A PEC da morte, a democracia escancarada e a privatização da
coisa pública
Texto de Rosa Maria Marques*
O congelamento por vinte anos os gastos públicos pode acarretar mudanças radicais no funcionamento da sociedade. Em lugar do interesse coletivo, teremos a defesa do interesse do capital portador de juros e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor
Em 15 de dezembro de 2016, foi publicada no Diário Oficial a Emenda Constitucional 95/16, chamada pelos movimentos sociais de “PEC da morte” desde sua tramitação na Câmara e no Senado. Ela institui um novo regime fiscal na Constituição Brasileira, definindo que os gastos federais – excluídos os juros da dívida pública – serão congelados por vinte anos, tendo como base o efetivo gasto em 2016.
Os valores dos orçamentos dos anos seguintes serão somente atualizados pela inflação e seus valores reais poderão, a depender dos resultados obtidos em termos de equilíbrio fiscal, ser revisados somente depois de dez anos. A justificativa tinha/tem como base o diagnóstico de que todos os males da economia brasileira se devem à suposta escalada desenfreada do gasto público e que, portanto, essa deve ter fim, pois estaria elevando o nível da dívida pública a patamares incontroláveis.
O que há de novidade nessa proposta? Quais são suas consequências? Passados um ano de seis meses de sua aprovação, quais foram os impactos desse novo regime fiscal nas políticas públicas, especialmente nas políticas sociais?
Medida sem paralelo
A adoção de um teto para o gasto público não é novidade, pois já foi assumida em outros países. Contudo, ao se analisar estudo publicado pelo FMI para 89 países, verifica-se que não há paralelo à proposta aqui aprovada (BOVA et al, 2015). Em nenhum lugar o horizonte temporal é tão longo; não incluem no congelamento os gastos sociais; não deixam de fora os juros da dívida pública; e, com exceção de apenas três países pequenos – Dinamarca, Geórgia e Cingapura -, não introduzem na constituição esse dispositivo de controle do gasto público (MARQUES e ANDRADE, 2016). Contrastando com essas experiências, a EC 95/16 abrange o tempo de uma geração, não inclui as despesas com os juros da dívida pública e altera a Constituição. E, apesar de o país estar enfrentando um elevadíssimo nível de desemprego e de conviver com uma destacada desigualdade social, não houve qualquer preocupação em resguardar os programas de transferência de renda dirigidos aos segmentos mais pobres da população e o seguro desemprego.
No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi realizado a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais. Mesmo que tivéssemos a hipótese de que o gasto atual é adequado – o que não é -, a emenda desconsidera que a população continuará a crescer e envelhecer nesses vinte anos. Isso exige ampliação dos gastos em determinadas área.
Os detentores da dívida, bem como de outras formas assumidas pelo capital fictício, consideram que é possível manter ad eternum a alta rentabilidade de seus “ativos”, sem que tenham de se preocupar com o que ocorre com a produção, com o nível do emprego, com os salários e com os gastos sociais. Eles revelam, assim, seu total descompromisso com as necessidades da população. E a EC 95/16 implica submeter totalmente o funcionamento do Estado brasileiro aos interesses dos detentores da dívida.
No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi feito a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais
Estado do Capital
O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação alguma, as instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista. Não é por acaso que, ao mesmo tempo em que o congelamento dos gastos públicos está sendo implantado, aprofunda-se a mercantilização da saúde, da educação e são propostas mudanças na previdência que irão ampliar a presença do setor privado nesse campo.
Ao longo dos vinte anos de vigência do congelamento, certamente pouco restará da presença do Estado nessas áreas. Se a essa possibilidade somarmos a tendência de incorporar no serviço público a lógica da administração das empresas privadas, nada restará daquilo que chamamos de coisa pública. Nem na forma, nem no conteúdo. Como disse Margareth Thatcher, “o objetivo é mudar o coração e a alma”. No lugar do interesse coletivo ou do povo, atendido mediante ações e políticas que permitem sua manutenção e reprodução – emprego, salário, rendas derivadas das políticas sociais e de outras políticas públicas -, teremos a defesa do interesse dos detentores da dívida pública, isto é, do capital portador de juros, e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor para manter a ordem e a propriedade privada.
Os impactos já sentidos na saúde
Houve queda do nível de gasto do governo federal em 2017 depois de muita pressão dos movimentos comprometidos com o SUS, apesar de nesse ano, os 15% da Receita terem sido considerados como piso orçamentário.
a) As despesas totais efetivamente pagas com Ações e Serviços Públicos de Saúde-ASPS pelo Ministério (resultado da soma dos restos a quitar com os pagamentos dos empenhos de 2017) foram de R$ 107,622 bilhões, enquanto o piso para o ano era de R$ 109,088 bilhões. Os valores ficaram, portanto, abaixo do piso – aplicação mínima – federal em ASPS em 2017.
b) As transferências para os Estados, Distrito Federal e Municípios, que representam 2/3 das despesas do Ministério da Saúde, totalizaram R$ 67,9 bilhões em 2017, contra R$ 66,7 bilhões em 2016, o que representou um crescimento nominal de 1,83%, abaixo do crescimento anual do IPCA/IBGE de 2,95%, ou seja, houve uma queda real dessas transferências (FUNCIA, 2018).
Vale lembrar que no capitalismo contemporâneo o grande capital, seja industrial ou comercial, está intimamente imbricado com o capital portador de juros e, dentro dele, o capital fictício. Por isso, denominamos o grande capital de financeirizado.
O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação, suas instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista
Democracia sem função
No plano político e mais imediato, o congelamento do gasto público tem como consequência destruir qualquer sombra que ainda possa existir da democracia burguesa e da possibilidade de o executivo, eleito em eleições gerais, ter liberdade, mesmo que relativa, para implantar o programa para o qual foi eleito.
Como é sabido, em um regime democrático burguês, o executivo é eleito pela maioria dos votos e, a partir daí, executa em teoria seu programa, o que é mediado pela representação das demais forças políticas no Congresso e pelas demandas dos setores sociais populares organizados. A concretização dessa síntese de diferentes interesses presentes na sociedade se expressa no orçamento do governo federal, pois à proposta inicial encaminhada pelo governo, somam-se emendas e supressões apresentadas pelos parlamentares. Tudo muda com a implantação do teto de gastos. É como se não houvesse importância saber quais serão o futuro presidente, deputados federais ou senadores, e qual a orientação programática que eles defendem.
A política é excluída da esfera fiscal e o presidente da República passa a ser mero executor dos interesses cristalizados na EC 95/16. Dessa forma, perde-se o último grau de liberdade que o executivo ainda detenha neste mundo globalizado, sob a dominância do capital portador de juros. Sem real capacidade de fazer política cambial frente aos movimentos dos capitais; sem real capacidade para fazer política monetária a não ser aquela ditada pela “comunidade financeira internacional”, agora, com a EC 95/16, perde-se a possibilidade de fazer política fiscal.
Em outras experiências internacionais, a definição de tetos de gastos passou por alguma mediação política – com horizontes mais curtos, possibilidades de revisão de metas, incorporação da dívida pública, etc. No Brasil, essa dinâmica de anulação da política fiscal aparece de forma crua. Ainda que permaneçam as pressões sobre o orçamento, os marcos da disputa são enquadrados segundo resultados estabelecidos previamente.
Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
*Professora titular de economia da PUCSP e militante do PSOL
Referências
BOVA, Elva; et al. Fiscal Rules at a Glance. International Monetary Fund, 2015. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/FiscalRules/Fiscal%20Rules%20at%20a%20Glance%20-%20Background%20Paper.pdf Acesso em 13/11/2016.
FUNCIA, Francisco. Transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para Estados e Municípios em 2017. Idisa, Domingueira, nº 17, junho de 2018. Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-17-junho-2018. Acesso em 10/06/2018.
MARQUES, Rosa Maria e ANDRADE, Patrick Rodrigues. Democracia burguesa e dominância do capital portador de juros: apontamentos sobre processos em curso no Brasil. O Olho da História, nº 24, 2016. Disponível em http://oolhodahistoria.ufba.br/wp-content/uploads/2016/12/rosamaria-1.pdf. Acesso em 10/06/2018.
A crise argentina foi provocada pela radicalização do projeto neoliberal. Os vários desequilíbrios daí provocados geraram instabilidade, perda de confiança e fuga de capitais. Pelo lado democrático só há uma saída: manter a potência das ruas
Sempre se soube que Maurício Macri, presidente da Argentina, governava para os ricos e que o modelo econômico acabaria numa grande crise. A primeira afirmação sempre foi evidente, dada a redistribuição regressiva dos rendimentos que ele perpetrou nos zúltimos dois anos. A segunda começou a se evidenciar com a volta das corridas cambiais.
O modelo neoliberal – assentado em enormes desequilíbrios fiscais e em endividamento externo – está abalado. Todos imaginavam que haveria recursos até 2019, mas o “fim do filme” antecipou-se de forma imprevista. O governo maquiou essa negativa com um falso anúncio de maior financiamento local, mas os capitais especulativos captaram de imediato o significado da negativa. Emitiram ordem de retirada – uma fuga de capitais – e teve início a disparada do dólar. O financiamento foi cortado devido à desconfiança dos credores, que pressentiram a futura insolvência do devedor argentino. Por isso, as agências de “rating” baixaram o polegar, o risco no país aumentou e a imprensa especializada descreve cenários dramáticos.
Uma consequência do modelo
A fragilidade do setor externo é o ponto mais crítico do modelo atual. Ao notar a ausência futura dos dólares necessários para sustentar o endividamento, os bancos retiraram os créditos. Esses observaram a magnitude do déficit externo, que no ano passado superou os US$30 bilhões (5% do PIB). O problema central localiza-se na esfera comercial. O desequilíbrio de US$8 bilhões em 2017 marcou um recorde histórico. Ele foi gerado pelas fantasias livre-cambistas do governo, que abriu o mercado a todo o tipo de importações. Enquanto no mundo impera uma dura negociação por tarifas alfandegárias, a Argentina transformou-se num depósito de qualquer excedente. E, ainda por cima, as exportações estancaram, como resultado da valorização do peso devido ao ingresso de capitais especulativos.
A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados a toda velocidade
O desequilíbrio no plano financeiro é igualmente dramático. A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados com a mesma velocidade com que se anulou a obrigação de liquidar os dólares da exportação. Nas mesmas condições se fundamenta a “bicicleta” financeira dos fundos que lucram com a rentabilidade altíssima dos títulos argentinos. As delirantes taxas de juros que asseguram o negócio destroem qualquer possibilidade de investimento produtivo. O uso inadequado das divisas inclui também o alto gasto em turismo. Essa hemorragia foi, inclusive, comemorada por vários ministros com um maravilhoso exemplo de “retorno ao mundo”.
Terremoto econômico
O rombo fiscal é também impressionante. Aproxima-se do percentual do PIB (6-7%) que tradicionalmente precipitou os grandes terremotos da economia. O governo destaca a envergadura desse déficit e o apresenta como obra de outrem, a ser administrado. Com gestos de compaixão, afirma ser necessário mantê-lo para financiar o “gradualismo” e evitar maiores sacrifícios à população. Mas, oculta que todos os desequilíbrios derivam do modelo em curso e não do ritmo da sua implementação. Se tivesse carregado no acelerador da engrenagem neoliberal, o desastre seria infinitamente maior.
