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  • A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    A Lava Jato em julgamento e o destino de Lula

    Em breve teremos a disputa jurídica mais importante do ano. Não haverá muito espaço para “jeitinho” nesse processo no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos ministros daquela Corte. Se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato

    Por Valério Arcary

    Antes do anúncio da aposentadoria de Celso de Melo, parecia que o julgamento do Habeas Corpus de Lula na segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deveria acontecer até o final de outubro. Agora, ninguém sabe.

    Será o julgamento político mais importante do ano. Há muitas tecnicalidades jurídicas em disputa, mas, em traços gerais, dois desenlaces possíveis. Ou Lula perde o HC e não poderá ser candidato em 2022, ou Lula recupera os direitos políticos e, se quiser, passa a ser pré-candidato. Portanto, esse julgamento remete à questão do poder e consiste, do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sérgio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do HC de Lula corresponde à anulação das sentenças, e o desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto.

    O julgamento consiste do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sérgio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do Habeas Corpus de Lula corresponde à anulação das sentenças e ao desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto

    O desfecho sempre foi imprevisível, porque as consequências são imensuráveis. Depois de tudo que aconteceu no Brasil, depois do golpe institucional, seria ingenuidade imperdoável subestimar a pressão da fração majoritária da classe dominante para manter a condenação de Lula.

    Depende da iniciativa de Gilmar Mendes colocar em pauta. Considerando uma provável antecipação dos votos na segunda turma, o julgamento estaria, neste momento, empatado, o que significaria que a sentença seria pró-réu. Toffoli deve substituir Celso de Melo na segunda turma. O que poderia sugerir um resultado ainda melhor, menos contestável. Mas a máxima gravidade desse desenlace exige considerar a possibilidade que a decisão seja levada ao Plenário. A indicação do substituto de Celso de Melo por Bolsonaro introduz ainda mais incerteza.

    Há, portanto, uma possibilidade, mas nada será assim tão simples.

    Posição na classe dominante

    Se Lula não fosse ainda um candidato competitivo nas eleições de 2022, a possibilidade de recuperação plena de seus direitos políticos seria muito maior. A interdição dele é uma posição majoritária na classe dominante, mesmo nos círculos que admitem os abusos de poder da operação Lava-Jato. Ela obedece, neste momento, a um cálculo de que a candidatura de Lula tornaria um segundo turno contra Bolsonaro uma grande possibilidade.

    Ainda que qualquer um dos cinco ministros da segunda turma possa, eventualmente, mudar os votos, a decisão parece estar nas mãos de Toffoli, porque já se sabe que Lewandowsky e Gilmar Mendes, em princípio, votarão a favor do HC, e Carmem Lúcia e Edson Fachin votarão contra.

    O PSOL defende os direitos democráticos de Lula, mas não aprova nem defende o balanço dos governos liderados pelo PT, portanto, não apoiará Lula. Em 2022, o partido voltará à disputa com candidatura própria. Não há qualquer contradição nessa localização, porque compreendemos que Sérgio Moro liderou uma perseguição política, não um julgamento

    Se Toffoli desempatar a favor do HC de Lula, não é impossível que uma decisão final possa ser transferida, hipoteticamente, para o Plenário do STF, com Luís Fux, um defensor da operação LavaJato, na presidência do STF. No plenário há alguma incerteza, porque cinco dos onze ministros já votaram no passado, criticamente, face à Lava-Jato, embora sobre temas menos controversos: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, e Dias Toffoli. Incerto, duvidoso e até improvável, porque o substituto de Celso de Melo foi nomeado por Bolsonaro.

    A incerteza resulta da ruptura de Bolsonaro com Sérgio Moro. Assistimos, depois da posse de Augusto Aras na Procuradoria Geral da República (PGR), a um esvaziamento do poder do núcleo de Curitiba.

    A operação e seu contexto

    A operação LavaJato só pode ser compreendida em contexto histórico. Há na esquerda, essencialmente, duas posições sobre o seu significado.

    Há a interpretação de que foi uma operação progressiva no combate à corrupção, impulsionada pelo engajamento republicano de uma nova geração de procuradores e juízes, ainda que tenha cometido excessos na exploração de delações premiadas, e transgredido os limites de procedimentos com conduções coercitivas e prisões preventivas.

    Quem defende essa análise secundariza o impacto da LavaJato na ofensiva reacionária que passou pelo impeachment de Dilma Rousseff, posse de Temer, condenação de Lula, e que culminou na eleição de Bolsonaro. Essa posição tem representação minoritária no PSOL e, surpreendentemente, até no próprio PT. Ela traduz o grau de adaptação política e ideológica à institucionalidade do regime democrático-eleitoral, e a pressão da maioria das camadas médias.

    Há a interpretação de que foi uma operação política orientada, desde o início, no contexto aberto pelas mobilizações abertas em junho de 2013, e da disputa eleitoral de 2014, por uma estratégia de deslocamento do sistema de partidos consolidado na Nova República, e de uma perseguição à direção do PT, e criminalização de Lula.

    Quem defende essa interpretação sublinha que sem a LavaJato teria sido muito difícil, senão impossível, o alcance de milhões das mobilizações pelo impeachment, e o caminho aberto para a extrema direita em 2018. Essa posição é majoritária no PT, PSOL e PCdoB e revela um mínimo instinto de classe, e até de sobrevivência política diante do que foi o golpe institucional de 2016 e o deslocamento das camadas médias para a extrema direita, que se expressou na vitória eleitoral do neofascista Bolsonaro.

    Sem jeitinho

    Não haverá muito espaço para um “jeitinho” para esse julgamento no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos juízes do STF, pois se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato.

    A ruptura de Sérgio Moro com o governo teve como consequência um processo no STF em que Bolsonaro é acusado de tentar intervir na Polícia Federal, portanto, abuso de poder. Não devemos diminuir, tampouco, a censura que Dallagnol recebeu no Conselho Nacional de Justiça. Mas as divergências de projetos políticos colocaram a judicialização da luta política em outro patamar com a iniciativa de Aras de concentrar na PGR em Brasília todas as operações contra a corrupção, esvaziando Curitiba.

    Ensina a sabedoria popular, não se fazem omeletes sem quebrar ovos. O PSOL, quando sua candidatura não alcançar o segundo turno, estará firme e ao lado da postulação de esquerda melhor colocada. Assim, como esperamos que o restante da esquerda esteja ao nosso lado, quando for necessário

    A percepção de que a “Lava-Jato já fez o que deveria ser feito” e foi até longe demais, ou uma combinação de pressão do bolsonarismo e malestar no centrão vem crescendo no Congresso. PSDB, MDB e DEM já foram atingidos pela Lava-Jato e continuam acossados porque Serra e Alckmin voltaram às manchetes e terão dificuldades de escapar, junto a Aécio, de uma condenação, pelo menos de formação de caixa dois, senão enriquecimento pessoal ilícito, o que é mais grave.

    O próprio bolsonarismo assumiu um questionamento aos procuradores da LavaJato, pela iniciativa da PGR sob o comando de Aras. O que sinaliza que Bolsonaro prefere um segundo turno em 2022 contra Lula, e não contra Sérgio Moro ou Dória.

    A sobrevivência de Bolsonaro

    A classe dominante está dividida, mas parece incontornável que, se Bolsonaro conseguir sobreviver até 2022, deverá chegar ao segundo turno. Uma maioria da burguesia trabalha, portanto, para evitar que a esquerda possa chegar ao segundo turno.

    Naquelas frações que apostam em uma candidatura de Sérgio Moro ou de Dória, ou de outro como Luciano Huck, prevalece a perspectiva de que a gravidade da crise social, assim que o colchão do auxílio emergencial for suspenso, mesmo se for substituído pelo Renda Brasil, impede que a esquerda, em especial, se Lula puder ser candidato, seja excluída de um segundo turno. Portanto, liquidaria a possibilidade de uma candidatura liberal contra Bolsonaro, porque o lugar de Moro e Dória, diante da polarização, seria semelhante ao de Alckmin. Logo a interdição de Lula é estratégica.


    Foto:Francisco Proner

    O PSOL defende os direitos democráticos de Lula, mas não aprova nem defende o balanço dos governos liderados pelo PT, portanto, não apoiará Lula. Em 2022, o PSOL voltará à disputa com candidatura própria. Não há qualquer contradição nessa localização, uma vez que compreendemos que Sérgio Moro liderou uma perseguição política, não um julgamento. O que foi feito pela LavaJato em Curitiba contra Lula foi uma aberração jurídica. Se fizeram contra Lula, podem fazer contra qualquer um.

    Apresentamos Boulos no primeiro turno, em 2018, e estivemos, no segundo turno, na primeira linha da campanha de Haddad. Discordamos da estratégia que o PT, quando esteve no governo federal, desenvolveu e que, finalmente, fracassou quando foi necessário medir forças contra o impeachment. Ensina a sabedoria popular, não se fazem omeletes sem quebrar ovos.

    Mas, apesar das diferenças com o PT, o PSOL – quando sua candidatura não alcançar o segundo turno – estará muito firme ao lado da candidatura de esquerda melhor colocada. Assim, como esperamos que o restante da esquerda esteja ao nosso lado, quando for necessário. Estamos em um mesmo campo de classe.

    Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP e Doutor em história pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98 e, desde 2016, é membro da Coordenação Nacional do MAIS/PSOL. É autor de O martelo da história, entre outros livros.

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  • Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso . Por Lúcio Gregóri

    Doença e Transporte Público: Rodando em falso

    Os problemas causados pela pandemia impactaram profundamente todas as áreas da economia. Uma delas foi a dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus, que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a Covid-19 também serviu para escancarar as distorções das políticas de mobilidade

    Por Lúcio Gregóri

    Vivemos um momento que pode provocar muitas mudanças nos modos de mobilidade urbana: trabalho remoto, automação do setor de serviços, possibilidade crescente de reuniões serem realizadas a distância, uso de aplicativos para contratação de viagens urbanas, entre outros fatores são sinais dessa nova situação. A pandemia da Covid 19 aguçou essa questão, evidenciando os vários problemas que envolvem o transporte coletivo e a mobilidade em geral.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas, e em nossa sociedade escravagista e preconceituosa – justamente para com os de menor renda, negros e mulheres e que são os que mais dependem dos transportes coletivos – desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade e, quem tem menos só tem, quando tem, para as “viagens dos deveres” e não para as “viagens dos prazeres”.

    Disputas no deslocamento

    Como vivemos num sistema capitalista, ainda que atrasado e cartorial, as disputas em torno dos ganhos propiciados pela mobilidade urbana se fazem sentir. Cada um dos interessados procurando “vender o seu peixe” como sendo o melhor, mais inteligente, mais limpo, etc.

    A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas. E numa sociedade escravagista e preconceituosa como a nossa, desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade

    Não foi diferente quando o automóvel surgiu, sendo o “resolvedor” da mobilidade, omitindo-se, é claro, seu papel como possível causador de problemas. Com a produção em série e associação com a indústria petroleira, o automóvel com motor a explosão surgiu como “a grande solução”. Claro está que todos os problemas advindos desse modo de locomoção – enorme uso de espaço viário, acidentes, poluição etc. – foram devidamente “não identificáveis” por anos a fio.

