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  • Baixe a Revista Socialismo & Liberdade n.31

    Baixe a Revista Socialismo & Liberdade n.31

    CONQUISTAR A VIDA E AVANÇAR PARA A DIGNIDADE HUMANA

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Diretor-presidente da Fundação
    Lauro Campos e Marielle Franco

    Eis nossa revista 31, coletiva e focada nos desafios do presente. Não temos dúvidas em afirmar que o impeachment de Bolsonaro é decisivo para impedir o desmonte do país e avançar em conquistas e no acúmulo de forças por um Brasil melhor. Mas neste momento há desafios que precisamos construir coletivamente, pois, além de tirar o pior presidente eleito de todos os tempos no Brasil, precisamos fortalecer o SUS, exigir auxílio emergencial e assegurar que todas as pessoas tomem a vacina.

    Medidas urgentes e fundamentais para colocar a vida acima da morte e acima do lucro. As mortes precisam ser paralisadas imediatamente e ações positivas devem tomar as marcas e se fazer como sinais presentes no tempo.

    Assim, seguem as várias contribuições de artigos qualificados com a diversidade para a conquista da liberdade que o PSOL apresenta. Como está nas linhas desenhadas por Juliano Medeiros “o desemprego alcançou a taxa de 14,3% da população economicamente ativa entre agosto e outubro, com uma alta em relação ao trimestre anterior. A pobreza extrema, um dos indicadores mais assustadores da desigualdade social no Brasil, deve dobrar em 2021”. Para além de impedir que tais consequências da política de morte avancem precisamos também criar bolsões coletivos para a política da vida. Não há tempo a perder no avanço político e precisamos sim avançar coletivamente.

    Não é possível viver uma pandemia a cada segundo da vida. A pandemia do desemprego, a pandemia dos baixos salários, a pandemia da ausência de moradia, a pandemia da inexistência de políticas de educação, saúde e arte. Essa estrada repleta de obstáculos para a maioria das pessoas deve ser superada com uma roda que gire a favor da liberdade, da vida e do socialismo. Será com ações como essas, que apresentamos em nossas revistas, unificando as diferenças e a diversidade de mulheres e homens que lutam por um mundo melhor, que avançaremos para superar o capitalismo e conquistar o viver plenamente.

    Nesse sentido, como bem afirmado por Berna, o “Brasil está com boa parte dos pulmões comprometidos, respirando por aparelhos, conseguiu vaga na UTI, mas acabou o oxigênio”. Será, portanto, nossa unidade, com a diversidade que a amplia, com a participação ativa que fará alterar a lamentável realidade do nosso país.

    Como bem descrito por Boulos, o auxílio emergencial que chegou para aproximadamente 70 milhões de pessoas, “funcionou até aqui como um colchão social. Foi por causa dele que nós reduzimos cenas explícitas de miséria e de violência”. E precisamos ir além, para além de manter quaisquer pingos de manutenção da vida, precisamos ampliar. A taxação das grandes fortunas e a conquista da RENDA BÁSICA INCONDICIONAL E UNIVERSAL são elementos centrais nesse potencial avanço, com passos firmes para fazer outro mundo possível.

    Assim, seguimos apostando em nossa inteligência coletiva. Caminhamos no investimento em formação, organização e ação revolucionária, para olhar um futuro que o socialismo exista e que o presente tenha marcas do amanhã com dignidade e ações dos sujeitos sociais, que são as trabalhadoras e os trabalhadores do nosso tempo. A revista é rica e apresenta diversidades de leituras e análises para potencializar nossos desafios. Vamos dar um passo à frente, conquistar direitos, tecer a vida com dignidade e fazer valer nossa unidade na diversidade.

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  • Dez notas inquietas: desafios e perigos em 2021 . Por Valério Arcary

    Dez notas inquietas: desafios e perigos em 2021 . Por Valério Arcary

    Dez notas inquietas: desafios e perigos em 2021

    O resultado eleitoral de 2020 colocou o PSOL em novo patamar na cena nacional. Deixou de ser uma agremiação secundária e passou a ter maior legitimidade social e audiência popular. É nessa situação que o partido deve se preparar não apenas para 2022, mas especialmente para os desafios imediatos, diante de um governo de extrema direita, ainda forte, e em meio à crise da pandemia e de um mergulho recessivo de grande magnitude

    Por Valerio Arcary

    Se de noite chorares pelo sol não verás as estrelas.
    Sabedoria popular indiana

    01.

    O PSOL entra em 2021 mais forte e influente. Cresceu sua audiência popular e autoridade política em plena situação reacionária. Tem novas responsabilidades. Mas há uma “maldição” dialética entre vitórias e derrotas, porque surgem novos desafios e, também, perigos. Ou, na sabedoria popular: “quando as coisas dão certo aumentam as chances de dar errado”. O PSOL obteve vitórias político-eleitorais, mas permanece ainda, organicamente, frágil em implantação de base, formação de quadros, finanças próprias, sistema de imprensa e pressões eleitoralistas. Imaginar que o amanhã será, essencialmente, uma continuidade de ontem é outro desses perigos. Mesmo militantes revolucionários, treinados para a espera de inflexões, têm dificuldades. As mudanças na realidade são sempre quantitativas, e menos perceptíveis, até que ocorre o salto qualitativo. Mas a vida e a luta política não são lineares. A situação defensiva ainda não mudou. Mas não se eternizará, indefinidamente. O mais importante é a capacidade de previsão dos conflitos e rupturas, para que estejamos capazes de enfrentar as oportunidades que virão na hora das grandes turbulências, sem improvisos. As condições objetivas serão terríveis no ano que inicia, mas um agravamento da crise social não será o bastante. A questão decisiva será a maturação das condições subjetivas para derrotar Bolsonaro. É nesse terreno que está o maior desafio do PSOL em 2021.

    O PSOL obteve vitórias político-eleitorais, mas permanece ainda, organicamente, frágil em implantação de base, formação de quadros, finanças próprias, sistema de imprensa e pressões eleitoralistas. Imaginar que o amanhã será, essencialmente, uma continuidade de ontem é outro desses perigos

    02.

    Os fatores objetivos da crise social devem se agravar. A pandemia está à deriva e o colapso em Manaus prenuncia que uma catástrofe está no horizonte, enquanto a vacinação será um processo, na melhor das hipóteses, lento e complicado. O fim do auxílio emergencial de R$ 600 para 65 milhões de pessoas; o fim da complementação salarial para outros dez milhões, no contexto de uma contração econômica de 4% a 5% do PIB sugerem um cenário de crise social. Os empregados, por conta própria, caíram de 24,7 milhões para 21,7 milhões. Os trabalhadores sem carteira assinada, outra parcela do semiproletariado, caíram de 11,8 para 9 milhões. Entre os trabalhadores com carteira assinada a queda, entre dezembro de 2019 e o fim do terceiro trimestre de 2020, foi de 33,6 milhões para 29,3 milhões. Estima-se que até 14 milhões de pessoas poderiam cair na pobreza extrema, na maioria jovens, mulheres e negros. Mas somente a degradação da situação de vida das massas não será o bastante para derrotar Bolsonaro.

    03.

    Entretanto, surgiram mais diferenças internas. Diferenças são inevitáveis, mas é possível evitar a praga do fracionalismo. Tivemos a formação, em alguma medida surpreendente, de um bloco que defendeu o apoio a Baleia Rossi, desde o primeiro turno na eleição da presidênia da Câmara dos Deputados. Confundir a relação de forças políticas ultradesfavorável dentro do Congresso Nacional com a relação de forças social no terreno da luta de classes remete a algum grau de miopia política. Na forma, a diferença foi tática, e não deve ser dramatizada. Mas o caminho para a derrota de Bolsonaro é a mãe de todas as batalhas. Nas últimas décadas de estabilidade do regime, as negociações em torno da eleição da presidência da Câmara, dos cargos na mesa, e distribuição nas comissões e relatorias foram um tema menor, quase uma subtática parlamentar. Só que estamos em condições excepcionais sob o governo Bolsonaro, um presidente neofascista à frente de um governo de extrema direita com um projeto bonapartista. O fato de ter sido tão polêmico o lançamento de uma candidatura de esquerda no primeiro turno, quando havia acordo em um voto crítico contra Artur Lira no segundo turno foi um pouco perturbador. Por quê? Há três grandes blocos políticos no Brasil, não dois. Devemos ter a lucidez de fazer unidade de ação pontual com lideranças burguesas contra Bolsonaro em defesa das liberdades democráticas. Mas não poderíamos entrar, sem diferenciação prévia, se não é necessário, no bloco que sustenta o projeto de Maia.

    04.

    Não podemos saber se Bolsonaro conseguirá ou não concluir o mandato até 2022. Nosso combate deve ser pelo impedimento, não a antecipação da tática eleitoral de 2022. Mas nesse processo, o PSOL estará tensionado, permanentemente, sobre qual deve ser a política de alianças, pois há um desafio dialético: o impeachment só é possível com a tática de unidade de ação, mas o centro da estratégia deve ser a afirmação de um polo de esquerda independente da burguesia na liderança da oposição. Essa disputa está em aberto. Depois de dois anos de mandato, o desgaste do governo vem aumentando, mas lentamente, a despeito do desastre da gestão da pandemia. É possível, senão provável, que no ano de 2021 aconteça uma corrosão da influência que o bolsonarismo mantém nas classes populares, uma aceleração da experiência nas camadas médias, e uma maior divisão na massa na burguesia. É preocupante que o bloco liderado Dória/Maia com o PSDB/DEM/MDB tenha conseguido manter posições, como se confirmou nas eleições municipais, e será reforçado na “guerra” das vacinas. É também inquietante que o bloco liderado por Ciro Gomes, mantenha-se com alguma força na disputa dentro da oposição. O PSOL tem contribuído para que uma Frente de Esquerda se fortaleça ao se comprometer com as iniciativas das Frentes Brasil Popular/Povo Sem Medo, e ao articular com o PT, PCdoB na apresentação de um pedido de impeachment comum. O PSOL não pode ter uma posição indistinta ou equidistante diante dos três blocos em que se divide a oposição, porque há uma linha de classe que nos separa de Dória/Maia e de Ciro Gomes. Podemos fazer unidade de ação com todos, mas a prioridade do PSOL deve ser a Frente de Esquerda.

    A pandemia está à deriva e o colapso em Manaus prenuncia que uma catástrofe está no horizonte, enquanto a vacinação será um processo, na melhor das hipóteses, lento e complicado. O fim do auxílio emergencial de R$ 600 para 65 milhões de pessoas; o fim da complementação salarial para outros dez milhões, no contexto de uma contração econômica de 4% a 5% do PIB sugerem um cenário de crise social

    05.

    A defesa da Frente Única de Esquerda é indispensável para conseguir mobilizar na escala de massas contra Bolsonaro. Devemos reconhecer que a experiência com o PT não se esgotou. Permanece interrompida. E a confiança em Lula é ainda maior que no PT. O PSOL não pode perder o sentido das proporções. Sem o PT não é possível a esquerda disputar a liderança da oposição a Bolsonaro. Com o PT já será difícil. Sem o PT quem estará em melhores condições de expressar o mal-estar contra o bolsonarismo será a oposição liberal, ou até Ciro Gomes, um desenlace regressivo.

    06.

    Frente Única de Esquerda para lutar não tem como desdobramento inevitável candidaturas únicas de esquerda nas eleições desde o primeiro turno. A orientação de lançar candidaturas próprias foi referendada política e eleitoralmente. Time que não joga não tem torcida, mas time que joga e sempre perde, também não tem. Evidentemente, a audiência de Boulos nas eleições presidenciais de 2018 foi favorecida pelo impedimento da candidatura de Lula. A influência de Boulos em 2020 foi, também, aumentada pela ausência da candidatura de Haddad. O mais importante é a defesa de um programa classista e anticapitalista como a saída para a crise. Mas o papel dos indivíduos, como o de Boulos, importa. O crescimento e o fortalecimento de mulheres, negras e negros, pessoas LGBTI+ como parlamentares e lideranças do partido, importam. Os votos para vereadores em escala nacional são uma indicação de que o PSOL ocupa um lugar próprio na representação dos movimentos sociais que se articularam com mais força desde as jornadas de junho de 2013.

    Não podemos saber se Bolsonaro conseguirá ou não concluir o mandato até 2022. Nosso combate deve ser pelo impedimento, não a antecipação da tática eleitoral de 2022. Mas nesse processo, o PSOL estará tensionado, permanentemente, sobre qual deve ser a política de alianças

    07.

    Boulos se afirmou como o principal líder da esquerda depois de Lula. Essa é uma conquista imensa. Não pode ser diminuída, nem deve ser sobre-estimada: um milhão de votos conquistados no primeiro turno de 2021 foi espetacular, mas não nos deve levar a conclusões erradas. A votação de Boulos não permite concluir que as ilusões reformistas na colaboração de classes, que embalaram a confiança no PT durante décadas, foram superadas. Não foram e não poderiam ser em uma situação reacionária, em que pesam muitas mediações. A audiência para as posições políticas de Boulos e do PSOL, a capacidade de convocar mobilizações e o papel desse pólo combativo na oposição a Bolsonaro e ao tucanato se ampliaram, qualitativamente, mas os votos de Boulos não equivalem, diretamente, a votos no PSOL, menos ainda na estratégia da revolução brasileira. Assim, como a votação em Marcelo Freixo no Rio de Janeiro, quatro anos antes, como se pode confirmar na votação para prefeito do PSOL em 2020. Mesmo o apoio de mais de 400 mil votos às candidaturas proporcionais do PSOL na capital paulista deve ser bem calibrado para ser compreendido. A conexão do PSOL com a demanda de representação de movimentos negros, feministas, LGBTI+’s, ambientais, de Juventude, mandatos coletivos não personalistas, e com a necessidade de renovação de lideranças é um passo importante para a implantação do partido na vanguarda da classe trabalhadora. Porém, o trabalho de base orgânico do PSOL na classe trabalhadora e na periferia, ainda é frágil.

    08.