Quando os representantes do governo reclamam contra o costume de “gastar mais do que se recebe”, atribuem todas as desgraças ao primeiro componente. Esquecem que a receita fiscal ficou seriamente afetada pela redução dos impostos dos exportadores. Tampouco destacam que a lavagem de dinheiro não reverteu a evasão. A Argentina está em quinto lugar no mundo no ranking desse flagelo e a moda oficial de proteger ativos de empresas “off shore” ilustra quem são os promotores da fraude fiscal.
O discurso oficial também se esquece de dizer que o pagamento de juros deteriora as contas públicas. Só no primeiro trimestre do ano, esses encargos aumentaram 107% em comparação a 2017.
Descalabros incorrigíveis
O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central. Este, em poucos dias, queimou vários manuais de política monetária, recorreu a todos os instrumentos conhecidos para deter a corrida e não acertou com nenhum. Apelou, inclusive, sem resultados, ao “judicializado” mercado de dólar futuro.
A crise internacional não foi, até agora, determinante do desastre argentino. Persiste a liquidez financeira global e não se observa uma repetição do “efeito dominó” sobre as economias latino-americanas. Certamente, que o incremento das taxas de juros dos EUA altera todos os investimentos no mundo, mas esse reajustamento, de momento, tem efeitos limitados.
Se a Argentina vive esse resfriado como se fosse uma grave pneumonia, isso se deve ao pânico que o tresloucado endividamento suscita. Nos últimos anos, o país encabeçou o tabuleiro mundial de colocação de títulos e é penalizado por esse descontrole, mas o grosso da população não é responsável por essa má gestão. O culpado é Macri e os chefes do gabinete, que engrossaram as fileiras da classe capitalista. Para ocultar esse delito, os comunicadores oficiais atribuem a todos os “argentinos” um desfalque consumado por essa minoria de privilegiados.
Retorno ao mesmo Fundo
Os números de maio retratam a gravidade da crise: desvalorização cambial de 20%; taxas de juro de 40% e perda de US$8 bilhões de reservas. O temor de um dramático desfecho aumenta, com alguns sintomas de transferência dessa tensão aos bancos.
O governo zomba da população transmitindo mensagens de tranquilidade. Pretende criar a ilusão de uma simples correção da flutuação cambial, sem nenhuma consequência maior. Ainda repete que o nível de endividamento é “baixo em comparação com o PIB”, como se essas porcentagens, e não a capacidade de pagamento efetiva do devedor, determinassem a atitude dos credores. Enquanto o discurso oficial minimiza a crise, os investidores do exterior não medem palavras para dizer “fujam da Argentina” (Forbes). A tranquilidade do governo é uma estratégia tosca para evitar o despertar coletivo face à grave situação.
O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central
A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios papas do Fundo. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. A decisão foi tão imprevista, que anunciaram o retorno ao organismo sem dizer em que base isso se daria e sem mudar o ministro. Os representantes do governo peregrinam por Washington desconhecendo as condições dos empréstimos que mendigam. Num contexto de baixas taxas internacionais e de certa recuperação da crise de 2008, poucos países recorrem ao FMI. Os que escolhem essa saída não têm outra opção.
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FMI não mudou
É totalmente ridículo imaginar a existência de “outro FMI”. Essa instituição é gerida pelos mesmos peritos que destroem conquistas populares, e os países amarrados a sua tirania atravessam o pior dos mundos. É o caso da Grécia, que não pode livrar-se da auditoria do Fundo. Os gregos já padeceram quatro “salvamentos” dos bancos e três agudas recessões, que fizeram a renda nacional retroceder 25%. A taxa de desemprego está em torno dessa mesma percentagem, a dívida pública elevou-se para 180% do PIB e as pensões sofreram 14 cortes.
A Argentina depara-se com as mesmas perspectivas. O FMI será duríssimo com o país. Das três variantes creditícias que há disponíveis, apenas ofereceu a versão mais intragável. Descartou a linha flexível que Colômbia e México receberam e a modalidade de precaução utilizada por Macedónia e Marrocos. À Argentina, apenas outorgarão o conhecido stand by por um montante ainda desconhecido.
A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios financistas. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. O Fundo será duríssimo com o país
Os US$30 bilhões que o governo pede superam o atribuído aos 13 países, atualmente, com planos de estabilização. A soma final chegará igualmente a conta-gotas, para evitar a rápida conversão em divisas em fuga para o exterior.
Cada parcela utilizada desse crédito será rigorosamente auditada pelo Fundo. Essa auditoria simboliza o brutal retorno aos anos 1990. Os peritos do FMI voltarão, trimestralmente, para constatar a insatisfação e exigir mais ajustamentos.
Não há mistério em exigências imediatas. Em dezembro passado, elaboraram um detalhado ultimato de redução da despesa social, com maior flexibilidade laboral, reforma do orçamento e demissão de funcionários públicos. A paulatina privatização do Anses – órgão responsável pela arrecadação de impostos – e o drástico corte dos orçamentos dos Estados figuram no topo de sua agenda. Nas conversações de agora, teriam acrescentado um novo perdão fiscal e, sobretudo, uma máxima desvalorização com recessão.
Ritmo e intensidade
O ritmo e a aplicação desse pacote dependerão da intensidade da crise. Todos os meses o Banco Central deve se defrontar com um enorme vencimento de títulos (Lebacs). O volume total desses títulos equivale ao montante das reservas e ao total do dinheiro circulante. Se a maioria dos detentores resolve liquidá-los para se refugiar no dólar, a corrida contra o peso pode se tornar incontrolável. O governo tenta administrar esse explosivo pacote oferecendo taxas de juros elevadíssimas que asfixiam o conjunto da economia. Ao propagar rendimentos superiores a 40%, pretende alongar a renovação desses papéis. Mas, com esse artifício, não consegue atenuar a desvalorização geral dos títulos públicos, gerando desvalorização de ativos de todas as instituições que entesouram esses papéis.
Em qualquer cenário, o pacto assinado com o FMI empurra a economia para o precipício. Já se antevê o ciclo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação
Em qualquer cenário o pacto assinado com o diabo do FMI empurra a economia argentina para o precipício. Já se antevê o círculo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação.
A antecipação desse quadro desponta no novo nível de inflação anual de 30%. Se a taxa de juro não baixar rapidamente, a recessão será inevitável. O governo cortou 30 bilhões de pesos do investimento público, mas o FMI exigirá uma paralisação total. Nos próximos meses, ninguém se recordará da ficção estatística de menor pobreza que o governo difundiu. Basta observar a pavorosa expansão da mendicidade nas ruas para observar qual é o panorama social com que o país se depara.
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Reagir a tempo
A gestão da bomba que o governo instalou dependerá da memória e capacidade de reação popular. O repúdio total ao acordo com o FMI foi antecipado pelas pesquisas realizadas antes da negociação. Entre os 75% dos entrevistados que rechaçam o acordo, está a maioria dos votantes de Cambiemos – nome do movimento que conduziu Macri ao poder.
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O retorno ao FMI tem um significado emocional enorme. Recria todo o sucedido em 2001. Por isso já se difundem tantas analogias com o bloqueio De la Rúa, quando ele tentou refinanciar a dívida junto ao FMI, o que foi um fracasso e conduziu ao colapso de 2001. É imprescindível transformar essa bagagem em rejeição ativa, mobilização e propostas alternativas. O ponto de partida é ganhar a rua para gerar uma drástica reversão do curso atual. O clima de aceitação tácita das desregulamentações – que os grandes meios de comunicação propagam – desprotege a economia. Para evitar o agravamento da crise, há que reintroduzir todas as regulações eliminadas pelo governo. São medidas básicas face à emergência.
O controle do câmbio é tão urgente como a proibição da livre entrada e saída dos capitais. Os depósitos dos pequenos poupadores devem ser protegidos, enquanto os grandes bancos e detentores de títulos devem suportar as perdas dos títulos desvalorizados. Há que erradicar todos os mitos sobre a adversidade de um controle cambial. Os dólares não são um bem privado de livre disponibilidade. Sem controle do entesouramento e circulação, não há forma de lidar com a fuga de capital.
Em lugar de voltar ao FMI, é necessário investigar a dívida contraída nos últimos anos e levar ao tribunal os responsáveis por essa aventura. Luís Caputo, ministro das Finanças; Nicolás Dujovne, ministro da Fazenda; e Federico Sturzzeneger, presidente do Banco Central deveriam estar perante à justiça. Enquanto se verifica o estado real das contas públicas, há que se parar a hemorragia de divisas que o pagamento dos juros impõe. A crise atual começou com a submissão aos “fundos abutres” e não pode ser resolvida sem ajustar contas com os depredadores do tesouro nacional. A gestão estatal do sistema financeiro é uma condição para emergir da delicada situação atual.
Apenas, assim, o custo da crise recairá sobre os seus causadores e não sobre a maioria popular. Esse caminho requer uma frontal batalha de ideias com todos os economistas da direita que se apropriaram da televisão.
A intensidade da mobilização nas ruas definirá quem ganha o jogo. Em plena confusão popular face ao abalo financeiro, essa reação é agora limitada. Está pendente o reaparecimento da grande força conseguida nas ruas nas jornadas contra a reforma previdenciária e na campanha pela descriminalização do aborto. A rejeição do FMI ocupa agora o primeiro lugar de qualquer reivindicação.
É urgente frear a maior agressão contra as conquistas populares dos últimos anos. O tão anunciado mega ajuste se aproxima, finalmente. Face à artilharia que o governo, o FMI e os capitalistas preparam, há que se construir as defesas populares a toda velocidade. Tal como já ocorreu no passado, de novo são eles ou nós.
(Tradução de Rosa Maria Marques)
Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
Apesar de os meios de comunicação alardearem que a carga tributária brasileira é muito alta, a afirmação representa uma meia verdade. Há muito imposto para os pobres e pouca cobrança para os ricos. Essa situação – diversa dos países europeus e mesmo dos EUA – impede o Estado brasileiro de cumprir plenamente sua função social, de aumentar e melhorar os serviços públicos e de promover a justiça social.
Uma das propostas fundamentais a ser debatida na eleição para presidente da República é a reforma tributária. Isso, porque o Brasil possui uma das mais injustas estruturas fiscais na qual a população de baixa renda e a classe média, sobretudo, pagam mais impostos, proporcionalmente, que o 1% mais rico da população.
Nesse contexto é importante lembrar que, segundo estudos da ONG Oxfam, seis brasileiros concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de habitantes – ou 50% – mais pobres do país.
Estudos do IPEA já identificaram há anos essa injustiça, ao mostrar que as pessoas que ganham dois salários mínimos comprometem 53,9% da renda com pagamento de tributos e as que ganhavam mais de 30 salários, totalizam 29% na modalidade. Esse fato se dá porque a maior parte dos tributos é indireta e recai sobre o consumo, penalizando na mesma proporção quem ganha dois, trinta ou trezentos salários mínimos – uma enorme injustiça.
O imposto nos produtos
Exemplo disso é que ao comprar uma televisão que custa R$ 2 mil, independentemente, de quanto é o salário ou a renda, o cidadão pagará 45% desse valor em tributos indiretos que vão para os cofres públicos. Um trabalhador que ganha R$ 1 mil ao comprar essa televisão pagará R$ 900,00 de tributos, isto é, 90% de seu salário e uma pessoa que ganha R$ 50 mil e compra a mesma televisão pagará os mesmos R$ 900,00 o que significa 1,8% de seu rendimento. Essa injustiça se repete e ocorre na compra de roupas, sapatos, alimentos ou qualquer produto em nosso país.
