falamos disso. Ele diz que não houve um tostão de desvio…”