    A vitória político-eleitoral em São Paulo não deve, também, ser subestimada. Boulos e Erundina defenderam uma ideia poderosa: só a luta social muda a vida. Esse é o eixo de método da tradição marxista inspirada no programa de transição: a mobilização permanente. Boulos defendeu não só a legitimidade das ocupações de terra, mas a revolta diante do assassinato de João Alberto no Carrefour, e as lutas contra a PEC do teto com enfrentamento direto ao prédio da FIESP. Uma campanha, corajosamente, classista. O fato desse perfil ter conseguido ir ao segundo turno, diante de um perfil moderado-técnico do PT, mas com enraizamento muito superior, foi formidável. Afinal, no início da campanha, Boulos só era lembrado por 40% da população. A campanha foi vitoriosa entre a juventude de 16 a 24 anos. O apoio do PT e do PCdoB, no segundo turno, à candidatura de Guilherme Boulos em São Paulo era previsível, mas as declarações de líderes de partidos de centro-esquerda contra os tucanos foram atípicas e excepcionais. Boulos não é um clone de Lula, nem o PSOL é uma mimetização do PT. Há continuidades e rupturas.

    O mais importante é a defesa de um programa classista e anticapitalista como a saída para a crise. Mas o papel dos indivíduos, como o de Boulos, importa. O crescimento e o fortalecimento de mulheres, negras e negros, pessoas LGBTI+ como parlamentares e lideranças do partido, importam. Os votos para vereadores em escala nacional são uma indicação de que o PSOL ocupa um lugar próprio na representação dos movimentos sociais

    09.

    O PSOL tem um peso político muito maior que sua expressão parlamentar. Elegeu 88 mandatos municipais e 5 prefeituras, incluindo uma capital: Belém. Entre os mandatos eleitos do PSOL, 40% foram mulheres, cerca de 47,7% dos eleitos foram negros. Ainda houve a eleição de quatro candidaturas trans. O PSOL apostou, ainda que com debate áspero de nuances, majoritariamente, numa aliança com o MTST, o movimento social que mais se destacou desde as jornadas de junho de 2013. O resultado das eleições, em algumas das principais capitais do país, colocou o PSOL ao lado do PT, agora na primeira linha da esquerda, ainda que seja menor, com menos capilaridade e, sobretudo, com menos influência nas organizações que expressam os setores da classe trabalhadora organizada.

    10.

    Mas o PSOL teve, para vereadores, votações superiores ao PT no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, entre outras, e chegou ao segundo turno para prefeito em São Paulo. Há um balanço político na raiz desse fortalecimento. Uma aposta que se traduziu, em 2018, na campanha de Boulos e Guajajara à presidência. Com essa localização, também, posicionou-se na luta contra o golpe parlamentar que derrubou o governo de Dilma Rousseff, na luta pela liberdade de Lula, assim como na luta pela Frente Única de Esquerda contra Temer e pelo Fora Bolsonaro. Conseguiu a vitória de ultrapassar a cláusula de barreira eleitoral em 2018. Nesse marco político, PSOL e MTST confirmaram ser um polo dinâmico da esquerda. Mas a hora dos grandes desafios ainda não chegou. Não há passagem política para uma nova direção “a frio”. Somente, quando se abrir uma nova situação política, quando de uma grande onda de lutas, o PSOL será colocado à prova diante da história.

    O PSOL tem um peso político muito maior que sua expressão parlamentar. Elegeu 88 mandatos municipais e 5 prefeituras, incluindo uma capital: Belém. Entre os mandatos eleitos do PSOL, 40% foram mulheres, cerca de 47,7% dos eleitos foram negros. Ainda houve a eleição de quatro candidaturas trans

    Valerio Arcary é professor titular do IFSP, doutor em História pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98. É militante do PSOL, membro da Resistência e autor de O martelo da história, entre outros livros.

  • Perspectivas para a América Latina no governo Biden . Por Rafael Ioris

    Perspectivas para a América Latina no governo Biden . Por Rafael Ioris

    Algo novo no front ou mais do mesmo?

    Perspectivas para a América Latina no governo Biden

    Não estão claras as prioridades da nova administração dos EUA para o continente, para além da tradicional defesa contra a influência chinesa, o combate ao narcotráfico e as pressões sobre a Venezuela. Biden certamente buscará maior articulação com seus vizinhos, mas isso continuará a ser feito de forma pragmática e guiada pelos interesses econômicos de Washington

    Por Rafael Ioris

    Se a maior potência militar do planeta não pode mais pontificar sobre seu sistema político como modelo para o mundo, pelo menos como terra do espetáculo os Estados Unidos ainda têm alta influência mundial. Após longos dias de antecipação e suspense acompanhados por espectadores atentos ao redor do globo, o inepto e descentralizado sistema de eleições daquele país consagrou Joe Biden, ex-vice-presidente e um dos caciques do Partido Democrata, como o próximo presidente da terra de

    Lincoln. Mas, ao contrário de resolver o clima de disputas internas, a eleição de Biden, pelo menos por ora, aguçou o clima de tensão no país.

    É incerto o que Trump esperava ganhar ao insuflar sua base para ações como a invasão do Congresso. Talvez somente manter a relevância como líder entre os partidários? Talvez efetivamente forçar uma ruptura institucional? O fato é que os Estados Unidos continuarão imersos no mais alto clima de polarização política que o país enfrentou desde os anos 1960

    O que vimos nas semanas seguintes à eleição de novembro de 2020 foi que, liderados pelo magnata imobiliário da extrema direita, apoiadores da agenda xenófoba, autoritária e de supremacia racial branca questionaram a legitimidade do pleito e prometeram reverter o resultado de forma a manter Trump no poder.

    Tais dinâmicas culminaram na invasão violenta do Congresso norte-americano que ocorreu no dia 6 de janeiro de 2021. Foi um evento histórico, traumático e que, ao contrário do que esperavam Trump e os apoiadores, serviu para deslegitimar o grande líder e seus seguidores, e aglutinar forças políticas tradicionais, a mídia e a opinião pública em defesa da institucionalidade.

    Luta incerta

    É incerto o que Trump esperava ganhar com tais eventos ao insuflar a base com ações tão graves e inusitadas. Talvez somente manter a relevância como líder entre seus partidários? Talvez efetivamente forçar uma ruptura institucional? O fato é que os Estados Unidos continuarão imersos no mais alto clima de polarização política que o país enfrentou desde os anos 1960, e dentro de um contexto no qual grupos radicais extremistas conseguem ter um maior peso e influência do que em períodos anteriores.

    Diante da forte crise política e econômica que os EUA vêm enfrentando nos últimos anos, – processo aprofundado pela pandemia e pela crescente presença chinesa na região -, o que se pode esperar do próximo governo democrata com relação à América Latina?

    Imerso em enormes desafios internos, buscará o novo presidente projetos e iniciativas inovadoras na região, ou será Joe Biden um líder focado no contexto doméstico? Que peso terá o hemisfério ocidental na política externa do novo governo?
    Traço a seguir possíveis linhas e tendências para o relacionamento entre a América Latina e os Estados Unidos nos próximos anos. É certo que se trata de um cenário ainda em composição e, portanto, com alta imprevisibilidade. Busquei focar temas e eixos analíticos de viés mais estrutural. Mas, ainda assim, ressalto a natureza provisória e mesmo especulativa da análise que, não obstante, seja útil para novas reflexões a serem produzidas ao longo dos próximos meses e anos.

    País dividido e foco doméstico

    A fim de responder as questões colocadas, caberia apontar, em primeiro lugar, que a realidade saída das urnas na histórica eleição de 2020 é a de um país profundamente polarizado entre setores que defendem posições em grande parte irreconciliáveis, tantos em temas econômicos, como em questões de cunho cultural e moral – cenário que obviamente apresentará grandes desafios para o novo governo. Se com a vitória de Biden, os Estados Unidos poderão retornar a racionalidade em termos de formulação de políticas públicas e de institucionalidade formal em termos diplomáticos, o trumpismo continuará vivo e influente como força política definidora de tendências naquele país.

    Além disso, fazendo jus ao perfil moderado do novo presidente, a administração Biden será provavelmente pautada por um teor reconciliador e tenderá a governar pelo centro. Da mesma forma, dadas as enormes dificuldades sanitárias e econômicas que o país enfrenta, o novo governo deverá se concentrar, em grande medida, no contexto doméstico.

    Barack Obama liderou os governos com o maior número de deportações da história recente do país e teve uma atuação nada modelar na defesa puramente formal das regras democráticas na região, frente aos golpes de Estado dos últimos anos na América Latina. Além disso, os democratas têm um longo histórico de promoção de uma política externa hemisférica de viés neoliberal

    Por fim, levando-se em consideração os nomes indicados até agora para assumir as posições centrais na burocracia responsável pela formulação de política externa na vindoura gestão nos EUA – Antony Blinken no posto de Secretário de Estado e Jake Sullivan como Assessor de Segurança Nacional, todos funcionários de carreira que ocuparam cargos importantes no governo Obama –, teremos uma gestão pautada mais pelo espírito de reconstrução do que de transformação. E mesmo levando-se em conta que no governo Trump os países ao sul eram vistos essencialmente por meio de lentes internas (com um discurso agressivo anti-imigrante, destinado a agradar a base nativista do partido Republicano), lembremos que Joe Biden participou, como vice-presidente, de um governo que também apresentou uma postura dura com relação aos imigrantes latinos.

    Barack Obama liderou os governos com o maior número de deportações da história recente do país e teve uma atuação nada modelar em sua defesa puramente formal das regras democráticas na região, frente aos golpes de Estado dos últimos anos na América Latina. E, além disso, os democratas têm um longo histórico de promoção de uma política externa hemisférica de viés neoliberal, centrada na promoção dos interesses econômicos de suas empresas, assim como no eixo da segurança nacional, definido em termos bem estreitos: defesa da fronteira e combate ao narcotráfico e ao terrorismo.

    Continuidades dentro da tradição diplomática daquele país tenderão a dar o mote do comportamento internacional, embora certamente ocorrerão ajustes em áreas específicas – no mais das vezes, derivados de demandas e pressões internas, como exemplo a temática migratória.

    Maior interesse na região, mas sem sobressaltos

    Embora o patamar de relacionamento de Trump com a América Latina tenha sido mínimo, guinadas históricas rumo a um intenso relacionamento com nossa região seriam surpreendentes. Isso se aplica inclusive à histórica promoção da lógica mercantil (formalmente de livre comércio) da diplomacia norte-americana, uma vez que hoje aquele país vive um momento de protecionismo muito mais intenso, que deve continuar o governo Biden.

    De maneira concreta, em artigo em que analisa a situação latino-americana no final do segundo ano de mandato de Donald Trump, Joe Biden afirmou que os EUA haviam negligenciado de maneira perigosa a presença junto aos vizinhos ao sul da fronteira. Isso teria dado margem excessiva a uma maior influência de outras potências econômicas e militares globais na região, em especial uma maior atuação da China e, em alguns lugares, da Rússia.

    Trump também teria descontinuado programas importantes, como a aproximação estabelecida por Obama junto a Cuba e a ajuda econômica e de segurança que os EUA tinham destinado a países da América Central. Aqui, a referência é ao chamado Triângulo do Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador), focos nodais da últimas ondas migratórias rumo ao território norte-americano, decorrentes de continuadas e crescentes crises econômicas e de segurança locais.

    Ainda segundo Biden, o vácuo criado por Trump na região teria de ser revertido a fim de manter a América Latina sob a égide dos interesses e agenda norte-americana. E nessa nova expressão da lógica hegemônica, a liderança norte-americana deveria exercer também pela promoção de sua visão específica de democracia e pelo combate ao que se entende como uma crescente corrupção regional, de maneira especial, na Venezuela e Nicarágua.

    E seria importante apontar que Biden não demostra a mesma preocupação com a crescente erosão das instituições democráticas em outros países da região, nem faz nenhuma mea culpa no que se refere ao papel da diplomacia norte-americana na legitimação de processos golpistas em diversos países da América Latina, como Honduras, em 2009, no Paraguai, em 2013 e mesmo em nosso país, em 2016.

    Cúpula da democracia

    Em uma das poucas promessas concretas para a administração, Biden diz pretender sediar uma Cúpula da Democracia, em que provavelmente se buscará, mais uma vez, a promoção de programas de cooperação entre o FBI e Ministérios Públicos regionais nos moldes das investigações politicamente enviesadas, como as da Operação Lava Jato, no Brasil e Peru. Na mesma direção, no sumário do programa de governo publicado após a confirmação de sua vitória, Biden aponta que tentará reestabelecer princípios multilaterais e institucionais à política externa norte-americana, de modo que os EUA voltarão ao Tratado Climático de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS). Também trabalharão para reestabelecer o diálogo e a cooperação junto aos aliados tradicionais, em especial a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de modo a conter a expansão de países que continuam vistos como rivais principais ao redor do globo, em especial a China e, novamente, a Rússia.

    Em uma das poucas promessas concretas para a administração, Biden diz pretender sediar uma Cúpula da Democracia, em que provavelmente se buscará, mais uma vez, a promoção de programas de cooperação entre o FBI e Ministérios Públicos regionais nos moldes das investigações politicamente enviesadas, como as da Operação Lava Jato, no Brasil e Peru

    Fica claro, pois, que a América Latina continuará a ser vista de maneira secundária, como foco de disputa entre as grandes potências. E uma das poucas áreas em que talvez nossa região, ou mais precisamente parte dela, venha assumir alguma centralidade séria na temática ambiental. Biden apostou nesse tema como um elemento central na sua plataforma de campanha para atrair o eleitorado mais jovem do seu partido. E parece provável que um discurso ligado ao meio ambiente venha a servir como uma política de pressão sobre concorrentes comerciais, especialmente junto a países como o Brasil.

    De fato, tanto para manter o apelo junto às alas mais progressistas dos democratas, quanto para agregar setores empresarias ligados ao agronegócio, Biden poderá utilizar o desastre ambiental brasileiro como um exemplo negativo mundial.

    Imigração limitada

    Na temática migratória, Biden diz não defender uma política de fronteira aberta, mas vê o status quo como insustentável e julga necessária uma nova política migratória, que inclua um processo de anistia e legalização de indocumentados. Mas não parece certo que algo tão ambicioso seja aprovado no Congresso, especialmente sem o controle da Câmara Alta do país. O novo presidente promete reestabelecer a decisão legal de não deportar imigrantes indocumentados que foram trazidos pelos pais aos EUA quando crianças.

    A nova administração pretende também suspender a expansão do muro fronteiriço com o México, assim como reverter o tom agressivo em relação às comunidades latinas. No mesmo sentido, planeja-se manter a atual suspensão legal do programa de separação de famílias imigrantes que levou as forças de segurança a prender crianças em jaulas, muitas das quais ainda esperando ser reintegradas aos familiares.