A reforma que interessa a esmagadora maioria do povo brasileiro precisa acabar com essas distorções e fazer justiça. Ao apontarmos para uma reforma tributária que atenda a esse objetivo, usaremos como referência a proposta que foi apresentada pelo Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, e que já tem o apoio de vinte entidades da sociedade civil dentre as quais a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a Associação de Docentes da USP e da Universidade Federal do ABC, a Intersindical e a UGT.
Em favor da baixa renda
Propomos a redução dos impostos indiretos, o que favorecerá, principalmente, os cidadãos de baixa renda. Isso ocorrerá porque as empresas terão reduzidos os tributos que devem pagar ao Estado o que diminuirá seus custos. Essa diminuição de custos deverá ser repassada aos preços dos produtos, aumentando indiretamente a renda dos consumidores e servirá ainda como vetor de combate à inflação. Em relação aos tributos indiretos, salientamos que tratamento especial deve ser dado a CSLL e a COFINS que foram criados para financiar o Sistema de Seguridade Social (Art. 195 da Constituição Federal – CF).
A perda de receitas será compensada pelo aumento dos tributos diretos, principalmente, sobre o 1% mais rico da população. Essa medida é necessária por permitir a manutenção da capacidade de investimento do Estado brasileiro, principalmente nas áreas de educação e saúde. Ressalta-se que 83% dos estudantes antes de entrarem na universidade frequentam escolas públicas e cerca de 160 milhões de brasileiros não têm plano de saúde, todos dependendo da ação do Estado. Além de educação e saúde, investimentos devem ser feitos nas áreas de pesquisa/tecnologia, infraestrutura, cultura e outras. Essa proposta, além de justa, tem como referência o que ocorre nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCD, tais como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, nos quais os tributos diretos pesam mais que os indiretos.
Propomos a redução dos impostos indiretos, o que favorecerá, principalmente, aos cidadãos de baixa renda. As empresas terão reduzidos os tributos que devem pagar ao Estado, o que diminuirá seus custos. A perda de receita será compensada pelo aumento dos tributos diretos, principalmente, sobre o 1% mais rico da população
Imposto de Renda
Em relação ao imposto de renda propomos a isenção para quem ganha o equivalente ao salário mínimo definido pelo DIEESE (Art. 7 item IV da CF), que em abril de 2018 era de R$ 3.696,95. A partir desse patamar, a proposta é aumentar as alíquotas em 8% até chegar ao limite de 40%. Hoje, a alíquota máxima no Brasil é de 27,5% tanto para quem ganha R$ 5 mil ou R$ 50mil.
A mudança acarretará uma diminuição fiscal para os assalariados de menor renda e para uma parcela da classe média. A compensação virá do aumento de alíquotas sobre as rendas maiores. Nesse quadro propomos ainda a volta da cobrança sobre a distribuição de lucros e dividendos. Por incrível que pareça só o Brasil e a Estônia não têm esse tipo de tributação, extinta durante o governo FHC.
Um exemplo de como é possível aumentar a arrecadação sobre a parcela dos mais ricos foi explicitado em artigo (FSP 16/04/2018) elaborado pelo professor da FEA/USP, Paulo Feldmann. Segundo ele, se houver um aumento da alíquota efetiva de 6% para 9% para aqueles que têm renda mensal maior que R$ 160 mil, o que abrange 60 mil contribuintes, haverá uma arrecadação de R$ 186 bilhões por ano.
Em termos comparativos destacamos algumas alíquotas máximas em outros países: Suécia 56,5%; Inglaterra 50%; Portugal 46,5%; México 30%; Argentina 35%; e Chile 40%.
É necessário lembrar que entre 1983 e 1985 o Brasil teve 13 alíquotas de Imposto de renda, que variavam de 0% a 60%.
Taxação sobre Herança
Em relação ao imposto sobre herança, lembramos que ele está definido no Art. 155 da Constituição Federal, porém é um tributo de competência estadual. Por sua vez, a resolução de número 09/92 do Senado Federal estabeleceu um teto de 8%. Hoje, no estado de São Paulo, ele é de 4%. Aqui, destacamos mais um dos absurdos que ocorrem em nosso país. Uma resolução do Senado vale mais que um artigo da Constituição, esta, por sua vez, aponta que os Estados devem definir o quanto será a alíquota desse imposto, cuja resolução limita a 8%.
Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo
Esse imposto deve ser progressivo, pesando menos para as menores heranças e mais para as maiores, até o limite de 30%. O imposto sobre herança deve ser federal.
Na Inglaterra, essa modalidade tem mais de 300 anos. O conservador primeiro ministro inglês da época da II Guerra Mundial, Winston Churchill, dizia que “este imposto é muito bom para evitar ricos indolentes”.
Alguns exemplos sobre as alíquotas desse tributo em outros países: Inglaterra 40%; França 32,5%; Japão 30% e Chile 13%.
Imposto sobre a Propriedade
A respeito do imposto sobre a propriedade destacamos em especial o Imposto Territorial Rural-ITR que é auto declaratório, como o imposto de renda.
Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo. Isso significa que o agronegócio, os grandes fazendeiros não pagam praticamente nada de imposto sobre suas propriedades.
O Estado deve fazer uma fiscalização tão rigorosa na declaração desse imposto, como é feita em relação à declaração do imposto de renda. e as alíquotas precisam ser atualizadas e recalculadas em sua progressividade.
Imposto sobre Grandes Fortunas
Em relação ao imposto sobre grandes fortunas destacamos o que está definido no Artigo 153 da CF: “Compete a União instituir impostos sobre grandes fortunas, que será instituído nos termos de lei complementar (Item VII)”. Essa lei complementar não foi regulamentada até hoje, 30 anos após a aprovação da Constituição.
Propomos:
– A regulamentação da Lei do Imposto sobre Grandes Fortunas-IGF.
– Que a Receita Federal informe o valor do patrimônio das pessoas por faixa de renda.
– Que as alíquotas aplicadas sejam progressivas.
A proposta visa deslocar parcela do estoque de riqueza acumulado nas mãos do setor extremamente rico da sociedade e aumentar a capacidade de investimento do Estado, principalmente nas áreas sociais.
Transparência das Contas Públicas
A reforma tributária precisará ser acompanhada da total transparência das contas públicas, o que será de enorme importância para o presidente da República que tiver interesse em desenvolver a cidadania e combater a corrupção.
Nesse sentido, além de seguir o que está definido nos Artigos 48, 48 A – itens incluídos pela Lei Complementar 131/2009 – e Artigo 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal, será fundamental implantar todas as medidas necessárias para dar transparência e ampla divulgação do orçamento público e de sua execução. Nesse documento está registrada toda a arrecadação e toda a despesa do Estado.
Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo
Além de estarem nos sites do governo, os dados do orçamento precisam ser colocados de forma impressa e visível nas salas dos órgãos públicos, onde a população tem acesso. Sindicatos de trabalhadores e de empresários devem ter acesso a tais dados, bem como os movimentos sociais organizados, ONGs, Conselhos de Saúde, Educação, Transporte e outros.
Uma reforma tributária com todas essas características possibilitará avançarmos no caminho da cidadania e da qualidade de vida em nosso país.
Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
*Economista, mestre em Economia pela PUC/SP. Foi Presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, vereador e subprefeito na cidade de São Paulo. Autor do livro Orçamento Público e Cidadania (Editora Livraria da Física)
“O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas”, Sonia Guajajara
Entrevista concedida à Gilberto Maringoni e Valério Arcary
Sonia Guajajara é uma das mais importantes lideranças indígenas e ambientais brasileiras e compõe com Guilherme Boulos a chapa do PSOL-PCB, em aliança com movimentos sociais, para a presidência da República. Dirigente da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que congrega mais de 300 povos, origina-se dos Guajajaras/Tentehar que habitam as matas da Terra Indígena Arariboia no Maranhão. É a primeira vez na história do país que uma indígena integra uma chapa majoritária federal. É um feito carregado de significados políticos e simbólicos e sintetiza uma luta de cinco séculos contra a opressão colonial e de classe sobre nossos povos originários. Nesta entrevista, Sonia conta sua história de militância, a luta dos índios brasileiros e os projetos para governar o Brasil.
Quem é: Maranhense (1974), com pais analfabetos, morou até os 15 anos em sua terra indígena, no município de Amarante, próximo a Imperatriz. Cursou o ensino médio em Minas gerais, com apoio da Funai. É graduada em Letras e Enfermagem e pós-graduada em Educação pela Universidade Estadual do Maranhão-UEMA.
História: Sua militância começou em organizações de base da Igreja católica e na Coordenação das organizações e articulações dos povos indígenas no Maranhão-Coapima. Em seguida integrou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-Coiab e chegou à coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB. Esteve à frente de movimentos pela manutenção de direitos e de preservação ambiental. Tem atuação internacional junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e já levou denúncias às Conferências Mundiais do Clima-COP de 2009 a 2017 e outros órgãos internacionais.
FLC – Por que as pessoas devem votar no Guilherme e em você?
Sonia Guajajara – Votam porque sofremos as mesmas opressões as quais o povo brasileiro é submetido. Uma indígena e um guerreiro da luta pela moradia expressam, em seu simbolismo, algo significativo: de um lado, uma mulher que denuncia com sua história as opressões dos modelos colonial, neocolonial e imperialista que ceifam a vida por meio da força do capitalismo. Através dos séculos essa força vem destruindo a nossa morada, a Mãe Terra. De outro lado, temos um lutador, um jovem que decidiu entregar a sua vida para superar as desigualdades e as injustiças que assistiu ao longo de sua trajetória. Essa aliança, entre o homem urbano e a mulher indígena das matas, expressa com força o novo modelo de desenvolvimento que deve imperar no Brasil. Superar o “entreguismo”, a má política e construir um novo modelo econômico contrário aos históricos modelos de sociedades industriais, consumistas e, ambientalmente, predatórios, é urgente e necessário. Dessa forma, acredito que só a nossa candidatura é capaz de apresentar uma plataforma como essa, assim como só a nossa geração é capaz de construí-la.
“Estamos, pela primeira vez, disputando um processo eleitoral e em uma chapa presidencial. E não só uma liderança indígena, mas uma liderança indígena mulher”
FLC – Há algum preconceito por você ser mulher ou indígena?
Sonia Guajajara – Diretamente não, mas a gente percebe de forma indireta. Às vezes as pessoas demonstram surpresa: “nossa, uma indígena!” Porém, o que tenho ouvido mais frequentemente é o oposto: “que bom que tem uma indígena!”. Quando as pessoas me abordam é de forma positiva e acreditam que é isso mesmo, que tem de ter uma indígena ocupando esse espaço da política institucional. Estamos, pela primeira vez, disputando um processo eleitoral numa chapa presidencial formada não apenas por uma liderança indígena, mas uma liderança indígena mulher. Entretanto, nas redes sociais há uma demonstração absurda de ignorância e racismo.
FLC – Como você chegou ao movimento indígena?
Sonia Guajajara – Sempre fui muito participante e muito atuante. Por eu ter uma curiosidade de tentar entender as coisas desde menina, as lideranças, os caciques, me chamavam para participar de reuniões. Nessa época eu já gostava muito de ler e de escrever. Eu sempre estava ali para registrar as discussões.
FLC – Como foi a sua infância?