    O mesmo acontece atualmente com os aplicativos, que abrirão caminho para carros pequenos sem motoristas etc. As vantagens são promovidas como absolutas, mas não é difícil de se imaginar o que poderá ser uma quantidade astronômica de pequenos carros elétricos a ocuparem, freneticamente, as ruas da cidade em manobras fugidias de congestionamentos, tal como já é realidade com os aplicativos. Nesse sentido, mais uma vez a lógica indica que os transportes coletivos continuarão sendo absolutamente fundamentais.

    Capitalismo cartorial

    Os problemas causados pela pandemia da Covid-19 impactaram profundamente todas as áreas da economia, mas alguns setores foram mais duramente afetados. Um deles foi o dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus – o mais demandado – que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a pandemia também serviu para escancarar os enormes equívocos que vêm sendo cometidos por anos a fio nesse setor.

    Desde tempos imemoriais, o capitalismo brasileiro tem nos serviços públicos uma forma de “encosto”, ou como dizia Hélio Jaguaribe, mostra-se um capitalismo cartorial. Assim, como nos cartórios, não há riscos envolvidos. Mais do que isso, o “encosto” chamado concessão do sistema de transporte público inclui distorções gigantescas que visam tornar a cessão desse serviço público, uma espécie de “esquema de ganhos” seguros.

    Nas concessões clássicas, aplicadas na esmagadora maioria das cidades brasileiras, o serviço de transportes coletivos por ônibus é remunerado por passageiro transportado – como se passageiro fosse custo – quando passageiro em sistema de transportes é receita! Tal como num táxi, dado um certo percurso, o taxímetro mostrará o mesmo preço da corrida, independentemente do número de passageiros transportados, pois o que é cobrado é o deslocamento realizado.

    Atualmente, na maioria das cidades, a remuneração do transporte coletivo é feita por passageiros. Quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Isso acarreta um efeito cruel: havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso

    Com a remuneração do transporte coletivo sendo feita por passageiros, quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Com um efeito cruel de que, havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso.

    Com as gratuidades, a compensação precisa ser realizada com subsídios cruzados, quando o passageiro pagante tem um adicional de tarifa para compensar aquele passageiro que usa do serviço em regime de gratuidade, criando uma animosidade entre os usuários, pois os pagantes se sentem prejudicados quanto mais direitos de gratuidades forem sendo atribuídos a determinados grupos de usuários – idosos, estudantes, etc.

    Lotação e infecções

    Com ônibus superlotados o serviço tende a apresentar problemas sanitários como o aumento da quantidade de infecções, viroses entre outras adquiridas. Seis passageiros por metro quadrado é o altíssimo índice permitido, que na prática se transforma em até dez, doze passageiros por metro quadrado.

    Se passageiro fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é sim anti-higiênico, fora a limpeza do veículo e um permanente agente propagador de contaminação.

    No “encosto” nas parcerias público-privadas, o Estado entra com a maior parte dos custos (caso dos custos fixos dos metrôs) e o setor privado tem prioridade no rateio das receitas com direito assegurado de reajuste anual de tarifas independentemente de qualquer coisa (vide exemplo do que é praticado na linha amarela do metrô em São Paulo).

    Automóveis e poluição

    O isolamento social em decorrência da Covid-19 retirou os carros de circulação das ruas das cidades e ficou explícito o quanto o modelo de mobilidade centrado no automóvel é o responsável pela poluição atmosférica. Em São Paulo, a mancha escura de poluição que cobria a cidade foi drasticamente reduzida, quase desaparecendo. O mesmo fenômeno pode ser observado ao redor do mundo todo. A indústria automobilística contra-ataca com a ideia de que deslocamento por automóvel será mais higiênico.

    Porém, alguns dados ajudarão a entender a escala do problema representado pelos transportes coletivos urbanos e o quanto eles representam a verdadeira face desse capitalismo à brasileira.

    Em mais de 2.900 municípios brasileiros, os transportes coletivos atendem a 70 milhões passageiros/dia. De acordo com a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 1800 empresas privadas com 107 mil ônibus transportam 60 milhões de passageiros/dia, gerando mais de 400 mil empregos diretos (motoristas, cobradores, pessoal de manutenção e demais profissionais).

    O transporte sobre trilhos – metrôs e ferrovias metropolitanas – congrega 15 operadoras, num total de 1.105 km de linhas, 10,9 milhões de passageiros/dia. Considerados todos os modos, o transporte público coletivo responde por 50% das viagens motorizadas realizadas diariamente no país. Apesar dessa importância dos ônibus, eles vêm perdendo passageiros ao longo do tempo, seguramente pela má qualidade dos serviços, mas fundamentalmente pelo alto preço da tarifa, que se torna cada vez mais inacessível.

    Contratação distorcida

    A insolvência das empresas não é um risco causado pela Covid-19, que apenas aguçou a questão do modelo de contratação dos serviços, inclusive por não possuir cláusulas contratuais para caso de hecatombes, pandemias entre outros.

    Nos últimos 20 anos, os ônibus perderam 35,6% dos usuários. Só em 2017, 9,5%. O crescente uso dos modos individuais motorizados, carros e motos, que ocupam 70% do espaço viário e transportam cerca de 25% das pessoas em circulação, causaram uma diminuição da velocidade do ônibus de 25km/h para 15km/h e ilustra a desigual distribuição do espaço público para uso das pessoas, que privilegia mais espaço para carros particulares.

    Para se enfrentar os problemas da mobilidade urbana e fortalecimento dos transportes coletivos, inclusive com garantia de higiene e segurança, será necessário mudar radicalmente a forma de contratação dos serviços e determinadas especificações de desempenho, aí incluído o número de passageiros em pé por metro quadrado.

    E para garantir que o transporte coletivo não seja um inibidor e segregador do uso e acesso à cidade por parte dos mais pobres, tendo na tarifa o elemento chave nessa inibição, há que se formular políticas robustas de subsídio tarifário e, no limite, o subsídio total (tarifa zero). Aí sim o transporte será um direito social como diz a Constituição desde setembro de 2015, como a saúde, via SUS. Isso significa que é necessário criar recursos para o subsídio tarifário e reequacionar inteiramente o modo de contratar tais serviços com o setor privado, bem como as especificações de desempenho.

    Curiosamente, foi aprovado pela Câmara Federal o projeto 3364/20, que prevê auxílio de R$ 4 bilhões às empresas de transportes coletivos sem exigir, por exemplo, a transformação dos contratos para custos operacionais e não mais as clássicas concessões de remuneração por passageiro e a inclusão de cláusulas relativas a hecatombes e epidemias.

    Tirar da letra morta em um papel o transporte como direito social nos termos da Constituição desde 2015, e transformá-lo em direito real, envolve um debate ampliado sobre a questão tributária no país e das formas de contratação dos serviços públicos, especialmente os de mobilidade urbana.

    Tributação injusta

    No capitalismo brasileiro, diferentemente do resto do mundo, tributa-se pouco a renda e o patrimônio. Na Dinamarca, esses dois itens, em conjunto, representam 67% da arrecadação total de impostos; nos EUA, 60%; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação sobre o consumo com seus 50%. A média da OCDE é de 32,4%; e nos EUA, 17%.

    E para finalizar essa enorme farsa nacional, os dividendos para os donos de ações de empresas não pagam imposto de renda e jatinhos e iates não pagam IPVA.

    No Brasil, os direitos e serviços públicos são sustentados pelos mais pobres, os que pagam proporcionalmente mais impostos, via consumo.

    A agenda hegemônica da Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional está desconectada dessa realidade e não enfrenta a principal anomalia da tributação brasileira que é o seu caráter regressivo, não reduz e pode ampliar a desigualdade. Além disso, é profundamente insuficiente, por não fortalecer financeiramente o Estado para que cumpra o papel dele exigido em crises dessa envergadura.

    Se o usuário fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é anti-higiênico

    Se essa agenda já era inócua e tímida, tornou-se anacrônica após a crise agravada pela Covid-19. E nem se diga do teto de gastos…

    Além disso, é fundamental evitar propostas equivocadas como pedágio urbano, que transforma a rua em mercadoria escassa e é regressivo. Há também a chamada municipalização da Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), posto que a esta é uma medida conjuntural e pode ser mudada até por decreto.

    Em resumo, sem uma disputa e reforma ampla sobre questões tributárias, mudanças radicais na forma de contratar serviços de transportes coletivos e da cobrança de contribuição (e não pedágio) pela apropriação do espaço viário pelos automóveis dentre outras questões, o que se poderá ter como resultado das mudanças apontadas no início do texto e das consequências e problemas desnudados pela Covid-19, é aquilo que é uma recorrência em nosso país: “tudo mudar para que tudo permaneça como sempre foi”. Podendo piorar…

    * Lúcio Gregori é engenheiro pela Escola Politécnica da USP, foi Secretário Municipal de Transportes no governo de Luiza Erundina (1989-93), quando propôs o projeto da Tarifa Zero.

     

  • BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    BAIXE AQUI – Revista Socialismo & Liberdade n.30

    Editorial – Socialismo & Liberdade n.30

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Nesta edição da revista Socialismo e Liberdade, nº 30, aproximamo-nos das eleições de 2020 e já iniciamos a primavera no Brasil, porém no lugar de flores nascendo e decorando as estradas, campos e matas, encontramos a ameaça a vida com doenças e mortes. Sementes do poder que assolam o mundo com o capitalismo e seus genes autoritário deste governo do Brasil.

    Os números disponíveis já ultrapassam 146 mil pessoas mortas. Fruto desta política que mata, onde o vírus é apenas o gatilho do momento. Nossa tarefa é de construir espaços para o conhecimento e a formação de uma inteligência coletiva potente com compromisso de estourar a bolha que impede o acúmulo da ciência, da filosofia e dos conhecimentos ancestrais. Precisamos aguçar e construir olhares e sensibilidades críticas abolindo o senso comum. São essas tarefas fundamentais para superar o capitalismo. Por isso seguiremos firmes e com práticas solidárias para espalhar na maioria do nosso povo – que é o agente – as mudanças necessárias que precisamos.

    Nesta revista apostamos em apresentar informações e conhecimentos sobre o momento atual e apontamos abordagens críticas para os ataques que sofremos, coletivamente. Conseguir se manter vivo nesta descompostura da política com o tempo é um desafio para que nossa ação de revolucionários e insurgentes ganhe a dimensão de qualificar e melhorar a vida contra o individualismo decrépito.

    Estamos próximos de duas eleições importantes no mês que vem, a dos E.U.A e a do Brasil, das quais os resultados eleitorais serão decisivos para fortalecer as mudanças ou para nos fragilizar ainda mais como sujeitos. Somos seres da política, quem decide e pode decidir pelo mundo que queremos com toda multiplicidade, diversidade, complexidade, e quem vive da venda da força de trabalho para sobreviver.

    Para além de mostrar que o trabalho também pode ser ação criativa e coletiva, precisamos avançar para que a mercadoria “força de trabalho” seja garantida para todas as pessoas e sustente a vida com dignidade. São desafios de todos os tempos que no momento pesa ainda mais forte com a pandemia.