    A América Latina encontra-se hoje em um contexto de maior divisão interna, polarização ideológica, turbulências políticas e dificuldades econômicas e sanitárias do que durante os anos Obama. Acima de tudo, não há clareza sobre quem seria o interlocutor regional para o estabelecimento de diálogo e interação, uma vez que as organizações regionais como a UnaSul, Celac e mesmo o Mercosul, encontram-se fragilizados

    Ainda que Biden deseje retomar o diálogo com o México, lembremos que, contra todas as expectativas, o governo, formalmente de esquerda de Lopez Obrador, foi muito cooperativo com Trump, tanto no que se refere à revisão das cláusulas comerciais do NAFTA (hoje, USMCA) quanto à contenção das ondas migratórias que passavam pelo território mexicano. Aqui não houve novidades. Em 2014, Obama e o então presidente mexicano Peña Nieto criaram o programa Frontera Sur. Por meio dele, Washington forneceria recursos para que o governo mexicano impedisse que migrantes centro-americanos atravessassem o território. Até o momento, Biden não indicou que pretenda rever essa política, ainda que ela provoque forte resistência e desgaste junto aos países do sul.

    China e vácuo de interlocutores regionais

    Os desafios frente à ascenção e crescente influência regional da China, assim como a preocupação com o atual governo venezuelano devem prosseguir. Cabe lembrar que Biden, um moderado, teve na política externa uma atuação forte em defesa dos interesses dos EUA, inclusive na defesa do uso da força militar. De maneira concreta, ele foi um dos defensores da política antidrogas na região, em especial do Plano Colômbia, assim como da tentativa da expansão de acordos de livre comércio. Assim, para além da tentativa de recuperação de um padrão de negociação centrado na diplomacia formal, não se deve esperar mudanças profundas no relacionamento com a região.

    Possíveis exceções seriam a tentativa de retomar o processo de aproximação com Cuba, embora hoje o governo da ilha talvez não tenha o mesmo interesse em repetir os termos da negociação da era Obama. Além disso, a derrota de Biden junto à comunidade cubana do sul da Flórida representa, hoje, resistência interna a um possível rapprochement mais ambicioso. Com relação ao governo de Nicolás Maduro, será surpreendente se houver uma grande mudança de tom por parte de Biden, ainda que seja possível antever que novos canais de diplomacia possam vir a ser estabelecidos, com uma eventual acomodação, especialmente agora que o novo Congresso venezuelano retirou de cena a controversa figura de Juan Guaidó.

    Da mesma forma, a experiência do golpe de estado na Bolívia em 2019, apoiado pelo governo dos EUA e chancelado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), requererá um grande esforço de reconstrução da imagem norte-americana na região. Embora seja provável que presidentes como Alberto Fernandez, da Argentina, e mesmo Lopez Obrador tendam a se sentir mais confortáveis com Biden do que com Trump, há arestas que não serão facilmente aparadas, nos âmbitos do comércio e das relações com Pequim.

    De todo modo, parece certo que Biden buscará uma maior interação e diálogo com a região. Mas não parece tão claro que, excetuando-se Jair Bolsonaro, haja uma definição de rumos a serem seguidos pela maioria dos países da região, cada dia mais dependentes do mercado e de investimentos chineses. Apesar de, até o momento, Bolsonaro manter uma postura de alinhamento estreito junto aos EUA, a pressão do agronegócio e de setores de tecnologia na questão do 5G poderá forçar o governo a fortalecer relações com a China.

    Fragmentação política

    A América Latina encontra-se hoje em um contexto de maior divisão interna – polarização ideológica, turbulências políticas e dificuldades econômicas e sanitárias – do que durante os anos Obama. Acima de tudo, não há clareza sobre quem seria o interlocutor regional para o estabelecimento de diálogo e interação, uma vez que as organizações regionais como a UnaSul, Celac e mesmo o Mercosul, encontram-se fragilizados. As alternativas propostas por novas lideranças, como o controverso Grupo de Lima, não foram capazes de se estabelecer como vozes legítimas. Por fim, Brasil e México, que, em tese, poderiam aglutinar interesses regionais, parecem desinteressados e/ou incapazes de assumir a tarefa de falar pela região.

    Mais uma oportunidade perdida?

    Para além da tradicional defesa regional contra influências extra-hemisféricas e do combate ao narcotráfico, não está claro quais as prioridades específicas da administração Biden com relação ao nosso continente. As exceções mais claras seriam a manutenção da agenda anticorrupção da era Obama, cujos resultados, além de controversos desde então, estão hoje muito menos aceitos na região; e, em especial, a temática da proteção ambiental, de maneira central da região amazônica. Biden chegou mesmo a prometer a criação de um fundo de 20 bilhões de dólares para a proteção da floresta amazônica, em especial frente aos incêndios florestais crescentes em território brasileiro, ideia que foi fortemente rechaçada pelo governo brasileiro.

    O desencontro aponta para possíveis atritos entre os dois maiores países do hemisfério.

    Não se devem esperar nem mudanças radicais, nem o mais do mesmo no relacionamento dos EUA para com nossa região. Biden certamente se dirigirá ao mundo com maiores níveis de diálogo e diplomacia, mas é bem provável que o país manterá uma postura dura frente à China, enquanto trabalha para recompor a influência global.

    Num contexto regional em que os organismos de representação multilateral se encontram fragilizados e em que a crise da pandemia trouxe à luz enormes deficiências das sociedades latino-americanas, novas formas de diálogo e colaboração terão grandes dificuldades de efetivação.

    Não se devem esperar nem mudanças radicais, nem o mais do mesmo no relacionamento dos EUA para com nossa região. Biden certamente se dirigirá ao mundo com maiores níveis de diálogo e diplomacia, mas é bem provável que o país manterá uma postura dura frente à China, enquanto trabalha para recompor sua inflência global

    No momento em que políticas de controle sanitário, que certamente teriam tido melhor resultados se buscadas por meios multilaterais – e que poderiam assim servir para aprofundar iniciativas de coordenação diplomática regional-, o que vemos é a reversão de tais projetos e o aprofundamento da lógica e narrativa unilateral e mesmo xenófoba.

    Em grande medida, espera-se que a dinâmica de relacionamento hemisférico seja, pois, mais de caráter bilateral do que multilateral e mudanças em questões específicas tenderão a se dar não só por alguma iniciativa por parte dos EUA, mas também pela forma com que países específicos venham a se engajar com o novo governo norte-americano. Nesse sentido, especialmente em países onde a diplomacia formal esteja encastelada em amarras ideológicas da Guerra Fria – em especial, o Brasil –, novos atores da política externa, como ativistas e acadêmicos poderiam fazer a diferença na busca de inovações que sejam mais promissoras do que tanto o status quo, quanto experiências históricas de claro imperialismo, como nos anos 60, 70 ou 80 do século passado.

    Diferenças no relacionamento

    É inegável que faz muita diferença se os EUA se relacionam com o resto do mundo de uma forma agressivamente unilateral, como fez Trump, ou sob uma abordagem multilateral, institucional e diplomática, como se espera que seja feito por Biden. De toda forma, não é de se esperar que a América Latina venha a aparecer no centro das atenções de Washington.

    Biden certamente buscará maior engajamento com seus vizinhos, mas isso continuará a ser feito de forma ad hoc e certamente guiado, prioritariamente, pelos interesses econômicos e de defesa da potência hegemônica regional. A forma como a América Latina reagirá às novas orientações dos Estados Unidos ajudará em muito a definir os rumos do que tem sido historicamente o relacionamento mais impactante e definidor que a sofrida, mas resistente região tem mantido com o resto do mundo.

    Rafael R. Ioris, professor de História e Política Latino-americana na Universidade de Denver e Pesquisador do Instituto de Estudos do Estados Unidos do Brasil (INCT-INEU).

  • Impeachment já! Com organização e mobilização popular . Por Francisvaldo Mendes

    Impeachment já! Com organização e mobilização popular . Por Francisvaldo Mendes

    Impeachment já! Com organização e mobilização popular

    Por Francisvaldo Mendes . Presidente da FLCMF

    Os limites de todas as possibilidades para manutenção do atual presidente do Brasil ultrapassaram todas as fronteiras. O pior presidente escolhido pelo voto que o país já viveu é também o mesmo que, sem qualquer compromisso institucional, rasga a constituição todos os dias. Para além de atos irresponsáveis, quando a vida das pessoas está em risco e o Brasil ultrapassa violentamente 225 mil mortes causadas por um vírus que atua nas vagas de uma política irresponsável, cínica, que despreza a vida e qualquer noção de governo, ainda brinca com os recursos do cofre nacional. Recorde seguido de recorde de óbitos e é pouco afirmar que o genocídio em curso é incitado “por um vírus sem controle”. Tal situação é provocada pela política que cultua a morte e vem do principal cargo do Estado nacional, encharcando brasileiras e brasileiros de isolamento, medo e desespero. Piadas e desprezo, de um presidente eleito, tomam o cenário com declarações e ações absurdas que fazem a vida deixar de existir. A irresponsabilidade chega a ponto de atrasar, claudicar e vacilar com medidas óbvias: a vacina é necessária e é o principal investimento que deve ser gratuito e praticado imediatamente para todas as pessoas.

    Nenhuma voz pode gritar que em 2022 haverá eleição, e se pode ou deve esperar. Não, não se pode esperar. Para defender os direitos, para defender a dignidade, para defender a verdade, para defender a constituição, para defender que as pessoas possam viver e sentir a vida em seus corpos, não há mais tempo a perder: IMPEACHMENT JÁ!

    O presidente atual conseguiu ser o Bonaparte com as marcas do patrimonialismo e com maior desprezo às pessoas, inclusive as que nele votaram. Não é tempo de esperar, é tempo de fazer acontecer as condições para a vida viver. É evidente que de nós, que somos a maioria, precisamos ainda de mais, pois, necessitamos cobrar e sustentar a retirada do atual presidente, ao mesmo tempo que será tarefa nossa ampliar a organização e a mobilização popular por uma alternativa que defenda a vida. Para ter uma eleição que coloque projetos em debate, é necessário que a vida esteja garantida, mantida, defendida e não se torne uma ação necessária de disputas eleitorais. Vamos disputar projetos de como, porque e em que condições brasileiras e brasileiros devem viver e não se devem ou não viver, como ocorre nos tempos atuais.

    Ainda que a “brasileirice” tenha o impacto da criatividade, em versões de risos e choros nas variadas paródias com as lamentáveis situações, qualquer comédia hoje só tem formato de tragédia. O que se amplia a cada 24 horas ultrapassando números absurdos de mortes, enquanto as cenas são das bizarrices máximas de todos os tipos de irresponsabilidade inconstitucional. Chega-se ao ponto do vice-presidente, um General, admitir a possibilidade do impeachment e assumir que o presidente cometeu erros. E isso não se dá apenas porque o vice assume e mais uma vez um general estará na coordenação direta do poder e no maior controle do Estado, mas porque não é possível quaisquer defesas que possa afirmar que não há erros, que não há razões, que não há fatos e fotos que justifiquem tirar o atual presidente do cargo. Há sim! E ainda que tenha sido lamentavelmente eleito pela maioria das pessoas que votaram, não é possível seguir sem respeito algum pelas pessoas existentes no país. O Brasil vive um ambiente no qual morrem-se pessoas de todos os locais, de todos os grupos sociais, de todas as religiões. Mas não há dúvidas que as que morrem são aquelas que vivem nas piores condições estruturais. Nosso grupo – que é a maioria no país e que toma a periferia brasileira -, é o que mais sofre o impacto e é o que tem o desafio de não deixar qualquer dúvida em cena. Agir como sujeitas e sujeitos, tirar o presidente, constituir ambiente de convivência e com frestas para a vida e a dignidade humana são tarefas fundamentais.

    E atenção, tal afirmação que vem do general e vice-presidente demonstra o tamanho do governo de insegurança e que aposta no desrespeito nacional: “é óbvio que se um presidente colocar em risco a integridade do território, a integridade do patrimônio, o sistema democrático e a paz social do país, ele tem que ser parado pelo sistema de freios existente”. E quais são tais freios nesse momento? Não temos dúvidas. O IMPEACHEMENT É URGENTE E NECESSÁRIO! Assim, podemos debater sobre projetos, políticas e caminhos, sem politizar remédios e vacinas, mas politizando o que precisa ser politizado: o fazer das pessoas.

    O IMPEACHEMENT é o grande desafio do momento, mas para nós trabalhadoras e trabalhadores, que apostamos na politização, na conscientização, na organização e na luta coletiva, sabemos que precisamos mais. O processo precisa ser social, participativo, com movimentos e não um ato institucional afastado das pessoas. Para que isso ocorra precisamos construir tal ambiente que reforça a democracia. É desafio nosso apostar no ambiente da organização e mobilização popular no processo de tirar o atual presidente e de manter, com firmeza, as condições para que a vida fique acima de lucros, irresponsabilidades e cinismos vil. Dessa forma, vamos dar o primeiro passo e seguir ampliando a solidariedade e a organização coletiva para mudar o país.

    Neste momento político pelo qual passa o país, quaisquer processos de mudança precisam afirmar: IMPEACHMENT JÁ!

  • A violência nos tempos da pandemia da Covid-19 . Por Benedito Mariano

    A violência nos tempos da pandemia da Covid-19 . Por Benedito Mariano

    A violência nos tempos da pandemia da Covid-19

    A crise econômica somada ao avanço do novo coronavírus coloca a sociedade diante de novas formas de violência que atingem principalmente os mais pobres. Os setores progressistas enfrentam o desafio de ampliar os programas de proteção social e de construir uma ampla frente democrática e popular para enfrentar a extrema direita

    Por Benedito Mariano

    A pandemia da Covid-19 representa um dos momentos mais tristes da história da humanidade. Desde a gripe espanhola, que foi responsável pela morte de milhões de pessoas entre 1918 e 1920, o mundo não convivia com uma doença de tamanhas proporções, cujas mortes contabilizadas globalmente já ultrapassam a marca de 2 milhões de pessoas.

    No Brasil, um dos epicentros da pandemia, as mortes atingiram mais de 200 mil pessoas. O país, que possui aproximadamente 2,7% da população mundial, já responde por cerca de 10% de todas as mortes pela Covid-19 no mundo. Tais números não são apenas estatísticas. São vidas que se foram, deixando para trás parentes e amigos que mal puderam se despedir, aumentando a angústia e a tristeza desta que é uma das maiores crises sanitárias da história.