Sonia Guajajara – Sou do município de Amarante, onde está minha terra indígena, Arariboia. Fica perto de Imperatriz. Nasci no povoado Campo Formoso, uma pequena vila, que por ocasião da demarcação da terra indígena Arariboia ficou fora da área demarcada. Cresci entre o povoado e a aldeia e fiquei lá até os dez anos trabalhando com meu pai e minha mãe. Ele sempre trabalhou na roça e eu sempre o acompanhei plantando e colhendo arroz. Quem desejava estudar tinha de sair de lá para continuar o ginásio.
Foto: Mídia Ninja
FLC – Quando você se interessou pela política?
Sonia Guajajara – Aos dez anos, além de participar da vida nas aldeias, comecei a tomar parte de discussões na Igreja Católica. Ia muito ao interior, a cavalo ou a pé, falando com pessoas. Zezinho Bahiano era um grande líder na luta pela terra e pela reforma agrária e eu circulava com ele pelos interiores, articulando com pequenos produtores. Logo, fui estudar em Amarante e morei na casa de uma família, algo muito comum naquela época. A gente ficava na casa das pessoas como babá ou doméstica para estudar e ter um lugar para morar. Ninguém recebia salário, apenas casa e comida. Trabalhava o tempo todo. Hoje, sei que isso é considerado trabalho escravo, mas na época não. Aos 12 anos, eu cuidava de duas crianças e levantava muito cedo para fazer café da manhã. Foi na luta pela vida que compreendi a necessidade de superar as opressões, o machismo, as desigualdades e o preconceito. Acredito que essa longa história de opressão me deixou não apenas com uma forte consciência e desejo de lutar para superar, mas me deu dimensão do papel que eu deveria cumprir. Foi aí que percebi que minha missão não era apenas com a linhagem sanguínea, mas com o povo oprimido deste país, que tem em sua história a opressão iniciada com a morte de muitos indígenas há 518 anos.
“Na campanha do Lula, em 1994, despertei para a formação política. Queria entender um pouco mais o funcionamento da sociedade, o sistema de opressor e oprimido, que já faziam parte de minha consciência, porém com poucos elementos para uma análise mais profunda”
FLC – Você ficou em Amarante até que idade?
Sonia Guajajara – Saí aos 14 anos de idade. Carregava no íntimo um desejo enorme de estudar como se estivesse percebendo a necessidade de me preparar para algo maior. As meninas se casavam muito cedo e até hoje é assim. Ficar na roça como única atividade impossibilitaria minha missão e ter filho cedo também. Pensava em uma alternativa para sair. Aos 15 anos fui estudar no colégio interno Caio Martins, em Minas Gerais. A Funai fez uma parceria, achou importante mandar alguns indígenas para lá, e apontou meu nome. Cursei magistério. Fiquei lá com outro Guajajara chamado Ubiraci. Mais tarde, vários indígenas foram também. Fiquei de 1989 a 1991. Foi o início de uma nova etapa.
FLC – E você já atuava publicamente?
Sonia Guajajara – Em 1993, eu me aproximei de Manoel da Conceição, histórico líder camponês maranhense. Minha irmã foi casada com o filho dele durante dez anos. Acompanhei todos os processos de mobilização. Na campanha do Lula, em 1994, despertei para a formação política. Ficaram mais nítidas as injustiças e as desigualdades. Queria entender um pouco mais o funcionamento da sociedade, o sistema de opressor e oprimido que já faziam parte de minha consciência, porém com poucos elementos para uma análise mais profunda. Assim, compreendi que para superar qualquer dificuldade teria que ser sem medo e com muito amor.
Sonia em audiência pública na Câmara. Foto: Mídia Ninja
FLC – Como você se vinculou ao movimento?
Sonia Guajajara – Em 1988, algumas lideranças indígenas lutaram para garantir nossos direitos na Constituição, mas não era ainda um movimento organizado. Naquele momento, criou-se uma articulação nacional entre o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil-Capoibe. A partir de 1989, foram formadas a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-Coiab e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE, MG e ES-Apoinme. Em 2001, passei a integrar o movimento ao participar de uma conferência nacional organizada com apoio do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, que era para avaliar e pensar estratégias, após marcha dos 500 anos que aconteceu em 2000 em Porto Seguro, na Bahia.
FLC – Houve alguma mudança na política indigenista a partir dos governos do PT?
Sonia Guajajara – Aconteceu uma maior participação no controle social, nos conselhos e na elaboração das políticas públicas. Tivemos mais acesso às políticas universais. Contudo, não houve avanço nos processos de demarcação de terra – o essencial para nós – como era esperado. Precisamos reconhecer que foi um governo importante para ampliar o orçamento nas políticas indigenistas – coisa que não temos em tempos de golpe – percebendo os limites que o governo do Lula e da Dilma possuíam por conta da aliança estabelecida para garantir a governabilidade.
FLC – Se não houver um governo disposto a proteger os direitos históricos dos povos indígenas da Amazônia, o que vai acontecer?
Sonia Guajajara – Não são os povos indígenas da Amazônia, são os povos indígenas do Brasil. Se não houver um governo sensível às nossas pautas, vamos fazer o que fazemos há 518 anos: lutar, lutar e lutar por nossos territórios, por nossa ancestralidade e por nossa cultura. Somos filhos e herdeiros da luta e faremos do combate a nossa trincheira para a construção da verdadeira revolução social que este país necessita.
FLC – Qual a relação do movimento indígena com a Igreja Católica e com o Cimi?
Sonia Guajajara – Por muito tempo, o Cimi teve o papel de protagonista na luta em defesa da causa indígena. O Cimi foi fundamental – juntamente com outros parceiros – para que nos últimos anos, chegássemos a conquistar maior autonomia e protagonismo na luta para decidir, realizar ações e atividades. O Cimi desempenha muito bem o papel da denúncia nacional e internacional e tem sistematizado bem a questão da violência contra os povos indígenas. De 2005 para cá, realizamos o acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena no Brasil. Lá no início, o Cimi era o principal associado dessa mobilização. Hoje, ampliamos leque de parceiros, e agora temos inúmeras entidades que se juntaram a nós. Somos protagonistas de nossas lutas.
“Hoje, a gente tem os dois dos maiores aquíferos de água doce do mundo, o Guarani, no sul e sudeste, e o Alter do Chão, no norte. Há um início de negociação entre o governo Temer e grandes corporações, como Coca-cola e Nestlé, que querem comprar o aquífero Guarani”
FLC – Belo Monte é símbolo de um projeto. A ideia é a seguinte: o progresso tem um custo inexorável do ponto de vista da destruição ambiental e a recompensa do progresso vale a pena. Vou ter luz em casa, produzida por uma fonte renovável, o que embeleza a ideia de que a destruição não é relevante. Qual sua opinião?
Sonia Guajajara – Acredito que Belo Monte é símbolo de uma concepção de desenvolvimento falida. Essa ideia de combater os problemas sociais produzindo uma sociedade fincada na industrialização e na utilização desarmônica dos recursos naturais, expressa no símbolo que é Belo Monte, coloca em xeque a perpetuação de toda forma de vida. É bom sempre lembrar: o guardião da vida é a Mãe Terra. Percebamos que se esse modelo gerasse promoção das igualdades permanentes não haveria pobreza na principal cidade atingida por Belo Monte. Vejamos a falsa afirmação de que Belo Monte foi construída para fazer chegar a luz na minha casa, na sua casa. Até porque Altamira/PA é a cidade com a energia mais cara do Brasil. Eu pergunto: cadê o combate às injustiças? É preciso lembrar que Altamira é a cidade mais violenta do país – segundo o mapa da violência em 2018 – e os paraenses pagam uma das contas de luz mais altas no país. Estive lá várias vezes, desde o início da obra até o término. Vi famílias mostrando o talão da conta de luz. Ganham meio salário mínimo, em alguns casos, e não conseguem compreender o alto preço da energia, mesmo morando no mesmo município produtor daquela energia, com a usina logo ali. Dilma fez questão de inaugurar Belo Monte para ser uma marca do seu governo. Nós lutamos contra aquilo, ao mesmo tempo em que estávamos contra o impeachment. Por mais que a gente tenha diferenças conjunturais e programáticas com o seu governo, entendíamos que o impeachment era um golpe. A gente sabe o que é ser justo e não apoiamos injustiças. Isso foi muito dolorido para nós. Portanto, o símbolo da inauguração e o símbolo da obra é o sinal de que temos diferenças, e deste lado impera a compreensão de que defendemos muito mais do que iniciativas paliativas para um povo, defendemos verdadeiramente a humanidade e dos demais seres viventes.
Brasília, 2017: em defesa dos direitos indígenas. Foto: Mídia Ninja
FLC – A situação dos indígenas piorou com o golpe?
Sonia Guajajara – Sim, um retrocesso incomparável. Isso se dá a partir da total paralisação das demarcações das terras, cortes no orçamento da Funai e nas políticas indigenistas, sem mencionar a crueldade das fortes matérias aprovadas no Congresso. Por mais que tenha havido redução dessas ações nos governos Lula e Dilma, agora – no governo ilegítimo de Temer – há uma decisão política de se impedir a demarcação das terras indígenas. O atual governo está revendo processos já concluídos e entregando cargos importantes da Funai e dos órgãos de promoção das políticas indigenistas para a bancada ruralista.
FLC – Na questão da violência, houve mudança?
Sonia Guajajara – Continua crescente. Primeiro, porque a falta de demarcações, por si só, já gera conflito. Em diversos relatórios e pesquisas percebe-se que há um número muito maior de problemas nas terras não regularizadas. Nos locais já demarcados, os conflitos se dão por falta de uma política de proteção que favorece as invasões e exploração ilegal dos recursos naturais. Em tempos de golpe, os fazendeiros e as multinacionais se sentem muito respaldados para esse enfrentamento. E por terem força no Congresso se acham os donos de tudo e acima da lei. Eles matam sem pudor, por terem certeza da impunidade. Vejam o caso da Samarco e da Vale, que seguem totalmente impunes. Pensam que basta pagarem uma compensação ou alguma coisa ali para quem foi atingido que tudo esteja restabelecido. Não há reparo possível! Esse caso, inclusive, tem que ser considerado como crime hediondo contra a humanidade.
Foto: Mídia Ninja
FLC – Existe uma articulação latino-americana dos povos indígenas?
Sonia Guajajara – Tem a Coica (Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica). É como se articulam os indígenas da Amazônia Legal, com nove países. Nós temos uma relação com a Aliança Mesoamericana de Povos e Bosques – AMPB, da América Central. Para além do continente, há a Aliança dos Povos Indígenas da Indonésia – Aman, a maior organização indígena da região.
“Caso queira entender o que foi a colonização, você vai ler os livros de história, mas não encontra a nossa história nos livros, pois o que há é a versão do invasor. Hoje, muitos indígenas estão aparecendo como grandes historiadores, recuperando a história e escrevendo”
FLC – Quem quiser conhecer mais profundamente a causa indígena, o que deve ler ou fazer?