    É nesse sentido que cada artigo, cada contribuição e cada imagem, aqui apresentados, possui o grande desfecho de apontar e construir um outro mundo. Para nós, Socialismo e Liberdade traz a síntese de um mundo pleno, criativo, democratizante e que semeia a vida com dignidade. As variações e apresentações dos defensores da política de Estado contra os explorados, conhecida como necropolítica, em nosso tempo, assumem portes devastadores com esse (des)governo que nos oprime.

    As eleições mostram-se um desafio de debater e conscientizar as pessoas para a defesa da vida, analisando o sistema transversalizado no mundo, e o que nos espera e, assim, apostamos em subsídios que nos ampliem como sujeitos singulares e coletivos em nosso tempo.

    O importante da nossa revista do PSOL é sempre fazer dela um instrumento de aprendizagem, e para isso vamos conversar com cada companheira e companheiro e construir leituras coletivas e unidade que nos façam sempre mais que um indivíduo para que a vida seja mais que mercadoria. Na busca do conhecimento que defende a vida e a dignidade humana, é hora de divulgar, ler, estudar e compartilhar em debates e formação para nos deixar mais fortes e potentes na defesa da maioria das pessoas, além de fazer uma grande propaganda do nosso Partido.

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  • Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    Bolívia: o golpismo sob prova das urnas

    O golpe de 2019 tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição com impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região

    Por Igor Fuser e Fábio Castro

    Na lista recente das reviravoltas políticas em países latino-americanos, com a substituição de governantes de esquerda ou “progressistas” por políticos a serviço das oligarquias locais e dos interesses dos EUA, a mudança de rumo que ocorreu na Bolívia em 10 de novembro de 2019 foi, entre todas, a mais claramente golpista – e também a mais violenta, acompanhada pelas tenebrosas sombras do fascismo e do racismo.

    Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória. Consumava-se o golpe

    Em contraste com a discreta conduta dos militares nos golpes em países vizinhos (Paraguai, Brasil), na Bolívia quem deu a cartada decisiva para a derrubada do presidente Evo Morales foi um general, Williams Kaliman, a principal autoridade militar do país.

    Em meio a um cenário de caos em La Paz e outras cidades importantes, com as forças policiais amotinadas contra o governo e milícias de extrema direita tocando o terror, espancando integrantes da esquerda e incendiando casas, caberia a Kaliman, como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, pôr as tropas na rua, em cumprimento ao dispositivo constitucional que atribui aos militares a missão de garantir a ordem em situações extremas, como aquela. Mas não. Em vez disso, o general apareceu diante dos principais meios de comunicação rodeado por um grupo de outros altos oficiais para “sugerir” ao presidente que apresentasse a renúncia.

    Risco de assassinato

    Um conselho difícil de recusar. Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória, todos eles integrantes do partido governista, o Movimento ao Socialismo (MAS). Enquanto isso, os policiais disparavam balas de verdade contra manifestantes pró-governo em diversos pontos do país (no total, cerca de 60 bolivianos morreram enfrentando os golpistas).

    O Palácio Quemado foi invadido pelo líder da extrema direita racista de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, que ingressou no gabinete presidencial com uma bíblia na mão, enquanto, nas ruas, os partidários queimavam a Whipala – bandeira indígena multicolor adotada na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um símbolo tão importante quanto a bandeira nacional.

    Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, até então conhecida apenas pelas posições fundamentalistas cristãs, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas. Ela assumiu o poder de forma interina, com o pretexto de que sua função seria apenas a de convocar novas eleições. Tornou-se “a primeira ditadora da história do continente”, conforme escreveu Renaud Lambert no Le Monde Diplomatique.

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado

    Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado. O que mais se discutiu no país foram os perversos processos de corrupção institucional que se estabeleceram, entre os quais o escândalo da compra, pelo ministro da Saúde, Marcelo Navajas, de 170 respiradores espanhóis superfaturados que jamais chegaram aos pacientes da Covid-19 aos quais se destinavam. Mesmo assim, Áñez entrou na disputa eleitoral, com a clara estratégia de ganhar tempo para inviabilizar a candidatura do MAS por meio de lawfare. Foram três prorrogações da data do pleito. A última delas provocou uma gigantesca mobilização de camponeses favoráveis ao MAS, que bloquearam as estradas bolivianas em centenas de pontos ao mesmo tempo, exigindo a imediata realização das eleições, marcadas finalmente para 18 de outubro.

    Candidato amplo

    Nesse cenário, a estratégia do MAS foi fortalecer a candidatura de Luis Arce, que em quase todo o período Morales foi o ministro da Economia. A percepção de que Arce é um excelente administrador sinaliza a aposta em um nome que, além de agradar aos militantes do MAS, tem o potencial de disputar o voto de eleitores centristas, atraídos a votar no principal candidato opositor, Carlos Mesa, um neoliberal que impulsionou a escalada golpista de 2019 sem se comprometer com o extremismo de Áñez e de Camacho. Dono de uma empresa de comunicação de massa, Mesa era o vice em outubro de 2003 quando o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada fugiu para os Estados Unidos após massacrar manifestantes que reivindicavam a nacionalização das jazidas de gás natural. Assumiu o governo, mas renunciou dois anos depois, em meio a uma crise provocada pela recusa em assinar uma lei, votada em plebiscito e aprovada pelo Congresso, com essa mesma medida.

    Abriu-se, à época, uma crise institucional que culminou com a realização das eleições antecipadas em que se saiu vitorioso o principal líder dos movimentos sociais, Evo Morales, com 53% dos votos. Atualmente, Morales comanda a campanha masista a partir do seu exílio na Argentina. Tentou disputar uma vaga de senador pelo departamento (província) de Cochabamba, mas teve sua candidatura bloqueada pela justiça eleitoral, por pressão do governo golpista.

    Contra e a favor

    As eleições estarão marcadas mais uma vez pela polarização entre os que estão a favor e contra o MAS. As pesquisas mais confiáveis apontavam, na segunda metade de setembro, que Arce tinha apoio para alcançar os 40% de votos suficientes para ganhar a eleição no primeiro turno, uma vez que o oponente mais próximo, Mesa, contava com apenas 26%. Pela lei boliviana, um candidato que obtenha 40% dos votos válidos é declarado vencedor, sem a realização de um segundo turno, caso alcance uma diferença de, no mínimo, 10% em relação ao segundo colocado.

    A divulgação dessa pesquisa levou Áñez a se retirar da disputa, em 17 de setembro, quando estava em quarto lugar nas intenções de votos, com cerca de 10%, e em queda. Em discurso pelas redes sociais, conclamou os bolivianos a se unirem ao redor do candidato que tiver mais chances de derrotar o MAS. “Se não nos unirmos, Morales volta”, alertou. Nesse momento, Camacho já se posicionava em terceiro lugar, com 14%, e não demonstrava a mínima vontade de desistir em favor de Mesa.

    Outras figuras da direita boliviana também estão (ou ainda estavam) na disputa, entre as quais o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e o pastor evangélico Chi Hyung Chung (de origem sul-coreana), ambos com índices magros de intenções de voto, em torno dos 3% a 4%, mas não totalmente desprezíveis. Nas eleições do ano passado, Chi obteve o terceiro lugar, com 9% dos votos.
    A unificação eleitoral das forças políticas conservadoras que se aliaram no golpe de 2019 é, de fato, indispensável para impedir que a esquerda reconquiste nas urnas o poder que lhe foi tirado pelo golpe. Na prática, essa é uma tarefa complicada, seja pelas ambições políticas envolvidas, seja pela rivalidade regional que divide a Bolívia entre a região andina marcada pela forte presença indígena, no oeste, onde se situa La Paz, e as planícies do leste, a região da Meia Lua, onde se destaca a cidade de Santa Cruz, reduto da elite branca do agronegócio e da direita mais agressiva.

    Mesa, com sua força concentrada no oeste, principalmente entre a classe média urbana, desponta como o herdeiro potencial dos votos de Áñez, o que o habilitaria a chegar em segundo lugar com uma diferença inferior a 10%, levando a eleição a um segundo turno em que a aliança da direita lhe daria grandes chances de derrotar o candidato do MAS. Para isso, no entanto, será necessário um acordo com Camacho, que lidera as pesquisas em Santa Cruz e está utilizando as eleições para fortalecer sua posição como líder regional e para ampliar o número de parlamentares sob seu comando.

    Nova liderança

    Seja qual for o resultado das eleições, uma provável consequência é o deslocamento de Morales da posição que vinha exercendo desde a primeira eleição presidencial, em 2005, como o líder incontrastável e absoluto de um amplo leque de atores da esquerda boliviana que se agregou politicamente com a criação do MAS, no final da década de 1990. Uma vitória de Arce consagrará uma nova liderança no país e no partido e, certamente, um novo estilo de ação política.

    A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018

    A conduta de Evo (como é chamado pelos simpatizantes), tanto no período anterior ao da crise em que foi derrubado quanto nos meses transcorridos desde então, é fator de discórdia no interior do MAS, conforme aponta Katu Arkonada, um militante de esquerda que emigrou do País Basco para se engajar nas fileiras masistas, onde se tornou uma referência no debate político. “É grande o descontentamento das bases”, escreveu recentemente. “Aconteça o que aconteça, mas sobretudo se ocorrer uma derrota, o MAS de Evo Morales deverá enfrentar um processo de reflexão e de autocrítica para não repetir os erros cometidos nos últimos tempos, tanto no governo como no exílio, um processo de renovação de dirigentes que vá bem mais além das burocracias”.

    Morales é o único, entre os integrantes do grupo de presidentes sul-americanos que simbolizavam o chamado “progressismo” – figuras como Chávez, Lula, Correa e o casal Kirchner, além dele próprio –, a ter a liderança questionada pelas próprias bases após o início da maré direitista na região. A relativa fragilidade política no pós-golpe tem a ver com um traço peculiar da inversão política ocorrida na Bolívia em 2019.

    Lá, a derrubada do governo progressista não foi antecedida por uma crise econômica nem por denúncias devastadoras de corrupção, como ocorreu no Brasil. A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018. Os casos de corrupção apresentados na mídia empresarial – alguns verdadeiros; outros, inventados – estiveram longe de causar o impacto verificado em outros países. Morales escorregou foi na política.

    Mobilização em queda

    Uma sublevação contra Evo Morales não estava no horizonte de ninguém. Mas, nas três semanas decisivas entre outubro e novembro de 2019, a oposição mobilizou-se com mais firmeza que as bases “evistas” que, depois de quase 14 anos no poder, foram perdendo capacidade de mobilização enquanto o Estado ia substituindo as organizações sociais como fonte de poder e burocratizando o apoio ao “processo de mudança”. Em poucas horas, aquele que foi o governo mais forte da Bolívia nos últimos 100 anos desmoronou por completo.

    Cinco anos antes, em 2014, Evo foi reeleito para um terceiro mandato com mais de 60% dos votos. Esse era um indicador de que, apesar das contradições e das dificuldades em avançar o “processo de mudança”, o líder indígena e camponês ainda possuía muita legitimidade entre a população. A direita não conseguiu propor um nome que pudesse vencer as eleições ou ao menos polarizar radicalmente o cenário político nacional, como aconteceu, respectivamente, na Argentina (com Mauricio Macri, eleito em 2015) e no Brasil, com a Operação Lava-Jato e a campanha do impeachment.