    Descaso federal

    O Brasil convive, ainda, com o completo descaso e inação do governo federal, num momento em que a coordenação política se faria tão importante à superação da pandemia e à redução das mortes. A postura negacionista do presidente Bolsonaro, manifesta-se na pouca ação concreta do Ministério da Saúde para imunizar a população, na divulgação e defesa de terapias ditas “preventivas” e de tratamento precoce, sem que possuam eficácia comprovada, no desincentivo ao cumprimento das medidas necessárias para evitar a propagação do vírus, como o distanciamento social, na falta de articulação e ajuda aos Estados e na completa banalização das mortes, limitando-se a responder a um repórter que “não é coveiro” quando questionado sobre o alto número diário de mortes em abril do ano passado.

    Diferente de outros países que já iniciaram a vacinação no final do ano passado, só no início de 2021, a imunização parece estar em vias de se iniciar no Brasil. A Anvisa, pressionada pela comunidade científica e pela opinião pública, aprovou o uso emergencial da vacina Coronavac e da Oxford-Astrazeneca. Após o anúncio da aprovação, o governador de São Paulo, João Dória, antecipou-se ao promover a primeira aplicação da vacina no país, com a vacinação de Mônica Calazans, de 54 anos, negra e enfermeira que trabalha na UTI do hospital Emílio Ribas.

    O Brasil convive com o descaso e a inação do governo federal, num momento em que a coordenação política se faria tão importante à superação da pandemia e à redução das mortes. A postura negacionista do presidente Bolsonaro, manifesta-se na pouca ação concreta do Ministério da Saúde para imunizar a população

    Foi em São Paulo também que a primeira indígena foi vacinada. Vanusa Kaimbé, técnica de enfermagem e assistente social, que vive na aldeia “Kaimbé Filhos da Terra”, em Guarulhos. É inegável que o governador de São Paulo transformou a cena da primeira brasileira vacinada em ato político visando a sonhada candidatura ao Planalto. Porém, também é inegável que, apesar de ter sido eleito na onda bolsonarista, fazendo campanha para o atual presidente sob o slogan “Bolso-Doria”, o governador direitista de São Paulo se apresentou como principal adversário do delírio negacionista de Bolsonaro, delírio este que envergonha o país na comunidade internacional e demonstra desprezo pelas mais de 209 mil vítimas da Covid-19. A maioria dessas vítimas, é importante registrar, é pobre e negra.

    Por ironia do destino, o general, Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi obrigado pela conjuntura a dizer, em coletiva, que disponibilizará a vacina Coronavac aos estados, como parte do Plano Nacional de Imunização, a partir de pactuação com o Instituto Butantã para o fornecimento de doses. Vacina esta que o negacionista Bolsonaro ironizou diversas vezes em suas redes sociais.

    Outras violências

    Além das mortes causadas pela Covid-19, outros tipos de violência aumentaram em todo o território nacional no contexto da pandemia. O isolamento social, medida necessária para inibir a transmissão da doença, trouxe como uma das consequências o aumento da violência doméstica, o que exige a ampliação de programas e projetos de proteção às mulheres como a Patrulha Maria da Penha, para garantir o cumprimento de medidas protetivas, além de outras ações concretas para coibir e diminuir os casos de feminicídio no país.

    A ação das polícias também se mostrou um ponto de atenção. No auge da quarentena, quando os crimes relacionados à circulação de pessoas como furto e roubo diminuíram, a letalidade policial aumentou em vários estados. As vítimas da letalidade policial, esta que nunca foi aleatória, são sempre os jovens pobres e negros das nossas periferias.

    Uma das mais faladas ações do atual governo na área, o chamado pacote anticrime do então ministro Sergio Moro, limitou-se a apresentar ao Congresso uma proposta de aumento de pena e, no que se refere à segurança pública, apresentou uma das maiores aberrações jurídicas que é a ampliação da excludente de ilicitude

    Assim, como é urgente e necessária a imunização de toda a população contra a Covid-19, também é urgente e necessário termos no país um modelo de polícia democrática, cidadã e antirracista, que tenha como princípio norteador o respeito aos direitos humanos. Infelizmente, a cultura do “capitão do mato” ainda permeia as instituições policiais, o que se reflete nas altas taxas e no padrão da letalidade.

    Genocídio negro

    O Relatório da Rede de Observatórios da Segurança do Rio de Janeiro, lançado no final de 2020, é uma prova inequívoca do genocídio da população negra que ocorre no nosso país. Os principais dados contidos no Relatório são:

    1. Na Bahia, 97% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 76.5%.
    2. No Rio de Janeiro, 86% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 51%.
    3. Em São Paulo, 64% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 35%.
    4. No Ceará, 87% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 67%.
    5. Em Pernambuco, 93% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 62%.

    É imperativo que tais dados entrem no debate público e norteiem a ação de governantes para que seja possível transformar este cenário. Daqui a dois anos, teremos eleição para os governos dos estados e para Presidência da República. Os partidos do campo democrático e da esquerda têm o dever republicano de apresentar para a sociedade brasileira programas de Segurança Pública que enfrentem o racismo estrutural que marca a formação da sociedade brasileira. É preciso que passem a disputar com os setores conservadores a narrativa da segurança pública, mostrando ser possível a construção de um novo modelo que não seja, apenas, mais efetivo que o atual, mas que não contribua para fortalecer o preconceito e a discriminação históricos existentes no país, pautando-se no respeito à dignidade humana.

    Se não tivermos polícias democráticas, cidadãs e antirracistas, o chamado estado democrático de direito continuará não chegando à população pobre e negra das periferias e continuaremos a ver o genocídio da juventude negra.

    Pacote punitivo

    Uma das mais faladas ações do atual governo na área, o chamado pacote anticrime do então ministro Sergio Moro, limitou-se a apresentar ao Congresso uma proposta de aumento de pena e, no que se refere à segurança pública, apresentou uma das maiores aberrações jurídicas que é a ampliação da excludente de ilicitude. Na prática, tal ampliação daria ‘carta branca” para a letalidade policial. Felizmente, o Congresso Nacional barrou essa iniciativa retrógrada e obscura.
    Além de reformas estruturais das polícias, é fundamental incluir os municípios na política de segurança pública, garantindo recursos para programas e projetos de prevenção à violência e ao crime. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), criado no governo Lula sob a coordenação do ex-ministro Tarso Genro, buscou atuar nesse sentido, e foi o principal programa federal de inclusão dos municípios no setor de segurança pública, garantindo recursos federais para programas e projetos preventivos a centenas de municípios.

    Segurança e crise sanitária

    A situação da segurança pública no Brasil durante os próximos anos ainda pode sofrer o impacto de outro importante fator. A grave crise sanitária da Covid-19 ampliou o mergulho econômico vivido no Brasil e o atual governo federal não valorizou uma política econômica de desenvolvimento e de inclusão social. Pautada na agenda neoliberal, aprofundou a crise.

    O auxílio emergencial no valor de R$ 600, principal medida econômica adotada no contexto da pandemia por beneficiar a população mais excluída do país, só surgiu por iniciativa e esforço do Congresso Nacional, por mais que Jair Bolsonaro buscasse capitalizar politicamente tal ação. Como dificilmente teremos vacinas para todos no primeiro semestre de 2021, e não há mais o auxílio emergencial, a situação econômica de milhões de brasileiros tende a piorar.

    Desemprego e desespero

    No dia 11 de janeiro a montadora Ford anunciou a saída do Brasil, após mais de 100 anos com instalações no território nacional em São Paulo e na Bahia. São milhares de desempregados diretos e outros milhares indiretos provenientes da rede de produção. O desemprego, somado à crise sanitária, deve aumentar a violência no país, principalmente entre os mais pobres.

    Os governos municipais terão o desafio de ampliar e muito os programas de proteção social neste momento de crise nacional. Criação de projetos para a juventude, frentes de trabalho, programas territoriais de prevenção à violência com foco nas mulheres, são algumas das iniciativas importantes para enfrentar a crise sanitária, a violência institucional e a crise econômica

    Os governos municipais terão o desafio de ampliar e muito os programas de proteção social neste momento de crise nacional. Criação de projetos para a juventude, frentes de trabalho, programas territoriais de prevenção à violência com foco nas mulheres, são algumas das iniciativas importantes para enfrentar a crise sanitária, a violência institucional e a crise econômica.

    Entretanto, para que tenhamos condições de disputar com a extrema direita que governa o país, que não teve competência e nem vontade política para enfrentar a pandemia da Covid-19, que se mostrou incapaz de adotar ações efetivas para coibir e reprimir as organizações criminosas, que não valoriza as ações de prevenção dos municípios e que alimenta e incentiva, com postura populista, demagógicas e beligerante, as ações de letalidade das policias; o campo democrático e a esquerda têm o grande desafio de construir uma agenda mínima e uma ampla frente democrática e popular para disputar as eleições, sob pena de continuarmos no obscurantismo, mesmo que seja com uma roupagem nova da direita clássica.

    Benedito Mariano, Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. Foi Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo. É professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), foi Assessor Parlamentar da Deputada Isa Pena (PSOL-SP) e Secretário de Segurança Urbana de São Paulo, nas gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad; em Osasco, na gestão Emídio de Souza e em São Bernardo do Campo, na gestão Luiz Marinho. É secretário de Defesa Social da Cidade de Diadema.

  • O Brasil deve seguir a América Latina . Por Berna Menezes

    O Brasil deve seguir a América Latina . Por Berna Menezes

    O Brasil deve seguir a América Latina

    Bacurau: o começo do fim. A imagem de um povo num futuro distópico que se faz presente! As cenas de um Brasil possível, dentre os caminhos do fluxo aberto da história… Bacurau trata da necessidade de sobrevivência que constrói outros laços sociais, outras formas de relação além e à margem do capitalismo, em contraste aos seus algozes racistas que os tornam seus alvos. E se nos matam haverá uma resposta; porque nada segura a revolta de um povo, muito menos de um povo organizado. Esse povo que foi isolado geograficamente e socialmente, um povo abandonado pelo Estado e vendido por ele, um povo na miséria… Mas, é justamente nisso que consiste sua força e, não por acaso, vemos essa força inserida no contexto do sertão. É assim que Bacurau expõe e recoloca em circulação – no nosso imaginário – a experiência da luta de classes. (Introdução da tese do Fortalecer o PSOL para o Congresso do partido)

    Por Berna Menezes

    Que Brasil sai das eleições de 2020?

    Estamos vivendo uma verdadeira guerra aos pobres. Mais de 200 mil mortes por Covid-19. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada (14%), precarizada (41,1%, segundo o IBGE), desalentada ou vive de bicos. A violência exibe números maiores que países em guerra, aumentaram os assassinatos por balas perdidas, o presidente da República libera e estimula o armamento daqueles que podem comprar seu dispositivo letal.

    Uma verdadeira guerra aos pobres, aos negros periféricos, às mulheres, aos LGBTQI+ e aos indígenas. Exibimos o título de terceira maior população carcerária do planeta, que vive em condições sub-humanas, da qual mais de um terço sequer foi julgada. A desindustrialização segue, a quebradeira de pequenas fábricas e das multinacionais que, depois de embolsarem milhões em subsídios, estão fugindo do Brasil, como o caso escandaloso da Ford. Com o desemprego, as restrições impostas pela Covid-19 e o fim do auxílio emergencial, a situação de miséria estourou. Para piorar, o modelo de exportação de commodities fez com que os preços dos alimentos fossem para as alturas: a cesta básica em São Paulo está custando R$ 563,00. Com todo esse “esforço” do governo Bolsonaro/Guedes, conseguimos voltar ao Mapa Mundial da Fome, mesmo sendo o terceiro maior produtor de alimentos do mundo. Isso só se explica porque a direita, quer seja o setor raiz de Bolsonaro/Guedes/Mourão, quer seja o setor Nutella de Dória/Maia/Baleia, defendem a mesma pauta econômica.

    O Brasil está com boa parte dos pulmões comprometidos, respirando por aparelhos, conseguiu vaga na UTI mas acabou o oxigênio. Apresenta algumas comorbidades, como a de ser o último país a acabar com a escravidão e o último no continente a ter uma universidade

    Ou seja, o Estado brasileiro e o conjunto da direita desemprega, joga na miséria e mata, seja por fome, ausência de políticas públicas, à bala por violência policial nas periferias ou por falta de recursos nos hospitais.

    Usando a linguagem pandêmica, o Brasil está com boa parte dos pulmões comprometidos, respirando por aparelhos. Conseguiu vaga na UTI, mas acabou o oxigênio. Apresenta algumas comorbidades, como a de ser o último país a acabar com a escravidão, o último no continente a ter uma universidade, faz menos de cem anos que garantiu o voto feminino e nunca conquistou uma verdadeira independência com luta. Por outro lado, o paciente possui território continental, biodiversidade fantástica, água e minérios, com povo, cultura, história e juventude fantásticos, uma forte tradição de esquerda, pesquisadores e universidades qualificadas. Temos reservas internacionais de US$ 342 bilhões. É possível termos outro futuro!

    Mobilizações e golpe

    Este é o país que sai das eleições de 2020. Se parece fácil descrever a foto do país, difícil será analisar o filme. Mas a tarefa pode ser facilitada se iniciarmos pela etapa em que estamos metidos desde a ausência de resposta pela esquerda no poder, às gigantescas mobilizações de 2013 e o consequente golpe articulado pelas elites brasileiras e seus aliados. Não saímos dessa etapa. Portanto, o que se esperava, em geral, dessas eleições? O avanço institucional do bolsonarismo, já que ele partia de, praticamente, zero prefeituras e vinha de um fortalecimento conjuntural devido ao auxílio emergencial. Só que isso não se confirmou.

    Bolsonaro acusou o golpe

    “Se nós não tivermos voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problemas pior que os EUA”. Essa declaração de Bolsonaro não é uma atitude de quem está fortalecido e sim de alguém que acusou o golpe, da derrota de Trump, seu aliado do Norte, e do revés nas eleições do ano passado, nas quais sequer pode apoiar publicamente seus candidatos na TV.

    Não sei de onde partem as análises de setores de esquerda aumentando os resultados eleitorais da direita. A realidade é que a vitória deles foi em 2016, a chegada de Bolsonaro à presidência é que integrava o script do golpe. A direita Nutella foi passada para trás pelo capitão, pois ele representou o setor mais consequente na luta contra o sistema de “entra eleições e sai eleições e nada muda para a maioria da população”. Na realidade, a elite educada estava, a maioria, até o golpe, governando com o PT.

    Maior exemplo foi Michel Temer, vice-presidente de Dilma e um dos quadros do MDB.

