Categoria: Revista

  • Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Mesmo diante de tanques e helicópteros, a mobilização popular fez o governo retroceder, derrubando o ministro da Economia. A brutalidade repressiva funcionou como gasolina no fogo do descontentamento e isolou o país internacionalmente

    Por Ana Carvalhaes e Israel Dutra

    Numa das regiões que mais contribui para a alta global do número de casos e mortes pela Covid-19, em meio ao caos sanitário, desemprego, fome e desigualdade em escalada, trabalhadoras e trabalhadores, estudantes e jovens das periferias urbanas, camponeses, ribeirinhos, povos negros e indígenas encontram formas de se levantar em defesa da vida – contra os planos de austeridade assassina de governos de direita ou centro-direita.

    Seja qual for o desfecho momentâneo da situação, o que se passa na Colômbia é simbólico dos grandes dilemas econômicos e político-sociais da macrorregião. Mergulhados em crise global imprevista, destituídos dos ganhos extraordinários do boom das commodities das primeiras décadas do século, governos neoliberais precisam, mais do que nunca, lançar mão de planos de austeridade

    Depois das explosões de Equador e Chile em 2019 – que resultou em séria derrota para a direita, nas eleições constituintes -, da resistência ao golpe no Peru em 2020, e do levante paraguaio em março passado – contra a incompetência governamental no trato com a saúde – agora, é a vez da Colômbia. Não é detalhe que entrem em movimento, de forma radicalizada, os explorados do segundo país mais populoso da América do Sul, com tradição histórica de violenta guerra civil, de governos direitistas e bastião militar dos EUA na região.

    Unidade inédita

    O “Paro Nacional” colombiano de 28-29 de abril abriu um período de protestos massivos cotidianos, numa unidade inédita de movimentos urbanos, rurais, indígenas, ambientalistas e de juventude desempregada – esta, a vanguarda dos enfrentamentos violentos que resultaram em 47 mortes (39 delas pelo famigerado Esquadrão Móvel Antidistúbios, a Esmad), quase 600 desaparecidos, 968 prisões arbitrárias e 12 denúncias de violência sexual por parte das forças de repressão (dados de 14/05/2021).


    Urnas andinas projetam sinais contraditórios

    A crise econômica global de hoje, sem precedentes, e o acirramento do embate entre EUA e China tornam impossível a repetição de um novo período mais ou menos longo de estabilidade baseado no modelo de uma época em que o mundo crescia e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem maiores tensões. Os casos do Equador, Bolívia e Chile apontam na direção de um crescente espaço social e político para a construção de alternativas anticapitalistas


    Mesmo enfrentando tanques e ataques de helicópteros, a mobilização fez o governo retroceder da reforma tributária que acabou com a paciência popular, derrubando o ministro da Economia. A brutalidade repressiva funcionou como gasolina no fogo do descontentamento, isolou o país internacionalmente (Biden e ONU pediram calma e diálogo, diante da grita contra o massacre), não impediu a continudade dos atos de rua e fechamentos de avenidas e estradas, levando à renúncia da Ministra de Relações Exteriores. Ao mesmo tempo em que incentivava a repressão mais bárbara, o governo uribista de Ivan Duque chamava uma Mesa de Diálogo com entidades coordenadoras do Paro, para simplesmente não oferecer nada em troca da suspensão dos atos. Enquanto isso, Gustavo Petro, líder da Colômbia Humana, de centro-esquerda, e principal figura da oposição, via-se alçado a favorito para as eleições de 2022 e se valia dessa condição para chamar a paz social e desestimular o enfrentamento a Duque. Nas ruas, no entanto, jovens organizados para o confronto desigual diziam que preferiam morrer de tiro lutando, do que morrer da Covid-19 e fome.

    Dilemas continentais

    Seja qual for o desfecho momentâneo da situação, o que se passa na Colômbia é simbólico dos grandes dilemas econômicos e político-sociais da macrorregião.

    Mergulhados em crise global imprevista, destituídos dos ganhos extraordinários do boom das commodities das primeiras décadas do século, governos neoliberais precisam, mais do que nunca, lançar mão de planos de austeridade – cortes de gastos sociais, aumento de impostos e preços, privatizações. Nessa toada, enfrentam-se às necessidades cada vez maiores dos povos mergulhados na pobreza e na miséria, multiplicadas graças à recessão recente. Tem toda disposição a impor seus planos à força de fuzis, bazucas, tanques e, agora, helicópteros. Mas em algum momento vem uma faísca, como o aumento de impostos de Duque (ou o aumento do bilhete do metrô de Piñeira, ou como o aumento dos combustíveis por Lenin Moreno), que detona o caldeirão da fúria popular.

    Mobilizações contínuas

    Fúria e mobilizações, mesmo as heroicas como as levadas adiante na Colômbia, não são suficientes em si mesmas para mudar os rumos trágicos de um continente colonizado pelas finanças globais, adoecido pela Covid-19 e infiltrado pelo fenômeno global das ultradireitas pós-fascistas. Mesmo com a continuidade das lutas sociais, de agora em diante ainda mais prováveis por conta do empobrecimento provocado pela pandemia, não se fechará a contraofensiva neoliberal dos últimos anos, embora as opções direitistas estejam menos fortes que há dois, três anos e possam se debilitar ainda mais com novos embates nas ruas e urnas.

    A catástrofe pandêmica, do rio Grande à Patagônia, não tem impedido que as lutas e os embates político-ideológicos se expressem no terreno das eleições. O Chile é sem dúvida o exemplo mais avançado: o resultado da “megaeleição” de 15 de maio exibe uma derrota fragorosa da direita – que não conseguiu os dois terços de deputados constituintes necessários para vetar avanços antineoliberais -, derrotou igualmente a “esquerda comportada” da aliança Concertação (Partido Socialista e Democracia Cristã), que governou o país por 24 anos (1990-2010 e 2014-2018); alavancou forças de esquerda alternativas, como Partido Comunista e os agrupamentos do que foi a Frente Ampla. Mas, acima de tudo, representou a invasão da institucionalidade chilena pelos chamados “independentes”, entre os quais muitos de esquerda anticapitalista.

    O fenômeno do independentismo no Chile – candidatos que se alçaram por fora dos partidos, via listas de partidos de esquerda, movimentos sociais ou chapas comunitárias, e agora são constituintes, governadores, prefeitos e vereadores –, somado à grande abstenção (perto de 60%), confirma a dimensão e profundidade da crise de representatividade do sistema político chileno dos últimos 31 anos. A composição da Convenção expressa também o tamanho da vitória popular que foi a Constituinte naqueles moldes: paridade de gênero, participação garantida aos povos indígenas (17 cadeiras em 155), possibilidade de candidaturas e coalizões alheias aos partidos tradicionais. Algo que só se explica pela grandiosidade do levante antissistêmico de outubro de 2019.

    E as outras eleições na região?

    Foi no mesmo contexto de placas sociais tectônicas se mexendo no interior das sociedades, que aconteceram eleições em outros dois países andinos no início de abril. No Equador, o banqueiro Guillermo Lasso venceu no segundo turno Andrés Arauz, herdeiro de Rafael Correa (57,58% a 47,48%), numa virada de jogo em que pesaram o desgaste do correísmo, de um lado, e a crise em torno de possíveis irregularidades no primeiro turno. Naquele, em fevereiro, a ínfima diferença entre Lasso e Yakku Pérez, do Movimento Plurinacional Patchakutik, foi questionada pelos movimentos sociais, reforçando a opção dos indígenas por chamar a um voto nulo “ideológico”. O resultado é que o governo do Equador volta às mãos de um representante direto do empresariado, depois de 35 anos, com um programa frontalmente ultraneoliberal e a terrível contradição de vir a se enfrentar com um povo não derrotado e uma oposição de esquerda amplamente majoritária no Legislativo, que elegeu para presidenta uma deputada do Patchakutik.

    O resultado da “megaeleição” de 15 de maio no Chile mostra uma derrota fragorosa da direita – que não conseguiu os dois terços de deputados constituintes necessários para vetar avanços antineoliberais -, derrotou igualmente a “esquerda comportada” da aliança Concertação (Partido Socialista e Democracia Cristã), que governou o país por 24 anos

    Na Bolívia, eleições para a chefia dos departamentos de La Paz, Tarija, Chuquisaca (onde fica Sucre) e Pando representaram derrotas para o MAS. Seus candidatos perderam em todas as regiões – embora o movimento social e político de Evo Morales continue sendo a única força partidária nacional. No cômputo geral, o MAS ficou com a “gobernación” de três dos nove departamentos do país (Cochabamba, Oruro e Potosí), tal como em 2005. Perdeu em cidades importantes como La Paz (em que venceu para prefeito um ex-ministro de Añez), Cochabamba e a estratégica El Alto. Os números gerais e, em particular, o desempenho de candidatos ligados a movimentos que já foram do MAS ou arrastam bases masistas (como a ex-senadora Eva Copa, agora prefeita de El Alto, e os governadores eleitos de La Paz e Chuquisaca) aumentam a temperatura do debate interno do partido-movimento de Evo, no qual escolhas de candidatos “a dedo” pelo ex-presidente são fortemente questionadas.

    Não há “novos ciclos”, nem neoliberal, nem progressista

    A crise dos regimes democrático-burgueses latino-americanos (com variações de país a país), aprofunda-se, sem solução a vista, e permite o crescimento aqui e ali das alternativas neofascistas. Tudo indica que as próximas disputas se darão entre opções neoliberais-oligárquicas (mais ou menos debilitadas), de um lado, com herdeiros do chamado “progressismo” que governou a região durante boa parte do atual século.

    Neste momento, no entanto, mesmo com a direita derrotada na Bolívia e no Chile, não é possível dizer que se abriu nem é provável que se abra um “novo ciclo” do chamado “progressismo” – categoria sob a qual se classificaram experiências tão distintas quanto os processos da Venezuela e da Bolívia (de frontais rusgas com o imperialismo) e, de outro lado, os social-liberais da Concertação chilena, da Frente

    Ampla uruguaia e do PT no Brasil.

    O problema é que o relativo êxito daqueles governos se sustentou naquilo em que foi (e é, veja-se a situação atual da Venezuela) a estrutural limitação: nutriu-se do boom das commodities, criando modelos desenvolvimentistas extrativistas, tendentes a reforçar a natureza agrário-exportadora (portanto colonial e depredatória) das economias da região. Para isso, construíram conscientemente coalizões classistas entre forças populares e setores mais ou menos amplos das classes dominantes. Essas últimas desembarcaram desses projetos e não parecem dispostas a experimentá-los novamente. A crise econômica global de hoje, sem precedentes, e o acirramento do embate entre EUA e China tornam impossível a repetição de um novo período mais ou menos longo de estabilidade baseado no modelo de uma época em que o mundo crescia e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem maiores tensões.

    Os casos do Equador, Bolívia e Chile apontam, no entanto, na direção de um crescente espaço social e político para a construção de alternativas anticapitalistas com programas que, surgindo dos embates sociais, avancem nas respostas a desigualdades de todo tipo, ao machismo, ao racismo, à fome, aos regimes corruptos, à violência policial-militar, à destruição do meio-ambiente e ao etnocídio dos povos indígenas.

    Ana Carvalhaes é jornalista, fundadora e militante do PSOL.
    Israel Dutra é Secretário de Relações Internacionais do PSOL.

    1. Segundo o Instituto para Estudios de la Paz (Indepaz), que alerta que são números parciais.
    2.  Referência ao uribismo, espectro político de natureza populista de ultradireita e neoliberal, liderado pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, de quem Duque é herdeiro direto. Arqui-inimigo da guerrilha em seu país e denunciado por ligações com os grupos paramilitares, Uribe foi ponta de lança da campanha pelo não ao Acordo de Paz com as FARC.
    3.  No período 2014-2018, os partidos da Concertação se somaram ao Partido Comunista Chileno para conformar a coalizão Nova Maioria.
    4.  Embora tenha sido parte da Nova Maioria, que perdeu as presidenciais para a direita de Piñeira em 2018, o PC teve o acerto, durante o levante de 2019, de não aceitar assinar o pacto de transição, com que Piñeira conseguiu o levante dos movimentos em troca da convocação da Constituinte.
    5.  Há vários “campos políticos” entre os chamados independentes: 28 deputadas e deputados da Lista Apruebo Dignidad (Frente Amplio e PC), 27 da Lista del Pueblo (movimentos sociais, comunitários, em geral de esquerda anticapitalista); 11 mais para o centro-esquerda, chamados Independentes Não Neutros; e outros 10 eleitos por fora de qualquer coalizão ou “lista” – num total de 76, ou 49% da Convenção. Se somados aos 17 representantes de etnias originárias (todos os eleitos são de esquerda no sentido amplo), serão 93 votos entre 155, ou 60%. Isso sem contar os 25 eleitos pela Lista del Apruebo (PS, DC e pequenos partidos de centro-direita), identificados com os governos social-liberais da Concertación. A direita, com 37 eleitos, tem razão em temer o que vai ser a nova carta.
  • Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil . Por Edemilson Paraná

    Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil . Por Edemilson Paraná

    Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil

    A segunda e mais agressiva onda neoliberal – iniciada com o forte ajuste fiscal de 2015 – exacerba tendências que se tornam estruturais em nossa economia, como baixo crescimento, baixa produtividade, desemprego elevado, precarização laboral, reprimarização e altíssima concentração de renda. A nova década perdida afigura-se como projeto permanente. Mas há chances de disputa

    Por Edemilson Paraná

    Onde estamos em 2021: dimensões da nova “década perdida” brasileira
    O capitalismo no Brasil encontra-se, como se sabe, em uma profunda – e prolongada – crise. Seus efeitos são dramáticos. A despeito dos choques e fatores conjunturais mais específicos, os últimos dez anos podem inequivocamente ser compreendidos como mais uma “década perdida” no país. Mais do que isso: os dados apontam para a pior década em 120 anos. São, nesse período, duas fortes recessões históricas, uma que vai de 2014 a 2016 e outra que começa em 2020, sem perspectiva clara de recuperação no curto prazo – já que, junto à crise econômica, temos agora uma pandemia fora de controle. Cumpre ilustrarmos exatamente do que se fala para que tenhamos a real dimensão do desastre em que nos encontramos.

    A despeito dos choques e fatores conjunturais mais específicos, os últimos dez anos podem inequivocamente ser compreendidos como mais uma “década perdida” no país. Mais do que isso: os dados apontam para a pior década em 120 anos. São, nesse período, duas fortes recessões históricas, uma que vai de 2014 a 2016 e outra que começa em 2020, sem perspectiva clara de recuperação no curto prazo – já que, junto à crise econômica, temos agora uma pandemia fora de controle

    De 2011 a 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) teve crescimento médio anual de 0,27%. Para efeitos de comparação, na “famosa” década perdida, que vai de 1981 a 1990, esse crescimento anual foi, em média, de 1,57% – quase 6 vezes maior. Ainda na mesma chave de comparação, na década perdida– de 1981 a 1990 – o PIB per capita caiu 0,4%; na “nossa” atual década perdida, de 2011 a 2020, essa queda foi 0,56%. O PIB brasileiro está atualmente (dados de 2020) 6,4% menor do que estava em 2014; e o PIB per capita, 10,8% menor. Estamos, em resumo, no agregado, mais pobres.