    Foi uma avaliação otimista do prestígio de Evo Morales, juntamente com a preocupação diante do cenário de avanço das forças de direita nos países vizinhos e de uma contraofensiva dos EUA em escala continental, o que levou o MAS, em 2016, a submeter a uma consulta popular a possibilidade de reeleição indefinida, o que viabilizaria a candidatura de Morales para um quarto mandato.

    O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino de nome Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A 18 dias do referendo, provou-se que era tudo mentira. Era tarde

    Pela Constituição boliviana, é permitida apenas uma reeleição para cargos executivos – e a primeira eleição de Morales foi excluída da contagem porque ocorreu nos marcos de uma legislação anterior. A cientista política Soledad Valdivia Rivera relembra que o presidente fechou o ano de 2014 com 75% de aprovação e o de 2015 com 65%, o que pavimentaria a chance de concorrer às eleições de 2019.

    Derrota no referendo

    Ao contrário do que esperava o governo, o referendo em 2016 foi a pedra de toque para a radical polarização do país. No dia 21 de fevereiro, o famoso 21F, a população decidiu pelo “Não”, ou seja, Evo Morales não poderia concorrer às eleições de 2019. Um resultado estreito, por uma diferença de 2,6%, pouco mais de 130 mil votos. Foi a primeira derrota de Morales. A interpretação de Rivera é bastante elucidativa sobre o que estava em jogo no referendo e quais as armas foram usadas. A autora indica que, entre outras coisas, ocorreu a participação ativa da mídia nas redes políticas que influenciaram os resultados do pleito, com a manipulação da opinião pública no chamado Caso Zapata.

    Tal episódio colocou em xeque a integridade da liderança política de Evo Morales por meio da montagem de um cenário novelístico moralista que envolvia sexo, abandono de filho e corrupção internacional, entre outras coisas. O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista da TV comercial apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino chamado Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A essa notícia, agregou-se em seguida uma outra de que Zapata teria utilizado sua ligação com o presidente para reivindicar vantagens em contratos do governo com uma empresa chinesa, para a qual (segundo dizia) teria trabalhado como lobista.

    Era tudo mentira. A criança jamais existiu, conforme a própria Zapata confirmou mais tarde, e a denúncia de corrupção não tinha pé nem cabeça.

    O fato é que o presidente e sua equipe não foram capazes de montar uma defesa adequada perante as acusações. Em suas declarações Morales (que é solteiro) se atrapalhou, não foi capaz de negar a existência de um filho abandonado e chegou a afirmar que recebeu a notícia de que o menino tinha morrido pouco depois do nascimento. A suposta mãe se recusou a apresentar a criança, alegando que fazia isso para proteger sua privacidade. Enfim, uma confusão dos demônios, que só se esclareceu quando, meses mais tarde, o próprio jornalista que fez a denúncia confessou que a certidão de nascimento era falsa.

    Em vez de aceitar a derrota no referendo, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”

    Aí, o estrago já estava feito. O timing da acusação, a apenas 18 dias do referendo, foi determinante para que a oposição fortalecesse a campanha e manipulasse a opinião pública a favor do Não.
    Não havia tempo para uma investigação adequada checar a veracidade das acusações. O papel da mídia no Caso Zapata foi decisivo para a vitória do Não. Antes da explosão do escândalo, as pesquisas ainda indicavam vitória do Sim, mesmo com toda a oposição articulada ao redor de um projeto comum: derrotar Morales.

    Interferência da mídia

    Soledad Valdivia Rivera, em livro sobre a política boliviana naquele período, conclui que o Caso Zapata demonstra como a mídia atua politicamente em favor da direita e, por outro lado, refuta as acusações frequentes de que Morales era um ditador e que impunha restrições à liberdade de expressão. Em seguida ao resultado positivo para a oposição, o Caso Zapata foi quase esquecido pelos meios de comunicação. Já tinha cumprido seu papel na cena política.

    Em vez de aceitar o resultado do referendo de 21F, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira política. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial, recorrendo ao Judiciário com o argumento de que o bloqueio a uma nova candidatura era uma violação aos direitos humanos, já que todos os cidadãos devem ter iguais possibilidades de concorrer aos cargos públicos. No final de 2017 o Tribunal Constitucional aprovou o recurso do presidente, numa decisão cujo efeito prático foi invalidar o resultado do 21F.

    Desde o ano anterior, um único tema já dominava completamente a agenda política do país: uma discussão interminável em torno da alternância ou da perpetuação no poder. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”.

    No campo da esquerda, hegemonizada pelo MAS, não houve espaço para discutir a possibilidade da indicação de um candidato alternativo para a sucessão. Sendo o partido um instrumento político dos movimentos sociais, a pressão das organizações camponesas e a força política de Morales, amparado em dois mandatos de forte crescimento econômico e distribuição de renda, além de uma política anticíclica que manteve a estabilidade, ofuscaram qualquer discussão sobre uma possível renovação no poder. O presidente negava a intenção de se perpetuar no palácio, indicando que esse seria o último mandato do binômio Morales-Linera e que despontavam nomes de jovens possíveis candidatos à sucessão em 2025: a já mencionada senadora Adriana Salvatierra e o líder cocalero Andrónico Rodríguez.

    Milícias violentas

    Entretanto, a insistência na candidatura de Morales promoveu uma mudança qualitativa na polarização política do país. Há indícios da formação de milícias violentas em todo período entre o 21F e as eleições de 2019, fenômeno explícito em algumas demonstrações antidemocráticas, de ódio, contra Morales e o MAS. O foco dessa oposição se situou na região de Santa Cruz, mais exatamente no Comitê Cívico, que se aglutinava sob a liderança de Camacho.

    Há ainda outro fator importante nessa história. A Bolívia apostou suas fichas do futuro na estratégia de industrialização do lítio no país, tendo como fundamento a vantagem comparativa de possuir as maiores reservas dessa matéria-prima no mundo. Apesar de o projeto avançar lentamente e ainda constar da esfera das perspectivas, o lítio entrou de vez no contexto da polarização política, quando outro comitê cívico, o de Potosí (ComciPo), imprimiu um tom de desafio às reivindicações ao redor do tema dos royalties da exploração de lítio para a região, acusando o governo de entreguista pela associação da estatal boliviana YLB com a empresa alemã ACISA. Marco Pumari, o líder do Comcipo, iniciou uma greve de fome justamente 20 dias antes das eleições do ano passado (mais uma vez, o timing perfeito).

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos e uma pequena vantagem acima dos 10% de diferença sobre o segundo colocado, Carlos Mesa. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano. Os movimentos de classe média ocuparam as ruas e começaram a organizar paralisações ao redor dos comitês cívicos, sob a liderança de Camacho. Agitou-se a denúncia de fraude nas eleições.

    Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da OEA foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano

    Morales se viu pressionado, pois, além da capilaridade, os protestos foram marcados por uma escalada de violência. Quando, acuado, o presidente se dispôs a aceitar a anulação do resultado e a concorrer em novas eleições, já era tarde. A oposição, sentindo a fraqueza do presidente e a ausência de mobilizações significativas em seu apoio, partiu para o golpe, com uma brutalidade e audácia que deixaram o campo masista em estado de choque.

    Encruzilhada eleitoral

    Agora o golpe boliviano tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição que terá um impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região. Aliás, a presença da liderança “progressista” no país vizinho é uma mudança qualitativa no cenário que rodeia a eleição boliviana e pode ser um elemento determinante para a afirmação dos resultados do pleito em caso de vitória do MAS, muito diferente do que aconteceu em 2019, quando o país estava cercado pelo véu Bolso-Macri. Isso, se os chefes políticos da oligarquia, assessorados de perto por operadores estadunidenses ligados à gestão de Donald Trump, não deflagrarem um “golpe dentro do golpe” (desconfia-se que o governo de Áñez esteja conspirando para declarar a ilegalidade do MAS), o que transformaria a Bolívia na primeira ditadura sul-americana ostensiva e escancarada no século 21.

    *Igor Fuser é professor no Bacharelado em Relações Internacionais e nos programas de pós-graduação em Energia e em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).
    *Fábio Castro é economista, doutorando em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor no ensino superior.

  • Que tipo de frente política o Brasil precisa?

    Que tipo de frente política o Brasil precisa?

    Que tipo de frente política o Brasil precisa?

    Milton Temer e Félix Sánchez apresentam suas posições nos próximos dois artigos

    1 – Bloco de esquerda, é com esse que eu vou!

    Por Milton Temer

    Frentes se formam contra um “quem” ou contra um “o que”; contra um déspota ou contra o regime como um todo. Contra a simples derrubada de Bolsonaro, ou contra ele e mais a essência de seu regime. Essa essência é fundada no pacote de contrarreformas antissocial e na degradação do patrimônio público e até da própria soberania territorial (como na entrega da base de Alcântara e na subalternidade militar a comandos estrangeiros).

    Para uma parte da oposição brasileira, o objetivo de derrubar Bolsonaro se limita a esse primeiro foco, numa solução lampeduseana para manter a essência do que vem sendo posto em prática pelo seu governo voltado a “tirar o Estado do cangote dos empresários”. Ou seja, em transformar o Estado em instrumento forte de opressão do capital sobre o mundo do trabalho.

    Nesse contexto, nada mais amplo do que defender um bloco de esquerda no confronto com os projetos autoritários em qualquer de suas formas. Contra o neofascismo, contra o neonazismo, ou contra algo mais próximo da realidade latinoamericana, o toscofujimorismo. É num Bloco de Esquerda que as forças populares se relacionam com as correntes moderadas para as ações táticas que se limitem à luta pela derrubada de Bolsonaro.

    Nada mais amplo do que defender um bloco de esquerda no confronto com os projetos autoritários em qualquer de suas formas. Contra o neofascismo, contra o neonazismo, ou contra algo mais próximo da realidade latino-americana, o toscofujimorismo

    Mas tais ações táticas não podem elidir o que já está em jogo nessa etapa preliminar. Qual o projeto para a fase posterior? Essa discussão já se dá no âmbito da direita e centro-direita quando se disputam nos diversos manifestos. Para alguns, uma formulação anódina, quase despolitizada, chegando até à necessidade de “correções” formais que não cheguem ao âmago da questão. Sem tocar na manutenção da essência do modelo macroeconômico radicalmente pró-grande capital, posto em prática a partir do segundo governo Dilma, aprofundado no governo golpista de Michel

    Temer, e radicalizado sob a égide do mercantilismo sem peias do Posto Ipiranga Paulo Guedes.

    Fim da legislação antipovo

    É a partir daí que a existência de um bloco de esquerda na frente se torna imprescindível. Pois, sem que ele se forme e se consolide, as lutas se manterão no terreno das notas e manifestos na pressão sobre as ditas instituições republicanas.

    Na saída lampedusiana do “muda tudo para não se mudar nada”, tudo se concretizaria em mais uma fatídica “transição pelo alto” com que fomos brindados na instalação da Nova República, que nos levou ao neoliberalismo tardio de Collor e FHC nos anos 1990, e à rendição ideológica de Luís Inácio já no século XXI. Desse caldo, o povo brasileiro não resiste a beber mais. E vai beber, mergulhando no desespero e na barbárie, se a esquerda combativa se mantiver nos limites retóricos, condenatórios da pressão que vale, nas mobilizações de rua, esperando que o candidato a ditador autorize suas iniciativas.