    O que ocorreu em 2020? Uma tentativa de setores da direita de normalizar o golpe, aproveitando o desgaste de Bolsonaro pelas falcatruas da família, orientação fora da realidade sobre a pandemia e nenhuma mudança real na economia. Bolsonaro não entregou o que prometeu.

    Houve, portanto, uma redistribuição de votos entre a própria direita que, de quebra, também abocanhou os votos do PSB e PDT. Estes que se autodenominam como centro-esquerda, mas que nos últimos anos tiveram como estratégia dialogar com setores de direita, além de embarcar no antipetismo. O PCdoB também namorou essa tática, aproximando-se de Ciro e do campo com PDT e PSB. Inclusive, no Maranhão, aliando-se a setores conservadores. Todos esses partidos pagaram o preço, pois a realidade está polarizada. Perderam votos para a direita e, mesmo Flávio Dino que começou o mandato de governador muito bem, inclusive sendo cogitado a candidato a Presidente em 2022, termina como candidato a deputado federal. O que salvou o PCdoB foi Manuela D’Ávila que optou por outro rumo, saindo fortalecida do processo eleitoral.

    Avaliar o processo

    Portanto, temos que ser cuidadosos. Não podemos nem dar um peso superlativo e nem minimizar a direita. O setor que aumentou a força conservadora nesse processo eleitoral, errou novamente. Uma esquerda que passou de alardear um “longo inverno siberiano” a esperar a “tomada do Palácio de Inverno” nas eleições. Caiam na real!

    A expressão da ultradireita toma contornos mais graves devido à condição de um país dependente. Aqui, tais setores primam pela entrega violenta de nossas riquezas e patrimônios, assim como as condições de vida de nossa classe

    Não havia nenhuma perspectiva de vitória da esquerda nessas eleições. Nas lutas de rua que ocorreram em 2020, foi o povo que levou praticamente sozinho. Ou alguém chamou as mobilizações das torcidas organizadas e posteriormente, o levante do movimento negro, que mandaram os bolsonaristas e negacionistas para casa? Alguém, em sã consciência, diria em março de 2020 que Boulos iria para o segundo turno em novembro? Que o Rio de Janeiro, sem nosso camarada Marcelo Freixo, teria o resultado espetacular que teve? Porto Alegre ampliando a bancada? E mesmo Belém, era muito difícil.

    PSOL foi a novidade em 2020

    O PSOL sai do processo eleitoral com muita autoridade e com o aumento de responsabilidades em relação ao movimento social e a construção de uma estratégia para o país. Dobramos o número de militantes, aumentamos nossas bancadas nas Câmaras em várias partes do país, ganhamos a prefeitura de Belém com o nosso querido Edimilson Rodrigues e fomos para o segundo turno na maior capital do país, São Paulo, com a dupla Boulos/Erundina. Além disso, o PSOL teve um crescimento importante nas Câmaras Municipais das capitais da região Sul e Sudeste, elegendo 23 vereadores. Em todas as capitais, o partido teve um crescimento de 50%. Em São Paulo, a bancada triplicou.

    É evidente que há uma nova geração de lutadores sociais e juventude cansados da velha política, que vê em nosso partido um enfrentamento consequente ao governo Bolsonaro e um diálogo distinto com novas pautas. Mas falta mais, temos que ir revolucionando nossos métodos de ação e funcionamento, formando novos quadros militantes e aprendendo com nossa classe. Respondendo programaticamente a nova realidade aberta pela etapa de disputa hegemônica entre China e EUA. Enfrentando as crises acumuladas pelo capitalismo decadente e destruidor da natureza, do planeta e na humanidade.

    O PSOL poderá ser o polo de reorganização da esquerda no Brasil. Pois o PT, que cumpriu esse papel por várias décadas, estancou a sangria nessas eleições, mas ainda não se recuperou da queda de mais de 60% de votos, entre os anos de 2012 e 2016.

    O PT, mesmo seguindo como maior partido de esquerda do país, vem numa dinâmica de estagnação e retrocesso nos grandes centros. Lula, a figura principal, não participou do processo eleitoral e, onde esteve presente, como no caso de São Paulo, amargou uma grande derrota terminando em 6º lugar. O PT perde o dinamismo para a vanguarda da classe e de nosso povo após muitas décadas, não dialogando com a base de esquerda, de militantes sinceros e que não entendem o apoio ao candidato bolsonarista no senado. Isso abre espaço para novos atores.

    Bolsonaro, bolsonarismos e o futuro da ultradireita

    Como já afirmamos em artigo ao Boletim da Crise nº. 52, da Fundação Lauro Campos/Marielle Franco, Bolsonaro foi rejeitado pelas urnas. O resultado eleitoral de 2020 mostrou que Bolsonaro não pode tudo, mas não está morto. A etapa internacional aberta pela crise econômica de 2008, abriu as portas do inferno. Surgiram em diversas partes do mundo partidos, movimentos e governantes de ultradireita, negacionistas sobre a ciência, ao combate a pandemia e a gravíssima crise ambiental e ataques aos direitos da nossa classe e nosso povo – que no Brasil foi sintetizada pela máxima de Bolsonaro: emprego ou direitos. Além do retrocesso brutal na pauta de costumes, estimulando a violência, enfrentamos o machismo, a homofobia e preconceitos de toda espécie. Mas há uma face desse setor de direita que é o combate as instituições do regime.

    Fazem a disputa direta de massas, tensionando o tempo todo a sociedade. Criticam o Parlamento, a Justiça, a imprensa, os partidos, os políticos e a política. Tem como centro a crítica a corrupção. No entanto, estão envolvidos até a medula em corrupção, são as velhas raposas da política, que usam parte da imprensa e redes sociais.

    Esse setor corresponde a uma base real, inclusive, e quiçá principalmente e infelizmente, da classe trabalhadora, que se encontra perdida com as profundas transformações no mundo do trabalho.

    País dependente

    No caso do Brasil, a expressão da ultradireita toma contornos mais graves devido à condição de um país dependente. Se no núcleo do capitalismo, os EUA, se expressa em protecionismo de suas indústrias, empregos e dos nascidos em território americano, gerando políticas xenofóbicas, construção de muros; em nosso país, prima a entrega violenta de nossas riquezas e patrimônios, assim como as condições de vida de nossa classe.
    Ao analisar a classe dominante na América Latina, que ele denominou de lumpenburguesia, André Gunder Frank dizia:

    “…esta estrutura colonial e de classe determina os interesses de classe dirigidos pelo setor dominante da burguesia, que se valendo frequentemente dos governos e dos demais instrumentos do Estado, gera políticas de subdesenvolvimento no plano econômico, social, cultural e político para a ‘nação’ e para o povo latino-americano, fazendo com que uma mudança no modo de dependência modifique a estrutura econômica e de classes, se determinem contemporaneamente algumas mudanças na política da burguesia dominante, os quais, salvo determinadas exceções parciais que se indicaram, acabam reforçando as próprias relações de dependência econômicas que favorecem essas escolhas políticas e, por conseguinte, contribuem a agravar ainda mais o desenvolvimento do subdesenvolvimento na América Latina”.

    Que comecem os jogos

    Se não tivermos política, debate de estratégia e construção de um debate democrático sobre programa, vamos ficar assistindo a disputa entre Dória e Bolsonaro pela vacina e o resultado das eleições de 2022 pela Globonews. Para a esquerda, entrar na disputa significa política de mobilização de massas, para alterar a atual correlação de forças.

    É verdade que as eleições – ainda mais em uma etapa pós-golpe, são muito importantes.

    Portanto, o debate sobre os espaços democráticos, são muito úteis na organização e atuação dos revolucionários, mas a serviço de quê? De estimular e organizar a mobilização. Não apenas votar de dois em dois anos. Parece que esquecemos o ABC. Muitos vão dizer, mas não somos negacionistas, estamos no isolamento. É meia verdade!

    Os trabalhadores estão nas ruas, têm que sobreviver. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada, precarizada ou desalentada. Tem que trabalhar para comer. Por outro lado, o povo chileno não é negacionista, tampouco o boliviano, o peruano ou o norte-americano, mas viram a necessidade de sair às ruas para mudar a correlação de forças nessa guerra contra o povo em seus países

    Os trabalhadores estão nas ruas, têm que sobreviver. Mais da metade da população economicamente ativa está desempregada, precarizada ou desalentada (nome bonito para quem cansou de buscar emprego). Tem que trabalhar para comer. Por outro lado, o povo chileno não é negacionista, tampouco o boliviano, o peruano ou o norte-americano, mas viram a necessidade de sair às ruas para mudar a correlação de forças nessa guerra contra o povo em seus países.

    As torcidas organizadas ou as mobilizações negras não foram chamadas por nenhum partido de esquerda. E, foram eles que botaram a correr a direita bolsonarista das ruas. Naquele momento, as mesmas pessoas que diziam que não podíamos dar o mau exemplo e sair do isolamento, foram os que percorreram às ruas das cidades atrás de voto em setembro e outubro, mas não podiam ir a uma mobilização.

    Estamos formados pela agenda eleitoral, queremos superar o eleitoralismo, a conciliação de classes, os acordos por cima, mas temos que construir a aliança com os de baixo para conquistar mudanças reais, que estimulem a juventude a fazer política e o povo a ver possibilidade de futuro

    Estamos formados pela agenda eleitoral, queremos superar o eleitoralismo, a conciliação de classes, os acordos por cima, mas temos que construir a aliança com os de baixo para conquistar mudanças reais, que estimulem a juventude a fazer política e o povo a ver possibilidade de futuro. Um programa antissistema que faça um combate radical ao sistema financeiro e aos representantes, a elite brasileira. Esse é o desafio do PSOL!

    Berna Menezes integra a Executiva Nacional do PSOL e a direção nacional da Fasubra/Intersindical.

  • A guerra da vacina, o SUS e a esquerda socialista . Por Cátia Guimarães

    A guerra da vacina, o SUS e a esquerda socialista . Por Cátia Guimarães

    A guerra da vacina, o SUS e a esquerda socialista

    A guerra negacionista provocada pelo governo Bolsonaro em torno da saúde pública se estende em uma guerra contra a imunização. Sem vacina para todos por tempo, ainda, indefinido e com o agravamento da crise econômica, parte da população aprofundará a situação de pobreza e miséria. Por isso, lutar pela retomada do auxílio emergencial significa executar um programa de combate à pandemia que incorpora e complementa a estratégia de imunização. Significa reconhecer a determinação social da saúde e da doença

    Por Cátia Guimarães

    Quase um ano após a chegada da pandemia ao Brasil, analistas e pesquisadores já nem tentam mais explicar a posição assumida, desde sempre, pelo presidente Jair Bolsonaro. Afinal, apesar da tragédia humanitária sem precedentes na história recente, a Covid-19 oferecia a um presidente em início de mandato, sem experiência nem estrutura de estadista, a oportunidade de não errar. Primeiro, porque o fato de se tratar de uma crise sanitária mundial, em tese, haveria alívio na pressão sobre os governantes nacionais. Segundo, porque pouco se conhecia e pouco se podia fazer diante de um novo vírus, para o qual não havia vacina nem tratamento.

    Apostando no ‘quanto pior, melhor’, como parte de uma estratégia de mobilização de sua base social, Bolsonaro minimizou a pandemia, negou quase tudo que a ciência aconselhava e, principalmente, criou novos ‘inimigos’ externos e internos, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e parte significativa dos governadores

    A aprovação do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, que nada mais fez do que não atrapalhar o beabá do enfrentamento possível ao novo coronavírus, pareceu-nos uma demonstração concreta desse cenário. No caso específico do Brasil, a crise sanitária se oferecia ao governo ainda como discurso para justificar uma crise econômica que lhe era muito anterior.

    Mas apostando no ‘quanto pior, melhor’, como parte de uma estratégia de mobilização de sua base social, Bolsonaro optou pelo caminho oposto: minimizou o problema, negou quase tudo que a ciência aconselhava e, principalmente, criou novos ‘inimigos’ externos e internos, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e parte significativa dos governadores.

    Falsa dicotomia

    É bem verdade que a posição do presidente não ignorava completamente os dilemas concretos: ao criar a falsa e oportunista dicotomia entre saúde e economia, criticando o isolamento social, ele respondia, de certa forma, à pressão de setores empresariais que se opunham ao lockdown recomendado em algumas regiões. Mas essa oposição se mostrou frágil, já que em pouco tempo os governadores que protagonizavam as críticas a Bolsonaro também se renderam às pressões pela abertura do comércio não-essencial e, progressivamente, de praticamente todos os setores econômicos.

    Não se deve apenas defender o SUS, como um discurso genérico de valorização do público, mas assumir o SUS como guia do seu posicionamento tático-estratégico em relação à vacinação da população brasileira e ao controle da pandemia

    Pouca coisa sobrou desse antagonismo que, no entanto, continua sendo o principal fio de interpretação adotado para o desenrolar político do enfrentamento da pandemia: de um lado, uma extrema direita negacionista, representada pelo bloco bolsonarista, à frente do governo federal; de outro, uma direita que se apresenta como ‘ilustrada’, cada vez mais vendida pela imprensa como centro, que instrumentaliza a crise para construir uma alternativa eleitoral para 2022, tendo como expressão principal o governador de São Paulo, João Dória. Tudo isso é notícia velha. Mas o fato é que, neste momento, se encena um novo capítulo dessa farsa, tendo como cenário as estratégias de vacinação da população brasileira contra a Covid-19.

    Falta de projeto

    Vale lembrar que, entre esses dois falsos extremos, circula uma esquerda que reage, polemiza, combate o obscurantismo, mas pouco propõe como projeto, restringindo-se a pular de um caminho a outro a partir de um cardápio de opções construído fora do seu espectro político.

    Convém também não esquecer que uma camada abaixo da superfície em que se desenrolam essas disputas, agoniza escanteada a política social que carrega, nos seus princípios e organização, um plano de ação completo, de curto, médio e longo prazo, não só para a vacinação como para o enfrentamento mais amplo da pandemia. Referimo-nos ao Sistema Único de Saúde, o projeto capaz de responder ao caráter necessariamente coletivo da produção de saúde e doença, tão escancarado pela crise sanitária atual e claramente expresso nas polêmicas em curso sobre a imunização contra o novo coronavírus. Não apenas defender o SUS, como um discurso genérico de valorização do público, mas assumir o SUS como guia de um posicionamento tático-estratégico em relação à vacinação da população brasileira e ao controle da pandemia, parece-nos o caminho principal para uma esquerda socialista que vise, ao mesmo tempo, controlar a tragédia humanitária e fugir do pobre debate político que se prende à superfície das polêmicas, excluindo qualquer possibilidade de se fortalecer um projeto societário progressista a partir dessa crise sanitária.