    Essa maior “pobreza”, no entanto, deve ser lida no sentido alargado porque, longe de ser apenas quantitativa, ela é qualitativa, já que junto à estagnação econômica ocorre uma regressão estrutural: o país se especializa, cada vez mais, como produtor de commodities, produtos primários, de baixo valor agregado e baixa intensidade em tecnologia e conhecimento; algo que tem evidentes implicações em outros campos da vida nacional. Isso porque mudança econômica, mudança social e mudança política estão todas conectadas e não podem ser pensadas separadamente. À luz dessa premissa, é que podemos, então, compreender as transformações na composição setorial da economia, na natureza do mercado de trabalho e, assim, parte significativa das tensões sociais e políticas a que isso se relaciona no último período – algo que buscarei realizar ao longo deste texto. Vejamos.

    A queda da indústria

    Para se ter uma ideia, a participação da indústria de transformação na economia, atualmente em 11,3% do PIB (dados de 2020), chegou ao menor patamar da série histórica, que começa em 1947 (à época em 19,9%, quase o dobro da participação atual). Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. A fatia do PIB relativa à indústria é, portanto, a menor desde o fim da década de 1940.
    No agregado, reflexo desta década, a produção industrial em 2020 é 12,4% menor do que em 2011. Cumpre destacar que o processo de desindustrialização prematura que vive o Brasil, desde a década de 1990 (reforçado, entre outros aspectos, por escolhas e políticas econômicas que detalharei à frente), está associado a uma expressiva deterioração da balança comercial de manufaturados, à baixa intensidade tecnológica da pauta exportadora e à baixa produtividade total da economia.

    Se é da pauta exportadora de que se fala, 2019 se configurou no ano de menor participação dos bens típicos da indústria de transformação nas exportações totais do Brasil, considerando série iniciada em 1989. Pior, esta involução do ímpeto exportador se concentra em ramos de maior intensidade tecnológica. A participação dos grupos de alta e média-alta tecnologia em nossas exportações industriais regrediu de 43% em 2000 para apenas 32% em 2019, o menor patamar desde 1995. Ou seja, o pouco que nossa indústria ainda exporta está concentrado em produtos de baixa complexidade tecnológica e valor agregado.

    A participação da indústria de transformação na economia, atualmente em 11,3% do PIB (dados de 2020), chegou ao menor patamar da série histórica, que começou em 1947 (à época em 19,9%, quase o dobro da participação atual). Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. A fatia do PIB relativa à indústria é, portanto, a menor desde o fim da década de 1940

    Tomemos, para efeitos de comparação, o que ocorre, em outro setor, o agropecuário, no qual um quadro oposto parece se desenhar. A participação das commodities nas exportações totais do país dobra entre 2000 e 2020, sendo a China – que compra, sobretudo, produtos primários – nosso maior parceiro comercial. Em 2010, as commodities representavam 58,3% das exportações totais; em 2020, passaram a 70,3%. Caso o foco seja a produtividade, e considerando, novamente, o período de 2010 a 2019, enquanto a produtividade total da economia cresceu 0,45% ao ano e a da indústria de transformação apenas 0,08% (na prática, estagnação), o aumento anual de produtividade no setor agropecuário foi de 7,06%. A cereja do bolo vem com o bom momento de preços dos produtos do “Agro” no mercado internacional, que faz reforçar essas tendências.

    Tudo somado, consolida-se, no Brasil, um “outro rural”, conforme termo do sociólogo Zander Navarro. Um “Agro” marcado por avanço tecnológico, aumento de produtividade, concentração econômica e, em consequência, desemprego massivo, com migração do campo para a cidade.

    Segundo o Censo 2017, apenas 2% dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido (no censo anterior a proporção era 63%). Nas palavras de Navarro, “a antiga segmentação dual entre grandes proprietários de terra dedicados à exportação e, em outro subsetor, os médios e pequenos abastecendo o mercado interno, como prevalecia até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma passagem ainda inconclusa, mas sem retorno (…). Médios e pequenos produtores estão sendo encurralados (…)”, com o consequente aprofundamento da migração da “questão social” do campo para as cidades.

    A situação dos trabalhadores

    Entrando neste tópico, impossível não visualizar a piora contínua da situação geral das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. O cenário anterior, de geração de empregos formais de baixos salários e redução de parte da extrema pobreza no Brasil nos governos petistas, vem se revertendo fortemente desde 2014. A taxa de subtilização da força de trabalho saiu de 14,9% em 2014 para 28,7% em 2020, e se observa o crescimento da miséria: a porcentagem de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 ao mês saiu de 9,2% em 2014 para 12,8% no início de 2021. Verifica-se também alta na informalidade, com 40 milhões de brasileiros nessa condição em 2019. De um pico de 41,1 milhões de trabalhadores em novembro de 2014, o emprego formal caiu, em dezembro de 2020, para 39 milhões (queda de 5,4%).

    Responsável, em grande medida, pela produção deste quadro foram as políticas econômicas que dominaram neste período – à direita e à “esquerda” –, amplamente baseadas no dogma da “austeridade”

    Nesse quadro, em que os mercados financeiros, as instituições financeiras e as elites financeiras passam a ter peso crescente sobre as políticas econômicas e seus efeitos, os ganhos e perdas socioeconômicas são, como se sabe, distribuídos de modo desigual entre as classes e setores econômicos. Voltando à relação entre economia, política e sociedade, em geral, e à conexão entre pobreza quantitativa e qualitativa, em particular, seria ingênuo imaginar que tal estado de coisas se manteria por tanto tempo sem que alguns, mesmo que poucos, estivessem ganhando muito com ele. Para o período de 1991 a 2014, enquanto o estoque de capital fixo produtivo cresceu 64% (ou 1,64 vezes), a Selic real (em capitalização composta) cresceu 745% (ou 8,45 vezes). No mesmo período, o estoque de ativos financeiros não-monetários tem um crescimento total de 1065% ou 11,65 vezes. De 2010 a 2019, o lucro anual dos quatro maiores bancos brasileiros somados saiu de 38,91 para 81,51 bilhões de reais, crescimento nominal de 109,4 %.

    Baixo crescimento, desindustrialização, reprimarização, financeirização e concentração econômica em múltiplos setores, com aumento de desemprego, precariedade, pobreza e desigualdade. Eis o Brasil que emerge de nossa mais nova “década perdida”.

    O fracasso de programas, previsões e promessas: do tripé econômico às políticas pós-emergenciais

    Responsável, em grande medida, pela produção desse quadro foram as políticas econômicas que dominaram nesse período – à direita e à “esquerda” –, amplamente baseadas no dogma da “austeridade”. Tais políticas entregaram, sistemática e estruturalmente, como se viu, o oposto de sua triunfante promessa: o tão almejado crescimento econômico.

    O marco fundamental das políticas de austeridade foi o ano de 1999, com a adoção do tripé macroeconômico até hoje em vigor: metas para inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Em seguida, no ano 2000, veio a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse pacote supostamente “modernizador”, somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e seguidas reformas trabalhistas e previdenciárias

    Apesar dos não-insignificantes ensaios anteriores, o marco fundamental das políticas de austeridade foi o ano de 1999, com a adoção do tripé macroeconômico até hoje em vigor: metas para inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Em seguida, no ano 2000, veio a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse pacote, supostamente “modernizador”, somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e seguidas reformas trabalhistas e previdenciárias. Um “programa” e visão geral de gestão macroeconômica que, guardadas as diferenças de conjuntura, forma e retórica, foi sendo estruturalmente mantido e, no último período, rápida e brutalmente aprofundado.

    De sua parte, valendo-se das margens abertas pelo superciclo das commodities e os efeitos benéficos na economia doméstica, o “desenvolvimentismo” petista mantém esse arranjo – a despeito das tímidas medidas de distribuição de renda, das políticas de valorização do salário mínimo e de oferta de crédito popular, acompanhada de uma frágil retomada dos investimentos públicos.

    O projeto de consolidação do Brasil como um misto de plantation high tech com plataforma de valorização financeira, garantindo ganhos financeiros de curto prazo em moeda forte, mantém-se e, em alguns aspectos, aprofunda-se. Mesmo as políticas públicas implementadas neste período, cujos efeitos sociais não podem ser ignorados – apesar de, a esta altura, terem se mostrado bastante frágeis e passageiros –, são concebidas e implementadas à luz deste modelo e os imperativos, sob a direção, em suma, desta racionalidade “financeirizante”. Superávits fiscais, para citar outro aspecto significativo da cartilha, foram produzidos sistematicamente pelo menos até 2013.

    O ajuste agressivo de 2015

    Entre prévios suspiros, ensaios pontuais e descoordenados de resistência a esse arranjo, o ajuste fiscal agressivo no Brasil se tornou vitorioso definitivamente a partir de 2015 (a partir do chamado “estelionato eleitoral” de Dilma Rousseff), cristalizando-se, daí em diante, como programa hegemônico das elites econômicas e políticas no Brasil.

    Para além da desarticulação do crescente poder de investimento e ação do BNDES e de estatais como a Petrobras, esse recrudescimento, já no âmbito de um novo e mais sombrio ambiente político no país, consolidou-se com a inclusão na Constituição Federal, em 2017, do “Novo Regime Fiscal”, cujas medidas incluem o draconiano e asfixiante “teto de gastos” por 20 anos. Ação sem paralelo no mundo, que, sob a ameaça de inviabilizar o funcionamento material do Estado, demanda cotidianamente a destruição da capacidade de ação econômica e social. As escandalosas e desqualificadas declarações de achaque do atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, fina flor e representante espiritual da parte significativa da mencionada elite, servem de didática ilustração desse ponto.

    Os choques e a pandemia

    É certo que a crise da pandemia de 2020 impõe um avanço significativo do gasto público – particularmente com o limitado, ainda que comparativamente significativo, auxílio emergencial que foi concedido no país, para contrariedade do governo federal.

    O ajuste fiscal agressivo no Brasil se tornou vitorioso definitivamente a partir de 2015 (a partir do chamado “estelionato eleitoral” de Dilma Rousseff), cristalizando-se, daí em diante, como programa hegemônico das elites econômicas e políticas no Brasil. Ele se consolidou com a inclusão na constituição federal, em 2017, do draconiano e asfixiante “teto de gastos” por 20 anos

    Isso reabre, em nossas paragens, a discussão sobre assuntos como política econômica, gasto e indução do Estado, emissão de moeda; algo que se expressa nas controvérsias recentes entre economistas ortodoxos e heterodoxos, com destaque para os debates em torno da Teoria Monetária Moderna dentro e fora do Brasil.

    Desde o início, no entanto, a “frente ampla” do andar de cima, agrupada em torno da austeridade, segue firme na defesa de um aprofundamento deste programa no cenário pós-pandêmico. Quer-se, em verdade, dobrar a aposta: autonomia do Banco Central, PEC da Calamidade, PEC Emergencial, reformas tributária e administrativa, novas e mais agressivas privatizações.

    Em qualquer caso, é preciso que se diga: pintadas de vermelho ou azul, verde e amarelo, a implementação, manutenção e intensificação contínua, ao longo deste período, destas duras medidas de ajuste fiscal no Brasil revelam, nos dados acima apresentados, a verdade: resultados pífios, país estagnado e, o que contradiz de maneira ainda mais flagrante o discurso ortodoxo, dívida bruta crescente – que, de 52,29% do PIB em janeiro de 2011, chegou, em fevereiro de 2020 (no período pré-pandemia, portanto), a 75,17%.

    O novo tempo do capitalismo brasileiro e os desafios da política

    Frente a este cenário nacional catastrófico, agravado politicamente com o governo de extrema direita, o campo progressista tem ensaiado várias propostas para superação da estagnação e seus efeitos nas maiorias sociais e minorias políticas. Culpa-se, principalmente, a política econômica austera pelo buraco que estamos (o que é, como vimos, em boa medida, correto), e a partir deste diagnóstico, são propostas retomadas desenvolvimentistas diversas, a “volta do Estado”.

    Para bem enquadrar a factibilidade dessas propostas, no entanto, é preciso melhor qualificar o diagnóstico que, no caso mencionado, tende a subestimar ou simplesmente não considerar as causas e consequências sociopolíticas deste quadro econômico. Quem erra na análise, erra na ação. Assim, devemos melhor equacionar – ainda que, aqui, de passagem, dadas as restrições de escopo e formato – os limites dessa crítica em prol de uma “nova economia” pós-pandemia.

    Primeiro, porque nossos colegas (hard ou soft) desenvolvimentistas tendem a prestar menos atenção aos problemas estruturais da estagnação brasileira: inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e da produção – dependência da produção e exportação de commodities aos sabores e dissabores da demanda internacional, sobretudo chinesa; ausência crônica de investimento público e privado, produtividade estagnada e uma baixa qualificação da mão obra que – eis, novamente, a política! –apresenta-se, em certo aspecto, como funcional à reprodução da estrutura econômica e social acima delineada.

    Segundo, e talvez de modo ainda mais significativo, porque não consideram o caráter social e político – de classe – do Estado e suas funções estruturais no capitalismo.

    As elites política e econômica deste país escolheram de vez a via da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente, em que a gestão “lucrativa” da estagnação-regressão econômica e da miséria apontam como horizonte de um “novo tempo” do capitalismo no Brasil

    Apesar de não ser um mero reflexo de um dado regime de acumulação, e a despeito de gozar de maior ou menor autonomia relativa a depender do arranjo histórico-cultural, conjuntura concreta e posição geoestratégica, o Estado, no capitalismo, não é um agente à parte da sociedade, fora e impunemente acima dela, mas perpassado pelos mesmos conflitos, tensões e dinâmicas que a constitui como tal. Isso se faz especialmente compreensível na conjuntura brasileira recente, em que o dogma da austeridade continua a ser um instrumento ideológico poderoso no avançar da ofensiva política de certos setores e frações de classe, naquilo que chamei de uma “frente ampla” – a reunir bolsonaristas e antibolsonaristas – no consenso básico em torno desse programa econômico, em vias de consolidação do modelo regressivo acima delineado, no qual estes são parte diretamente interessada.

    Um novo pacto de forças?

    No encontro de economia, política e sociedade, eis o paradoxo a que nos traz mais essa “década perdida”: como causa e consequência dessas transformações, conforme pude enunciar antes, muito parece indicar que as elites política e econômica deste país escolheram de vez a via da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente, em que a gestão “lucrativa” da estagnação-regressão econômica e da miséria apontam como horizonte de um “novo tempo” do capitalismo no Brasil.

    Diante disso, a pergunta central a se fazer é: qual ou quais classes, atores e setores sociais podem, no interior desse estado de coisas, servir de base política para essa desejada “volta do Estado” no Brasil pós-pandêmico? Isso porque pouco poderão nossos importantes e necessários planos de ação econômica na resistência e desejável reversão deste cenário, senão acompanhados e sustentados por um (novo) esforço concreto de (re) organização de forças populares para tanto. Esforço que, consideradas as evidências, pede uma reflexão honesta e criativa sobre a própria crise generalizada das esquerdas e suas formas de organização no Brasil e no mundo contemporâneo.