    Não há alternativa civilizatória para o Brasil pós-pandemia que não a que passe pelo fim da legislação predadora e antipovo dos últimos anos, sem o cancelamento do famigerado teto de gastos e da contrarreforma trabalhista, sem uma reforma tributária que vire de cabeça para baixo a escala de taxação do imposto de renda, aliviando os que vivem de salário, e impondo impostos pesados sobre o rentismo e sobre os lucros e dividendos, hoje isentos.

    Não há alternativa civilizatória sem uma investida sobre os privilégios do sistema de mercado. Não há alternativa civilizatória, enfim, ao restabelecimento do Estado como instrumento indutor, não do desenvolvimento voltado para um indefinido “crescimento”, mas para a garantia de políticas públicas estratégicas na área social.

    Não há alternativa civilizatória, enfim, enquanto não se colocar um fim na esbórnia dos meios de comunicação que operam por concessão de serviço público, e sustentando a verdadeira democratização da mídia por meio da garantia do ponto e contraponto em todos os temas que digam respeito ao interesse público.

    E isso tudo só será levado em conta se houver um bloco de esquerda disputando políticas na frente de esquerda. Luta que Segue!

    Milton Temer é jornalista e ex-deputado federal (1995-2002)

    2 – A tarefa da hora: uma ampla frente contra a Covid-19 e Bolsonaro

    Por Félix Sánchez

    Vivemos um tempo histórico peculiar, numa época de paradoxos que colocam a sociedade brasileira diante da degradação da uma vida democrática. Nossa democracia nunca foi plena, foi sempre dolorosamente incompleta a despeito do mantra que proclama uma suposta plenitude do funcionamento das instituições. É preciso reconhecer essa limitação histórica da democracia, mesmo diante do bolsonarismo encastelado no poder Executivo.

    A necessidade de massificar a campanha pelo Fora Bolsonaro é um óbvio ululante. Bolsonaro e o bolsonarismo ferem cotidianamente o mais elementar sentido de democracia, mesmo esta nossa, ainda mais limitada depois do golpe institucional de 2016, que derrubou um governo constitucionalmente eleito.

    Naquela ocasião, tivemos uma participação ativa em uma campanha conservadora intensa que, depois, já em 2018, diante do fiasco do governo Temer, promoveu a convergência da extrema direita proto-fascista com os cavaleiros da ordem que haviam cerrado fileiras no golpe de 2016 em nome de uma colossal reversão de direitos sociais e trabalhistas.

    Os golpistas e apoiadores da conspiração que resultou no último ataque tiveram a missão de definir uma nova correlação de forças entre as classes sociais. Era preciso precarizar direitos e, assim, aguçar as violências cotidianas e estatais, numa sociedade habituada a desconhecer e até renegar setores amplamente majoritários composto por negros, mulheres, idosos, migrantes e LGBTIQ.

    Grandes segmentos empresariais e políticos tradicionais apostaram, com Bolsonaro, numa opção capaz de aumentar estrondosamente a exploração da mão de obra livre do país e no sepultamento dos direitos e condições de vida em nome do fortalecimento da competitividade neoliberal do Brasil.

    Chegamos ao absurdo de o ministro da Saúde ser um general que não é médico. Algo que não se vê em nenhum lugar do mundo. O senso comum da sociedade clama em todo canto para o Brasil acabar com o governo Bolsonaro e suas políticas genocidas

    A resposta ao fracasso monumental da aposta golpista de 2016, expressa no fracasso do governo Temer, dinamitou a opção eleitoral tucana de Alckmin em 2018. E, assim, só restou a essa elite a solução do tenente expulso das Forças Armadas para ser capitão da reserva – figura que cultivou durante quase 30 anos concepções extremistas, anticientíficas, de violência saudosa da implantação de um amalucado gulag no país.

    Ultraliberal e antidemocrático

    Tudo isso fez de Bolsonaro o presidente. Seu governo é uma amálgama política alicerçada na implementação de uma política ultraliberal privatista, antidemocrática e antipopular. Na mal-ajambrada composição do bolsonarismo oficial, encontram-se os objetivos de preservar os interesses do agronegócio, de privatizar tudo o que for possível, de aplicar uma política econômica que estimule a lucratividade do capital financeiro e de dar continuidade aos ataques aos direitos sociais dos trabalhadores formais e informais precarizados da larga e quase unânime legião de milhões que compõem nossa poderosa classe trabalhadora.

    Para piorar a vida, abateu-se sobre a humanidade e o país uma pandemia que afeta a todas e todos. Isso gerou uma formidável crise econômica que se soma à crise da saúde, trazendo uma gigantesca onda de desemprego em todos os países e a demanda por serviços de saúde capazes de salvar as vidas ameaçadas pela Covid-19.

    Nunca como hoje foi tão necessário ter, em nosso país, um governo comprometido em priorizar recursos e esforços para enfrentar a pandemia.

    O governo Bolsonaro nada fez. Pior: negou a gravidade da doença, transformou o Ministério de Saúde em cabide de empregos de militares enquanto em todos os cantos do país só tem morte e abandono. Chegamos ao absurdo do Ministro da Saúde ser um general que não é médico. Algo que não se vê em nenhum lugar do mundo.

    Sem falar das populações que moram na Amazônia, que foram entregues ao garimpo, à mineração e ao desmatamento, que põem em risco o povo e a riqueza desse pedaço fundamental da vida do planeta.

    O senso comum da sociedade clama em todos cantos do Brasil e do mundo a acabar com o governo Bolsonaro e suas políticas genocidas responsáveis pela morte e o sofrimento da maioria. Nossa força deve promover a larga unificação de todos para acabar com o governo Bolsonaro já. Chega dele e seus aliados que promovem morte e destruição dos nossos direitos e das nossas vidas.

    Fazer uma ampla frente contra a Covid 19 e a morte que una todas e todos é a imensa tarefa nessa hora. Fora Bolsonaro!

    Félix Sánchez, paraguaio e paulistano por opção. Foi fundador e dirigente do Sindicato de Jornalistas do Paraguai. É professor de Sociologia e militante da Coalizão do Clima

     

  • Bolsonaro: caos e continuidade

    Bolsonaro: caos e continuidade

    Bolsonaro: caos e continuidade

    Por Luís Felipe Miguel

    A continuidade do governo Bolsonaro significa mais crise, mais mortes e disseminação do caos. Seus apoiadores seguem propagando o confronto, sob a velha cantilena de defesa da “ordem”. A cúpula das Forças Armadas parece ter decidido permanecer fiel ao presidente, ao mesmo tempo em que ameaça o país com algum tipo de intervenção mais profunda. Os movimentos pela saída da extrema direita do poder não podem servir para sacramentar a manutenção de seu programa antipopular, retirando de cena as reivindicações democráticas e igualitárias do campo popular

    Baixar a Revista Socialismo & Liberdade n.29

    Um dos temas centrais do discurso da direita, em particular do setor mais extremado, que funda boa parte do apelo de massas, é a ordem. A extrema direita promete esmagar o crime, restaurar as hierarquias e silenciar os movimentos contestatórios. Autoridade e disciplina garantiriam o bom funcionamento da sociedade. Na Itália de Mussolini, os trens partiam no horário: como certa vez escreveu Fernando Pessoa, “os fascistas matam seu pai, mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro”. No Brasil, no entanto, um ano e meio de governo Bolsonaro nos empurraram na direção do caos. A pandemia global do novo coronavírus, que recebeu do presidente e de sua entourage uma resposta não apenas incompetente ou negligente, mas francamente criminosa que acelerou um processo já em curso.

    Herdeiro indesejado do golpe de 2016, cujos líderes projetavam uma saída “civilizada” à direita por meio de alguém com o perfil de Geraldo Alckmin, Bolsonaro se mostrou instrumental para o trabalho de destruição ao qual foi capaz de imprimir ritmo ainda mais veloz do que Temer

    Herdeiro indesejado do golpe de 2016, cujos líderes projetavam uma saída “civilizada” à direita, com alguém com o perfil de um Geraldo Alckmin, Bolsonaro se mostrou instrumental para o trabalho de destruição (dos direitos, das políticas sociais, da ordem constitucional pactuada em 1988), ao qual foi capaz de imprimir ritmo ainda mais veloz do que Temer. Mas o governo é congenitamente inapto para promover uma pacificação, seja entre os grupos integrantes da coalizão golpista, seja na relação com os grupos dominados. Para tanto, contribuem o comportamento belicoso e o etos machista que são centrais na identidade do bolsonarismo, a falta de traquejo político do núcleo do governo e, em especial, o descompasso entre as prioridades algo paroquiais do círculo íntimo de Bolsonaro e os projetos ambiciosos dos grupos que se aliaram a ele, vindos da aristocracia financeira, do agronegócio e do lavajatismo.

    Continuidade insustentável

    Com a crise sanitária, tornou-se insustentável a continuidade do governo Bolsonaro. A cada dia, ela se conta em mais mortes. Os esforços do sistema de saúde são sabotados por palavras, por exemplos, por omissões e por ações. As tensões com os outros poderes se transmutaram em conflito aberto. Sérgio Moro, que era surrealmente o principal ativo de credibilidade do governo, demitiu-se. Mesmo economistas conservadores admitem que o fundamentalismo de mercado esposado por Guedes é impróprio para enfrentar a nova situação. A Rede Globo e outros grandes veículos de imprensa passaram a advogar pela retirada do presidente. Diante disso, impõe-se a pergunta: por que Bolsonaro não cai?

    O primeiro fator a ser considerado é a manutenção de uma considerável, ainda que cada vez mais minoritária, base popular. Comentaristas políticos e jornalistas têm difundido uma suposta “lei” sociológica, de que um processo de impeachment só vinga caso as pesquisas de opinião detectem menos de 15% de apoio ao presidente. Não creio que seja algo tão mecânico, muito menos que as respostas a uma enquete resolvam a questão.

    O fato de que uma proporção tão expressiva de pessoas ainda avalie positivamente um governo tão grotesco merece atenção. Uma parcela tende a aprovar qualquer governo, por servilismo introjetado ou por confundir apoio ao presidente de plantão com “torcer pelo país”. Outra, é vítima da confusão, sabidamente usual, entre Estado e governo – assim, o auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia, obtido pela oposição no Congresso contra forte resistência de Guedes, turbinou a popularidade de Bolsonaro. Por fim, há a fatia do “bolsonarismo raiz”, cativada pelo discurso de ódio e de reafirmação das hierarquias sociais e prisioneira dos circuitos de desinformações próprios da chamada “pós-verdade”.

    O confronto como métrica

    Mais importante do que a quantidade de adeptos, porém, é o ânimo aguerrido da base bolsonarista. Desde o começo do governo, mas crescentemente conforme sua posição fica mais incerta, Bolsonaro alimenta entre os seguidores a disposição para o confronto. Nos últimos tempos, tem estimulado a formação de grupos armados, o que converge para a antiga suspeita de uma relação íntima com milicianos do Rio de Janeiro. A radicalização se completa com os acenos, sempre encobertos, mas cada vez mais frequentes, a grupos neonazistas e supremacistas brancos, por parte de Bolsonaro e de seu círculo íntimo.