Sonia Guajajara – Falando por mim, eu não li. Eu vivi. Eu vivo. Não precisei ler nada para entender essa história. Se você quer entender o que foi a colonização, você vai ler os livros de história. Mas não encontra a nossa história nos livros, pois o que há é a versão do invasor, dos algozes, não apenas dos indígenas, mas do povo brasileiro. Hoje, felizmente, muitos indígenas estão aparecendo como grandes historiadores, recuperando a história e reescrevendo a narrativa dos primeiros povos do Brasil, ou seja, a verdadeira história de nossa nação. Se você quer saber o que foi a violência contra os povos indígenas na ditadura, a Comissão da Verdade trouxe vários números, inclusive constatou que mais de 8,5 mil deles foram mortos em todas as regiões do Brasil. Há outros trabalhos, por exemplo, o Instituto Socioambiental – ISA tem várias obras importantes. A cada dois anos, eles publicam Os povos indígenas no Brasil. Ali, se informa que temos 305 povos, 274 línguas faladas, e há a estimativa da existência de cem povos isolados. O ISA tem catalogado muito bem isso. O Cimi também tem publicações importantes que tratam do relatório da violência e o Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB traz publicações em relação à gestão ambiental dos povos indígenas, os projetos de gestão territorial espalhados em várias partes do Brasil, sobretudo, na Amazônia.
Foto: Thallita Oshiro
FLC – Há uma enorme campanha no mundo para nos convencer de que, apesar de tudo, a vida civilizada nunca foi tão boa. Essa visão defende que o capitalismo construiu uma ordem mundial que, apesar de todas as suas limitações, é a melhor possível. Qual é a sua opinião sobre o capitalismo?
Sonia Guajajara – Minha visão do capitalismo é a pior possível. Acredito piamente que não vai servir aos princípios de manutenção dos seres vivos. Para nós, é muito claro: o capitalismo não foi criado para se preocupar com a vida das pessoas. O capitalismo se preocupa em promover a dominação da condição de ser humano e da natureza, por meio da utilização inclemente dos recursos naturais e da privatização da vida. As pessoas passam muito mais tempo em seus trabalhos, preocupadas com boletos e contas, do que com o direito de desfrutar de cultura, da convivência com suas famílias e amigos, isto é, não têm o mínimo de direito à liberdade. Essa ideia hegemônica de civilização e desenvolvimento aprisiona a vida das pessoas, porque promove a cultura da intolerância, do individualismo, além de combater os valores de solidariedade, fraternidade, justiça, respeito e coletividade. E isso fica mais nítido quando observamos o cotidiano social nas favelas, comunidades, aldeias e até mesmo no campo. Falta tudo: educação, saúde, moradia, saneamento básico etc. Promove-se uma ideia de comportamento que privilegia um padrão de vida sustentado num consumo insustentável, injusto e desigual, beneficiando apenas uma pequena parcela e excluindo a ampla maioria. Nesse sentido, é hora de superar essa perspectiva de “vida” que o capitalismo vende como sendo o “melhor dos mundos”. Acredito que a saída para isso está nas comunidades, nas favelas, nas aldeias indígenas, nos quilombos e nos campos. Esses territórios, apesar de toda exclusão que atravessam, são cheios de amor, de solidariedade, resistência e luta. É vivendo harmonicamente com o meio ambiente, respeitando a diversidade cultural, comportamental, sexual e promovendo o amor que se combate esse mal que ceifa vidas e sonhos. O capitalismo não segue o caminho da vida: segue o caminho da exploração e do acúmulo de riqueza em uma parcela privilegiada. Para quem serve essa exploração? Certamente, não é para a maioria do povo. Assim, precisamos pensar no bem-viver como uma ferramenta para conquistar a qualidade de vida e como fiador da manutenção da vida e das futuras gerações. Quem defende o capitalismo não defende a vida, mas promove, mesmo sem intenção, o fim da existência humana e joga a humanidade no caos das incertezas, no suicídio, no crime, na pobreza, na fome e na miséria.
“Não há como se desconectar a luta indígena da vida na cidade. É por isso que a gente defende essa grande articulação entre os povos para podermos garantir as futuras gerações”
FLC – A maioria do povo brasileiro é formada por trabalhadores que vivem nas cidades. É possível uma aliança entre os povos indígenas e o povo pobre das cidades?
Sonia Guajajara – Acreditamos que essa aliança é possível e necessária. Tanto nós, indígenas, quanto a maioria dos povos das cidades compartilhamos do mesmo processo de opressão. Essa é uma aliança dos oprimidos em contraposição aos opressores. A gente precisa combater esse modelo de desenvolvimento que está aí que deixa milhões sem moradia, sem o direito à terra, sem educação, sem cultura, sem saúde, sem saneamento básico, à mercê do crime e da própria sorte. Não combater é perpetuar as desigualdades e os privilégios. Esse modelo que hoje libera os territórios para as grandes plantações de monocultura está cada vez mais expulsando as pessoas de lá para vir para as cidades, um espaço urbano limitado e que não suporta concentrar o número de pessoas que já existem nesses ambientes, quanto mais suportar os que pensam em migrar devido à profunda exclusão pelo que passam.
FLC – Você acha que a candidatura Guilherme-Sonia expressa isso?
Sonia Guajajara – Totalmente. Acredito que a nossa chapa não só expressa essa luta, mas ela é a única possibilidade para um modelo alternativo de desenvolvimento que vê na defesa do direito à vida, em harmonia com o planeta, uma saída para as opressões que acometem o povo mais pobre deste país. Temos essa convicção e essa certeza de que temos de combater as desigualdades sociais, respeitando e garantindo o direito das pessoas a partir das suas origens. Quem é do campo tem que ter a garantia, o espaço, a oportunidade para se desenvolver lá. Não estou dizendo que as pessoas não têm que sair para estudar. Saia quem quiser, mas que tenham o direito inclusive de estudar em seu próprio ambiente, e não em uma educação que seja distinta de sua necessidade e sua realidade.
FLC – Você é socialista?
Sonia Guajajara – Sou uma guerreira de um exército que defende a vida, a harmonia entre ser humano e natureza. Sou uma guardiã da Mãe Terra, enquanto provedora e mantenedora da vida. Se isso for ser socialista, posso afirmar que sou ecossocialista.
“O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas. O capitalismo se preocupa com o lucro. Quando se fala em “capitalismo verde”, o que pode significar? Na minha visão, é a mercantilização. O capitalismo não segue esse caminho da vida. A gente precisa pensar no bem-viver para preservação do meio ambiente e para as pessoas”
FLC – O que é ser uma mulher e liderança indígena ecossocialista?
Sonia Guajajara – Posso afirmar que é ser promotora da vida e anunciadora da felicidade por meio do amor entre os seres humanos e natureza. É viver todo dia fazendo enfrentamentos e lutas por igualdade de oportunidade para mulheres e homens e, principalmente, lutar contra o capitalismo, o machismo, o sexismo, a lgbtfobia, o racismo, o colonialismo, o ódio e as opressões que estão aí querendo ditar as regras para o país e para o mundo, colocando em xeque a existência da vida. A gente precisa fazer com que as pessoas olhem e aprendam com os povos indígenas, porque a própria história mostra ser possível ter essa relação harmoniosa com o meio ambiente sem destruí-lo. A arqueologia comprova a existência da presença indígena no Brasil há 15 mil anos. A própria vegetação nativa, com a biodiversidade que tem, não é somente fruto da natureza, mas também do manejo e da gestão que os indígenas fizeram durante esses milhares de anos. Essa riqueza da biodiversidade também é a diversidade do nosso modo de vida.
Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
Sônia Guajajara é destaque na revista
Socialismo e Liberdade
A Fundação Lauro Campos lançou a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade. Sonia Guajajara, candidata a co-presidência da República na chapa de Guilherme Boulos, é destaque na matéria de capa da revista. Em entrevista concedida a Gilberto Maringoni e Valério Arcary, Sonia fala da sua história e prega uma urgente união entre os povos do campo e da cidade para romper com o ciclo de concentração de renda e dilapidação do meio ambiente em curso no Brasil.
A edição traz, ainda, um especial sobre Marielle Franco, vereadora do PSOL que foi brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Com textos de Talíria Petrone, Débora Camilo, entre outros, o especial examina como a execução de Marielle escancarou a violência do Estado brasileiro contra negros, pobres, mulheres, lésbicas e todos que se encontram em vulnerabilidade na sociedade.
A revista também traz uma análise de conjuntura sobre as dificuldades e opções para derrotar a direita, escrita pelo presidente da Fundação Lauro Campos, Francisvaldo Mendes, e pelo presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros; textos sobre a tentativa de entrega da Eletrobrás e da Embraer para o capital estrangeiro, uma análise de como enfrentar as Fake News sem cercear a liberdade de expressão, entre outros temas.
Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!
Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
“Só teremos avanços se enfrentarmos os privilégios”, Guilherme Boulos
Entrevista concedida à Francisvaldo Mendes e Gilberto Maringoni
Guilherme Boulos é um dos mais importantes dirigentes sociais brasileiros. Ao longo de duas décadas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), no qual milita, se firmou como resposta representativa à crônica carência de pelo menos 6,2 milhões de moradias para famílias pobres em nosso país. Nessa condição, Boulos foi escolhido pré-candidato a presidente da República pelo PSOL, em inédita aliança com movimentos sociais. Em uma tarde quente e abafada, Guilherme Boulos concedeu, no centro de São Paulo, a entrevista que se segue.
Por que motivo as pessoas devem votar em você?
Porque temos um projeto popular para tirar o país deste atoleiro e sabemos que ele só é possível com uma nova forma de fazer política. Com as maiorias sociais. Este é o sentido da nossa pré-candidatura. O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade e o tema da democracia. O Brasil permanece sendo um dos países mais desiguais do mundo. Para se ter avanços nos direitos sociais, hoje, é preciso enfrentar privilégios. É preciso questionar um sistema tributário injusto, em que os ricos praticamente não pagam impostos, pagam proporcionalmente muito menos do que os pobres e do que a própria classe média. Quem tem um carro velho paga o IPVA no começo do ano e quem tem um jatinho ou uma lancha não paga nada. Um trabalhador paga 7,5%, 15%, até 27,5% de imposto de renda, enquanto o Joesley Batista, de R$ 100 milhões que ganhou no ano passado, pagou R$ 300 mil, pois não há tributação de lucros e dividendos no Brasil. Não vai haver emprego, não vai haver saúde, não vai haver educação se não houver políticas públicas de investimento, se o Estado não recuperar a sua capacidade de investir. E o Estado só pode recuperar sua capacidade taxando quem tem muito. Em relação ao tema democrático, nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular. Democracia não pode ser só apertar um botão a cada quatro anos e não decidir mais nada. Democracia deve significar ter o povo no tabuleiro para fazer política de outro jeito. As pessoas poderem decidir sobre os assuntos fundamentais por meio de plebiscitos, de referendos.
“O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida
de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade e o tema da democracia”
Você é um dirigente social de larga projeção e sai dessa condição para ser uma liderança política, com os riscos que tal condição acarreta. Como isso se deu?