    Edemilson Paraná é professor de Sociologia Econômica e do Trabalho do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC); e professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC e de Estudos Comparados sobre as Américas da Universidade de Brasília (UnB).

    * Os números aqui apresentados têm como fonte as seguintes bases de dados: IpeaData, IBGE, FGV/Ibre, Secex, IEDI, BCB e Economática. Evitou-se indicar individualmente em cada caso para facilitar a leitura do texto.

    1. Navarro, Zander. O Brasil rural acabou? Disponível em: https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/03/zander-navarro-o-brasil-rural-acabou.html. Acesso em: 05 mai. 2021.
    2. Paraná, Edemilson. O que está por trás da “austeridade” como política econômica. Le Monde Diplomatique Brasil, 22 nov. 2017. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-que-esta-por-tras-da-austeridade-como-politica-economica/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    3. Lavinas, Lena; Gentil, Denise L. Brasil anos 2000: a política social sob regência da financeirização. Novos Estudos. CEBRAP, v. 37, p. 191-211, 2018.
    4. Paraná, Edemilson; Mollo, Maria de Lourdes. R. (2021). Dinheiro como relação social: uma leitura do poder monetário do Estado na MMT. Economia e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 1 (71), p. 15-38, jan./abr. ISSN 1982-3533.
    5. Ver a defesa deste diagnóstico em: Paraná, Edemilson. A “frente ampla” já existe – e ela está com Bolsonaro: a economia política do impasse brasileiro. Observatório da Crise (Fundação Lauro Campos e Marielle Franco), 20 mai. 2020. Disponível em: https://www.observatoriodacrise.org/post/a-frente-ampla-j%C3%A1-existe-e-ela-est%C3%A1-com-bolsonaro-a-economia-pol%C3%ADtica-do-impasse-https://www.observatoriodacrise.org/post/a-frente-ampla-j%C3%A1-existe-e-ela-est%C3%A1-com-bolsonaro-a-economia-pol%C3%ADtica-do-impasse-brasileiro. Acesso em: 06 mai. 2021. Desdobrado e reavaliado em: Paraná. Edemilson. O crescimento da popularidade de Bolsonaro e a nova fase do impasse político brasileiro: rachaduras na “frente ampla”? Blog da Boitempo, 19 ago. 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/08/19/o-crescimento-da-popularidade-de-bolsonaro-e-a-nova-fase-do-impasse-politico-brasileiro-rachaduras-na-frente-ampla/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    6. Em janeiro de 2021, já sob efeito da pandemia, a relação dívida/PIB chega a 89,72%.
    7. Carvalho, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020.
    8. Paraná, Edemilson. Brasil 2016: preparando a (nova) gestão de uma crise permanente. Blog da Boitempo11 nov. 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/11/brasil-2016-preparando-a-nova-gestao-de-uma-crise-permanente/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    9. Para um esforço nessa direção, ver: Paraná, Edemilson; Tupinambá, Gabriel. Arquitetura de Arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo: Autonomia Literária, no prelo.
  • Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia . Por Jesem Orellana

    Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia . Por Jesem Orellana

    A dupla tragédia sanitária e humanitária em Manaus durante a pandemia

    Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia

    Em 14 de janeiro de 2021, Manaus, maior metrópole da Amazônia, protagonizou o episódio mais dramático da pandemia, marcado pela morte de dezenas de pessoas dentro de hospitais, transformados em “câmaras de asfixia” pelo esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Um quadro que poderia ter sido evitado

    Por Jesem Orellana

    Manaus, como boa parte das metrópoles brasileiras, apresenta sérios problemas de desigualdades. A chegada da pandemia da Covid-19 encontrou uma notada precariedade da infraestrutura médico-hospitalar e de saúde, bem como corrupção no setor de saúde.

    Em 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 53%, aproximadamente, dos domicílios de Manaus, situavam-se em aglomerados subnormais (favelas, invasões, palafitas e loteamentos). A cidade também figurava na penúltima posição entre as capitais brasileiras no ranking da renda média mensal declarada (alta informalidade) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

    No final de fevereiro de 2020, em plena emergência sanitária, o único hospital de referência do Amazonas para Covid-19, o Delphina Rinaldi Abdel Aziz, em Manaus, tinha apenas 20 leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) adultos. O interior do Estado permanece sem leitos de UTI.

    A elevada desigualdade no acesso a serviços de saúde é inegável na capital amazonense. Há baixa efetividade de vigilância epidemiológica e laboratorial, incluindo respostas oportunas e rápidas diante de emergências em contexto pandêmico.

    Manaus, mesmo recebendo o maior volume de estrangeiros de toda a Amazônia, só começou a fazer o monitoramento remoto de passageiros que desembarcavam no aeroporto internacional Eduardo Gomes a partir de 26 de março de 2020. Ademais, inexistia testagem em massa em março/abril e pouca capacidade instalada para vigilância genômica. No ano seguinte, o Amazonas, seguiu sem fazer testagem em massa e com irrisória vigilância genômica do novo coronavírus.

    A escalada das mortes

    Em 27 de março de 2020, foi notificada a primeira morte pela doença em Manaus. Duas semanas depois, a rede médico-assistencial entrou no primeiro colapso, junto à rede funerária, evidenciando descontrolada transmissão comunitária. Câmaras frigoríficas foram instaladas na parte externa dos principais hospitais da cidade, para empilhar o crescente número de corpos, dentro e fora dos hospitais. Além disso, Manaus protagonizou enterros coletivos que chocaram a humanidade.

    Em 27 de março de 2020, foi notificada a primeira morte em Manaus. Duas semanas depois, a rede médico-assistencial entrou no primeiro colapso, junto à rede funerária, evidenciando descontrolada transmissão comunitária. Câmaras frigoríficas foram instaladas na parte externa dos principais hospitais da cidade para empilhar o crescente número de corpos

    A partir de junho de 2020, Manaus, apresentou desaceleração na epidemia, motivo suficiente para que o então ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, minimizasse a situação ao dizer que “o estado do Amazonas é completamente diferente da curva da região Norte e do Brasil. Uma curva muito mais clara, onde o pico já passou e o número tende a normalidade no final da curva”.

    Interessante frisar que em 18 de setembro, o governador do Amazonas promoveu um evento para cerca de mil pessoas, com a presença do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do senador Flávio Bolsonaro. Era uma mensagem clara à sociedade de que eventos dessa natureza não só eram permitidos, mas incentivados, justamente por quem deveria coibi-los. Como se não bastasse, no fim daquele mês, o governo estadual autorizou o retorno ao ensino presencial de quase 111 mil alunos de escolas públicas de ensino fundamental.

    A descrença em relação ao avanço da epidemia no Amazonas era nítida. Não por acaso, em agosto, o Estado realizou o menor número de exames RT-PCR (padrão-ouro para o diagnóstico da Covid-19), da série histórica, conforme se observa na Figura 1. No mês seguinte, mesmo diante do discreto aumento de exames em relação aos meses de julho e agosto, a positividade de amostras (número de exames com confirmação para a presença do novo coronavírus) alcançou 29,2% (IC95%: 27,9-30,6). Em janeiro de 2021, chegou-se ao crítico percentual de 53,5% (IC95%: 52,9-54,0). Era o segundo e mais violento pico de contágio e mortalidade da Covid-19, em plena segunda onda.

    Alertas científicos

    Os perigos da segunda onda foram alertados em revistas científicas de renome internacional e na imprensa, especialmente a partir de agosto de 2020.. Trata-se do momento em que se observaram três fenômenos epidêmicos importantes no risco de morte por Covid-19, segundo a data dos primeiros sintomas, para a população com 20 anos ou mais.

    O primeiro havia sido o registro do menor nível no risco de morte por Covid-19 da primeira onda, no período de 21 de junho a 11 de julho de 2020 (semanas epidemiológicas 26 a 28), com 5,7 mortes (IC95%: 4,6-7,0) para cada 100 mil habitantes.

    Em 18 de setembro, o governador do Amazonas promoveu um evento para cerca de mil pessoas, com a presença do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do senador Flávio Bolsonaro. Era uma mensagem clara à sociedade de que eventos dessa natureza não só eram permitidos, mas incentivados, justamente por quem deveria coibi-los

    O segundo foi a estabilização em patamares levemente mais altos nos períodos seguintes, quais sejam: entre 12 de julho e 1º de agosto de 2020 (semanas epidemiológicas 29 a 31), com 6,6 mortes (IC95%: 5,4-8,1) para cada 100 mil habitantes; bem como de 02 a 22 de agosto (semanas epidemiológicas 32 a 34), com 6,7 mortes (IC95%: 5,5-8,2) para cada 100 mil habitantes.

    Figura 1. Descrição do número mensal de exames RT-PCR para Covid-19, março de 2020 a março de 2021, Amazonas, Brasil

    Figura 2. Descrição do risco de mortalidade por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas e grupos de semanas epidemiológicas (semana 11 de 2020, até a semana 11 de 2021), Manaus, Amazonas, Brasil.

    O terceiro e mais importante, já na segunda onda, foi a significativa e sustentada reversão na tendência de queda na mortalidade por Covid-19, a partir do período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), com 8,4 mortes (IC95%: 7,1-10,1) para cada 100 mil habitantes.

    Tentativa de lockdown

    No período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), o então prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, inspirado em recomendações de cientistas, propôs um lockdown para conter o avanço da epidemia. A proposta foi quase que imediatamente classificada como “absurda” pelo presidente Jair Bolsonaro e descartada pelo governador Wilson Lima.

    O erro de avaliação dos governos federal e estadual, bem como a falsa promessa de imunidade de rebanho pela via natural, parece ter sepultado a resposta sanitária que poderia ter limitado a evolução da segunda onda e, quem sabe, a forte e rápida disseminação da variante de preocupação P.1 (B.1.1.28) ou até mesmo a sua emergência/surgimento.

    Como consequência da má gestão da epidemia e da baixa adesão da população às medidas de controle, no período de 13 de setembro a 3 de outubro (semanas epidemiológicas 38 a 40), ficou configurado o primeiro pico de mortes da segunda onda, com risco de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0) para cada 100 mil habitantes (Figura 2).
    Cabe salientar, que mesmo diante do sustentado e significativo agravamento da epidemia em Manaus, o governo estadual seguia negando a segunda onda. Ademais, de forma furtiva, a partir de setembro, passou a aumentar o número de leitos clínicos e de UTI, sob o improcedente pretexto de preparação para o período sazonal das síndromes gripais, o qual, historicamente, só passa a ser relevante em termos de mortalidade, entre fevereiro e abril.

    Ironicamente, mesmo novembro sendo mês de eleições municipais, quando mais de um milhão de manauaras foram às urnas no primeiro e no segundo turnos, em plena segunda onda e no momento em que a variante P.1 pode ter começado a circular, o Amazonas fez o menor número mensal de exames RT-PCR da epidemia. Foram menos de 3,6 mil diagnósticos para, aproximadamente, 4,3 milhões de habitantes. Semanas depois esse total passou para 4.933 (provavelmente influenciado pelo lançamento de resultados de amostras de novembro, avaliadas a partir de dezembro de 2020), como apresentado na Figura 1.

    Testagem negada

    Em novembro de 2020, a senhora Noeme Tobias de Souza, Procuradora de Justiça do Amazonas, em parecer alheio à realidade da epidemia, indeferiu o pedido de tutela de urgência impetrado pela Defensoria Pública do Estado (Processo n.º 0657137-02.2020.8.04.0001), em que requeria, acertadamente, a ampliação da testagem para o novo Coronavírus no Amazonas.

    O erro de avaliação dos governos federal e estadual, bem como a falsa promessa de imunidade de rebanho pela via natural, parece ter sepultado a resposta sanitária que poderia ter limitado a evolução da segunda onda

    Em linha com a suposta eficiência da testagem, em 2 de dezembro, o então ministro Pazuello defendeu que ela estava sendo feita de forma adequada no país, em contexto de queda na demanda desses recursos nos estados devido a “fase de desaceleração das infecções”. Na mesma ocasião, o então Ministro, assim como o presidente Jair Bolsonaro, criticou o lockdown, dizendo que havia sido implementado sem preparo e “na base do medo”, como se algum dia ele houvesse, de fato, aplicado algo assim no país.

    Mesmo depois de inúmeros alertas sobre a gravidade da segunda onda em Manaus, a tragédia sanitária começou a ficar escancarada em dezembro de 2020. Entre 10 de dezembro e 31 de janeiro, o número de leitos clínicos passou de 324 para 1.954, um aumento de 500%. Já o de leitos de UTI passou de 193 para 691. Apesar dos repetidos apelos e proposições de lockdown, Manaus jamais o implementou.

    Também merece destaque o fato de que a confirmação da circulação da variante emergente P.1 do vírus no Brasil só foi possível na segunda semana de janeiro. Ou seja, aproximadamente, 45 dias após o provável início da circulação no Amazonas e do colapso da rede médico-hospitalar de Manaus.

    A detecção só ocorreu graças ao assertivo e preciso monitoramento de rotina das autoridades aeroportuárias do Japão, junto a turistas que haviam visitado o Amazonas em dezembro de 2020. Esse, sem dúvida, é mais um elemento que confirma a ineficaz e inoportuna vigilância laboratorial e genômica no Brasil, ao longo da pandemia da Covid-19.

    Morte sem ar

    Em 14 de janeiro de 2021, Manaus, maior metrópole da Amazônia, protagonizou o episódio mais dramático da pandemia, marcado pela morte de dezenas de pessoas dentro de hospitais, transformados em “câmaras de asfixia”, pelo esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Como consequência, além de outros fatores, somente naquele mês foram confirmados 3.148 óbitos por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas. Era um número 23,7% maior que o total de mortes pela doença (2.545) durante a primeira onda (entre fevereiro e julho de 2020).

    Dias depois, dezenas de pacientes internados em municípios do interior também morreram por asfixia, devido ao esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal.

    Diante da trágica situação, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso a fatores como umidade e falta de tratamento precoce, mais uma vez negando os fatos e a Ciência.

    Embora o governo federal tivesse alegado desconhecimento da previsível falta de oxigênio em Manaus, é preciso lembrar que em 7 de janeiro, o governador Wilson Lima esteve reunido com o ministro da Saúde em Brasília para abordar a urgente necessidade de instalar mais 60 leitos de UTI. Ademais, em 11 de janeiro, o ministro Pazuello esteve na capital amazonense para acompanhar a crítica situação sanitária e humanitária, retornando a Brasília um dia antes do fatídico 14 de janeiro.

    Saliente-se que o governo estadual, na presença de técnicos do ministério da Saúde, imediatamente após aquela data, apresentou gráficos detalhando o consumo de oxigênio medicinal ao longo da epidemia.

    Portanto, como a evolução do consumo de oxigênio é obrigatoriamente acompanhada pelo número de internações hospitalares, não parece plausível alegar desconhecimento da iminência de tamanha tragédia. Some-se a isso o fato de as autoridades sanitárias virem acompanhando a explosão da demanda por leitos desde o final de dezembro de 2020.