    Bolsonaro alimenta entre os seguidores a disposição para o confronto. Nos últimos tempos, tem estimulado a formação de grupos armados, o que converge para a antiga suspeita de uma relação íntima com milicianos do Rio de Janeiro. A radicalização se completa com os acenos, sempre encobertos, mas cada vez mais frequentes, a grupos neonazistas e supremacistas brancos. A estratégia é de intimidação

    A estratégia, portanto, é de intimidação. Converge para ela o segundo fator a ser considerado, o apoio das Forças Armadas e das polícias. Bolsonaro fala diretamente aos praças, suboficiais e oficiais inferiores do Exército, assim como aos policiais. São setores sensíveis ao discurso pró-violência, contrário aos direitos humanos e às minorias. Não é algo fortuito. Como observou Poulantzas, os dispositivos repressivos do Estado capitalista parecem em geral agir de forma “falha”, com excesso de brutalidade, racismo e viés de classe escancarado. Eles deixam sistematicamente de cumprir a lei pela qual deveriam zelar – mas é essa falha que permite que eles estejam sempre disponíveis nos momentos em que as classes dominantes decidem caminhar no rumo da fascistização.

    Com a cúpula militar, em especial da força terrestre, a relação é mais complexa, embora haja forte concordância no autoritarismo, no anticomunismo e mesmo no alinhamento automático aos Estados Unidos. Cabe observar que o vice-presidente, Hamilton Mourão, que é razoável ver como um dos principais representantes do generalato no governo, mudou de postura. Se no início do mandato fez movimentos para se apresentar como alternativa a Bolsonaro, adotando um discurso mais conciliador e mais racional, hoje marca distância de maneira muito mais sutil e não poupa ocasiões para afirmar de público sua lealdade e solidariedade.

    Generalato e governo

    Embora sejam reportadas tensões internas e constrangimento com atitudes e declarações, o generalato parece ter decidido cerrar fileiras com Bolsonaro. Isso tem tomado a feição de frequentes notas e declarações, cifradas e não tão cifradas, indicando que qualquer tentativa de deposição do presidente, por decisão do Legislativo ou do Judiciário, enfrentará oposição militar. Em interpretações mais ousadas, o sistema constitucional de controles é equiparado a um confronto entre poderes, que exigiria uma intervenção moderadora – papel que as forças armadas atribuíram a si mesmas em muitos momentos da história brasileira. Cumpre lembrar que, tendo adotado um perfil discreto durante a deflagração do golpe de 2016, os militares passaram a uma exposição maior já durante o governo Temer. Basta pensar no tuíte do general Villas-Boas ameaçando o STF no caso da prisão de Lula – e do agradecimento “misterioso” que Bolsonaro fez a ele durante a transmissão do cargo de ministro da Defesa.

    O generalato parece ter decidido cerrar fileiras com Bolsonaro. Isso tem tomado a feição de frequentes notas e declarações, cifradas e não tão cifradas, indicando que qualquer tentativa de deposição do presidente, por decisão do Legislativo ou do Judiciário, enfrentará oposição militar

    Muitas vezes a questão se coloca como sendo definir o quanto há de blefe nesses pronunciamentos e o quanto há de disposição efetiva para uma intervenção de força. Creio que, apresentada dessa forma, a questão está deslocada. O blefe, sobretudo quando surte efeito e quando não leva a uma punição, já é uma forma de intervenção. E permite tanto que os limites do papel político dos militares sejam paulatinamente distendidos quanto que um novo golpe seja construído como possibilidade dentro do generalato. As escaramuças entre ministros do Supremo e porta-vozes militares do governo sobre a interpretação do artigo 142 da Constituição – de fato um texto ambíguo, fruto ele próprio da pressão castrense – já mostram uma situação anômala. Afinal, pelo nosso ordenamento institucional não cabe dúvida de que a palavra final sobre a interpretação do texto constitucional caberia à corte máxima do país. Assim, a estratégia de intimidação toma com clareza a feição de uma chantagem, pela qual a continuidade do governo, a despeito das evidências que sustentam as iniciativas tanto para a cassação da chapa quanto para o impeachment, seria o preço a pagar para que não ocorra um novo golpe.

    Aceita a chantagem, a democracia brasileira, que nos últimos anos sofreu tantos reveses que é difícil justificar a permanência do rótulo, torna-se definitivamente tutelada. Partindo do entendimento de que a disposição das forças armadas para uma nova intervenção de força, nos moldes de 1964, não está formada, fica claro que a ameaça só será debelada com uma resposta vigorosa das instituições e da sociedade civil. A nova pergunta que se impõe, então, é por que a reação às ameaças do bolsonarismo se mostra tão pífia. Creio que aqui se torna central o terceiro e mais importante fator a ser considerado: o fato de que, entre os grupos dominantes do país, tanto no empresariado como na elite política, a necessidade de retirar Bolsonaro na presidência é sentida, sobretudo, dada a irracionalidade no combate à pandemia, mas contrabalançada por outras considerações.

    A inflexão do golpe

    Para entender isso, é necessário ter em mente que o grande momento de inflexão da política brasileira recente não foi a eleição de Bolsonaro, mas o golpe de 2016. Este colocou em marcha a criminalização da esquerda, a macarthização da vida política, a instrumentalização aberta do aparelho repressivo de Estado e a tolerância ou mesmo o estímulo à agressividade da direita radicalizada, elementos sem os quais não seria possível a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018. Seu sentido final foi fazer com que o campo popular deixasse de ser admitido como interlocutor legítimo no debate político, permitindo a retirada unilateral, sem qualquer espaço para negociação, de tantas conquistas históricas.

    Bolsonaro foi, de certa maneira, um acidente de percurso. Programada para ser uma coadjuvante, a tropa de choque acionada nos momentos necessários, a extrema direita ganhou o proscênio quando o eleitorado mostrou que se recusaria a cumprir o papel no script, elegendo para a presidência um conservador civilizado como Alckmin. Ao optarem pelo então candidato do PSL, em vez de por um moderado disposto a negociar como Fernando Haddad, as classes dominantes deixaram claro que não estavam dispostas a recuar um milímetro no programa de redução de direitos vitorioso com o golpe.

    Os excessos do ex-capitão eram desagradáveis, mas Guedes entregava as “reformas” desejadas e os movimentos populares eram mantidos na defensiva. A pandemia alterou o quadro. Bolsonaro está empurrando o país para um desastre sanitário inimaginável e mesmo Guedes, cuja incompetência como gestor econômico não pode mais ser disfarçada, ficou menos atraente.

    A solução para a crise, de acordo com o projeto da nova oposição de centro-direita, é retirar Bolsonaro e manter o Brasil do pós-golpe. Violência estatal menos escancarada, menos irracionalidade no poder e aceitação ritual dos direitos humanos. Tiramos Bolsonaro e seguimos em frente, com CLT despedaçada, desigualdades ampliadas, Estado subfinanciado e conspiração judicial contra a esquerda

    Há, então, um movimento duplo. Por um lado, tenta-se usar o que resta da institucionalidade derivada da Constituição de 1988 para impor limites ao bolsonarismo no poder. O Supremo, o Congresso Nacional e, em alguma medida, os governadores estaduais têm agido nesse sentido. É um caminho, no entanto, restrito, dados os amplos poderes que nosso arranjo legal confere ao presidente da República. Bolsonaro pode ser contido, mas não tutelado: sua margem de manobra permanece ampla.

    Por outro lado, tenta-se garantir que a eventual saída de Bolsonaro do cargo não implicará a perda do terreno conquistado pelas classes dominantes com o golpe. É o objetivo que preside a construção de uma “frente ampla” que não coloque em questão a retração de direitos, o desmonte do Estado social ou mesmo a aberta instrumentalização política de seu aparato repressivo.

    Bode na sala

    A necessidade imperiosa de imprimir uma direção menos irracional ao combate à crise sanitária, que dá sentido de urgência à retirada do ex-capitão da presidência, tornou tentadora a ideia da frente. A velha hierarquização das lutas, em que a obtenção das liberdades democráticas tem prioridade sobre a defesa dos direitos da classe trabalhadora e de outros grupos dominados, foi de novo posta em cena. Não cabe aqui discutir o equívoco dessa hierarquização, apoiada numa leitura redutora da separação histórica entre o político e econômico, esposada em geral por pessoas objetivamente privilegiadas pelo padrão de desigualdades vigente no Brasil. Basta anotar que, caso essa compreensão triunfe, Bolsonaro está pronto para cumprir o último serviço aos golpistas de 2016: ser o bode na sala.

    A solução para a crise, de acordo com o projeto da nova oposição de centro-direita, é retirar Bolsonaro e manter o Brasil do pós-golpe. Violência estatal menos escancarada, menos irracionalidade no poder e aceitação ritual dos direitos humanos. Tiramos Bolsonaro e seguimos em frente, com CLT despedaçada, desigualdades ampliadas, Estado subfinanciado, conspiração judicial contra a esquerda. Em especial, a disputa política continua tutelada de maneira a excluir, de antemão, o campo popular – e, portanto, deixar caminho aberto para o aprofundamento de todas as desigualdades. O paralelo com as Diretas Já, evocado no manifesto do “Juntos” publicado nos jornais brasileiros no dia 30 de junho, é equivocado. As Diretas Já foram um movimento amplo em busca de um objetivo pontual, a volta das eleições diretas para presidente, que visava alargar e democratizar a disputa política. Para que isso ocorra hoje não basta retirar Bolsonaro da presidência. É preciso, no mínimo, restaurar a plena vigência da Constituição de 1988, o que, por sua vez, requer o desfazimento do golpe. Trata-se de reabrir caminhos para a luta popular e para a construção de um Brasil menos injusto e menos violento. Abrir mão de assumir esse discurso é abrir mão da disputa política e aceitar os limites que a direita impõe.

    As classes dominantes apresentam essa plataforma limitada de ação conjunta como “pegar ou largar”. Ela negocia em condições de força – não é à toa que exibe o adjetivo “dominante”. Mostra que pode se acomodar com Bolsonaro, se nós não aceitarmos todas as suas condições. Não por acaso, no momento em que crescentes setores da esquerda demonstraram relutância em aderir à “frente ampla”, o presidente do PSDB, deputado Bruno Araújo, anunciou em entrevista que seu partido defendia a permanência de Bolsonaro e Mourão no cargo até o final do mandato.

    Há, porém, limites na possibilidade dessa acomodação com Bolsonaro. Se ela fosse tão tranquila, os acenos à derrubada não estariam nem sendo feitos. O Brasil está se tornando um pária no sistema internacional. Está caminhando para o colapso, com a gestão obtusa e criminosa da crise sanitária e econômica – e, embora as palavras sejam fortes, não há nelas exagero retórico.