    Assumir protagonismo

    Assim, assumir protagonismo na disputa política que se trava em torno da vacina significa, antes de tudo, recusar o comportado lugar de espectador na polarização entre uma direita travestida de centro e uma extrema direita protofascista. No caso da pandemia do novo coronavírus, isso só é possível pelo resgate dos princípios universalistas que orientam o SUS – aqueles que não cabem nos planos de Bolsonaro nem de Dória, mas que precisam ser mobilizados também no esforço de fortalecimento de uma consciência sanitária que vá além da concepção de saúde como problema individual.

    Para início de conversa, nada está mais distante dos princípios do Sistema Único de Saúde em relação à imunização do que as iniciativas que, aqui e ali, confirmam a lógica fragmentária do ‘cada um por si’ na corrida dos entes federados pela vacina.

    Como se sabe, a chamada imunidade coletiva que se espera atingir com a vacinação requer um quantitativo mínimo da população imunizada – no caso da Covid-19, esse número ainda é incerto e depende de cada vacina. Dada a impossibilidade de se determinarem limites fixos entre estados e municípios, a imunização da população local não contribui para o objetivo imediato principal, que é frear a transmissão comunitária do vírus. Em mais um capítulo da disputa política com ‘p’ minúsculo que vem sendo travada em torno de tema tão importante, o governador de São Paulo aparentemente resolveu esse problema quando declarou que não será preciso confirmar moradia no Estado para tomar a vacina, incentivando um ‘turismo de saúde’ e, com isso, naturalizando soluções parciais ou mesmo individuais para um problema que, como os trágicos números da pandemia já cansaram de demonstrar, só tem saída coletiva e universal – um adjetivo que, não por acaso, há mais de 30 anos, é sobrenome do sistema de saúde brasileiro.

    Universalidade do SUS

    Mais do que uma garantia legal de que todos tenham acesso aos serviços de saúde, a universalidade do SUS é um princípio contra a desigualdade e a iniquidade que historicamente assolam a sociedade brasileira. Ao se estabelecer que saúde é direito de todos e dever do Estado, a Constituição de 1988 recusa soluções individualistas como aquelas que privilegiam quem tem recursos para se deslocar de um estado a outro em busca de uma vacina tratada como moeda de troca política.

    Assumir protagonismo na disputa política que se trava em torno da vacina significa, antes de tudo, recusar o comportado lugar de espectador na polarização entre uma direita travestida de centro e uma extrema direita protofascista, o que, no caso da pandemia do novo coronavírus, só é possível pelo resgate dos princípios universalistas que orientam o SUS

    Diante disso, como sustentar que, em resposta a um governo que não se compromete com o direito à saúde, a pauta pragmática da esquerda socialista possa reforçar uma fragmentação que, no limite, significa também a negação desse direito?
    Parece prudente também não esquecer a determinação econômica daqueles fenômenos que, na superfície, mostram-se apenas como disputas políticas. Afinal, o que permite que Dória tenha neste momento a possibilidade de comprar, produzir e oferecer vacina a um contingente da população é a profunda desigualdade federativa brasileira. E essa é uma dimensão importante da luta contra a desigualdade e em favor da universalidade do SUS, que precisa se expressar também no acesso à imunização, já que a maioria dos 27 estados e 5.570 municípios brasileiros não terão condições de adquirir uma cota de vacina para chamar de sua.

    A resposta sobre ‘o que fazer’ passa por um conjunto de ações diretivas de pressão, social e jurídica, sobre o governo federal, mas também de organização da solidariedade federativa que pode reduzir os danos causados pela omissão do Ministério da Saúde.

    Vencer desigualdades

    Incentivar, a partir de ações concretas e urgentes, um regime de partilha – ao invés da concorrência em curso –, redistribuindo a riqueza e a infraestrutura de estados e municípios em prol da universalização da vacina, é uma forma de enfrentar, ao mesmo tempo, a pandemia e a falsa disputa política que reforça a desigualdade no acesso à saúde e contribui, na aparência e na essência, para o jogo da direita.

    E vale ressaltar que solucionar cooperativamente a ausência do governo federal não significa abrir mão da exitosa experiência e da logística do Programa Nacional de Imunização (PNI), ao contrário. Embora seja coordenado pelo Ministério da Saúde, o PNI se estrutura como ação descentralizada, cuja execução final fica a cargo das instâncias locais do SUS, que, norteadas pelo princípio da universalidade, levam a imunização a todos os rincões deste país.

    Tudo isso, no entanto, requer recursos – sobretudo num país em que a maior parte da arrecadação tributária está concentrada na União.

    Portanto, é tarefa urgente da esquerda socialista, especialmente aquela que está presente no legislativo federal, capitanear a luta para garantir dinheiro extra para estados e municípios. Além de todos os desafios de uma pandemia que continua ampliando suas vítimas, e do saldo de doenças acumuladas pelo não acompanhamento em meio ao isolamento social, no que diz respeito especificamente à vacina, governadores e prefeitos terão altos custos com o reforço de pessoal, combustível e transporte em geral – principalmente nas regiões que concentram aldeias indígenas, populações ribeirinhas e outras particularidades – e formação dos trabalhadores da saúde envolvidos na imunização – desafio, aliás, que tem sido pouco tematizado.

    Além de essenciais para frear a pandemia e preservar a vida, pauta prioritária de qualquer programa de esquerda que mereça esse nome, essas medidas têm potencial de mexer no tabuleiro político, ao mesmo tempo denunciando, com ações, a omissão do governo federal e retirando as lideranças da direita, dita civilizada, da zona de conforto em que vêm se movimentando.

    Imunização pública

    Vale insistir ainda um pouco no quanto a questão orçamentária é fundamental para diferenciar, de forma efetiva, a pauta estruturante da esquerda do discurso civilizado, mas ainda assim excludente, da direita que tem se vendido como a real oposição a Bolsonaro. À primeira vista, esse pode parecer um tema externo ao debate da vacina, mas aqui é preciso olhar o contexto – sanitário e político – pela máxima totalidade possível. Comecemos por mapear os limites objetivos.

    Quem conhece minimamente o campo sabe que a produção mundial de imunobiológicos, hoje, não é suficiente para que se garanta a vacinação de toda a população brasileira num curto intervalo de tempo. A primeira conclusão dessa constatação é que não é apenas válido como necessário defender e lutar para que se alcance a vacinação de toda a população adulta em 2021, mas é igualmente importante não apostar em palavras de ordem vazias, que ignorem as dificuldades impostas pela realidade.

    A segunda pauta, urgente, que essa constatação impõe, e que parece ‘correr por fora’ da disputa político-eleitoral entre direita e extrema direita em torno da imunização, é impedir que o setor privado comercialize vacinas no país, exigindo que tudo que for produzido seja destinado aos governos para a vacinação gratuita, universal e equitativa de toda a população, sem privilégios a quem pode pagar.

    Auxílio emergencial

    Mas aqui uma terceira e fundamental conclusão é que, sem vacina durante um número ainda indefinido de meses e com a continuidade (ou agravamento) da crise econômica, parte da população aprofundará a situação de pobreza e miséria. Isso num contexto em que o auxílio emergencial fornecido pelo governo federal foi suspenso, o orçamento aprovado para políticas sociais foi reduzido e o teto de gastos federais continua em vigor. Aqui, apenas um passo além da superfície do debate da vacina, encontramos o ponto que rapidamente iguala as bandeiras da direita ‘de sempre’ e da extrema direita bolsonarista: a defesa intransigente da austeridade fiscal.

    Solucionar cooperativamente a ausência do governo federal não significa abrir mão da exitosa experiência e da logística do Programa Nacional de Imunização (PNI), ao contrário

    Por isso, lutar pela retomada – e ampliação – do auxílio emergencial, por mais recursos para que as escolas públicas tenham segurança de retomar as aulas quando as condições sanitárias permitirem, por mais dinheiro para garantir profissionais e serviços de saúde enquanto o vírus continuar circulando é executar um programa de combate à pandemia que incorpora e complementa a estratégia de imunização. Significa reconhecer a determinação social da saúde e da doença, estágios que se definem para além da contaminação por um ou outro vírus. Mais do que isso, significa colocar em prática o conceito ampliado de saúde, entendendo (e prevenindo) as diversas causas do adoecimento e o quanto ele é marcado pela estrutural desigualdade da sociedade brasileira. Significa, por fim, trazer o SUS como ferramenta para o combate à pandemia e como projeto para o debate político.

    Cátia Guimarães é jornalista, especialista em comunicação e saúde, doutora em Serviço Social, militante do Psol.

  • O novo sempre vem . Por Luciana Genro

    O novo sempre vem . Por Luciana Genro

    O novo sempre vem

    Para Nancy Fraser, duas vertentes do neoliberalismo polarizaram por décadas as disputas políticas nos Estados Unidos: uma progressista e outra reacionária. Embora semelhantes no plano econômico, há diferenças entre um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório e uma ordem de status mais racista, patriarcal e homofóbica. A crise de representatividade gerada pela frustração com o governo Obama e com a derrota de Trump abre uma espécie de lacuna hegemônica. O que essas situações podem indicar para a cena política brasileira?

    Por Luciana Genro

    Em O velho está morrendo e o novo não pode nascer (autonomia literária, 2020), Nancy Fraser apresenta um panorama da política norte-americana que parece ser muito útil aos debates sobre balanço e perspectivas da esquerda brasileira.
    Partindo da constatação de que atravessamos uma crise política global que envolve o enfraquecimento brutal da autoridade dos partidos e do establishment político e que, portanto, há uma busca por novas ideologias, organizações e lideranças, Fraser aponta a existência de uma crise de hegemonia. Simplificando o conceito desenvolvido por Antonio Gramsci, hegemonia “é o termo que ele usa para explicar o processo pelo qual uma classe dominante faz com que sua dominação pareça natural ao infiltrar pressupostos de sua própria visão de mundo como sendo o senso comum da sociedade”. (p. 35)

    A contrapartida organizacional da construção da hegemonia é a constituição de um bloco hegemônico, isto é, “uma coalizão de forças díspares que a classe dominante reúne e através dela afirma sua liderança.”
    O bloco hegemônico pré-Trump é o que Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, uma aliança entre correntes liberais do feminismo, da luta antirracista, do ambientalismo, da luta LGBTQ+, com os setores financeiros e de ponta da economia norte-americana, isto é, Wall Street, Vale do Silício e Hollywood.

    Dois conceitos

    Para se entender essa aliança é preciso se apropriar de dois conceitos utilizados por Fraser: distribuição e reconhecimento.

    Distribuição é a visão sobre como a sociedade deve alocar os bens, especialmente os rendimentos, a riqueza. Está diretamente relacionada à estrutura social e à divisão de classes. O reconhecimento expressa a forma de como a sociedade reparte o respeito e a estima, as marcas morais de pertencimento. Está relacionado às hierarquias dos status sociais.

    Segundo Fraser, a combinação desses dois aspectos de direito e justiça forjou a hegemonia capitalista nos Estados Unidos e na Europa desde a metade do século XX. Para ela, distribuição e reconhecimento são os “componentes essenciais a partir dos quais as hegemonias são construídas” (p. 37) e foi o descrédito do nexo normativo entre eles que rompeu o bloco hegemônico anterior a Trump e possibilitou o surgimento do “trumpismo”.

    Partindo da constatação de que atravessamos uma crise política global que envolve o enfraquecimento brutal da autoridade dos partidos e do establishment político e que, portanto, há uma busca por novas ideologias, organizações e lideranças, Nancy Fraser, em O velho está morrendo e o novo não pode nascer, aponta a existência de uma crise de hegemonia

    Esse bloco hegemônico “progressista-neoliberal” tinha como eixo da política econômica desmantelar barreiras e proteções à livre circulação do capital. Essa linha, iniciada por Ronald Reagan e aprofundada e consolidada por Clinton, provocou uma redução brutal do padrão de vida da classe trabalhadora e da classe média e transferiu riqueza para os de cima, inclusive para os altos escalões das classes profissionais gerenciais. Com essa política plutocrática veio “um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro desse ethos estavam os ideais de diversidade, empoderamento das mulheres, direitos LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma maneira específica e limitada, totalmente compatível com a ‘Goldman Sachsificação’ da economia dos EUA”. (p. 39)

    Neoliberalismo progressista e reacionário

    O antagonista desse bloco hegemônico do neoliberalismo progressista era o neoliberalismo reacionário. A política de distribuição era similar. Embora os discursos afirmassem defender os pequenos negócios, o objetivo era o fortalecimento das finanças, da produção militar e da energia não renovável. O que o diferenciava do neoliberalismo progressista era a visão do que seria uma ordem de status mais justa: racista, patriarcal, homofóbica, anti-imigrante e pró-cristã. As diferenças mais importantes estavam no campo do reconhecimento e não da distribuição.

    Fraser define que “a hegemonia tem a ver com a autoridade política, moral cultural e intelectual de uma determinada visão de mundo – e com a capacidade dessa visão de mundo de se incorporar em uma aliança durável e poderosa de forças sociais e classes sociais. O neoliberalismo progressista desfrutou dessa hegemonia por várias décadas. Agora, no entanto, sua autoridade está severamente enfraquecida, se não completamente despedaçada.” (p. 76)

    Essa polarização entre dois modelos, que do ponto de vista econômico são muito semelhantes, deixou órfãos as vítimas da financeirização e da globalização corporativa em “uma zona vazia e desocupada, onde a política antineoliberal e em favor das famílias trabalhadoras poderia ter se enraizado”. (p. 46) É o que Fraser chama de “lacuna hegemônica”. (p. 45)

    “Barack Obama poderia ter aproveitado a oportunidade para mobilizar o apoio de massas em favor de um grande deslocamento para longe do neoliberalismo, mesmo diante da oposição do Congresso. Em vez disso, ele confiou a economia às próprias forças de Wall Street que quase a haviam destruído”, diz Nancy Fraser

    Quando Barack Obama surgiu no cenário político, em meio à pior crise financeira desde a Depressão, alguns acharam que ele poderia preencher esse vazio: “Barack Obama poderia ter aproveitado a oportunidade para mobilizar o apoio de massas em favor de um grande deslocamento para longe do neoliberalismo, mesmo diante da oposição do Congresso. Em vez disso, ele confiou a economia às próprias forças de Wall Street que quase a haviam destruído”. (p. 46)

    A expressão dessa lacuna foi o movimento Occupy Wall Street, em 2011. Um descontentamento que não encontrava interlocutores na política institucional irrompeu e acabou, segundo Fraser, servindo principalmente para reeleger Obama em 2012, mas também prenunciando um terremoto que estava por vir. A frustração e a crise de representatividade seguiram, os dois blocos neoliberais colapsaram e o “terremoto finalmente abalou a corrida eleitoral de 2015-2016, quando o descontentamento prolongado se transformou, de repente, em plena crise de autoridade política”. (p. 48)

    O resto da história é bem conhecida, com Bernie Sanders encarnando o anti establishment pela esquerda e Trump pela direita. Fraser define esses dois fenômenos como populismo reacionário e populismo progressista, utilizando o termo “populismo” no sentido de uma política com apelo popular, sem a conotação pejorativa que lhe é atribuída no Brasil.