    Disseminação de variantes

    No esteio da sequência de erros cometidos pelos diferentes níveis da gestão em saúde e diante do colapso da rede médico-hospitalar e das centenas de mortes sem assistência médico-hospitalar, os governos federal e estadual reuniram esforços para enviar, aproximadamente, 600 pacientes de Covid-19 para metrópoles de outras regiões do país. Essas pessoas viajaram acompanhadas por familiares em contexto de maciça circulação da variante P.1 do vírus, a qual viria a se disseminar de forma inédita pelo país semanas depois.

    O fato é que em abril de 2021, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia e chegou a responder por cerca de 1 em cada 4 óbitos por Covid-19 no planeta. Além disso, das mais de 423 mil notificações de mortes por Covid-19 no Brasil, desde março de 2020, um pouco mais da metade ocorreu nos primeiros quatro meses de 2021. Nessa ocasião, a transmissão comunitária atingiu os maiores níveis, em cenário de amplo relaxamento das medidas sanitárias e da forte circulação de variantes.

    Em abril de 2021, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia e chegou a responder por cerca de 1 em cada 4 óbitos por Covid-19 no planeta. Ademais, das 400 mil notificações de mortes no Brasil, desde março de 2020, a metade ocorreu nos primeiros quatro meses de 2021

    Essa tragédia evitável, além de ter resultado na perda de milhares de vidas (direta e indiretamente) e no vultuoso desperdício de recursos públicos, em tempos de crítico subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), deixou a marca mais imediata não apenas nas vítimas diretas que sobreviveram à Covid-19. Ela lega traumas psicológicos e um vasto leque de sequelas físicas e acarretará efeitos residuais de médio e longo prazo. Entre esses estão a redução da expectativa de vida da população ou o aumento das desigualdades, devido a piora de indicadores sociais.

    Aumento de casos fatais

    Por último, o governo do Amazonas, afinado com o ministério da Saúde, flexibilizou, em 22 de fevereiro, de forma precoce, as medidas restritivas à circulação de pessoas.

    Esse momento, coincidiu com o período de 07 de fevereiro a 27 de fevereiro de 2021 (semanas epidemiológicas 06 a 08), quando o risco de morte era de 30,6 (IC95%: 27,9-33,5) para cada 100 mil habitantes ou 316% (IC95%: 237-413) maior do que no período da flexibilização pós pico da primeira onda, ocasião em que o risco de morte foi de 7,4 (IC95%: 6,1-8,9) para cada 100 mil habitantes.

    No último grupo de semanas avaliado, o qual inclui o período de 28 de fevereiro a 9 de março de 2021 (semanas epidemiológicas 09 a 11), o risco de morte foi de 15,3 (IC95%: 13,4-17,5) para cada 100 mil habitantes, um valor ainda alto. Mas, em contexto de lento processo de vacinação, de circulação de variantes de preocupação e com parte da rede médico-hospitalar das principais cidades do Brasil, saturada ou em colapso.

    A onda pode piorar

    A desaceleração da queda no risco de morte, em pleno processo de vacinação, pode ser um indicativo de estabilização da segunda onda em nível de risco elevado e semelhante ao do primeiro pico da segunda onda, entre 13 de setembro e 3 de outubro de 2020 (semanas epidemiológicas 38 a 40), quando o risco de morte foi de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0). Esse padrão epidêmico pode ser um prenúncio da retomada ou do recrudescimento da segunda onda em Manaus, reforçando a ímpar negligência sanitária e humanitária na capital mundial da Covid-19.

    Não há dúvidas de que o papel das políticas voltadas à mitigação da epidemia precisa ser considerado para minimizar o impacto de novos ciclos de infecções, adoecimentos e mortes evitáveis por Covid-19 no Brasil, especialmente em regiões com baixa capacidade de resposta a emergências sanitárias e forte desigualdade socioeconômica como a capital amazonense. A cidade é dupla e gravemente afetada pela disseminação descontrolada do novo coronavírus.

    Finalmente, a dupla tragédia sanitária e humanitária de Manaus não foi ao acaso, mas consequência da pior de todas as variantes, a má gestão da epidemia. Por isso, os órgãos de controle e a justiça precisam agir e responsabilizar os culpados sob a pena de deixarmos a sensação de impunidade ser solidificada no imaginário e no cotidiano do brasileiro.

    Jesem Orellana é epidemiologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia.

  • A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado . Por Marco Antonio Rocha

    A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado . Por Marco Antonio Rocha

    A Ford e as agruras do desenvolvimentismo associado

    A saída da Ford do Brasil se deve a uma confluência de fatores. O principal deles está na drástica redução do mercado doméstico de automóveis e na grande capacidade ociosa das fábricas. Contam também a reestruturação que a empresa realiza em sua produção global – dando preferência a modelos de luxo em detrimento dos mais baratos – e a entrada de novas tecnologias no setor, como a do carro elétrico. A desindustrialização e a perda de milhares de empregos deveria provocar um debate de rumos sobre o desenvolvimento econômico

    Por Marco Antonio Rocha

    Embora a saída da Ford seja algo que atinja a memória afetiva de um projeto de desenvolvimento que se perdeu, o fato não é um acontecimento isolado. Ele representa mais um capítulo da crise aberta pela incapacidade do empresariado brasileiro capitanear uma rearticulação produtiva com o sistema capitalista internacional no período pós-fordista.

    O estilo de desenvolvimento em que o processo de internacionalização das multinacionais garantia a articulação de uma cadeia produtiva integrada no espaço nacional, não se tornou mais possível em um universo de cadeias fragmentadas e de especialização por tarefas nas cadeias globais. Durante a reestruturação produtiva do sistema capitalista internacional, não houve no país a construção de um projeto que possibilitasse superar os esquemas tradicionais de divisão do trabalho entre centro e periferia.

    O estilo de desenvolvimento em que o processo de internacionalização das multinacionais garantia a articulação de uma cadeia produtiva integrada no espaço nacional, não se tornou mais possível em um universo de cadeias fragmentadas e de especialização por tarefas nas cadeias globais

    Nesse sentido, a saída da Ford é a continuidade do esfacelamento da estrutura produtiva de caráter fordista, desenvolvida ao longo do processo de industrialização no Brasil. Durante a mudança na forma de internacionalização das empresas multinacionais e com a acirramento da competição internacional promovida pela industrialização das economias asiáticas, a burguesia industrial brasileira não demonstrou ter a menor capacidade de promover políticas garantidoras de uma inserção internacional do sistema industrial brasileiro que combinasse a sofisticação de sua pauta de exportação com a melhoria substancial da estrutura ocupacional.

    Falta de perspectivas

    O caso da Ford é ilustrativo desse processo. De certa forma, é resultado de tudo isso, das mudanças na lógica de atuação das multinacionais dos países centrais, dos efeitos da inserção internacional das economias de industrialização recente, do progresso tecnológico na competição global da indústria automotiva e da falta de perspectivas sobre o crescimento da economia brasileira nesse contexto.

    Em outros termos, é tanto resultado do vácuo em relação a um projeto de desenvolvimento de longo prazo quanto dos limites de outro projeto de desenvolvimento, cujo principal eixo de articulação dependia da presença do capital estrangeiro.

    A mudança do padrão de consumo das economias desenvolvidas, com a estagnação da demanda por automóveis na Europa e o crescimento da demanda nos Estados Unidos, concentrada em carros de luxo e SUVs, provocou o deslocamento do mercado consumidor para as grandes economias em desenvolvimento

    No que se refere a decisão da Ford, ela possui lógica semelhante da decisão das demais montadoras tradicionais em relação às mudanças recentes na indústria automotiva. A reorientação das estratégias das montadoras foi condicionada por três fatores inter-relacionados:

    O primeiro foi a mudança da concentração geográfica da demanda e do perfil do consumo de veículos; o segundo fator foi a entrada de novas empresas montadoras e o acirramento da competição nos mercados de maior dinamismo; e o terceiro é formado pelos efeitos da mudança tecnológica nas estratégias das empresas líderes.

    Mercado de luxo

    A mudança do padrão de consumo das economias desenvolvidas, com a estagnação da demanda por automóveis na Europa e o crescimento da demanda nos Estados Unidos, concentrada em carros de luxo e SUVs, provocou o deslocamento do mercado consumidor para as grandes economias em desenvolvimento. Ainda que sejam também grandes mercados para carros de luxo e de grande porte, a mudança geográfica dos mercados com maior crescimento significou uma maior taxa de crescimento da demanda localizada em carros de menor porte e menor valor adicionado.

    Muitas dessas economias, a exemplo da China, Índia e Rússia, desenvolveram capacidade local de produção por meio do fomento de montadoras locais. Essas novas entrantes pressionaram as margens para baixo, sobretudo nos mercados de grande crescimento, sendo especialmente bem-sucedidas na entrada nos nichos de automóveis de menor valor adicionado.

    Em um cenário de mudanças globais, é difícil supor que a mera manutenção de um ritmo modesto de crescimento do mercado interno seja suficiente para se contrapor ao movimento geral de reestruturação da indústria automobilística

    Esse movimento fez com que parte das montadoras tradicionais reavaliassem as estratégias nesses nichos de mercado, reduzindo os modelos e enxugando a produção voltada aos mercados emergentes. No cenário de queda drástica do comércio internacional provocado pela pandemia, a necessidade de promover a rápida ocupação da capacidade produtiva instalada provavelmente acelerou a reorganização estratégica da produção global das montadoras.

    A escolha por esse tipo de estratégia está relacionada também à mudança do perfil dos investimentos das montadoras tradicionais em direção às novas tecnologias da Quarta Revolução Industrial.

    Em geral, as grandes montadoras têm voltado parte dos investimentos na aquisição de patentes e de empresas desenvolvedoras de tecnologias chaves para a geração de carros com menor impacto ambiental e para automóveis de direção autônoma. Como as mudanças tecnológicas deverão significar a entrada de novas empresas no setor vindas de áreas relacionadas ao desenvolvimento das novas tecnologias, as montadoras tradicionais têm demonstrado pouco interesse em se manter na competição nos nichos de menor valor adicionado, concentrando esforços nos nichos de maior valor e no posicionamento para a competição nos novos modelos de maior complexidade tecnológica.

    Economia pouco atrativa

    Com a redução dos esforços competitivos nos modelos voltados aos mercados emergentes e a necessidade de racionalizar a produção global frente a essas mudanças estratégicas, é natural que economias pouco atrativas e com baixa perspectiva de crescimento, como se tornou a brasileira, sejam preteridas em relação a mercados emergentes de maior crescimento.

    Entretanto, é necessário levar em consideração que a maior atratividade de outras economias emergentes esteve relacionada não só a maiores taxas de crescimento, mas igualmente à existência de políticas voltadas ao desenvolvimento da produção automobilística local, inseridas geralmente em estratégias nacionais mais amplas de desenvolvimento das forças produtivas.

    Em um cenário de mudanças globais, é difícil supor que a mera manutenção de um ritmo modesto de crescimento do mercado interno seja suficiente para se contrapor ao movimento geral de reestruturação da indústria automobilística. Assim, como seria ainda mais difícil supor que o problema resida em um conceito vago e genérico como “Custo Brasil”, solucionável por meio de reformas de cunho liberalizante que seriam suficientes para reverter a perda de competitividade da indústria brasileira e defendida em bloco pela burguesia brasileira. A agenda do “Custo Brasil” só revela a falta de visão do que restou da burguesia industrial sobre a magnitude das mudanças no sistema industrial internacional e nas práticas de política industrial mundo afora.

    Incapacidade empresarial

    Do episódio da Ford, retiram-se algumas lições importantes. A primeira é nos fazer lembrar de como as estratégias das multinacionais podem facilmente desfazer imensos esforços dispendidos em relação a um estilo de desenvolvimento associado. A segunda é a incapacidade de o empresariado industrial brasileiro propor ou compor um projeto de desenvolvimento produtivo que vá além de, na melhor das hipóteses, uma inserção subordinada nas cadeias de valor. A terceira é como as economias que procuraram construir políticas de desenvolvimento industrial estão se demonstrando com maior capacidade de barganha e, inclusive, com maior atratividade para o investimento estrangeiro.

    Em meio a isso, buscam-se soluções momentâneas possíveis. A tentativa de fazer uma empresa brasileira ou uma dessas empresas entrantes no setor automobilístico, seja indiana ou chinesa, assumir o controle do parque produtivo salvaria os empregos e a economia das cidades afetadas – em especial, Taubaté e Camaçari – mas não deixaria de ser uma solução momentânea. Sem o crescimento do mercado doméstico e sem a construção de um projeto de base popular voltado ao desenvolvimento das forças produtivas, o episódio da Ford será apenas mais um dos vários que se seguirão.

    *Marco Antonio Rocha é professor do Instituto de Economia da Unicamp

  • A direita,  a internet  e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros

    O mercado editorial vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não

    Por Haroldo Ceravolo Sereza

    No início de janeiro de 2021, o grupo Record, do Rio de Janeiro, anunciou a saída de Carlos Andreazza da direção-executiva, com a substituição por Rodrigo Lacerda. Aparentemente, uma pequena e quase discreta movimentação nos cargos de uma das grandes empresas do setor, que, além da própria editora Record, conta também com os selos Difel, Bertrand Brasil, José Olympio, Civilização Brasileira, Paz e Terra, Verus, BestSeller (e o selo Best Business), as Edições BestBolso, Rosa dos Tempos, Nova Era e Viva Livros.

    Andreazza é hoje mais conhecido pelos comentários que fazia diariamente na rádio negacionista Jovem Pan. Recentemente, foi contratado pela CBN e será um dos âncoras a partir de fevereiro. Também tem uma coluna no jornal O Globo. É sobrinho do coronel Mario Andreazza (1918-88), o candidato preferido dos militares à Presidência. Foi derrotado na convenção do partido da ditadura, o PDS (atual Progressistas), por Paulo Maluf, que perderia a disputa indireta de 1985 para Tancredo Neves (PMDB). Estava na Record havia oito anos.

    Propaganda lacerdista

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964. Carlos Lacerda, aliás, criou uma editora muito importante também, a Nova Fronteira, da qual o novo diretor do grupo Record, neto do governador do Rio em 1964, já foi gerente editorial.

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964

    Essas genealogias sugerem a relevância que a tradição cultural da direita dá aos projetos ideológicos de fundo e para o papel fundamental que o mercado editorial teve no golpe de 2016 e na trajetória política do país que levou Jair Bolsonaro ao poder. Longe de ser um campo neutro, algumas das principais editoras e livrarias – e entidades que representam as grandes casas publicadoras – foram atores diretos da disputa ideológica em que estamos metidos.

    A construção de um ambiente hostil à esquerda recorreu a diferentes métodos de intervenção no debate político cultural. A edição e a superexposição de autores medíocres, embalados pela publicidade e pela compra de espaço nas livrarias, sugerem que, mais do que “ganhar dinheiro” diretamente com a venda de livros, algumas editoras se engajaram de modo explícito e empolgado na vida política. O resultado econômico imediato cedeu às pressões da luta ideológica. Não há estudos suficientes que indiquem claramente o financiamento político dessas empresas por institutos e think tanks que estiveram à frente desse combate. Mas, como o mercado editorial é, economicamente falando, bastante pequeno, é muito difícil detectar essas movimentações a quente. Normalmente, o entendimento desse mecanismo leva anos para ser desvendado, como foi o caso do apoio norte-americano à editora GRD, na década de 1960, comandada pelo escritor Rubem Fonseca. Essa casa, também especializada na difusão de ideologia reacionária, foi responsável pela publicação dos primeiros livros do hoje consagrado autor, um notório articulador do complexo ideológico Ipes-Ibad, institutos que organizaram o discurso e o dinheiro internacional que sustentou o golpe de 1964.