    Objetivos e diferenças

    A classe dominante tem mais condições de pretender que pode prosseguir com essa situação indefinidamente do que de fato estendê-la. Por isso, submeter-se a seu programa não é a única alternativa. É possível afirmar a disposição por ação conjunta em relação a um objetivo pontual – derrubar Bolsonaro – sem deixar de reafirmar as diferenças profundas e irreconciliáveis, sem silenciar as reivindicações democráticas e igualitárias do campo popular, sem compactuar com a normalização dos retrocessos. Na verdade, a campanha do “fora, Bolsonaro”, articulando as premências do momento com um programa igualitário e democrático, tem condições de renovar o protagonismo do campo popular e de recolocá-lo do centro do tabuleiro político.

    O momento é desafiador para o campo popular, que acumula derrotas históricas nos últimos anos. A democracia eleitoral sob o capitalismo, como se sabe, une o voto como forma de legitimação política com o veto real da classe burguesa à ação do Estado. No Brasil, este veto se estendeu tanto que passou a interditar até mesmo o “reformismo fraco” do petismo no poder

    O momento é desafiador para o campo popular, que acumula derrotas históricas nos últimos anos. A democracia eleitoral sob o capitalismo, como se sabe, une o voto como forma de legitimação política com o veto real da classe burguesa à ação do Estado. No Brasil, esse veto se estendeu tanto que passou a interditar até mesmo o “reformismo fraco” do petismo no poder. Se o poder de veto não for contido, o que depende da força do movimento popular, o poder do voto será sempre irrelevante.

    Brasília, 15 de junho de 2020.

    *Luís Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e autor de O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019), entre outros livros.

  • Leia a Revista Socialismo & Liberdade n.29

    Leia a Revista Socialismo & Liberdade n.29

    PRECISAMOS DE HUMANIDADE E SOLIDARIEDADE, POTENCIALIZANDO A VIDA

    Francisvaldo Mendes de Souza, Diretor-Presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Apresentamos o número 29 da revista Socialismo e Liberdade. No meio desta política destruidora que faz a pandemia ser devastadora, apostamos na ciência e na ação coletiva que podem trazer otimismo e avançar em conquistas, direitos e dignidade humana. É nessa estrada que apresentamos exemplos de solidariedade e humanidade, como o professor Florestan Fernandes e a ótima entrevista com Edmilson Rodrigues. São fontes de inspirações para o estudo, o conhecimento, a formação, ações coerentes e práticas coletivas que criam fortes ondas na maré contrária que predominam no capitalismo.

    Mas, para além disso, avançamos na política. A unidade de todas as pessoas que vivem da venda da força do trabalho é elemento central para superação da ordem que nos é imposta. Mais que isso, o mundo clama por democracia e humanidade para fazer com que a vida exista e seja cada vez mais potente. Por isso, apresentamos análises da política que articulam as condições de vida na periferia e o bom debate sobre a ação de superação do caos, desgovernos e da necropolítica que predomina no mundo.

    O desafio colocado para a esquerda socialista é de grande importância e com vulto tão amplo que há poucas vezes, no tempo da cronologia humana, que podemos encontrar referências que se igualam a situação que nos toma hoje. Sabemos que formação, organização e ação coletiva são caminhos que orientam práticas radicais para a democratização progressiva em todas as dimensões da vida. Mas precisamos encontrar a tonalidade que nos unifique e seja inspiradora para movimentar ações assertivas que nos faça avançar em transformações.

    Queremos acabar com esse modelo que toma o mundo e consegue aparecer como normal a desigualdade na sociedade e presente na mente da maioria do povo, criando a inverdade de acúmulo de riqueza de uns e a pobreza da maioria como fruto da natureza, mas que é fruto do capitalismo. O capitalismo não é um “palavrão”, mas um conceito que precisamos entender na profundidade e raiz para transformar e superar. Esse sistema que hoje toma os continentes e aparece como se não houvesse alternativa e que toda disputa existente se limita ao rumo, ao formato e à organização é uma inversão profunda do real que só o conhecimento pode mostrar o quanto essa vocação que predomina contra a vida precisa ser superada pela política a favor da vida.

    Quando falamos das ruas, por exemplo, não estamos incentivando que sejamos irresponsáveis no meio da imposição de doença e morte que a política hegemônica faz ampliar em tempo de vírus.

    Ao contrário, estamos usando o símbolo de ação que nos motiva de potência e otimismo nesta fase e que busque o verdadeiro sentido de viver.

    Apostamos nas pessoas, as que vendem a força do trabalho e esta é a única mercadoria que possuem para viver. Nossa aposta é coletiva e solidária e tem chamas poderosas de otimismo para reconhecer a diversidade dos sujeitos da transformação e do avanço da humanidade, potencializando a vida. É isso, simples assim, somos socialistas. Apostamos na plenitude da dignidade humana em todas as condições materiais e espirituais para que a natureza seja transformada a favor das pessoas e não para a exploração, como predomina neste mundo, com o capitalismo.

    Dessa forma, somos defensores da mais profunda democracia. Construiremos coletivamente um mundo no qual as pessoas vivam e façam da vida um grande mar de criatividade, com conquistas que bordem nossas diferenças com um grande formato de força e com a qualidade que construímos na unificação. A inteligência coletiva, com toda a diversidade que envolve as pessoas que precisam vender a força do trabalho para sobreviver, forma-nos como classe nesse processo rico de consciência coletiva e é a nossa aposta para superar governos, parlamentos, judiciários ou qualquer aparelho de Estado que se volte para dominar e controlar as pessoas de forma autoritária por meio das leis que são aplicadas contra a maioria do povo. Vamos superar esse Estado contra a vida criando nossa inteligência coletiva e apostando nas mudanças. Nossa revista é uma contribuição para esse fim e segue mais este número para contribuir com todas as pessoas que podem dizer sim à revolução.

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  • Leia a Revista Socialismo & Liberdade n.28

    Leia a Revista Socialismo & Liberdade n.28

    PARA SUPERAR A BARBÁRIE: SOCIALISMO E LIBERDADE

    Francisvaldo Mendes de Souza, Diretor-Presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco

    Apresenta-se aqui a revista SOCIALISMO E LIBERDADE, número 28. O tempo de pandemia nos consome, mas, além disso, as surpresas do desgoverno no Brasil nos assustam. Até onde pode piorar? As atitudes do governo federal em pleno século XXI, se alterna entre comédias e tragédias de demissões e renúncias com falas e frases feitas e desfeitas. Lamentavelmente, essas são as marcas do tempo que misturam as margens do capitalismo atual com a situação política no Brasil. E, para provocar os desafios, um inimigo à vida que não é visto a olho nu, chega com doenças e mortes.

    Neste momento que a superação exige ainda mais unidade, solidariedade e companheirismo, contribuições para formação, organização e pistas de ações são alimentos para o vazio de alternativas políticas à esquerda. Aprendemos e precisamos aprender mais, que o socialismo é a alternativa para a superação da barbárie que o capitalismo cria à vida das pessoas. É necessário aprender mais e sempre mais coletivamente, pois, principalmente neste tempo de pandemia, é fundamental saber e nos apoiar em organização para que todas as trabalhadoras e trabalhadores tenham certeza de que não estão só. Fazer ampliar a energia de transformação neste momento é um desafio que precisamos abraçar, por isso esta edição apresenta insumos de reflexão, debates, formação, organização e ação.

    Ficar em casa é uma necessidade de saúde pública. Não podemos aceitar a utilização dos efeitos da pandemia para explorar, ainda mais, os trabalhadores, garantindo os ganhos dos milionários.

    É urgente ir além, por isso, em nossa pauta, taxar os milionários em geral para que o Estado invista na defesa da vida, faz-se necessário. O programa emergencial para enfrentar a pandemia ainda é insuficiente àqueles que vivem na informalidade do mercado de trabalho. Acabar com o vírus e assegurar saúde à população, exige medidas firmes em defesa da vida da maioria das pessoas e, por esse motivo, pensar a economia a parte da situação das pessoas é excluí-las ainda mais da sociedade.

    Certamente, o Estado já está seguindo a cultura da propaganda da morte e a prática do extermínio de trabalhadoras e de trabalhadores, o que não é uma novidade da pandemia. Todavia, com a situação atual, os setores dominantes apostarão em retirar a responsabilidade da política e colocá-la no vírus. Isso é mais uma mentira que só pode crescer com desconhecimento e com informações falsas.

    Trata-se, portanto, de radicalizar a democracia e reforçar os setores que defendem a vida acima do lucro em todos os momentos. Nós, do PSOL, convencidos da barbárie criada pelo próprio capitalismo, acreditamos que apenas o socialismo, com liberdade e democracia, pode ser a superação. Porém, somos conscientes que este momento precisa ser ampliado com formação, organização e ações democratizantes. Dessa forma, nosso desafio é fazer com que a solidariedade e a força coletiva sirvam como baldes inspiradores da consciência em favor da vida, hoje e sempre.

    O imperialismo está em disputa que ameaça o atual bloco histórico de dominação e o governo do Brasil apoia a hegemonia decadente dos EUA, este com poder de organização da exploração e dominação no mundo. Nós temos que curvar essa vara por completo. A defesa da vida precisa sair vencedora e trazer oxigênio para a política crescer com raios de esquerda e revolução transformadora.

    São bem-vindas todas as contribuições que forem apresentadas para o crescimento da consciência e atuação na formação e ampliação da organização para ações coletivas vitoriosas, hoje e amanhã. Não podemos cair no discurso fácil em troca da defesa da democracia. Dessa forma, seguiremos apostando na transformação da maioria social política no Brasil.

    Portanto, seguiremos coletivamente e firmes com nossa estratégia socialista para um mundo que a potência humana criativa seja algo real e verdadeiro, com respeito às diferenças e com a mais plena convivência entre as pessoas que atuam para a transformação. Somos nós, os que vivem da venda da força de trabalho, os sujeitos estratégicos para alargar as vagas abertas a favor da maioria das pessoas.

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  • A política internacional e a pandemia do coronavírus

    A política internacional e a pandemia do coronavírus

    A política internacional e a pandemia do coronavírus

    Quais os efeitos imediatos do contágio da Covid-19 nas disputas globais? A crise revela não apenas o crescimento de tensões diplomáticas, como aguça disparidades dentro de cada país. O atraso ou ineficácia de ações governamentais se traduz em aumento do número de mortes e desastres na economia, com elevação dos índices de desemprego, falências e miséria

    Por Flávio Rocha de Oliveira*

    A epidemia global do novo coronavírus afeta o planeta em vários âmbitos: sanitário, social, econômico e político. Desde o momento em que as primeiras informações deram conta de que um vírus havia surgido na China, até à situação de pandemia no final de junho, mais de 9 milhões de casos foram diagnosticados, com cerca de 500 mil mortes nesse período, o que implica, grosseiramente, uma porcentagem de óbitos da ordem de 5,4%. São dados globais e provavelmente alguns países e regiões terão porcentagens ainda maiores, dependendo de vários fatores.
    A pandemia causada pela Covid-19 começou e está se desenvolvendo numa conjuntura internacional marcada por uma “nova era” de competição entre as grandes potências. Os três grandes protagonistas são a China, os EUA e a Rússia.