    Distribuição e reconhecimento

    Ambos criticavam a política neoliberal de distribuição, mas as políticas de reconhecimento eram opostas. Universalismo e igualitarismo versus nacionalismo e protecionismo. A base social que Trump disputou era branca, hétero, cristã, uma classe trabalhadora tradicional que havia perdido espaço, prestígio e dinheiro. E estava furiosa.

    Mas Trump foi, pelo menos em parte, um estelionato eleitoral. Ele abandonou a política “populista” de distribuição e dobrou a aposta na política reacionária de reconhecimento, constituindo assim um “neoliberalismo hiper-reacionário”. (p. 53)

    Trump foi, pelo menos em parte, um estelionato eleitoral. Ele abandonou a política “populista” de distribuição e dobrou a aposta na política reacionária de reconhecimento, constituindo, assim, um “neoliberalismo hiper-reacionário”

    Mas Trump não constituiu um novo bloco hegemônico. A derrota eleitoral em 2020 confirma a tese de Fraser:

    “Ao desativar a face econômico-populista de sua campanha, o neoliberalismo hiper-reacionário de Trump buscou restabelecer a lacuna hegemônica que ele ajudou a abrir em 2016 – exceto que ele não pode, agora, suprimir essa lacuna.
    Agora que o rei populista está nu, parece duvidoso que a parcela da classe trabalhadora da base de Trump fique satisfeita, por muito tempo, apenas com uma dieta de (des) reconhecimento”. (p. 54)

    Escrito em 2019, e inserido no esforço de apoio a Bernie Sanders para representar o Partido Democrata nas eleições, o texto de Fraser contém um vaticínio preciso: as políticas de reconhecimento que se desconectam com o eixo da justiça distributiva servirão aos esforços para “restaurar o status quo anterior sob alguma nova forma. Nesse caso, o resultado seria uma nova versão do neoliberalismo progressista.” (p. 55) A vitória de Joe Biden e Kamala Harris se encaixa precisamente nesse conceito, o que não quer dizer, em hipótese alguma, que a derrota de Trump não tenha sido uma grande vitória.

    A narrativa de Fraser sobre a situação e os impasses da política norte-americana tem particularidades que são próprias ao país. Entretanto, há muitos pontos de contato com a situação mundial em geral e com a situação brasileira em particular.

    A cena brasileira

    Se olharmos para o Brasil de Fernando Henrique Cardoso podemos visualizar claramente o neoliberalismo progressista de Clinton (nem tão progressista quanto o norte-americano, por razões óbvias), assim como as esperanças despertadas e frustradas por Obama podem ser identificadas com aquelas despertadas por Lula e desmoronadas com as consequências da crise econômica sob Dilma Roussef. O significado do movimento Occupy Wall Street tem paralelo no levante de junho de 2013, que destapou o descontentamento, deixou paralisada a maior parte da esquerda e abriu uma caixa de pandora que desaguou em Bolsonaro. O paralelo entre Trump e Bolsonaro é bastante óbvio.

    As eleições municipais demonstraram que Bolsonaro está longe de fechar a crise de hegemonia aberta principalmente com a falência do petismo e sua política de conciliação de classes. Demonstraram também a força que ganhou a pauta antirracista e a consolidação das mulheres e LGBTs como atores políticos importantes.

    A crise de hegemonia segue aberta e nada garante que o desenlace será semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos, com um reestabelecimento do neoliberalismo progressista. Há muitas variáveis em aberto, que vão desde a possibilidade de um impeachment de Bolsonaro – se as elites políticas concluírem que para superar a crise econômica agravada pela pandemia será preciso removê-lo do cargo – até à permanência com consequências eleitorais ainda difíceis de antever.

    No dia a dia do Brasil, vemos o vigilante de supermercado, superexplorado, que espanca um homem pobre e negro até à morte; o policial, com o colete a prova de balas vencido, que mata um jovem negro ao confundi-lo com um assaltante; o homem branco, desempregado há seis anos, que mata a ex-mulher na frente das filhas; o macho, frustrado com sua sexualidade reprimida, que espanca a travesti por odiar desejá-la. Exemplos de algozes cruéis que também, em alguma medida, são vítimas de um sistema que está podre, mas não vai cair sozinho

    Nas eleições norte-americanas, após a luta por Bernie Sanders, todos se uniram a Joe Biden para derrotar Trump. Não é possível descartar que algo semelhante venha a ocorrer no Brasil. A derrota de Trump foi um acontecimento de grande magnitude, justamente por ele representar, assim como Bolsonaro no Brasil, uma tentativa hiper-reacionária de encerrar a crise de hegemonia, fechando também as brechas por onde se expressam os movimentos sociais mais progressistas e acabando com as liberdades democráticas e as conquistas civilizatórias tão duramente arrancadas. A tarefa do PSOL não é menor diante desse cenário.

    Crise e interregno

    Gramsci nos ensina que nesta crise em que o velho já morreu e o novo ainda não pode nascer, há um interregno no qual surgem “fenômenos patológicos” dos mais variados tipos. Esses fenômenos estão por toda parte. Nos Estados Unidos o maior dos últimos tempos, suponho, tenha sido a ocupação do Capitólio por milícias trumpistas. Esse foi um gesto de desespero diante da derrota, mas também uma senha sobre os métodos que a extrema direita está disposta a utilizar no mundo todo.

    No dia a dia do Brasil, vemos o vigilante de supermercado, superexplorado, que espanca um homem pobre e negro até à morte; o policial, com o colete a prova de balas vencido, que mata um jovem negro ao confundi-lo com um assaltante; o homem branco, desempregado há seis anos, que mata a ex-mulher na frente das filhas; o macho, frustrado com sua sexualidade reprimida, que espanca a travesti por odiar desejá-la. Exemplos de algozes cruéis que também, em alguma medida, são vítimas de um sistema que está podre, mas não vai cair sozinho. Faltam uma visão programática e uma perspectiva organizacional. Um programa anticapitalista que englobe as demandas por distribuição e reconhecimento, e uma organização que possa levar adiante a luta por esse programa.

    Uma conclusão se ilumina com o texto de Fraser, guardadas as diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos: a necessidade de buscar a construção de um novo bloco contra-hegemônico, que una todos os que resistem aos ataques de Bolsonaro. Esse bloco deve lutar para conquistar também setores populares que votaram nele em 2018 – não por ele ser racista, misógino e homofóbico, mas apesar de ele ser assim – e que estavam em busca de uma representação para as esperanças de pertencimento e inclusão dizimadas pela crise econômica que se arrasta desde 2008 e que ganhou novo impulso com a pandemia.

    Para fazer isso é preciso destacar as raízes comuns das injustiças de classe e do status no capitalismo, fazendo a conexão entre as pautas de reconhecimento e distribuição. Não é possível tratar da luta antirracista sem revelar o entrelaçamento entre raça e classe, assim como nossa luta pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQ+ não é apenas para buscar diversificar a ordem social existente, dando mais representatividade a um sistema político e econômico que se beneficia das mais diversas formas de opressão para aumentar a exploração.

    Um novo bloco contra-hegemônico

    É preciso buscar um novo bloco contra-hegemônico que tenha a classe trabalhadora como força dirigente. Mas essa classe, como descreve Fraser, não pode ser “restrita a uma maioria étnica branca de homens heterossexuais, trabalhadores de manufatura e da mineração”, segmento que alimentou o trumpismo nos Estados Unidos e que encontra seu paralelo no Brasil nos setores mais atrasados da classe trabalhadora que apoiaram Bolsonaro.

    Essa classe trabalhadora com capacidade de ser o eixo do novo bloco contra-hegemônico deve ser vista de forma “interseccional”, englobando massivamente imigrantes, mulheres e negros, trabalhadores precarizados, entregadores e trabalhadoras domésticas (remuneradas ou não). Os sindicatos são fundamentais, se puderem se reinventar e recuperar sua representatividade e liderança, englobando os novos segmentos ainda desorganizados. Esse bloco poderá também se tornar a força dirigente capaz de atrair a juventude, a comunidade LGBTQ+ e os setores mais empobrecidos da classe média. O desafio do PSOL é ser uma força organizacional que tenha capacidade de impulsionar, e quiçá liderar, a formação desse bloco.


    Luciana Genro, advogada, foi candidata à Presidência da República em 2014 pelo PSOL, atualmente é deputada estadual pelo PSOL/RS

  • O mundo pós-pandemia se decide agora . Por Gilberto Maringoni

    O mundo pós-pandemia se decide agora . Por Gilberto Maringoni

    O mundo pós-pandemia se decide agora

    A oposição brasileira perdeu duas chances de ouro, mas é possível recuperar o terreno

    Está em curso um enfrentamento entre duas concepções de sociedade. A do mercado representa o aprofundamento do neoliberalismo, com redução de investimentos e a sacralização do darwinismo social. A outra via é a de uma reorientação do papel dos Estados nacionais para que tenham uma intervenção pública e democrática mais efetiva nos rumos da sociedade. A disputa se dá em temas muito concretos na vida do povo

    Por Gilberto Maringoni

    Boa parte da oposição brasileira subestimou dois imensos flancos abertos pelo governo Jair Bolsonaro ao longo de 2020 e buscou atalhos que se mostraram infrutíferos. No primeiro semestre, diante do avanço acelerado do contágio pela pandemia do novo coronavírus – e dos graves prejuízos causados à população – poucas foram as vozes a colocar o combate à doença como centro da tática. O segundo é não ver importância em uma conquista na qual essa mesma oposição teve papel decisivo, a manutenção até o fim da pandemia do auxílio emergencial de R$ 600. Há exceções, claro.

    Os dois temas – doença e dinheiro – tocam o dia a dia e o desespero das maiorias, muito mais do que cinco dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, ou brados de “Fora Bolsonaro” feitos quando o negacionista eleva os índices de popularidade.

    Tanto a denúncia do descaso oficial com a pandemia, quanto a extensão do auxílio emergencial são temas concretos e compreensíveis por todos. A adoção efetiva derruba o principal pilar do modelo econômico fiscalista do governo, o teto de gastos estabelecido por meio da Emenda Constitucional 95. Mais do que tudo, essas batalhas assinalariam a contradição fundamental em pauta no Brasil e no mundo de 2020, as opções entre Estado e mercado. Detalhemos.

    O lugar comum

    Em tempos de pandemia, alguns conceitos têm se tornado ocos de significados, de tão repetidos que são. É o caso de novo normal, utilizado à larga nas análises sobre a realidade pós-2020. O isolamento social, o confinamento e a necessidade de distanciamento pessoal têm gerado modificações comportamentais entre quem pode e quem não pode permanecer em casa, numa atitude defensiva diante de uma enfermidade sem cura conhecida. O apelo à solidão e ao relacionamento remoto tem como principal consequência um forte estancamento da atividade econômica, com crise nas duas pontas da atividade produtiva, a demanda e a oferta. A queda na qualidade de vida é denominada de novo normal, como se fosse destino inevitável para a maior parte da humanidade. O novo normal seria um mundo mais pobre, mais resignado e mais triste.

    A pandemia é e será, por tempo ainda indefinido, o principal problema político do país e do mundo. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço e o recuo da doença dependem de ações humanas

    A doença atinge quase todas as esferas da sociedade. A propagação é rápida, radical e profunda e coloca para a coletividade, acima de tudo, a oposição entre alternativas individuais e coletivas, ou privadas e públicas ou, ainda, soluções de mercado e de Estado.

    No caso brasileiro, estabeleceu-se a banalização da tragédia (veja “Naturalizamos o horror?”, de Maria Rita Kehl, nesta edição), assimilada como parte da paisagem após meses de informações e orientações desencontradas. Algo semelhante ocorre com a violência que se tornou fenômeno aparentemente insolúvel. O país é um dos mais perigosos do planeta e os indicadores chegam a ser superiores aos de regiões em guerra. A brutalidade, assim como o novo coronavírus, tem aqui a dramática PPP. Ou seja, atinge preferencialmente pobres, pretos e periféricos. Apesar do drama humano, são tristezas com reduzida influência em círculos de poder e dinheiro de uma sociedade estupidamente desigual. Pandemia e violência geram estatísticas mais do que lágrimas e indignação.

    A naturalização – ou banalização – do horror marca em cheio o mundo político-institucional. Apesar da abnegação de profissionais de saúde pública e de poucas e honrosas exceções, a naturalização atinge o poder central, com o inesquecível brado “E daí?”. A indiferença alcança ainda instituições de Estado, partidos políticos e a grande mídia. Assistimos cada vez mais o noticiário sobre a saúde ser deslocado para o rodapé dos veículos de comunicação e a perder importância na agenda nacional.

    Tanto a denúncia do descaso oficial com a pandemia, quanto a extensão do auxílio emergencial são temas concretos e compreensíveis por todos. A adoção efetiva do auxílio derruba o principal pilar do modelo econômico fiscalista do governo, o teto de gastos estabelecido por meio da Emenda Constitucional 95. Mais do que tudo, essas batalhas assinalariam a contradição fundamental em pauta no Brasil e no mundo de 2020, as opções entre Estado e mercado

    Por que isso acontece? Difícil saber ao certo, mas há algumas pistas. A dimensão quase totalizante da doença parece intimidar o comando de instituições, partidos, associações e organizações sociais.

    Durante a crise de 2008, dizia-se nos EUA que certos bancos seriam “grandes demais para quebrar”. Diante dos pesos definidores na economia, o Estado não poderia deixá-los falir. Parece haver agora, face à pandemia, a sensação de que esta seria “grande demais para se enfrentar”, gerando uma impotência que forçaria todos a se desviarem do tema em busca de tarefas tangíveis para seguirem “fazendo alguma coisa”.