    Guinada à extrema direita

    Evidentemente ninguém é responsável pelos atos de tios e avós, mas Andreazza é responsável, sim, por uma radical guinada à extrema direita do grupo Record. Ele é o editor de Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e tantos outros. Também foi o editor que tirou de catálogo incontáveis autores progressistas e socialistas. Lacerda tem um perfil mais discreto e menos radical que o de Andreazza, e creio que ainda é cedo para avaliarmos o impacto da mudança. De todo modo, a saída de Andreazza da Record, em tese, coloca a editora numa posição menos engajada com a ultradireita que liderou o golpe.

    Durante os anos 2010, essa ultradireita levou muito a sério a criação e a difusão, com práticas de marketing agressivas, de livros. O Grupo Record, ainda antes de Andreazza assumir um posto de direção, já responsável pela publicação do jornalista Reinaldo Azevedo, fez uma agressiva campanha, fundada em desinformação, contra o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Chico Buarque em 2010, autor de Leite derramado, publicado pela Companhia das Letras.

    O mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos

    Num modelo de financiamento que dependia das editoras para bancar o crescimento, livrarias em dificuldades econômicas trocaram a ideia de gerirem espaços plurais política e culturalmente pela venda descarada de melhores lugares nas gôndolas de livros (não mais estantes) para as editoras capitalizadas. Direitistas envergonhados que dirigiam essas livrarias viram-se também representados por essa onda, e passaram a ser defensores ardorosos do Estado mínimo enquanto se afundavam em empréstimos obtidos no BNDES, num dos maiores erros setoriais do banco durante os anos Lula e Dilma.

    Falência das grandes livrarias

    Como sabemos, o projeto político vingou, mas as livrarias faliram. 2020 foi o ano em que as redes Saraiva e Cultura, as duas maiores do país, minguaram, numa crise que seria pouco diferente se não fosse a pandemia. Esses negócios vinham enfrentando dificuldades de longa data, dificuldades que derivam de erros de planejamento econômico, de administração cotidiana infeliz e, também, das derivas políticas desastrosas, que espantaram parte do público fiel. Essas lojas, que deixaram de pagar centenas de milhões de reais a fornecedores e trabalhadores, sofrem também com uma crise estrutural do setor, que, pressionado pela publicação legal ou ilegal de livros e textos digitais, viu o faturamento cair, em termos reais, 20% nos últimos 14 anos.

    Segundo o IBGE, de janeiro a novembro de 2020, as livrarias sofreram uma dura contração: o portal Publishnews, especialista no acompanhamento do mercado editorial, noticiou que o setor varejista de livros, jornais, revistas e papelaria apresentou perda acumulada de 29,7%. A Veja São Paulo também registrou uma nova ronda de demissões na Livraria Cultura, com o corte de dezenas de funcionários em 8 de janeiro de 2021. Dirigindo-se aos trabalhadores da rede, Sérgio Herz, CEO da Cultura, afirmou que a empresa “não está fazendo nada de mais” em atrasar os pagamentos e, em nota, a rede justificou as demissões como consequência de uma adequação “devido à nova realidade”: “o mercado migrou para o on-line e as vendas pela internet representam hoje, em média, 80% do total das vendas no Brasil”.

    Vendas físicas e online

    De acordo com o site da revista Pequenas empresas, grandes negócios, em 2019, segundo pesquisa divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), “as livrarias físicas e as vendas on-line representaram, respectivamente, 50,5% e 17,9% do faturamento do setor editorial. A expectativa é que, este ano, a internet tenha sido responsável, sozinha, por mais da metade”.

    Como mostra o gráfico 1 acima, essa queda não foi tão sentida pelas editoras em geral, especialmente as que dependiam menos das duas redes, por conta da venda on-line de livros – seja em sites próprios, de cada empresa, seja pela Amazon. Quando os dados incluem a venda on-line, os resultados são outros.

    É fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares

    Segundo o Painel do Varejo de Livros no Brasil (veja gráfico 1), acompanhamento em tempo real do mercado editorial brasileiro, feito pela Nielsen [Media Research por encomenda do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, até o fim de novembro de 2020 foram vendidos tantos exemplares e alcançou-se quase o mesmo faturamento que nos doze meses de 2020. De acordo com o Publishnews, “por questões contratuais da Nielsen com as varejistas, o documento não esmiúça o que foi realizado em lojas de argamassa e tijolo e aquilo que foi vendido em lojas exclusivamente virtuais, mas livreiros e editores ouvidos pelo PublishNews apontam que grande parte dessas vendas foi realizada em e-commerces, mostrando que esse segmento é o que tem sustentado essa recuperação apontada pelo Painel”.

    Assim, o mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos.

    Redes alternativas

    Nesse cenário, parece fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares.

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    Fontes:
    Agência O Globo/Revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios: O ano em que o e-commerce salvou o mercado editorial. https://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/E-commerce/noticia/2020/12/o-ano-em-que-o-e-commerce-salvou-o-mercado-editorial.html
    O Estado de São Paulo: Mercado editorial brasileiro encolhe 20% em 14 anos. https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,mercado-editorial-brasileiro-encolhe-20-em-14-anos,70003357850
    Publishnews: Nielsen: Black Friday polpuda salva 2020. https://www.publishnews.com.br/materias/2020/12/18/nielsen-black-friday-polpuda-salva-2020
    Publishnews: Mais demissões na Cultura. https://www.publishnews.com.br/materias/2021/01/18/apanhadao-mais-demissoes-na-cultura
    Veja São Paulo: Cultura demite 30 no último corte; ex-funcionários protestam para receber. https://vejasp.abril.com.br/cidades/livraria-cultura-fgts-rescisao-atrasado-pagamento-funcionario/
    Folha de São Paulo: Editor Carlos Andreazza deixa o grupo Record para se dedicar ao jornalismo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/01/editor-carlos-andreazza-deixa-o-grupo-record-para-se-dedicar-ao-jornalismo.shtml

    Haroldo Ceravolo Sereza, doutor em Letras pela FFLCH-USP, é fundador de Alameda Casa Editorial, ex-presidente das Liga Brasileira de Editoras (2011-2015) e representante eleito do Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Literatura do município de São Paulo.

  • Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Áurea Carolina: “Não nos conformamos com o modelo formal de democracia. Resguardar as regras do jogo é essencial”

    Eleita vereadora em 2016 e deputada federal em 2018 – nas duas situações com votação consagradora -, Áurea Carolina (PSOL-MG) tem sua atuação voltada à área da Cultura e à regulação da atividade mineradora no país, marcada pelos crimes ambientais da Vale, em Brumadinho e em Mariana. Ao mesmo tempo, não perde o diálogo com a periferia, de onde veio. A parlamentar considera possível fazer transformações em situações locais, que podem ganhar escala, a partir de uma direção política democrática

    Entrevista realizada por Gilberto Maringoni

    Como tem sido a experiência na Câmara Federal com um governo de extrema direita? E quais diferenças você vê para a atuação local?
    É um desafio em todas as dimensões. O ambiente da Câmara tem outra escala, com uma complexidade muito maior em relação à Câmara Municipal de BH. Estou na Comissão de Cultura, ocupando a segunda vice-presidência. É a primeira vez em que o PSOL está na mesa de uma comissão, o que é muito importante, ainda mais com a presidência de Benedita da Silva (PT-RJ), uma mestra maravilhosa que sempre me acolheu e orientou. Mas o contexto geral é de desmonte muito acelerado e violento, com essa ala extremista e autoritária que ganha força no Congresso. Na área da Cultura houve tentativas de censura e asfixia no financiamento das políticas públicas. Foi uma espécie de prisma para compreender toda a conjuntura brasileira. Também atuei na denúncia e apuração do crime da Vale, em Brumadinho, direcionando o mandato na busca da responsabilização da empresa e na defesa das populações atingidas. Participei de uma comissão externa que propôs uma revisão da legislação sobre mineração, e depois da CPI que investigou o crime.

    A Vale financiou muitos políticos mineiros e, portanto, é também um poder político. Como foi fazer esse enfrentamento à mineração predatória?
    Havia uma influência da Vale sobre parte dos parlamentares. Isso ficou ainda mais escancarado quando conseguimos levar alguns dos Projetos de Lei que construímos na comissão para apreciação do plenário. A Vale entrou pesado para inviabilizar mudanças significativas, mesmo após os crimes em Brumadinho e em Mariana, com a Samarco. É impressionante como essas empresas conseguem determinar boa parte do jogo parlamentar. Agora, está em curso o processo de acordo para reparação de danos sociais e ambientais, e vemos como a Vale continua controlando a cena do crime e dando as cartas, prejudicando as populações atingidas. Tudo com certa conivência do Judiciário e dos outros poderes. Compreendi não ser possível banir a mineração do Brasil, embora essa fosse a perspectiva desejável. O desafio é como reduzir os danos da atividade, que necessariamente causa destruição, e como torná-la mais responsável e segura.

    A Vale também foi financiadora de alguns setores da cultura. Existe alguma blindagem feita pela empresa nesse campo?
    O financiamento de ações culturais nos territórios deve ser exigido das empresas, não de qualquer maneira. Sabemos os riscos que isso traz de cooptação, manipulação, relações clientelistas e de como isso se torna um ativo para as corporações. Mas não exigir que tenham esse tipo de reparação mínima é também ilusório. Não acho que devamos prescindir desse vínculo entre formas de reparação, destinando parte da fortuna que levantam na exploração predatória para que, minimamente, possamos reconstruir esses territórios. Dessa forma, devemos fazer uma transição para sair da minerodependência usando parte dos recursos da atividade minerária para a diversificação da matriz econômica. Várias cidades teriam vocação para o turismo, economia popular e solidária, produção de alimentos saudáveis, e mesmo para desenvolvimento industrial. Mas isso não é cobrado dessas empresas. Tentamos emplacar mudanças na tributação, mas a Vale entrou de sola e não permitiu. Hoje, a tributação da mineração no Brasil é ridícula.

    O financiamento de ações culturais nos territórios deve ser exigido das empresas, não de qualquer maneira. Sabemos os riscos que isso traz de cooptação, manipulação, relações clientelistas, e de como isso se torna um ativo para as corporações. Mas não exigir que tenham esse tipo de reparação mínima é também ilusório. Hoje, a tributação da mineração no Brasil é ridícula

    A cultura talvez tenha sido uma das áreas mais tumultuadas do governo Bolsonaro, com uma forte ofensiva reacionária. Como isso se dá na comissão?
    A extinção do Ministério da Cultura foi o primeiro gesto do governo de que aprofundaria algo já em curso. Desde o golpe de 2016, isso vem numa toada cada vez mais grave. Na sequência, os secretários de Cultura vêm sempre com uma linha desastrosa, negacionista, delirante e muito coerente com o projeto bolsonarista. A cultura acontece sob um clima fundamentalista de perseguição à diversidade, com cerceamento do pensamento crítico e com tentativa de censura, não só de conteúdo, mas principalmente com a retirada de recursos da área, de maneira brusca e num volume inacreditável. Com a pandemia, tivemos um desastre total. Aprovamos a Lei Aldir Blanc para socorrer artistas e espaços culturais. Fizemos seminários temáticos para resgatar um pouco da história das políticas culturais, a questão dos povos e comunidades tradicionais e combatemos a tentativa de submeter a cultura ao pensamento mercadológico. A comissão passou a ser, como disse a Benedita, o partido da Cultura. Vários embates foram travados e tentamos ter uma concertação progressista para defender o básico.

    Você leva à Câmara uma contribuição periférica, negra e feminina num Congresso majoritariamente branco, machista, misógino e lgbtfóbico. Como enfrenta esse ambiente?
    Tive um pré-teste na Câmara de BH, um microcosmo da Câmara dos Deputados. Lá, já tínhamos visto a facção fundamentalista muito invasiva, além de agressividade física no plenário e muito da violência política presente no Legislativo. Uma parlamentar com as minhas características e compromissos, é sempre difícil estar em um espaço que não foi programado para nós. Mas nossa bancada é aguerrida e maravilhosa, apesar de pequena. Consolidamos uma atuação cuja força vem de fora para dentro, porque ali a correlação de forças dificulta avançar com nossas agendas. Há um reconhecimento forte de lideranças como eu, Talíria Petrone, Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna, jovens feministas que passam a ativar outra possibilidade de estar nos espaços de poder. Houve um crescimento de candidaturas de pessoas negras, feministas, periféricas e LGBTI nas eleições de 2020. Acho que é uma tendência, e o PSOL é o partido que mais tem correspondido a esse apelo e a essas novas formas de organização.

    Com o fim do auxílio emergencial e com a pandemia ainda em alta, se nada for feito, o que você vislumbra para o futuro próximo?
    O agravamento muito rápido das condições de vida faz com que a capacidade de auto-organização popular seja muito comprometida. Por outro lado, em função da necessidade de sobrevivência nas comunidades, surgiram iniciativas incríveis de ajuda mútua e busca de alternativas econômicas, além de circuitos de formação política que escapam muito da forma de organização de partidos e de movimentos sociais. Estou muito mais preocupada com a capacidade de a população construir formas politizadas de gestão da vida, buscando o cuidado entre nós, do que com as entranhas do Legislativo ou do partido. É o que me faz ter esperança e disposição para poder continuar existindo na Câmara, apesar de um jogo tão desfavorável para nós. É necessário apostar na institucionalidade para aquele que tenha uma vitalidade fora dela consiga impactar e transformá-la.

    Nas periferias, você disputa espaço com as igrejas fundamentalistas, em um meio violento e preconceituoso. Como se estabelece essa disputa?
    É muito difícil, mas os resultados existem. Nas igrejas evangélicas começa a existir um movimento disruptivo de crítica interna – ainda diminuto, mas com uma força qualitativa muito grande. Não à toa, tem surgido candidaturas evangélicas progressistas, que buscam em suas comunidades mostrar ser possível confrontar o fundamentalismo e toda a manipulação disfarçada de fé, para ter uma resposta em que fé e política se encontram. Na questão da segurança pública, se conseguirmos dialogar a partir de um trabalho persistente com lideranças críticas, a segurança vem como um dos eixos de organização comunitária. Vou dar um exemplo. Em Belo Horizonte, existia um baile funk muito famoso no Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do país, reunindo milhares de jovens. Ali, começou a haver muito conflito com a polícia, que sempre chegava com muita violência. Eu, ainda estava vereadora e nos reunimos com a Polícia Militar, a Prefeitura e os organizadores do baile e começamos a mediar uma situação para viabilizar a festa, com participação de parte a parte, defendendo o direito à cultura e à cidade. Surpreendentemente, tivemos avanços e o baile começou a acontecer em outros termos. No entanto, quando saímos dessa mesa de negociação, a situação não se sustentou e retrocedeu muito rapidamente. Isso mostra que quando há uma direção política é possível fazer transformações no micro que podem ganhar escala. Acho que o Sistema Nacional de Segurança Pública, tendo outra ação, poderia ter uma resposta de proteção à vida para sair desse modelo repressivo ineficaz e passar a se direcionar para uma política cidadã, com melhores resultados. Restabelecer a democracia em um lugar de decência mínima é a grande tarefa que temos para 2022. Não nos conformamos com o modelo formal de democracia que, sequer, funciona a contento. Resguardar as regras do jogo é algo essencial.