Eu não faço voo solo. Uma decisão como essa foi tomada junto com meus companheiros e companheiras do MTST, avaliando passo a passo o que isso significaria para o movimento e o que isso significa para o projeto de mudança em que nós acreditamos. O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla. Isso não aconteceu agora. Foi há alguns anos, quando a gente resolveu impulsionar a Frente Povo Sem Medo e se colocar na linha de frente contra o golpe, contra as reformas do Temer e em defesa dos direitos. Havia riscos. Se o movimento pensasse apenas na sua pauta corporativa, poderia ficar quietinho, conseguir umas migalhas de moradia aqui e acolá, e não entrar na batalha maior. Isso seria um erro, pois quando você se rende, fica refém do favor dos outros. Nosso movimento nunca precisou de favor, sempre lutou para ter conquistas. Em segundo lugar, não queremos olhar para trás daqui a vinte anos e ver apenas alguns conjuntos habitacionais. Achamos que a potência que o nosso movimento representa deve levar a um projeto de mudança. Depois da Frente Povo Sem Medo, nós ainda impulsionamos a plataforma Vamos, em que não era mais apenas unidade nas lutas e nas mobilizações, mas era debater um projeto de país de forma ousada, nas praças. Foram mais de 50 debates em todas as regiões do Brasil, com mais de 150 mil pessoas participando pela plataforma virtual. Estreitamos uma aliança e uma relação com o PSOL e com uma série de movimentos sociais de outros setores da sociedade, e foi daí que surgiu a proposta de uma pré-candidatura à presidência da República. O projeto que nós estamos construindo não termina em outubro deste ano.
Periferia, militância e psicanálise
Quem é
Guilherme Boulos, 35 anos, formado em Filosofia na USP, com extensão de Psicanálise na PUC e mestrado em Psiquiatria na USP.
História
“Eu comecei a militar aos 15 anos, no movimento estudantil secundarista. Muito moleque ainda fui aprendendo a me indignar. Tive uma militância partidária, na União da Juventude Comunista (UJC), e no movimento estudantil, que é aquela miríade de partidos e correntes. Uma coisa começou a me incomodar profundamente. Era ver um monte de gente falando em nome do povo, apresentando os melhores programas para o povo, apresentando as soluções para a vida do povo, mas nenhum ali se dispunha a ouvir o povo. Nenhum ali se dispunha a estar junto com o povo e a lutar junto com as pessoas. Isso fez com que eu buscasse outros caminhos. Entrei para o MTST em 2001, com 18 anos e fui morar em uma ocupação no ano seguinte. Construí a minha vida no movimento, onde me casei, tive minhas filhas e construí minhas amizades”.
Onde vive
“Moro na periferia de São Paulo. Vejo gente, especialmente nas redes sociais, questionando minha atuação no movimento sem-teto por não ter origem ali. Acho que o problema não é ter pessoas que encampem as causas populares e dediquem suas vidas a elas. O grande problema da esquerda é ter um monte de gente que não se dispõe a ir para a periferia fazer trabalho de base”.
Além da militância, o que faz
Quando eu me interessei pela psicanálise, já estava na militância. Dou aula em um curso de especialização de psicanálise e liderança, para gestores da área de saúde. Neste ano não vai ter como…
E por que o PSOL?
Nessa caminhada, fomos construindo a aproximação com o PSOL por uma série de razões. Primeiro, por uma identidade de posição na conjuntura. O partido, assim como o MTST, se colocou contra o golpe e, ao mesmo tempo, não deixou de criticar as posições que o governo Dilma tomou, em especial botando Joaquim Levy no Ministério da Fazenda e fazendo o ajuste fiscal. Depois, estivemos juntos na oposição decidida, de rua, de resistência ao governo Temer e às suas reformas. Novamente, as posições se aproximaram na defesa do direito de Lula ser candidato, sem que isso signifique adesão ao seu programa. Há, sobretudo, uma compreensão comum, que se expressou na plataforma Vamos, de ser preciso pensar um novo projeto de esquerda para o país. Um projeto que, ao mesmo tempo, seja capaz de reconhecer avanços que ocorreram nas experiências de 13 anos do governo do PT, mas que também seja igualmente capaz de apontar seus limites e fazer a crítica. Hoje não há mais espaço para um país de um ganha-ganha. Não há mais bases reais para a estratégia de conciliação. Não tem mais como fazer mais política social só com manejo orçamentário, sem enfrentar privilégio.
“Nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular“
Como você vê o papel do Lula na conjuntura?
Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula. Aliás, diferenças que tive a oportunidade de colocar para ele em diferentes ocasiões. Não dá para aceitar que, depois de um golpe, o PT não aprenda as lições desse processo e vá fazer aliança com Renan Calheiros em Alagoas, com Eunício Oliveira no Ceará, e queira recompor um modelo de governabilidade que faliu. As críticas aos limites que tenham as experiências de 13 anos de governos do PT nós do MTST sempre fizemos. Mas, da mesma forma que é um equívoco profundo dizer que “quem critica faz o jogo da direita”, é um equívoco profundo também só ver diferença e ter a incapacidade de enxergar pontos de acordo no enfrentamento ao golpe e na defesa democrática.
Foto: Mídia Ninja
Sua relação com o Lula é mais atritada ou mais de entendimento?
Acho que de tudo que nos diferencia da direita, a generosidade e a solidariedade são as principais. Temos de saber separar diferença política e crítica de uma linha de ataque e destruição do outro. Eu tenho uma relação de respeito e admiração pelo Lula, sem que isso tenha me impedido jamais de fazer as críticas políticas a ele e demarcar as diferenças. O Lula está sofrendo um massacre, uma perseguição judicial. Eu não vou deixar em nenhum momento, mesmo com as diferenças políticas, de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida.
Uma das críticas que se faz à Dilma é que ela foi presidenta da República sem nunca ter tido um mandato eletivo. Você tem uma tremenda experiência social, mas também não passou por essa experiência. Como vê um futuro governo do PSOL?
Primeiro, se experiência na vida política partidária fosse atestado de bom governo, o Temer seria o melhor presidente da história do Brasil. Há 50 anos ele está no jogo político partidário e é um desastre nacional. Acho que, para fazer um governo como nós queremos, de transformação profunda da sociedade, ter uma experiência de 15 anos em ocupações de terra, convivendo, lutando e ouvindo as pessoas, não é menos importante do que ter uma experiência na política partidária. O campo democrático nunca teve maioria parlamentar no nosso país. As oligarquias e os interesses econômicos, com as suas bancadas, sempre controlaram o Congresso. Se a gente parte da equação de que o único jeito de sustentar um governo é se basear no Legislativo, neste modelo de governabilidade, então vamos rebaixar o programa. Eu não parto desse pressuposto. Acho que existem experiências históricas, aqui e lá fora, que nos mostram ser possível governar apoiado nas maiorias sociais.
“O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla“
A Erundina fez isso em São Paulo.
A Erundina fez isso. Tinha minoria na Câmara e mobilizava as pessoas. As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar. Isso não significa negar o papel do Parlamento. É preciso haver diálogo com o Parlamento. O que não pode haver é a manutenção de um esquema de governabilidade baseado na chantagem, no balcão de negócios, na compra de voto por cargo do governo. Nós precisamos pensar uma forma de fazer política que não seja a mesma coisa que politicagem. Para isso, é preciso trazer o povo para o processo de decisão, criando um amplo movimento nacional para plebiscitos e referendos em relação aos temas fundamentais.
Caso ganhe as eleições, quais serão as suas primeiras iniciativas?
A primeira é propor um plebiscito que vise revogar as medidas mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95, que cortou por 20 anos o investimento público no Brasil, e a entrega do pré-sal, dentre outras. Não é possível um governo popular que tenha congelamento de investimentos sociais por 20 anos. Isso destrói a capacidade de investimento do Estado brasileiro. Porque não é possível ter um governo para as maiorias com uma legislação trabalhista em que o povo vá trabalhar por hora em trabalho intermitente, em que se destruam todos os direitos e garantias. Além disso, há duas medidas que considero especialmente importantes. Uma é propor uma reforma tributária que permita o financiamento público de um programa amplo de investimentos no Brasil. Uma reforma tributária progressiva. E este recurso de arrecadação deve ser utilizado para um amplo programa de investimentos públicos, que vai recuperar emprego, vai recuperar renda e vai permitir financiar políticas públicas de saúde, de educação, de moradia para o povo brasileiro.
Há algum setor do empresariado com o qual seja possível estabelecer alianças?
Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, distributivo, de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país.
Entrevista concedida a Francisvaldo Mendes, presidente da FLC, e Gilberto Maringoni, editor-chefe da revista Socialismo e Liberdade
Como você vai lidar com a mídia?
A primeira coisa é cumprir a Constituição. A Carta de 1988 proíbe monopólio, proíbe que políticos tenham concessões e proíbe propriedade cruzada. A Globo faz as três coisas ao mesmo tempo. E várias concessões da Globo pelos estados estão controladas por políticos. Emissora é concessão pública e assim tem de ser tratada. Nós temos que fazer uma democratização dos meios de comunicação no país para termos uma diversidade de vozes falando para o povo brasileiro. Não se trata de censurar ninguém. Além disso, é preciso ter, como a própria Constituição prevê, uma cota para empresas de comunicação públicas e comunitárias. Em relação às verbas publicitárias, elas têm que seguir esse mesmo critério democrático. Hoje é um escândalo. As verbas publicitárias reforçam uma estrutura antidemocrática. O Estado é um poderoso anunciante e tem usado esse anúncio para enriquecer e fortalecer ainda mais as grandes emissoras de plantão.
Como você analisa os episódios de junho de 2013?
Junho de 2013 foi uma panela de pressão que explodiu. Não à toa, ela se deu em torno de um tema eminentemente urbano: a crise de mobilidade. A crise urbana antecedeu, no Brasil, a crise econômica. Qual foi o modelo adotado pelo governo do PT em relação às cidades? Muito crédito, tanto crédito imobiliário individual como crédito para as grandes empresas da construção, e financiamento de grandes obras através do PAC e para o Minha Casa, Minha Vida. Foi o período em que houve mais investimento de recursos, seja pelo crédito, seja pelo investimento público direto, em políticas urbanas. No entanto, isso se deu sem nenhuma regulação pública. Você empodera grandes construtoras com crédito. Elas saem comprando terreno. O estoque de crédito imobiliário no Brasil em 2005 era de R$ 4,8 bilhões. Em 2014 era de R$ 102 bilhões! Ou seja, mais de 2.000% de acréscimo em uma década. O problema não é ter crédito, muito menos ter investimento público. O problema é que, quando não há regulação, não se utilizaram os instrumentos previstos no próprio Estatuto das Cidades. Cria-se um surto de especulação imobiliária.
Financeiriza-se o mercado imobiliário.
Exato. A terra virou ativo financeiro. E aí, o que acontece na vida das pessoas? Elas foram jogadas para mais longe. O metrô chegou à periferia por conta do investimento. Excelente! Mas a periferia fugiu do metrô. Porque o cara que pagava aluguel de R$ 500 onde tinha o metrô viu que o contrato aumentou para R$ 1 mil e ele teve que ir morar em um bairro mais distante. Isso significa piorar as condições de moradia. Mais do que isso, significa você ter menos acesso a serviço público. O cara que morava na zona leste de São Paulo, em Itaquera, ele foi para Guaianazes ou Ferraz de Vasconcelos, depois do boom imobiliário. Enfim, ele foi jogado de uma maneira em que os serviços públicos que existiam em Itaquera, já muito precários, são piores ainda mais longe. Se, em Itaquera, ele demorava uma hora para chegar ao serviço, agora ele demora duas. Isso o próprio PT reconheceu nas campanhas municipais quando fez o debate: “Melhoramos da porta para dentro e precisamos melhorar da porta para fora”. Mas não ocorreu isso e as cidades viraram verdadeiros barris de pólvora. Houve uma onda de ocupações entre 2013 e 2015 nas grandes cidades. Havia um clima de insatisfação, que fez com que a pauta da mobilidade tivesse um apelo grande. Mas os motivos das mobilizações não se limitaram a isso, houve a repressão. É claro que, enquanto os atos eram apenas do MPL, não eram tão grandes. Depois, a pauta foi capturada.
“Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula, mas não vou deixar em nenhum momento de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida”
Houve uma disputa na condução daquele processo?
Não dá para se examinar junho de 2013 apenas por uma das duas lentes. Não dá pra se ver como uma conspiração golpista que articulou as pessoas para irem às ruas com o apoio dos Estados Unidos, nem ver junho de 2013 como a porta da Revolução Socialista. Minha opinião não é nem uma e nem outra. A grande questão é que o pós-junho gera duas pernas. O estouro da panela de pressão encerrou o momento do consenso e recolocou as ruas como atores políticos. Pode ter havido elementos de manipulação nas redes, como os Estados Unidos fizeram em outras partes do mundo? É evidente que pode, quando setores da direita viram que poderiam capturar aquela mobilização legítima para outras finalidades. É verdade que o caldo, em seguida, foi apropriado para a direita sair do armário e começar a defender tortura e intervenção militar. Isso deságua nas manifestações golpistas de verde e amarelo, em 2015. É igualmente verdade que esse mesmo caldo de junho, por outras vertentes, gerou as ocupações de escola dos secundaristas, gerou um crescimento de movimentos como o MTST, gerou coisas dinâmicas também no movimento social. Não é possível fazer uma leitura unilateral do que foram as mobilizações de junho de 2013.
Lançamento da candidatura na Conferência Cidadã, início de março de 2018, em São Paulo
É possível dizer que o pacto resultante da Constituição de 1988 acabou?
Acabar não acabou. Ele está ainda aí se arrastando, mas eu o vejo em uma crise profunda. É importante ressaltar que quem rompeu o pacto foi o andar de cima. Foi o discurso cínico de que a Constituição não cabe no orçamento. A Constituição é o emblema, é o símbolo do pacto que se estabeleceu na construção da Nova República. Ela foi sendo desfigurada na dimensão que tinha de Estado social – a Emenda Constitucional 95 é um golpe derradeiro nisso, assim como a reforma da previdência, que não conseguiram aprovar. O fim da CLT não remete nem ao pacto de 1988, mas ao pacto de 1943. O golpe fez, em dois anos, o Brasil andar cem anos para trás. O sentimento de crise de representação, de antipolítica, é muito forte, e acho que há uma crise de hegemonia que se expressa, inclusive, na briga entre os poderes da República. Temos um Poder Executivo sem legitimidade e um Legislativo desmoralizado. O Judiciário se aproveitou e falou: “Opa, é a minha vez”. E este foi tomando protagonismo através da Operação Lava Jato – um protagonismo político, ocupando um vácuo de poder pelo enfraquecimento dos outros dois poderes. Depois, você tem uma reação que começa a se formar. Todos eles estavam juntos no momento do golpe e a coalizão do golpe num segundo momento. Há uma reação representada, nesse momento, pelo Temer. Aqui nós estamos falando de “poder”, evidentemente, de uma maneira genérica, porque há divisões dentro dos poderes, também. Dentro do Poder Judiciário, essas divisões são manchetes todos os dias nos jornais. O sistema político perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade. Todo sistema político tem que, de algum modo, criar coesão e criar condição de ter maiorias sociais. Mesmo a ditadura militar, ilegítima politicamente, teve maiorias sociais. Ela começa a ficar mal das pernas quando perde a capacidade básica de aglutinar. Isso leva à transição. O sistema político da Nova República perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade brasileira. Qual é a alternativa para essa crise em que o Brasil está? Eu não vejo, no sistema político da nova República, capacidade para se reinventar dentro dos mesmos marcos.
“As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar”
Você acha que, nesse momento, o Exército pode assumir algum protagonismo?
São cada vez mais preocupantes as movimentações de setores do Exército, ainda que não da corporação como um todo. Uma coisa é meia-dúzia de loucos ou um general de pijama do Clube Militar falar nos jornais ou vir com uma faixa na Avenida Paulista, ou no Leblon, ou onde quer que seja, para falar de intervenção militar. Outra coisa é general quatro estrelas do alto comando flertar com isso. A intervenção no Rio de Janeiro é algo preocupante nesse sentido, por duas razões. Primeiro, porque ela mexe com a ideia, no imaginário na sociedade, de que militar resolve. Não digo que o interesse do comando do Exército seja hoje fazer uma intervenção militar e que o general Villas Bôas queira isso. Aliás, o general Villas Bôas, mesmo com declarações preocupantes que deu no último período, é uma das vozes mais lúcidas do alto comando. O entorno ali é mais complicado. O segundo motivo são declarações, que estão sendo cada vez mais naturalizadas, de que o Rio de Janeiro é um laboratório para o país. Se isso for levado a cabo, e começarmos a ter intervenção do Exército na Segurança Pública em vários estados brasileiros, onde isso vai parar? Isso afeta o movimento social, afeta a juventude pobre e negra das periferias e favelas. Os alvos são os mesmos de sempre. Soltar pitbull é fácil. Difícil é prender depois.
Foto: Mídia Ninja
O que significa ter Sonia Guajajara como vice?
É um compromisso de que nosso projeto de esquerda precisa se deparar com uma dívida histórica do Estado brasileiro para com o seu povo. É uma dívida na qual, muitas vezes, a esquerda teve dificuldades de se colocar. Ter a Sonia não apenas como vice, no sentido tradicional, mas como parceira na chapa expressa este compromisso com a questão indígena. A luta indígena é a luta de resistência mais antiga da história do Brasil. É a luta contra um genocídio, é a luta pela terra. E mais do que isso, queremos afirmar nosso compromisso com amplos setores que historicamente sofrem opressões no Brasil. É entender que ainda há no Brasil uma herança da escravidão, e que a luta contra o racismo, a luta dos negros e negras, é uma luta libertadora e tem a ver com a forma como o capitalismo se estruturou por aqui. Não é algo secundário. Hoje implica enfrentar sem rodeios o genocídio da juventude pobre e negra nas periferias, propondo um outro modelo de segurança pública, que passe pela desmilitarização da polícia. É preciso incluir também a luta feminista. Ela se expressa em agendas muito definidas, como por exemplo, o direito das mulheres de decidirem sobre o seu corpo e tratar o tema do aborto como um tema de saúde pública. E são lutas contra a desigualdade. Os negros, no Brasil, recebem metade do salário dos brancos. As mulheres ainda ganham consideravelmente menos do que os homens pela mesma função. A questão LGBT, por sua vez, tem muito a ver com os níveis de intolerância a que se chegou na sociedade. Não é admissível que o Estado ou a religião defina a forma como as pessoas vão se amar. A criminalização da homofobia e a defesa do casamento civil igualitário são pautas candentes para a esquerda. É errado ver isso como pautas identitárias simplesmente. Tocam em questões estruturais e estão diretamente relacionadas à luta por liberdades e contra a desigualdade no Brasil.
“Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, profundamente distributivo de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país”
Esse avanço da direita acontece também em quase toda a América Latina. Como vê isso?
É evidente que há um crescimento de governos de direita na América Latina e no mundo. Há uma ofensiva conservadora. Não podemos separar isso do processo da crise econômica e das reações de cada sociedade a essa crise. A crise, por sua própria configuração, reduz as margens de conciliação, o cobertor fica mais curto e as saídas se tornam polarizadas. As alternativas de centro se enfraquecem. Estamos vendo isso no Brasil. Todo mundo quer construir um centro, reorganizar um centro. O centro implodiu. E assim foi e tem sido em parte importante do mundo. Você tem tido polarizações, o que é próprio de momentos de crise, entre alternativas de direita que surfam no discurso de xenofobia – “os inimigos dos nossos empregos são os imigrantes”. Principalmente na Europa e nos Estados Unidos, esse discurso é fortíssimo, muitas vezes com ingredientes de intolerância e com uma pauta econômica neoliberal.
“Vamos propor um plebiscito que vise revogar as medidas
mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui
destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95
e a entrega do pré-sal, dentre outras”
E como examina a esquerda no plano internacional?
Esse processo de polarização faz o Donald Trump ganhar nos Estados Unidos, mas gera também o fenômeno Bernie Sanders. Ele possibilita o governo de Mariano Rajoy, na Espanha, mas faz surgir o Podemos. A França foi um caso à parte, porque ali se reconstruiu alguma coisa parecida com um centro, a partir da polarização entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. A mesma dinâmica que elege o Sebastian Piñera no Chile faz com que a Frente Ampla, organizada por estudantes que ocupavam escolas e universidades, tenha 20% nas eleições presidenciais. Digamos que surge uma nova direita – com velhos métodos e a velha política econômica -, mas com um discurso diferente. Mas também nesse mesmo período há novas experiências de esquerda. Este processo está relacionado à crise de representação das democracias liberais, de baixa intensidade e à falta de horizontes produzida pela crise econômica. As pessoas estão sem perspectiva de futuro. Isso se expressa também nos altos níveis de abstenção eleitoral. Trump e Bolsonaro são personalizações da repulsa à política. Não me parece ser uma particularidade atual. A ascensão do fascismo pós-crise de 1929 se deu em clima análogo de desilusão com a política. É óbvio que precisamos combater a ascensão da direita. Mas temos de compreender também o desafio que isso coloca para o campo da esquerda. Se não dialogarmos com a insatisfação diante da política, ela vai ser canalizada toda pela direita.
Entrevista publicada originalmente na edição nº21 da Revista Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos
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Baixe e leia a revista na íntegra[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”Artigos publicados no site” border_width=”2″][vc_masonry_grid post_type=”post” max_items=”10″ item=”none” grid_id=”vc_gid:1532658891899-2cca68fb-d515-7″ taxonomies=”142″][/vc_column][/vc_row]
Marielle Franco chegou ao mundo com marcas da opressão e da violência. Era uma mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, em uma sociedade radicalmente desigual, construída sobre a escravidão do povo negro, estruturada em uma cultura machista, patriarcal e com um ódio de classe latente.
Marielle compartilha uma história de brutalidade e repressão com milhares de outras mulheres. Marielle representa também minhas demandas de negra, periférica e socialista. Para alguém assim, tudo é mais difícil: trabalhar, estudar e mesmo militar politicamente.
Marielle, foi mãe aos 19 anos, frequentou curso pré-vestibular comunitário, assim como eu e tantas e tantas. A sua não é uma história de superação individual e nem uma narrativa sobre “meritocracia”. É uma vivência de projetos coletivos de enfrentamento de desigualdades e imposições de cima.
Projetos coletivos
A violência trouxe Marielle à militância, após a morte trágica de uma amiga, vítima de bala perdida em confronto entre policiais e traficantes. E a violência tirou Marielle da militância. A execução, o crime político matou fisicamente a afrossocialista da Maré.
A luta coletiva fez a preta favelada, bolsista ProUni, se tornar socióloga, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). A mulher de pele escura foi mais longe e quebrou as estatísticas, concluindo o mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela levou a pauta da favela para os espaços privilegiados da Universidade ao defender a dissertação “UPP: a redução da favela em três letras”.
A sucessão de asperezas que assinala a vida de Marielle, somada à sua formação acadêmica, possibilitou a realização de trabalhos exemplares em organizações da sociedade civil e na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). Essas tarefas foram realizadas juntamente com o deputado estadual Marcelo Freixo, personagem de outra vivência moldada pelo enfrentamento às nossas mazelas ancestrais.