    A pandemia é e será, por tempo ainda indefinido, o principal problema político do país e do mundo. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço e o recuo da doença dependem de ações humanas. Em outras palavras, depende de movimentações não naturais. Defesa do isolamento social, dinheiro nas mãos das pessoas, financiamento para empresas, injeção maciça de dinheiro no SUS, testagens em massa e outras são iniciativas de Estado. Sublinhando, iniciativas de Estado e não de mercado.

    “Estamos em guerra”

    Em 16 de março, o presidente francês Emmanuel Macron fez um pronunciamento televisivo de pouco mais de 20 minutos. Por seis vezes, a pontuar o ritmo da fala, o chefe do palácio do Eliseu repetiu: “Estamos em guerra”.

    O mote guerra, a partir daí, disseminou-se pela Terra, sendo repetido não apenas por políticos, como por sanitaristas. Até mesmo o ministro da Defesa do Brasil, general Fernando Azevedo e Silva, afirmou, em 16 de abril: “Estamos em uma guerra e o Exército está nela”. Bravata, como se sabe. As Forças Armadas brasileiras entraram na guerra por meio de uma polêmica intervenção no ministério da Saúde, que prima pela inoperância, pelo empreguismo e por não traçar nenhuma estratégia sanitária nacional. O Exército brasileiro demonstra não ter a menor noção do que signifique um conflito de grandes proporções. Seus generais sabem do que se trata por meio de filmes de Quentin Tarantino ou Steven Spielberg.

    O combate a uma pandemia para a qual não existe vacina ou cura tem de ser pensado, antes de mais nada, como disputas de tempo, espaço e território. Só se enfrenta a Covid-19 se o conhecimento do deslocamento geográfico presente e futuro for o mais detalhado possível

    Apesar disso, a metáfora lançada por Macron tem razão de ser. Em termos formais, uma pandemia é muito diferente de uma guerra. Nesta, o objetivo é matar pessoas, na pandemia, a meta é salvar pessoas. No entanto, só se pode combater infecções de larga expansão territorial por meio de um tipo de mobilização política e social semelhante à de uma união nacional contra agressão externa.

    Em ambos é necessário um comando nacional único e centralizado, capaz de mobilizar e coordenar ações de três níveis do Estado – nas áreas de informação, crédito, financiamento, redes de saúde, educação, pesquisa, assistência social e forças armadas – e da iniciativa privada – comércio, indústria e serviços, com destaque para transportes -, além de entidades associativas.

    A maneira mais eficiente de se combater o coronavírus é encará-lo como um exército invasor contra o qual uma multiplicidade de forças nacionais pede comando centralizado, ofensivas convergentes, emulação popular e unidade de ação

    O vírus se move geograficamente, ocupando espaços e territórios. Embora o atendimento médico na fase aguda da doença seja individualizado, o controle do ataque viral demanda ação pública e coletiva. O isolamento social e territorial só pode ser aventado mediante operações de compensação e transferência de renda que supram necessidades básicas da população em períodos de suspensão de atividades econômicas. Secundariamente, o confinamento físico apenas é factível por meio da adoção de táticas e logísticas militares, eficientes campanhas de esclarecimento popular e dinheiro nas mãos das pessoas.

    Disputas de tempo, espaço e território

    Ressalte-se: o combate a uma pandemia para a qual não existe vacina ou cura tem de ser pensado, antes de mais nada, como disputas de tempo, espaço e território. Só se enfrenta a Covid-19 se o conhecimento de seu deslocamento geográfico presente e futuro for o mais detalhado possível. Dessa maneira se traçam normas de isolamento.

    O conhecimento e o domínio do espaço geográfico se mostram essencial para uma ação integrada no combate à doença, que só é factível por meio de iniciativas estatais coordenadas. No Brasil e nos Estados Unidos – países nos quais a Covid-19 fugiu de controle – as soluções adotadas foram descentralizadas, desiguais e com uma multiplicidade contraditória de procedimentos. Em síntese, nos dois países, uma lógica análoga à anarquia de mercado se sobrepôs às necessidades da saúde pública. No mercado vigora a concorrência sem regras, na ação pública, ao contrário, a matriz pode ser cooperativa.

    Voltemos ao paralelo bélico. A maneira mais eficiente de se combater o coronavírus é encará-lo como um exército invasor contra o qual uma multiplicidade de forças nacionais pede comando centralizado, ofensivas convergentes, emulação popular e unidade de ação.

    Tentar vislumbrar o mundo pós Covid-19 em meio à propagação incontrolável – no caso brasileiro – é um exercício de alta abstração. Como os conflitos sociais estão em curso, é difícil realizar análises prospectivas confiáveis. Projeções do FMI avaliam que o resultado imediato será a maior recessão global em um século

    O mapeamento da ocupação só pode ser realizado por uma rede pública e nacional de saúde fortalecida. No caso concreto do Brasil, a ação estatal teria a vantagem de contar com a decisiva atuação da rede pública e capilarizada do Sistema Único de Saúde (SUS).

    A tática de defesa precisa envolver, ademais, recursos ilimitados e a fundo perdido (em especial para que se garanta o funcionamento da economia, com dinheiro nas mãos das pessoas e créditos para as empresas), campanhas educativas e restrições à mobilidade, para garantir o isolamento social. As intervenções demandam ação militar e sanitária, além de investimentos emergenciais em pesquisa, compra de equipamentos, montagens de hospitais, pronta resposta, transparência de decisões entre outros. A difusão da ideia de agressão externa e de Pátria em perigo, típica de conflitos bélicos, torna-se fundante. Sem mobilização e engajamento social não se enfrenta a pandemia. O clima de new deal mais economia de guerra é essencial para uma empreitada desse tipo.

    O exemplo chinês

    Foi com iniciativas desse quilate que a China obteve êxito em mitigar a propagação da Covid-19. Pode-se alegar que o país é governado por uma ditadura há 70 anos, motivo pelo qual uma dinâmica articulada nos moldes acima enunciados é factível. O mesmo não seria possível em um regime de liberdade.

    A alegação é enganosa. Grandes democracias enfrentaram guerras cruentas sem perder a pluralidade política. Vamos repetir mais uma vez: a questão a ser colocada não é entre ditadura e democracia, mas entre mercado e ação estatal.

    No Brasil, sem nenhum planejamento ou controle centralizado e com um discurso negacionista por parte do presidente da República – que contamina a sociedade -, o contágio obedece um roteiro de manual de luta de classes. Das zonas urbanas de remediadas a peste migra e se consolida entre regiões pobres, bairros de periferia e favelas, numa escalada devastadora.

    Como ficará o mundo do trabalho pós-pandemia, quando os trabalhadores e empresários do setor de serviços descobrirem ser possível estabelecer o home office como modalidade permanente? É possível que num futuro breve, segmentos da atividade industrial – a partir da chamada revolução 4.0 e do desenvolvimento da internet das coisas – possam também ser desenvolvidos a partir de casa

    A doença colide com a economia internacional como força externa a ela e põe em questão parâmetros da globalização neoliberal estabelecidos nas últimas quatro décadas. Se o surgimento da Covid-19 faz parte das condições objetivas da realidade, o desenvolvimento, o deslocamento e o contágio estão subordinados – impulsionados ou bloqueados – por condições subjetivas, as ações humanas. É aqui que a doença se insere na esfera política e funciona como ferramenta para se alterarem regras estabelecidas, acelerando o desenlace de tensões que estavam em andamento. Nos últimos quarenta anos, espalharam-se pelo mundo políticas de cortes de orçamentos públicos como um fim em si e como passaporte seguro para que um dia, quem sabe, os países voltem a crescer. Com a Covid-19, a urgência de políticas anticíclicas e investimentos maciços em saúde torna a ideia de rigidez fiscal e contração monetária um contrassenso total.

    No caso do Brasil, o vírus colhe em cheio uma economia fragilizada por sucessivas decisões ultraliberais tomadas desde, pelo menos, 2015. Todas tiveram como métrica a cantilena privatizante e antiestatal, com a elevação dos ajustes fiscais à categoria de eixos estruturantes da sociedade.

    O resultado para o país é a mais profunda depressão da história republicana, o maior aumento da taxa de desemprego em um curto espaço de tempo – ela praticamente dobra entre dezembro de 2014 e março de 2016 – e a mais lenta recuperação econômica em mais de um século. A economia passa a funcionar num cenário de semiestagnação, desemprego de dois dígitos, baixo ativismo estatal e desindustrialização perene. Consolida-se a alta produtividade do setor agroexportador como polo dinâmico da economia, numa volta à situação pré-1930, quando o país exibia uma economia predominantemente rural. A essa anomalia planejada também se denominou novo normal.

    Aumento de gastos

    Tentar vislumbrar o mundo pós Covid-19 em meio à propagação incontrolável – no caso brasileiro – é um exercício de alta abstração. Como os conflitos sociais estão em curso, é difícil realizar análises prospectivas confiáveis. Projeções do FMI avaliam que o resultado imediato será a maior recessão global em um século.

    O governo Bolsonaro coloca na mesa uma escolha de Sofia como alternativas à crise, a oposição entre salvar vidas ou salvar a economia, como se economia não precisasse de seres vivos e estes, daquela.

    Mesmo assim, o governo foi forçado a adotar o chamado orçamento de guerra, por meio de emenda constitucional promulgada no início de maio. A medida na prática acabou com restrições orçamentárias no combate à doença e permitiu que se rompesse o chamado teto de gastos, definido a partir de 2017.

    Qual tem sido a solução generalizada para manter a demanda efetiva ao redor do mundo? Aumento dos gastos, investimentos públicos e emissão monetária sem preocupação imediata com déficits são a norma, mesmo em países governados pela direita neoliberal. No início de junho, o Banco Central Europeu anunciou um gigantesco programa de desembolsos da ordem de 1,35 trilhão de euros, algo próximo a 80% do PIB brasileiro. No final do mês seguinte, líderes da União Europeia chegaram a um novo acordo para um programa de recuperação econômica de mais 750 bilhões de euros.

    Formou-se um aparente consenso entre especialistas de variadas correntes: “Até economistas tidos como falcões do fiscalismo tendem a apoiar gastos emergenciais agora e alguns querem mesmo ampliá-los”, afirmou a Economist, em 24 de abril de 2020.

    Na crise de 2008, os cofres dos tesouros nacionais da maioria dos países também foram escancarados para salvar as economias. Ao longo da década seguinte, tendências protecionistas no mercado internacional ganharam forte apelo político-eleitoral. Reapareceu um discurso antiliberal de direita em defesa dos negócios e dos empregos, como não se via desde a II Guerra.

    Sairemos da pandemia com a adoção de práticas keynesianas e anticíclicas por parte dos Estados, com planejamento e investimentos públicos em alta? Ou deixaremos a superação das múltiplas crises em andamento aos imponderáveis desígnios da mão invisível do mercado? Teremos um novo normal? Ou teremos novos normais como possibilidades múltiplas, a depender dos enfrentamentos em curso? Estamos num ponto incerto do turbilhão, sem conhecer o ciclo vital de um vírus que avança com velocidade inusitada. Teremos a volta a algum tipo de regime de substituição de importações e consequente reconversão industrial? Ou seja, de volta ao Estado indutor, planejador e financiador?

    O exercício de se prever o mundo pós-pandemia tem muito de achismo. Depende dos rumos e ritmos da luta política entre partidários da ação estatal e mercadistas, já comentados. A fragilidade do mercado como organizador social fica evidente, mas tal disfunção por si só não engendra a superação. É difícil vislumbrar a existência de força política capaz de construir tal ultrapassagem.

    O trabalho pós-pandemia

    Como ficará o mundo do trabalho pós-pandemia, quando os trabalhadores e empresários do setor de serviços descobrirem ser possível estabelecer o home office como modalidade permanente?

    É possível que num futuro breve, segmentos da atividade industrial – a partir da chamada revolução 4.0 e do desenvolvimento da internet das coisas – possam também ser desenvolvidos a partir de casa. O que o insulamento perene dos trabalhadores implicará para o convívio social?

    Várias modalidades de trabalho não necessitam mais de lugar fixo. O exemplo pioneiro vem das empresas de call center, que montaram bases em regiões marcadas por incipiente organização sindical, o que lhes permitiu pagar salários muito baixos, com vínculos flexíveis de emprego. Agora, percebe-se que um sem número de atividades prescinde de funcionários baseados em uma única cidade ou mesmo um único país. Uma verdadeira guerra pela redução dos custos do trabalho pode se estabelecer de forma ainda mais acentuada do que na atualidade.

    Não é mais necessário exportar capitais na forma de escritórios ou centros de prestação de serviços em busca de mão de obra e preço da terra mais baratos. Um laptop e conexão estável de internet resolvem tudo. Claro que as empresas deverão externalizar os custos de energia, comunicação e espaço físico para milhares de lares espalhados ao redor do planeta. O trabalho absorverá custos até aqui de responsabilidade do capital.

    Sairemos da pandemia com a adoção de práticas keynesianas e anticíclicas por parte dos Estados, com planejamento e investimentos públicos em alta? Ou deixaremos a superação das múltiplas crises em andamento aos imponderáveis desígnios da mão invisível do mercado?

    Edifícios inteiros podem ser esvaziados, bairros comerciais tendem a se tornar zonas fantasmas, com evidentes impactos deflacionários sobre o preço da terra. As empresas de transporte – urbanas, interurbanas e internacionais – terão menos demanda, assim como grandes espaços desenhados para convenções e encontros. Os deslocamentos serão reduzidos, o raio de ação das pessoas poderá ser menor, as viagens serão cada vez menos urgentes. A globalização das coisas – parafraseando Robert Kurz – se imporá em detrimento da globalização humana.

    O novo normal do mercado teria assim o condão de reconfigurar também o espaço de forma radical. A encruzilhada aponta dois caminhos. O do mercado – descrito linhas atrás – representa o aprofundamento do neoliberalismo, com maior redução de custos de produção e de trabalho, eliminação de ramos inteiros de atividades e a eternização da precariedade, do aumento das desigualdades e do caos social.

    A outra via é a de uma reorientação tectônica do papel e da função dos Estados nacionais num mundo pós-catástrofe. Essa opção abre esperanças para as maiorias. A escolha resultará de um profundo conflito no terreno da política.

    A possibilidade de os setores progressistas terem voz e vez nesse imenso enfrentamento demanda fazer escolhas corretas, como mencionado no início. Implica abraçar pautas que toquem a vida das maiorias, como a centralidade política da pandemia e a continuidade do auxílio emergencial.

    Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).

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