    Da cultura hip-hop para a Câmara dos Deputados

    Áurea Carolina de Freitas e Silva, paraense de Tucuruí, 37 anos, iniciou a militância política no mundo da Cultura, no início dos anos 2000. Integrante do grupo de rap Dejavuh, da periferia de Belo Horizonte, revelou-se uma artista eclética: compunha, cantava e dançava. Mas Áurea se destacou mesmo nas atividades organizativas, ao ajudar a formar o Hip Hop Chama, espaço de ativismo que unia arte e pensamento crítico. A atual deputada federal conta que “havia uma necessidade de participação e a arte foi o meio que nos trouxe para a reflexão sobre a realidade”.

    Daí para a política partidária, o caminho foi natural. “Comecei a participar de coletivos, tanto de rap quanto os que discutiam políticas públicas e direitos de juventudes, em temas como violência, racismo, machismo dentre outros”. Áurea foi atuar no terceiro setor ao mesmo tempo em que cursava graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Minas Gerais.

    Tem início uma fase de ativismo incessante. A ativista integrou o Fórum das Juventudes da Grande BH, em 2004, acompanhou a instituição da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho Nacional e do Plano Nacional de Juventude, nos governos de Lula, e passou a pesquisar a institucionalização de políticas para mulheres jovens no Brasil. Durante o mestrado, em 2015, foi subsecretária de Políticas para as Mulheres do governo de Minas Gerais, na gestão de Fernando Pimentel (PT). “Fiquei pouco tempo”, sublinha, “pois vi que não tinha como fazer o que eu acreditava”. Ela considera o período importante para entender como a sociedade civil pode influenciar as instituições.

    Ao participar de uma rede de movimentos de oposição às arbitrariedades do então prefeito Márcio Lacerda (PSB), Áurea entrou em contato com a militância do PSOL. Logo, nasceu a ideia da candidatura para Câmara Municipal. Em 2016, ela chegou lá, com 17.420 votos. O melhor desempenho feminino da cidade.

    O mandato de vereadora abriu uma experiência até então inédita. Ao lado de Cida Falabella, também do PSOL, inaugurou um mandato coletivo, batizado de Gabinetona. “Juntamos várias candidaturas em um projeto comum e desenvolvemos estratégias com resultados fenomenais”, relata.

    A maior inspiração de Áurea foi o avô materno, militante do PCB. “Ele trabalhou na mina de Morro Velho, em Nova Lima (MG), e participou da organização dos trabalhadores na década de 1930. Também foi perseguido e preso na ditadura. Já na década de 1980, atuou em projetos comunitários na periferia de BH”, afirma. A parlamentar pouco conviveu com o antigo militante, mas as memórias familiares e de amigos próximos servem de exemplo constante.

    O trabalho de Áurea e dos militantes do PSOL mineiro renderam frutos. Em 2018, elegeu-se para a Câmara dos Deputados com 162.740 votos, quase dez vezes mais do que o obtido dois anos antes. Andreia de Jesus, integrante da Gabinetona, foi eleita deputada estadual. “Passamos a ter quatro parlamentares nas três esferas do Legislativo, com equipe ampla trabalhando de forma integrada”, assinala. Em 2020, Áurea Carolina disputou a prefeitura de Belo Horizonte, numa frente com o PCB e a Unidade Popular, alcançando o quarto lugar, com 8,33% dos votos válidos.

  • Racismo e branquidade na transformação social . Por Danilo Moura

    Racismo e branquidade na transformação social . Por Danilo Moura

    “(…) Pois o desrespeito das elites pensantes brasileiras com as coisas do negro sempre foi a marca maior da ideologia deste país. As elites pensantes brasileiras, como subsidiárias do pensamento europeu/estadunidense, durante séculos vêm produzindo pilares ideológicos que dão sustentação ao preconceito, ao racismo, à discriminação que sempre se viu e se vê no Brasil” . Fernando Conceição¹

    Racismo e branquidade na transformação social

    O racismo não pode ser reduzido ao preconceito de cor ou mesmo de raça. Ele precisa ser compreendido como produto de quase quatro séculos de escravização dos povos africanos, ao longo da etapa de acumulação do capital no estágio mais primitivo. O que significa dizer que é parte constitutiva da identidade nacional

    Por Danilo Moura

    Escrever sobre o racismo no Brasil é uma tarefa intrigante, em parte por ser um tema já amplamente debatido, remoído e de aparentes obviedades, mas também por ser uma questão que teimam em colocar no campo das subjetividades pessoais e sempre caindo no velho “não é bem assim” ou “vocês vêm isso em tudo”. O fato é que o falar sobre o racismo em nosso país é tão cansativo quanto necessário e a cada vez que se fala é necessário “repassar” conceitos básicos e triviais, quase como se tivesse que ensinar ao seu filho a engatinhar toda vez que for sair de casa, mesmo ele já tendo corrido a casa inteira.

    A branquidade é um lugar de vantagem estrutural na dominação racial, um ‘ponto de vista’, um lugar a partir do qual se vê e vê os “outros” e as ordens nacionais e globais. Superar o racismo implica superar os privilégios da branquidade e isso passa por uma revisão de comportamento da militância, em uma autovigilância permanente

    A primeira coisa que precisa ser dita, praticamente mastigada e regurgitada para compreensão, é que o racismo não pode ser reduzido ao preconceito de cor ou mesmo de raça, precisa ser compreendido como produto de quase quatro séculos de escravização dos povos africanos, ao longo da etapa de acumulação do capital no estágio mais primitivo. O que significa dizer que é parte constitutiva da identidade nacional, assegurado pela perpetuação de relações sociais baseadas na assimetria entre brancos e não brancos, o “branco” como padrão e todos os demais como negação desse padrão, estabelecendo e protegendo privilégios cotidianos e quase invisíveis, de tão naturalizados, ao primeiro grupo.

    Compreender que racismo é, necessariamente e invariavelmente, um produto do processo de escravização e parte orgânica da sociedade brasileira, deve ser suficiente para uma segunda constatação que dela deriva, quase que instintivamente, a de que não é possível racismo reverso ou qualquer outra coisa do gênero, tampouco a afirmação de que o racismo parte ou deriva dos próprios negros.

    Seria preciso inverter completamente as relações sociais, séculos de exploração econômica, negação de valores estéticos, religiosos e epistemológicos, para somente daí acreditar na possibilidade do tal “racismo reverso”.

    Negação de direitos

    Em consequência das constatações anteriores devemos chegar a uma terceira que teima em se esconder e nunca ser debatida que é a “branquidade” e seus privilégios. Ela é tão perversa quanto a negação de direitos e a opressão infligida a negras e negros e os privilégios “naturais” concedidos às brancas e aos brancos, que se perpetuam há séculos, criando distorções econômicas, sociais e de direitos. Em sua obra Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo, Carlos Moore reflete sobre isto:

    “Nas sociedades multirraciais, é por intermédio do fenótipo que se organiza a gestão dos recursos. Na medida em que o racismo visa ejetar esse ‘Outro Total’ do circuito de usufruto dos recursos de um espaço definido, garantindo a marginalização completa, ele almeja a substituição do Outro, a erradicação mediante à assimilação ou qualquer outra forma mais radical. Na origem, o racismo constituiu-se e consolidou-se por intermédio do exercício da agressão, da conquista, da dominação ou do extermínio de qualquer agrupamento humano existente fora dessas redes. Assim, o racismo passa a ser nada menos que uma visão coletiva totalizante, que garante a gestão monopolista e racializada dos recursos, sendo a população-alvo considerada como parte integrante desses recursos”.

    O branco de esquerda tem papel nessa luta e não é de espectador. Para o nosso campo a luta contra o racismo deve ser uma tarefa árdua e um desafio cotidiano para toda a militância, independentemente de lugar no espectro da racialidade

    O silêncio dos brancos de esquerda é tão perverso quanto os gritos racistas do bolsonarismo, exemplo da defesa dos privilégios brancos levados ao extremismo, e se somam à manutenção do racismo. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural na dominação racial, um ‘ponto de vista’, um lugar a partir do qual se vê e vê os “outros” e as ordens nacionais e globais. Superar o racismo implica superar os privilégios da branquidade e isso, necessariamente, por uma revisão de comportamento da militância, em uma autovigilância permanente.

    Não se trata de mi mi mi

    Por conseguinte, a esta altura já devemos constatar que o racismo não é uma questão para ser enfrentada e resolvida pelos negros, porque não se trata de “dorzinha”, “mi mi mi”, ou falta de autoestima. Como tudo que é estrutural, somente pode ser superado pelo enfrentamento de contradições e encontrando nas manifestações as formas de resistência e, por fim, de superação.

    O branco de esquerda tem papel nessa luta e não é de espectador. Para o nosso campo a luta contra o racismo deve ser uma tarefa árdua e um desafio cotidiano para toda a militância, independentemente do lugar no espectro da racialidade. Antes de qualquer conclusão precipitada não há nessa posição qualquer tentativa de culpabilidade sobre o que antepassados brancos fizeram, mas o reconhecimento de que isso construiu os privilégios aos quais todo homem branco e mulher branca estão devidamente sentados e usufruindo de uma magnânima vista de uma sociedade racializada e que funciona a seu favor.

    O privilégio da branquidade faz com que manifestantes desarmados defendendo a vida sejam vistos como mais perigosos do que homens brancos armados que invadem o Capitólio construindo um cenário de atentado terrorista

    Recentemente, o centro do capitalismo mundial foi abalado por uma tentativa de golpe, com a ocupação do Capitólio dos EUA no dia em que seria feita a homologação da vitória de Joe Biden. O que saltou aos olhos foi a diferença no contingente policial e no tratamento destes aos manifestantes em comparação ao que foi visto nas manifestações do “Black Lives Matter!” (Vidas Negras importam!). A sobreposição das imagens deixa evidente para qualquer um quem é “mais perigoso” e quem não.

    Sim, o privilégio da branquidade faz com que manifestantes desarmados defendendo a vida sejam vistos como mais perigosos do que homens brancos armados que invadem o Capitólio construindo um cenário de atentado terrorista.

    O preconceito nos shoppings centers

    Vale, ainda como exemplo, lembrar os rolezinhos de 2014, em que a simples presença de corpos negros em determinados ambientes, nesse caso os shoppings centers, aciona um verdadeiro sistema de segurança para proteger e salvaguardar o espaço “naturalmente” destinado para o grupo racial e social privilegiado com o usufruto deste. A branquidade é quem, silenciosamente, alerta a todos no ambiente que tem algo errado, algo está fora do lugar, quem avisa à “gente de bem” que esse é o tipo que não cabe naquele espaço; portanto, enfrentar o racismo é enfrentar seus próprios privilégios.

    Ainda ilustrando, a branquidade estabelece, na mídia e no imaginário social, principalmente a partir da linguagem, a diferença entre o traficante que tinha 200g de maconha e o jovem estudante portando 3kg de cocaína, racionalizando o racismo e promovendo uma falsa sensação de legítimos ao encarceramento e genocídio da população negra. Por tudo isso, não é um exagero afirmar que as populações negras encarceradas são formadas por presos políticos, ou assassinados por motivação política, no Brasil ou onde quer que seja, em vista da condição que o escravismo – racializado nos legou.

    Engana-se quem avalia que o Estado brasileiro é ausente e que nunca teve política pública relacionada a essa questão. O que acontece é que o Estado sempre agiu para manter o status quo dos brancos e, inclusive, com diversas tentativas de “embranquecer” a nação

    Vale resgatar que em 1978, na oportunidade da fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR); um grupo de “presidiários” de São Paulo, manifestaram-se do seguinte modo:

    “Do fundo do grotão, do exílio, levamos nosso sussurro a agigantar o brado de luta e liberdade dado pelo MNUCDR. Nós, presidiários brasileiros, contamos com nosso grupo unificado contra a discriminação racial. E aqui estamos no lodo do submundo, mas dispostos a dar nossos corpos e mentes para a ação da luta, denunciar também a discriminação dentro do sistema judiciário. Aqui, no maior presídio da América do Sul. (…) Também tem o seguinte: Se (direito humano) for algo do qual dependemos da sociedade branca para nos conscientizar, algo que se consiga com docilidade de servos, não apresente!… Já estamos fartos de palavras, demagogias, por isso somos um grupo, por isso gritamos sem cessar. Somos negros, somos netos de Zumbi. (E vovô ficaria triste, se nos entregássemos sem lutar…)”

    Estado embranquecedor

    Engana-se quem avalia que o Estado brasileiro é ausente e que nunca teve política pública relacionada a essa questão. O que acontece é que o Estado sempre agiu para manter o status quo dos brancos e, inclusive, com diversas tentativas de “embranquecer” a nação. Basta para isso correlacionarmos o genocídio com as levas de imigrantes europeus.

    O Brasil, depois de quase quatro séculos de escravização de povos africanos e descendentes, após uma abolição incompleta que não concedeu a cidadania e/ou integrou os negros e negras à sociedade, sem realizar referência ao genocídio dos povos originais, ainda não consegue reconhecer os efeitos nefastos do que significou esse período e, por isso mesmo, é incapaz de fazer um acerto de contas com a história. Ainda se fala do racismo como se folclore fosse, homenageia-se escravocratas e se criminaliza aquelas e aqueles que por sentirem na pele as mazelas, levantam-se insurgentes contra as desigualdades.

    A esquerda precisa inaugurar um novo período em que o privilégio da branquidade seja combatido com a mesma voracidade que combate a exploração capitalista e, portanto, incorporar a ideia de que “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, logo, enfrentar os próprios privilégios e se colocar como aliada das negras, negros, povos indígenas e demais segmentos racialmente excluídos.

    Há no movimento negro quem pense que “os brancos podem ficar do nosso lado nas questões pequenas, mas jamais nas fundamentais”. Entretanto, também há quem pense que é na superação da branquidade e dos privilégios que dela derivam que encontramos o tal “lugar de fala” de boa parte da esquerda e do campo progressista.

    Concluo esse brevíssimo artigo com um alerta às companheiras e aos companheiros da dita esquerda branca, meio clichê e até repetida: no Brasil a revolução será negra ou não será, e como bem dito por um intelectual negro: “se a esquerda não é negra, sejamos nós a esquerda.”

    Danilo Moura é diretor de Articulação Jornal Questões Negras e Membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental;

     

     

    (1)Jornalista, docente da Faculdade de Comunicação da UFBA; no livro: Negritude favelada: a questão do negro e o poder na “democracia racial brasileira”; 1988
    (2)Movimento Negro Unificado; 1978 – 1988 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo, Confraria do Livro, 1988; p – 8-9.
    (3)Angela Davis, professora e filósofa socialista estadunidense, ex-integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos e dos Panteras Negras.
    (4)Malcolm x, defensor do Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana.
    (5) Clóvis Moura, sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro que desenvolveu a Sociologia da Práxis Negra.