Trincheira e reconhecimento
Marielle consolidou sua trajetória pautada pelos interesses da classe trabalhadora e fez do PSOL sua trincheira. O reconhecimento veio através dos 46.502 votos recebidos em 2016 para o cargo de vereadora, a quinta maior votação da cidade do Rio de Janeiro.
No plenário da Câmara dos Vereadores, a menina da Maré fez ecoar vozes silenciadas, enfrentando uma estrutura machista, com ódio a tudo que ela representava. Como parlamentar, insistiu na criação de políticas públicas que garantissem vida digna para os historicamente marginalizados.
Marielle denunciou e combateu o modelo falido de segurança pública que vitima pobres, periféricos e agentes de segurança. É um modelo que garante a prevalência de um pequeno grupo no poder e que utilizou do arbítrio para um presidente da República ilegítimo decretar intervenção militar no estado do Rio de Janeiro.
Os que a temem
Na noite de 14 de março, quatro tiros fizeram Marielle tombar. Foram quatro projéteis disparados pela vontade de poderosos que temem tudo o que ela representa. Executaram quem ousou organizar os de baixo contra o sistema. Esses mesmos poderosos fulminaram, com três balas nas costas, Anderson Pedro Gomes, marido, pai e trabalhador que, como muitos brasileiros, lutava por uma vida melhor.
Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo
Não contentes com a eliminação física de Marielle, seus assassinos tentaram matar sua história e sua honra. Buscaram implantar o medo em todas e todos que ousam acreditar que outro mundo é possível.
O Brasil passa por um período de recrudescimento da repressão, de criminalização dos movimentos sociais, de intenso ataque a direitos historicamente conquistados e de perseguição aos que se batem por uma sociedade justa.
Os crimes cometidos durante a ditadura militar, cujos autores nunca foram punidos, revelam o triste e trágico histórico de que assassinatos de militantes de esquerda sempre foram prática comum na tentativa de conter a luta coletiva, organizada e classista.
Não foi crime comum
A morte de Marielle não foi crime comum e não entrará para a estatística das milhares de mortes brutais que ocorrem cotidianamente em nosso país. Como Helenira Resende e Alceri Maria, executadas durante os anos de chumbo, a vida de Marielle foi ceifada por ser ela de esquerda e porque lutava pelos seus iguais.
Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo. Marielle não é uma. São todas e todos os inconformados que vão à ação.
O que se viu após o fuzilamento no centro do Rio foi surpreendente. Milhares de pessoas, mesmo corroídas pela dor, encontraram forças para sair às ruas, enfrentar seus executores e dizer que a luta de Marielle está maior, mais forte e mais determinada, rumo a uma sociedade livre, justa e igualitária.
A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade
A subordinação das PMs ao Exército estabelece há décadas uma tutela militar nas forças de segurança pública. Situações dessa natureza colocam a população pobre em permanente risco
Por Ivan Seixas
A intervenção militar do Rio de Janeiro, em meio ao aprofundamento do golpe de 2016, reacende o medo de termos uma nova ditadura militar. Não é para menos. A reedição de uma tragédia pode ser ainda mais grave e trágica. Se nos fiarmos na célebre frase de Marx, em O 18 brumário de Luís Bonaparte, de que a história acontece da primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, é essencial juntar esforços para que o replay não nos surpreenda.
No clima bélico criado no Rio, um general chegou a afirmar, em palestra recente na Escola Superior de Guerra, que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia”. A expressão “o que fizemos no Araguaia” pode ser sintetizada nas capturas e assassinatos de 64 participantes da Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil, no sul do Pará. Seus corpos estão desaparecidos até hoje. Ou seja, as Forças Armadas cometeram delitos previstos na Convenção de Genebra, que qualifica como crime de guerra o tratamento desumano a prisioneiros, a execução sumária depois de capturado o inimigo e a ocultação de seus restos mortais. Não se sabe se o militar quer repetir “o que fizemos no Araguaia” nos morros do Rio.
Segurança nacional
A participação das Forças Armadas na segurança pública nunca deixou de acontecer. Traçada como estratégia de segurança nacional ainda nos tempos da ditadura, essa participação integra o conceito de “manutenção da ordem pública”. Apenas esporadicamente ela aparece de forma ostensiva aos olhos do grande público. Assim se deu em grandes eventos, como a Rio 92, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A nova invasão de áreas pobres faz parte dessa métrica.
O Exército e Marinha tiveram presença marcante nas ocupações de favelas para a implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e não fizeram nada mais do que agredir direitos de moradores, os quais eram tratados, em geral, como inimigos das tropas. Foram gastos vastos recursos e o resultado foi apenas um show midiático. Depois do impacto criado pela mídia, o serviço acabou e caiu no esquecimento, a exemplo das fracassadas ações no Complexo da Maré.
Se a ocupação militar servisse para o chamado combate ao tráfico de drogas, não teríamos outra ocupação depois de quatro anos do espalhafatoso espetáculo de 2014. E as drogas não seriam apreendidas em helicópteros de senadores, em fazendas de ministros latifundiários a quilômetros dos morros cariocas ou em transportes por caminhões e navios. O grosso da droga não pertence aos moradores de favela, pertence aos proprietários de grandes apartamentos milionários. Nos morros e periferias há apenas distribuidores para a classe média. Os pobres são estigmatizados como perigosos traficantes para desviar a atenção das verdadeiras organizações criminosas, lucrativas empresas capitalistas.
É inegável que esses pequenos varejistas do tráfico usam armas de grosso calibre, assim como é inegável que latifundiários também usem armas semelhantes para eliminar camponeses em luta pelo direito à terra. E nenhuma tropa é deslocada para locais de conflito com objetivo de confiscar esses arsenais.
Máximos e mínimos
Os montantes utilizados para o espetáculo midiático são enormes e os recursos destinados a proporcionar infraestrutura para a vida dos habitantes das favelas são mínimos. Na história dos governos do Rio de Janeiro, apenas o de Leonel Brizola se destaca como aplicador de orçamentos em benefício das maiorias. Quando o antigo governador instalou elevadores e teleféricos para facilitar o acesso de moradores aos seus locais de moradia, levantou-se uma onda de protestos elitistas contra a iniciativa.
Quando o mesmo Brizola se dedicou a construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), concebidos por Darcy Ribeiro, equipados com salas de aula, bibliotecas, quadras de esporte, piscinas e toda a infraestrutura adequada à uma educação pública de qualidade, a mesma mídia se dedicou a condenar o projeto. Em resumo, a direita brasileira detesta pobres e quem promove políticas públicas democratizantes.
A ação policial, em vários países, não se dá por movimentações de tropas ou por espetáculos midiáticos. Só acontece como resultado de trabalho científico de inteligência, investigação e coleta de provas para a condenação dos acusados, tarefa da Polícia Judiciária Civil. Do contrário, vai inevitavelmente cair na agressão aos Direitos Humanos, na violação da lei e do Estado de Direito Democrático.
Forças Armadas e segurança pública
A alocação de tropas da Polícia Militar em favelas com a incumbência de investigar, reprimir e prender suspeitos, tomando o lugar da Polícia Judiciária Civil, leva à violências contra a população – sem falar em casos como o do pedreiro Amarildo Dias de Souza, preso, torturado e desaparecido até hoje – e à promiscuidade com o crime organizado. Não por acaso, no mesmo Rio de Janeiro acontece o “fenômeno” do surgimento de quadrilhas de policiais apelidadas de Milícias, que dividem espaço com as demais quadrilhas civis.
Ou se reforça o trabalho da Polícia Civil, que tem legalmente a atribuição de investigar e prender, ou as atrocidades contra a população trabalhadora, moradora dos morros cariocas, continuará acontecendo e novas “intervenções militares” continuarão a ser pedidas e executadas.
Repetindo: o Exército nacional nunca esteve alheio ou distante da atuação das Polícias Militares em qualquer estado da federação. Há uma ligação orgânica entre ambas as instituições, legalmente e não apenas como colaboração entre as forças.
Pelo decreto 88.777, de setembro de 1983, de iniciativa de João Baptista Figueiredo, último general da ditadura, as polícias militares passaram formalmente a ser vinculadas ao Exército e se integraram ao Sistema Nacional de Informações, órgão central da repressão política no país. Esse decreto nunca foi revogado por nenhum governo democrático, o que mostra o descaso com questão tão séria para a vida cotidiana da população.
Pelo artigo 3º desse dispositivo, o Ministério do Exército exercerá o controle e a coordenação das Polícias Militares, por intermédio do Estado-Maior do Exército, em todo o território nacional. E pelo Parágrafo Único, “O controle e a coordenação das Polícias Militares abrangerão os aspectos de organização e legislação, efetivos, disciplina, ensino e instrução, adestramento, material bélico de Polícia Militar”. Ou seja, as PMs são treinadas e dirigidas pelo Exército brasileiro.
Pelo artigo 5º, “As Polícias Militares, a critério dos Exércitos e Comandos Militares de Área, participarão de exercícios, manobras e outras atividades de instrução necessárias às ações específicas de defesa interna ou de defesa territorial, com efetivos que não prejudiquem sua ação policial prioritária”.
A digital do Exército Brasileiro está gravada no artigo 37, que diz:
Compete ao Estado-Maior do Exército, por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:
1) o estabelecimento de princípios, diretrizes e normas para a efetiva realização do controle e da coordenação das Polícias Militares por parte dos Exércitos, Comandos Militares de Área, Regiões Militares e demais Grandes Comandos;
2) a centralização dos assuntos da alçada do Ministério do Exército, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas;
3) a orientação, fiscalização e controle do ensino e da instrução das Polícias Militares;
4) o controle da organização, dos efetivos e de todo material citado no parágrafo único do artigo 3º deste Regulamento;
5) a colaboração nos estudos visando aos direitos, deveres, remuneração, justiça e garantias das Polícias Militares e ao estabelecimento das condições gerais de convocação e de mobilização;
6) a apreciação dos quadros de mobilização para as Polícias Militares;
7) orientar as Polícias Militares, cooperando no estabelecimento e na atualização da legislação básica relativa a essas Corporações, bem como coordenar e controlar o cumprimento dos dispositivos da legislação federal e estadual pertinentes.
Assim, a Polícia Militar de qualquer estado da federação está sujeita ao Estado Maior do Exército. Daí não ser correto dizer que a PM está fora de controle quando a corporação comete alguma atrocidade contra manifestações populares. Está sem o controle do poder civil, das entidades e órgãos dos governos, mas está sob controle e orientação do Exército brasileiro.
Para tirar dúvidas quanto a esse controle e direção, basta ler o artigo 33 do decreto:
A atividade operacional policial-militar obedecerá a planejamento que vise, principalmente, à manutenção da ordem pública nas respectivas Unidades Federativas.
A intervenção do Exército não é, assim, marca apenas de um governo golpista, fraco e dependente de malabarismos para sobreviver mais alguns meses. A iniciativa existe cotidianamente há tempos.
Por outro lado, expoentes de esquerda ou da academia dão declarações indignadas contra essa atuação, mas poucos tocam na extinção dessa estrutura militarizada das Polícias. Não examinam o essencial.
Qualquer agrupamento de esquerda, que pense minimamente o país com uma perspectiva democrática e que tenha sensibilidade para os segmentos populares deveria ter em sua agenda a desativação dessa complicada relação entre Exército e Polícias Militares. Caso contrário, a intervenção seguirá acontecendo sem que a maioria perceba.