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  • Luta contra o racismo: resistência à opressão do capital global . Por Dennis de Oliveira

    Luta contra o racismo: resistência à opressão do capital global . Por Dennis de Oliveira

    Luta contra o racismo: resistência à opressão do capital global

    O enfrentamento do racismo é o elemento central da construção de um projeto político transformador do país, de ruptura com a ordem capitalista global e de transformação radical das estruturas sociopolíticas. Não se trata de política meramente identitária, tampouco de enfrentar comportamentos disfuncionais, mas de se perceber a luta de classes em sua complexidade e múltiplas implicações

    Por Dennis de Oliveira

    1. A restauração conservadora do século XXI

    A luta contra o racismo no Brasil está diretamente conectada aos movimentos de resistência às novas formas de exploração do capital global. Após o período chamado pelo historiador egípcio Eric Hobsbawm de Era dos extremos, entre 1914 e 1991, ou também chamada por “breve século XX”, o início do terceiro milênio é marcado por uma restauração conservadora.

    Essa restauração tem dois elementos. O primeiro é a vitória das forças lideradas pelos Estados Unidos na Guerra Fria, marcada simbolicamente pela queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da antiga União Soviética em 1991. Tal fato histórico possibilitou uma avalanche ideológica conservadora sem precedentes que deu bases a um processo civilizatório baseado na imposição do paradigma da economia de mercado como discurso único. O segundo é a consolidação da reorganização do modelo de reprodução do capital – processo já iniciado nos anos 1970 como resposta à crise cíclica do capitalismo – com a transformação da produção das grandes plantas industriais em redes globais de nichos produtivos especializados, radicalizando a divisão internacional do trabalho.

    Em 1978, no ato de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, lideranças de uma organização de encarcerados, chamada Centro de Lutas Netos de Zumbi, denunciaram as condições bárbaras em que os detentos viviam. O ato também foi um protesto contra a tortura e assassinato de um jovem trabalhador negro numa delegacia policial

    Por uma coincidência trágica, tais processos ocorreram no mesmo momento da redemocratização do Brasil, nos anos 1980. Os novos sujeitos coletivos que protagonizaram a luta contra a ditadura militar de 1964/85 ganharam força na arena política e pressionaram na repactuação sociopolítica da Nova República, obtendo conquistas importantes na Constituição de 1988, em especial no tocante aos direitos sociais.

    Importante destacar que o movimento negro foi um dos sujeitos coletivos desse processo. Entretanto o racismo estrutural brasileiro impediu uma maior visibilidade das agendas. Em 1978, no ato de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, lideranças de uma organização de encarcerados, chamada Centro de Lutas Netos de Zumbi, denunciaram as condições bárbaras em que os detentos viviam.

    O ato de fundação do MNU também foi um protesto contra a tortura e o assassinato de Robson Silveira da Luz – jovem trabalhador da zona oeste da capital paulista -, numa delegacia policial.

    Esses fatos ocorreram três anos depois dos grandes atos de protesto contra o assassinato de Vladimir Herzog, no DOI-CODI, em outubro de 1975, que deu início a uma grande campanha contra as torturas e assassinatos de presos políticos. Nesse contexto, o MNU defendia a tese de que “todo preso comum é também um preso político”, infelizmente não abraçada pelo campo progressista.

    Por que esse fato é importante? No ano de 1988, mesmo ano de promulgação da Constituição, a Escola Superior de Guerra (ESG) – a mesma instituição vinculada às Forças Armadas e que foi o think-tank responsável pela elaboração da Doutrina de Segurança Nacional que permeou toda a lógica político-ideológica da ditadura – lançou um importante documento. Tratava-se de Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI – 1990/2000 – Década vital para um Brasil moderno e democrático. No capítulo social foi apontado que os focos desestabilizadores da democracia nesse período foram os cinturões de miséria e os “menores abandonados”. Por esta razão, a ESG defendia a manutenção dos aparatos repressivos constituídos na ditadura.

    No final da ditadura, a Escola Superior de Guerra na prática defendia que os “inimigos internos” deixaram de ser “os opositores do regime” para serem “os moradores da periferia ou dos cinturões de miséria”

    É interessante observar que a pactuação democrática dos anos 1980 não tocou a fundo a mudança nesse item. Mais que isso, a própria transição negociada pelo alto da ditadura para a democracia, entre o final dos anos 1970 e 1980, impediu o pleno julgamento dos agentes da repressão. A Lei da Anistia foi o instrumento normativo que possibilitou isso.

    Assim, o que a ESG na prática defendia é que o “inimigo interno” deixou de ser “os opositores do regime” para “os moradores da periferia ou dos cinturões de miséria”. Visionária ou não, a ESG já preparava o terreno para uma situação de intensificação da miserabilidade com a adoção do modelo neoliberal na economia brasileira que começou com maior força a partir dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso.

    2. As ações do movimento negro e o “Neoliberalismo progressista”

    Nesse período, o movimento negro brasileiro, com todas as dificuldades, teve importantes ações, como a organização de Encontros Nacionais de Mulheres Negras. Neles, lideranças feministas negras apontavam os mecanismos estruturais de opressão sobre a mulher negra. Foram realizados também Encontros Regionais e Nacionais de Entidades Negras. Destaca-se aqui o importante encontro de 1991, na cidade de São Paulo, em que cerca de 600 delegados representando 250 entidades denunciaram o “extermínio programado da população negra e pobre” tendo como base justamente esse documento da Escola Superior de Guerra e apontando a articulação entre racismo, capitalismo e neoliberalismo. Vale também destacar a Marcha da Consciência Negra, de 20 de novembro de 1995, em celebração aos 300 anos de Zumbi dos Palmares e, na sequência a realização do Congresso Continental dos Povos Negros das Américas no Memorial da América Latina, em São Paulo.

    Nos anos 1990, há uma inflexão pontual do projeto neoliberal que, diante das demandas crescentes das populações empobrecidas, passa a incorporar reivindicações pontuais desses movimentos, buscando retirar perspectivas de ruptura. É a corrente que a pensadora Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”

    O ano de 1995 foi ímpar por conta da confluência de dois processos políticos. O primeiro foi o acúmulo político-ideológico do movimento negro, que chegou a apresentar um programa político de combate ao racismo ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Ele se tornou o primeiro chefe de Estado a reconhecer o racismo como problema nacional. O segundo, decorrente disso, foi uma inflexão pontual do projeto neoliberal que, diante das demandas crescentes das populações empobrecidas com a intensificação da concentração de renda por conta do novo padrão de acumulação e reprodução do capital, passou a incorporar as reivindicações pontuais desses movimentos, buscando retirar as perspectivas de ruptura. É a corrente que a pensadora Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” e que vai ter papel importante em várias conferências internacionais, entre elas a Conferência de Combate ao Racismo de Durban, em 2001.

    Fraser afirma que…

    …foi uma aliança real e poderosa de dois companheiros improváveis: por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores mais dinâmicos, de alto nível “simbólico” e financeiro da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). O que manteve esse casal estranho junto foi uma combinação diferenciada de pontos de vista sobre distribuição e reconhecimento.

    Mais adiante, a pensadora estadunidense elencou o programa desse bloco:

    O bloco progressista-neoliberal combinava um programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política liberal-meritocrática de reconhecimento. O componente distributivo desse amálgama era neoliberal. Determinado a soltar as forças do mercado da mão pesada do Estado e da mina de “impostos e gastos”, as classes que controlavam esse bloco queriam liberalizar e globalizar a economia capitalista. (…) Calhou, desse modo, aos “Novos Democratas” contribuir com o ingrediente essencial: uma política progressista de reconhecimento. Recorrendo às forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. O núcleo desse ethos eram os ideais de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres e direitos LGBTQ; pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma forma específica e limitada que era totalmente compatível com a Goldman Sachsificação da economia dos EUA. Proteger o meio ambiente significava comércio de carbono. Promover a posse da casa própria significava empréstimos subprimes agrupados e revendidos como títulos lastreados em hipotecas. Igualdade significava meritocracia.

    A radicalidade da luta antirracista no Brasil que apontava para uma ruptura com a ordem capitalista neoliberal, enfrentava dois campos: um da extrema direita expressa na proposta da Escola Superior de Guerra, de intensificação dos mecanismos de extermínio; e outro, de uma comoditização das agendas antirracistas dentro dessa proposta do “neoliberalismo progressista”

    A Conferência de Durban foi um palco onde essas visões ideológicas se confrontaram. A radicalidade da luta antirracista no Brasil que apontava para uma ruptura com a ordem capitalista neoliberal enfrentava dois campos: um da extrema direita expressa na proposta da Escola Superior de Guerra, de intensificação dos mecanismos de extermínio; e outro, de uma comoditização das agendas antirracistas dentro dessa proposta do “neoliberalismo progressista”. O Banco Mundial, nesse período, atuou como uma instituição de governança global que financiava programas de enfrentamento da pobreza como “danos colaterais” das políticas de ajuste fiscal preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional.

    Uma pessoa importante nesse período que impactou essas discussões foi James David Wolfensohn, empresário australiano radicado nos EUA que atuou como presidente do Banco Mundial, entre 1995 e 2005. Foi justamente nesse período que Wolfensohn colocou o tema do combate à pobreza como central na agenda do Banco Mundial. Porém, a ideia de combate à pobreza ia no sentido de articulá-la dentro da perspectiva de constituição de uma governança global que garantisse o ajuste das economias dos países dependentes aos paradigmas da globalização neoliberal.

    No relatório anual de 2000, o Banco Mundial afirmou que a “pobreza mundial continua sendo um problema de grandes proporções”. Na abertura do relatório, Wolfensohn defendeu a necessidade de se combinar esforços em nível nacional (estabelecendo compromissos do país, abordagem integrada de longo prazo, parcerias e focos nos resultados) e global (na qual o banco se colocou como uma plataforma-suporte para implantação de políticas de combate à pobreza).

    A ação do Banco Mundial se articulou com o FMI (responsável pela imposição dos ajustes macroeconômicos) por meio dos chamados Poverty Reduction Strategy Papers (PRSP), que consistem em trabalhos realizados por países membros do FMI que combinaram ajustes macroeconômicos com políticas de redução da pobreza monitoradas por técnicos do fundo e do Banco Mundial.

    Após esse período, o cenário da luta contra o racismo teve mudanças significativas. Primeiro, a crise do modelo neoliberal no início do século XXI possibilitou o fortalecimento da corrente antineoliberal e, com isso, em vários países da América Latina foram eleitos governos com plataformas desenvolvimentistas ou anticapitalistas. No caso do Brasil, em 2003, com a vitória da frente liderada pelo PT em 2002, várias demandas do movimento social de negros foram institucionalizadas, em especial as ações afirmativas (como a promulgação da Lei Nº 10.639/03, as cotas raciais nas universidades e serviço público, o Estatuto da Igualdade Racial, entre outros). Mais: o modelo de governança participativa proposto pelo PT possibilitou a presença de lideranças do movimento negro em diversos espaços institucionais sem, contudo, haver uma reformulação nas estruturas racistas do Estado brasileiro.

    A resultante disso é que essa participação institucional ocorreu perifericamente, “nas franjas” dos espaços governamentais. Apesar de tudo, houve uma incorporação institucional da energia do movimento negro para tais espaços, configurando um “antirracismo de resultados”, isto é, a luta contra o racismo se deslocou meramente para a eficácia de políticas institucionais.

    Porém, o grande problema é de fundo ideológico. A luta contra o racismo, centrada nas políticas públicas de promoção, consolidou a ideia de que o racismo é um problema de ordem comportamental. Mesmo algumas enunciações de “racismo institucional” e “racismo estrutural”, centram-se em argumentos de comportamentos inadequados de agentes no poder. A diferença é que há aqueles que consideram que é possível uma reforma por meio de mecanismos institucionais – ressaltando os aspectos teoricamente disfuncionais do racismo e que, portanto, por meio do convencimento ou por pressões dos movimentos sociais e outros que desconsideram essa possibilidade, reafirmando uma essencialidade racial que determina os comportamentos preconceituosos.

    3. Os erros do reducionismo “progressista” da luta antirracista

    Como resultado, há uma tendência no campo progressista de reduzir a luta antirracista a dimensão comportamental e enxergar o movimento meramente como “identitário”. Quais são os erros dessa visão?

    Primeiro: a componente racial está diretamente articulada com as hierarquias da divisão internacional do trabalho radicalizada com os novos arranjos produtivos globais. Tais arranjos se organizam da seguinte forma: no topo, os centros produtores e disseminadores de tecnologias e processos, no intermédio, a aplicação das tecnologias e produção manufatureira, e na base, o fornecimento de insumos e matérias primas.

    Essa foi uma zona de enfrentamento dos projetos progressistas na América Latina. Países como Bolívia e Venezuela tiveram que garantir uma situação de bem-estar às populações, como também envidar esforços para retirar as economias dos países da situação de mero fornecedores de matérias-primas.

    No caso do Brasil, país colocado na zona intermediária e que, por situações singulares, tem uma estrutura capacitada de produção tecnológica, a luta foi contra o desmonte das universidades públicas e empresas estatais capazes de induzir cadeias produtivas de maior valor agregado.

    O modelo de governança participativa proposto pelo PT possibilitou a incorporação de lideranças do movimento negro em diversos espaços institucionais sem, contudo, haver uma reformulação nas estruturas racistas do Estado brasileiro

    Nesse sentido, a democratização do acesso tanto a universidades públicas como às empresas públicas, por meio das cotas raciais, permitiu a inserção da população negra nessa produção tecnológica, possibilitando a articulação do desenvolvimento científico-tecnológico às demandas sociais dessas populações.

    Não é à toa que as campanhas direitistas contra Evo Morales e Hugo Chavez, por exemplo, tiveram forte conotação racista. Ideologicamente, tal discurso cristalizou os lugares subalternos desses povos e suas nações no cenário global do capitalismo, assim como o próprio Banco Mundial que historicamente prega o desinvestimento no ensino superior com o argumento populista de que se deve priorizar a educação básica.

    Também esse elemento explica o porquê da USP – a universidade responsável pela esmagadora maioria da produção científica e tecnológica do país e colocada entre as cem maiores do mundo – ter sido a mais resistente em adotar as cotas raciais.

    Ciência e tecnologia é o poder dentro da cadeia global da produção capitalista.

    Um exemplo que deixa isso nítido são as telas de cristal líquido que equipam celulares, produto que envolve uma sofisticação tecnológica desenvolvida nos centros de pesquisa e desenvolvimento sediados nos países centrais do capitalismo e que tem como matéria-prima o mineral coltan, extraído com mão de obra de crianças escravizadas na República do Congo.

    Basta ver a composição étnica dos países em que se situam esses centros de pesquisa sofisticados (bem como os seus integrantes) e do país que fornece a matéria-prima e o insumo (e das crianças escravizadas nesse tipo de trabalho).
    Segundo: o capitalismo brasileiro foi construído a partir do sistema escravista e não significou uma ruptura com a ordem anterior e sim uma transição, como afirma o pensador brasileiro Clóvis Moura.

    Moura defende a ideia de que entre 1850 e 1888 se constituiu uma “modernização sem mudança”, pois a constituição da infraestrutura necessária para o estabelecimento do capitalismo foi feita por meio de inversões de capital estrangeiro, principalmente britânico. Assim, constituiu-se uma aliança entre esse capital e as classes dominantes brasileiras que se, ao mesmo tempo aceitaram serem sócias minoritárias nesse projeto, mantiveram seus privilégios, interditando qualquer possibilidade de constituição de um projeto nacional que implicasse uma aliança com a classe trabalhadora nacional.

    A luta contra o racismo, centrada nas políticas públicas de promoção, consolidou a ideia de que o racismo é um problema de ordem comportamental. Mesmo algumas enunciações de “racismo institucional” e “racismo estrutural”, centram-se em argumentos de comportamentos inadequados de agentes no poder

    O racismo operou, assim, como uma ideologia que sustentou esse projeto de submissão e, inclusive, de transformação da imensa massa de negros e negras ex-escravizados em excedente de mão de obra que possibilitava o rebaixamento geral do valor da força de trabalho. Foram criadas as condições necessárias para a realização do fenômeno da superexploração da mão de obra – isto é, o pagamento em valores inferiores às necessidades de reprodução – elemento essencial do capitalismo dependente, segundo Ruy Mauro Marini.

    Constituiu-se, assim, uma tipologia de Estado que tem como tripé de sustentação a concentração de renda e patrimônio, a concepção restrita de cidadania e a violência como prática política recorrente. Daí as dificuldades de implantação no Brasil de pactuações democráticas efetivas, ainda que dentro dos marcos de uma democracia burguesa liberal clássica. Esse é o sentido da palavra de ordem de uma organização do movimento negro, a Rede Quilombação, de que “a democracia não chegou na periferia”.

    Assim, o enfrentamento do racismo é o elemento central da construção de um projeto político transformador do país, de ruptura com a ordem capitalista global e transformação radical das estruturas sociopolíticas. Não se trata de política meramente identitária, tampouco de enfrentar comportamentos disfuncionais.

    Após a Abolição, em 1888, o racismo operou como uma ideologia que sustentou o projeto de transformação da imensa massa de negras e negros ex-escravizados em excedente de mão de obra que possibilitava o rebaixamento geral do valor da força de trabalho

    Lelia Gonzales, no texto intitulado Amefricanidade, fala do “racismo como denegação”, ou seja, uma postura recorrente das classes dominantes de negar a condição amefricana do país, independente do pertencimento étnico pessoal.

    Em um projeto político que tem como centro aprofundar a democracia e combater as desigualdades sociais, colocar a luta contra o racismo em segundo plano é desconsiderar que negras e negros sempre foram excluídos de qualquer possibilidade de pactuação democrática e que o racismo é uma ideologia que sustenta a concentração de renda, a ponto de naturalizarem-se cenas de crianças negras vendendo doces nos cruzamentos e a Escócia, país majoritariamente branco, ter uma reitora negra na Universidade de St. Andrews, enquanto aqui…

    Isso não é mero identitarismo, mas produto de uma arquitetura ideológica que define lugares sociais. Pois, desde as origens, no Brasil, as classes sociais são racializadas: negras e negros foram escravizados para o trabalho e brancos educados para colonizar e expropriar as riquezas.

    Dennis de Oliveira é professor da Universidade de São Paulo, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA), coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) e do GT Epistemologias decoloniais, cultura e territorialidades do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Coordenador da Rede Quilombação. E-mail: dennisol@usp.br

     

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    Referências
    ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. S. Paulo: Pólen, 2018.
    FRASER, N. “Do neoliberalismo progressista a Trump – e além” in: Revista Política e Sociedade – revista de sociologia política. V. 17, n. 40 (2018), disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2018v17n40p43/38983 (acesso em julho de 2020).
    GONZALES, L. “A categoria cultural de amefricanidade” in: Por um feminismo negro latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
    HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX (194-1991). S. Paulo: Cia das Letras, 1995.
    MARINI, R. Dialética da dependência. Cidade do México: Ed. Era, 1977.
    MOURA, C. Dialética radical do Brasil Negro. S. Paulo: Anita Garibaldi, 2018.
    OLIVEIRA, D. “Globalização e racismo no Brasil” S. Paulo: Legítima Defesa, 1994.
    —————— “Intervenção no Rio de Janeiro: o golpe se aprofunda contra as periferias” no portal Alma Preta (disponível em https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/intervencao-no-rio-de-janeiro-o-golpe-se-aprofunda-contra-as-periferias, acesso janeiro 2021).
    ——————. (org). A luta contra o racismo no Brasil. S. Paulo: Fórum, 2017.
    SOUZA, C. L. S. Racismo e luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. S. Paulo: Hucitec, 2020.
    WORLD BANK. “The World Bank Annual Report 2000” disponível em http://documents1.worldbank.org/curated/en/931281468741326669/pdf/multi-page.pdf (acesso em julho 2020).

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  • A direita, a internet  e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros . Por Haroldo Ceravolo Sereza

    A direita, a internet e os livros

    O mercado editorial vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não

    Por Haroldo Ceravolo Sereza

    No início de janeiro de 2021, o grupo Record, do Rio de Janeiro, anunciou a saída de Carlos Andreazza da direção-executiva, com a substituição por Rodrigo Lacerda. Aparentemente, uma pequena e quase discreta movimentação nos cargos de uma das grandes empresas do setor, que, além da própria editora Record, conta também com os selos Difel, Bertrand Brasil, José Olympio, Civilização Brasileira, Paz e Terra, Verus, BestSeller (e o selo Best Business), as Edições BestBolso, Rosa dos Tempos, Nova Era e Viva Livros.

    Andreazza é hoje mais conhecido pelos comentários que fazia diariamente na rádio negacionista Jovem Pan. Recentemente, foi contratado pela CBN e será um dos âncoras a partir de fevereiro. Também tem uma coluna no jornal O Globo. É sobrinho do coronel Mario Andreazza (1918-88), o candidato preferido dos militares à Presidência. Foi derrotado na convenção do partido da ditadura, o PDS (atual Progressistas), por Paulo Maluf, que perderia a disputa indireta de 1985 para Tancredo Neves (PMDB). Estava na Record havia oito anos.

    Propaganda lacerdista

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964. Carlos Lacerda, aliás, criou uma editora muito importante também, a Nova Fronteira, da qual o novo diretor do grupo Record, neto do governador do Rio em 1964, já foi gerente editorial.

    O grupo Record, inicialmente uma distribuidora de serviços para a imprensa, como tiras de quadrinhos e artigos, passou a publicar livros nos anos 1960 para divulgar as ideias de Carlos Lacerda (1914-77) e fazer muita propaganda anticomunista. Foi uma das editoras que, obviamente, mais apoiaram o golpe de 1964

    Essas genealogias sugerem a relevância que a tradição cultural da direita dá aos projetos ideológicos de fundo e para o papel fundamental que o mercado editorial teve no golpe de 2016 e na trajetória política do país que levou Jair Bolsonaro ao poder. onge de ser um campo neutro, algumas das principais editoras e livrarias – e entidades que representam as grandes casas publicadoras – foram atores diretos da disputa ideológica em que estamos metidos.

    A construção de um ambiente hostil à esquerda recorreu a diferentes métodos de intervenção no debate político cultural. A edição e a superexposição de autores medíocres, embalados pela publicidade e pela compra de espaço nas livrarias, sugerem que, mais do que “ganhar dinheiro” diretamente com a venda de livros, algumas editoras se engajaram de modo explícito e empolgado na vida política. O resultado econômico imediato cedeu às pressões da luta ideológica. Não há estudos suficientes que indiquem claramente o financiamento político dessas empresas por institutos e think tanks que estiveram à frente desse combate. Mas, como o mercado editorial é, economicamente falando, bastante pequeno, é muito difícil detectar essas movimentações a quente. Normalmente, o entendimento desse mecanismo leva anos para ser desvendado, como foi o caso do apoio norte-americano à editora GRD, na década de 1960, comandada pelo escritor Rubem Fonseca. Essa casa, também especializada na difusão de ideologia reacionária, foi responsável pela publicação dos primeiros livros do hoje consagrado autor, um notório articulador do complexo ideológico Ipes-Ibad, institutos que organizaram o discurso e o dinheiro internacional que sustentou o golpe de 1964.

    Guinada à extrema direita

    Evidentemente ninguém é responsável pelos atos de tios e avós, mas Andreazza é responsável, sim, por uma radical guinada à extrema direita do grupo Record. Ele é o editor de Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e tantos outros. Também foi o editor que tirou de catálogo incontáveis autores progressistas e socialistas. Lacerda tem um perfil mais discreto e menos radical que o de Andreazza, e creio que ainda é cedo para avaliarmos o impacto da mudança. De todo modo, a saída de Andreazza da Record, em tese, coloca a editora numa posição menos engajada com a ultradireita que liderou o golpe.

    Durante os anos 2010, essa ultradireita levou muito a sério a criação e a difusão, com práticas de marketing agressivas, de livros. O Grupo Record, ainda antes de Andreazza assumir um posto de direção, já responsável pela publicação do jornalista Reinaldo Azevedo, fez uma agressiva campanha, fundada em desinformação, contra o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Chico Buarque em 2010, autor de Leite derramado, publicado pela Companhia das Letras.

    Num modelo de financiamento que dependia das editoras para bancar o crescimento, livrarias em dificuldades econômicas trocaram a ideia de gerirem espaços plurais política e culturalmente pela venda descarada de melhores lugares nas gôndolas de livros (não mais estantes) para as editoras capitalizadas. Direitistas envergonhados que dirigiam essas livrarias viram-se também representados por essa onda, e passaram a ser defensores ardorosos do Estado mínimo enquanto se afundavam em empréstimos obtidos no BNDES, num dos maiores erros setoriais do banco durante os anos Lula e Dilma.

    Falência das grandes livrarias

    Como sabemos, o projeto político vingou, mas as livrarias faliram. 2020 foi o ano em que as redes Saraiva e Cultura, as duas maiores do país, minguaram, numa crise que seria pouco diferente se não fosse a pandemia. Esses negócios vinham enfrentando dificuldades de longa data, dificuldades que derivam de erros de planejamento econômico, de administração cotidiana infeliz e, também, das derivas políticas desastrosas, que espantaram parte do público fiel. Essas lojas, que deixaram de pagar centenas de milhões de reais a fornecedores e trabalhadores, sofrem também com uma crise estrutural do setor, que, pressionado pela publicação legal ou ilegal de livros e textos digitais, viu o faturamento cair, em termos reais, 20% nos últimos 14 anos.

     

    Segundo o IBGE, de janeiro a novembro de 2020, as livrarias sofreram uma dura contração: o portal Publishnews, especialista no acompanhamento do mercado editorial, noticiou que o setor varejista de livros, jornais, revistas e papelaria apresentou perda acumulada de 29,7%. A Veja São Paulo também registrou uma nova ronda de demissões na Livraria Cultura, com o corte de dezenas de funcionários em 8 de janeiro de 2021. Dirigindo-se aos trabalhadores da rede, Sérgio Herz, CEO da Cultura, afirmou que a empresa “não está fazendo nada de mais” em atrasar os pagamentos e, em nota, a rede justificou as demissões como consequência de uma adequação “devido à nova realidade”: “o mercado migrou para o on-line e as vendas pela internet representam hoje, em média, 80% do total das vendas no Brasil”.

    Vendas físicas e online

    De acordo com o site da revista Pequenas empresas, grandes negócios, em 2019, segundo pesquisa divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), “as livrarias físicas e as vendas on-line representaram, respectivamente, 50,5% e 17,9% do faturamento do setor editorial. A expectativa é que, este ano, a internet tenha sido responsável, sozinha, por mais da metade”.

    O mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos

    Como mostra o gráfico 1 acima, essa queda não foi tão sentida pelas editoras em geral, especialmente as que dependiam menos das duas redes, por conta da venda on-line de livros – seja em sites próprios, de cada empresa, seja pela Amazon. Quando os dados incluem a venda on-line, os resultados são outros.

    Segundo o Painel do Varejo de Livros no Brasil (veja gráfico 1), acompanhamento em tempo real do mercado editorial brasileiro, feito pela Nielsen [Media Research por encomenda do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, até o fim de novembro de 2020 foram vendidos tantos exemplares e alcançou-se quase o mesmo faturamento que nos doze meses de 2020. De acordo com o Publishnews, “por questões contratuais da Nielsen com as varejistas, o documento não esmiúça o que foi realizado em lojas de argamassa e tijolo e aquilo que foi vendido em lojas exclusivamente virtuais, mas livreiros e editores ouvidos pelo PublishNews apontam que grande parte dessas vendas foi realizada em e-commerces, mostrando que esse segmento é o que tem sustentado essa recuperação apontada pelo Painel”.

    É fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares

    Assim, o mercado editorial brasileiro vive uma profunda mudança: as vendas em livrarias físicas caíram, mas a circulação de livros, não. Os números detalhados ainda não temos, mas tudo sugere que o principal espaço de difusão de livros deixou de ser a livraria física e passou a ser a Amazon. Trocamos o controle das redes de livrarias reacionárias pelo controle pela empresa do homem mais rico do mundo hoje, Jeff Bezzos.

    Redes alternativas

    Nesse cenário, parece fundamental que a esquerda leve a sério o acompanhamento e a atuação do mercado editorial, por meio de editoras ligadas diretamente ou historicamente aos movimentos populares e progressistas, e favoreça a construção de redes alternativas de distribuição, compreendendo definitivamente a importância política estratégica e tática do setor, incorporando a suas lutas projetos e reivindicações que revertam a hiperconcentração do setor e a falta de pluralismo que sufoca as propostas populares.

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    Haroldo Ceravolo Sereza, doutor em Letras pela FFLCH-USP, é fundador de Alameda Casa Editorial, ex-presidente das Liga Brasileira de Editoras (2011-2015) e representante eleito do Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Literatura do município de São Paulo.

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    Fontes:
    Agência O Globo/Revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios: O ano em que o e-commerce salvou o mercado editorial. https://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/E-commerce/noticia/2020/12/o-ano-em-que-o-e-commerce-salvou-o-mercado-editorial.html
    O Estado de São Paulo: Mercado editorial brasileiro encolhe 20% em 14 anos. https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,mercado-editorial-brasileiro-encolhe-20-em-14-anos,70003357850
    Publishnews: Nielsen: Black Friday polpuda salva 2020. https://www.publishnews.com.br/materias/2020/12/18/nielsen-black-friday-polpuda-salva-2020
    Publishnews: Mais demissões na Cultura. https://www.publishnews.com.br/materias/2021/01/18/apanhadao-mais-demissoes-na-cultura
    Veja São Paulo: Cultura demite 30 no último corte; ex-funcionários protestam para receber. https://vejasp.abril.com.br/cidades/livraria-cultura-fgts-rescisao-atrasado-pagamento-funcionario/
    Folha de São Paulo: Editor Carlos Andreazza deixa o grupo Record para se dedicar ao jornalismo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/01/editor-carlos-andreazza-deixa-o-grupo-record-para-se-dedicar-ao-jornalismo.shtml