    Apesar de serem os três atores mais poderosos num agregado de fatores (poder militar, recursos naturais, tamanho da população, presença geopolítica, economia etc), eles não estão sozinhos nessa disputa. Potências regionais, com variados graus de capacidades, também se tornaram protagonistas: Japão, Coréias, Índia, Austrália, Irã, Arábia Saudita, Turquia e Brasil. A título de informação, apenas alguns têm procurado aumentar a sua influência nos primeiros anos do século XXI. E há, ainda, a existência de grupos sociais e interesses econômicos que agregam complexidade a essa situação.

    O contexto imediato

    As indicações de que uma cepa completamente nova de um vírus havia sido descoberta na China começaram a ganhar os noticiários em dezembro de 2019. Um mês depois, a China já havia reconhecido a extrema gravidade do problema. No dia 23 de janeiro, o governo central decretou um lockdown em Wuhan, o epicentro da epidemia, e em outras cidades vizinhas. Essa medida afetou diretamente cerca de 57 milhões de habitantes. A título de comparação, a Colômbia possui cerca de 49 milhões de habitantes, ou seja, Beijing colocou em quarentena forçada um número de pessoas maior do que o número de habitantes do nosso vizinho sul-americano.

    Ao conseguir ser bem-sucedida em estancar o número de mortes dentro de suas fronteiras, a China vai além: como é o grande centro produtor de manufaturas no mundo, e inclusive de produtos de saúde, ela alia essa posição singular com a experiência de política pública emergencial no caso da Covid-19 e passa a oferecer ajuda aos países europeus, com destaque para a Itália, e a outros governos.

    Com o avanço da epidemia, declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março, as desigualdades existentes entre os países e dentro dos países ganham destaque. Desigualdades no tocante ao poder político, a capacidades econômicas e tecnológicas e as divisões entre as classes sociais e as etnias são escancaradas. Fica claro que os EUA são lentos na reação inicial e têm que lidar com desigualdades brutais dentro da sua própria população

    O coronavírus se propaga rapidamente fora da China. Quando chega a Europa, o mundo assiste ao impacto que a expansão da doença tem sobre os sistemas de saúde na Itália, Espanha, França e Reino Unido, para citarmos apenas alguns. Isso acontece entre fevereiro e abril com velocidades crescentes. Também, deve-se levar em conta que a prevalência do vírus se concentra mais em algumas regiões desses países do que em outras.

    O vírus na América

    Segundo matérias nos principais jornais norte-americanos, como o New York Times, o governo Trump já possuía oficialmente informações sobre a gravidade da Covid-19 em 3 de janeiro de 2020. Somente no último dia do mês é que começaram as restrições de entrada de pessoas vindas da China, mas o mesmo não se aplicou aos cidadãos estadunidenses provenientes daquele país.
    O presidente Trump minimizou o perigo do vírus até o dia 27 de fevereiro, nas entrevistas dadas e na conta na rede social Twitter. Vale a pena lembrar que, do final de dezembro de 2019 até fevereiro de 2020, o Departamento de Estado e o Pentágono estavam concentrados numa confrontação com o Irã. Em dezembro houve um ataque contra bases americanas dentro do Iraque, e em 6 de janeiro os estadunidenses assassinaram o General Suleimani, da Guarda Revolucionária Iraniana, que havia ajudado a conter, por terra, o Estado Islâmico (ISIS). Os próprios EUA começaram a advertir o Irã de que poderiam escalar as ações militares contra o país na região do Golfo Pérsico.

    Em 29 de fevereiro, morreu, oficialmente de coronavírus, a primeira pessoa no território americano, apesar de haver informações dando conta que a primeira vítima da doença havia falecido 23 dias antes.

    Segundo o New York Times, nesse período, cerca de 40 mil pessoas provenientes da China circulavam pelos EUA. Em 17 de março já eram 100 pessoas oficialmente diagnosticadas, e no dia 20 de março apenas a cidade de Nova York já confirmava 5,6 mil casos. No dia seguinte, o Departamento de Saúde (Governo Federal) fez um requerimento em larga escala de máscaras N95, ou seja, entre 3 de janeiro e 21 de março, foram mais de dois meses perdidos pelo governo enquanto o vírus se disseminava entre a população estadunidense.

    Reação dos mercados

    Enquanto isso, os mercados também foram impactados, com um crash na bolsa de Nova York no final de fevereiro, motivado também pela crise do coronavírus.
    No dia 3 de abril, o Departamento do Trabalho indicava que o desemprego havia chegado a 13%, sinalizando que o país – e o mundo – poderia estar a caminho de uma grande depressão pior do que a de 1929.

    Tão logo os norte-americanos lançaram a ideia de que poderiam se retirar da Organização Mundial da Saúde, Beijing tratou de aumentar a sua contribuição financeira. Ao longo dos próximos anos, veremos essa disputa se acirrar

    Com o avanço da epidemia, declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março, as desigualdades existentes entre os países e dentro dos países ganharam destaque. Desigualdades no tocante ao poder político, a capacidades econômicas e tecnológicas e as divisões entre as classes sociais e as etnias são escancaradas. Fica evidente que mesmo Estados que já fizeram o básico em termos de saúde pública, como Itália e França, têm o sistema vergado sob o peso da expansão da doença. E fica mais claro ainda que os EUA são lentos na reação inicial e têm que lidar com essas desigualdades brutais dentro da própria população, que dificulta a identificação dos infectados. A natureza do sistema de saúde norte-americano – privado – impede ou desestimula a população menos abastada a procurar por ajuda ou por testes para identificar se são portadoras do vírus.

    Confusa reação de Trump

    Como observado, o governo Trump demorou a reagir à doença. Quando o fez, foi de forma totalmente egoísta e voltada para a satisfação dos próprios interesses. Surgiram, na imprensa europeia e estadunidense, informações que davam conta de que o governo federal e os governos estaduais começaram a sair a campo para comprar suprimentos médicos e respiradouros do único grande fornecedor global, a China. Utilizaram a grande capacidade de compra, mais o peso geopolítico, para atravessar acordos prévios de aquisição feitos por governos de países aliados, como Alemanha e França. Também foi amplamente notado por analistas e observadores na cena internacional que os Estados Unidos se esquivaram de liderar qualquer esforço de resposta conjunta aos efeitos da pandemia, o que terminou abrindo espaço para a diplomacia de países rivais, como a própria China e mesmo Cuba.

    A Batalha de Narrativas

    O fato é que a resposta doméstica estadunidense foi desordenada na comparação com a reação chinesa. E o governo Trump tratou de politizar a questão, e passou para o ataque contra a China.
    O dirigente estadunidense e o secretário das Relações Exteriores, Mike Pompeo, tentam emplacar o nome “vírus chinês” com o intuito de causar prejuízos à imagem do país asiático. Os EUA começaram a acusar Beijing de ter, propositalmente, escondido informações sobre a propagação do vírus no território durante a fase inicial, tendo contado com a cumplicidade da OMS para isso. O vice-primeiro ministro japonês, Taro Aso, já havia feito tal acusação contra a Organização Mundial da Saúde antes dos EUA, ou seja, um aliado de Washington fez um tipo de declaração que se inseriu numa batalha de narrativas em torno da Covid-19. Em março, o presidente norte-americano começou a ameaçar o órgão da ONU com o desligamento dos Estados Unidos.

    A China rechaçou essas afirmações. Antes, porém, a diplomacia russa manifestou-se em defesa de Beijing e criticou a posição estadunidense em 12 de abril, num comunicado do próprio chanceler russo, Sergei Lavrov. O comunicado elogiava a OMS e dizia que ela estava agindo de acordo com as linhas de orientação, respeitando todos os países membros. Sem adotar meias palavras, o governo russo disse que os EUA estavam tentando desviar a atenção da opinião pública do fato de que haviam cometido erros grosseiros no tratamento da pandemia.

    Milhares de pessoas acompanham velório do general Qassim Suleimani, em Bagdá. Suleimani foi morto durante o ataque dos Estados Unidos

    O Porta-Voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, saudou a posição russa e tratou de apresentar a China como um líder internacional no combate ao coronavírus. Ao mesmo tempo, atacou os EUA por politizar qualquer forma de cooperação antipandemia e foi além. Disse que os chineses estavam prontos a trabalhar com a OMS, a Rússia e qualquer país no sentido de conter os efeitos do novo coronavírus. O Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, saiu em defesa da OMS contra as acusações norte-americanas. Os chineses também começaram a acusar os norte-americanos de terem levado o vírus para seu território durante os jogos militares que ocorreram em Wuhan no final de 2019, o que contribuiu para elevar ainda mais a tensão com os Estados Unidos.

    O efeito duradouro

    O Coronavírus já tem um efeito que pode se tornar duradouro na política internacional: a imagem dos EUA como líder hegemônico sai arranhada por conta da atuação, que foi oscilante e na qual abriram mão de toda e qualquer liderança. Isso se deu principalmente pelo fato de não terem ensaiado nenhuma forma efetiva de apoio aos aliados europeus. Em contrapartida, a China conseguiu dar uma resposta efetiva na contenção da Covid-19 dentro de suas fronteiras, além de usar sua singular situação econômica para oferecer ajuda a países necessitados, como foi o caso da Itália.

    Todavia, mesmo tendo sido bem sucedida, paira a dúvida sobre a transparência das informações veiculadas pelo governo chinês nas fases iniciais do problema. Não é impossível que governantes em níveis regionais (cidades e províncias) e, mesmo, no plano nacional, tenham tentado segurar informações, enquanto tomavam ciência da situação. Se isso ocorreu de modo a evitar pânico ou porque houve uma decisão de não veicular a informação por conta da situação política doméstica e internacional (estavam ocorrendo os protestos em Hong Kong, há a situação no Xingiang e disputas geo-econômicas com os EUA e territoriais no Mar do Sul da China), é algo que ainda precisa ser elucidado.

    Minar a imagem da China

    Ao mesmo tempo em que a liderança estadunidense simplesmente não opera, também se observa que há um esforço acentuado do governo Trump para minar a imagem da China. Pesquisas feitas nos EUA em abril pelo Pew Research Center indicavam que 62% dos entrevistados consideravam a República Popular da China como uma ameaça global aos Estados Unidos. Isso, certamente está sendo usado com objetivos de curto, médio e longo prazo, em que se deve levar em consideração o calendário das eleições presidenciais e os efeitos da competição geopolítica e econômica com Beijing.

    Os efeitos do Coronavírus afetarão os países do chamado Sul-Global. A esmagadora maioria desses países tem problemas econômicos e sociais muito sérios, agora agravados pela pandemia. Há regiões com sistemas de saúde precários que buscam lidar com outras epidemias, como é o caso de Estados africanos e latino-americanos

    A Covid-19 também afetou outra disputa em curso no sistema internacional: a busca por controle ou influência de organizações internacionais. Isso está exemplificado no caso da OMS, com os EUA e alguns aliados acusando a organização de ser conivente com a China.

    Tão logo os norte-americanos lançaram a ideia de que poderiam se retirar da Organização Mundial da Saúde, Beijing tratou de aumentar a contribuição financeira. Ao longo dos próximos anos, veremos essa disputa se acirrar, com a China e alguns países pressionando ainda mais pela reforma de importantes organizações e acusando os EUA e os aliados (principalmente a Europa Ocidental e o Japão) de tentarem manter o controle que têm sobre elas desde o final da II Guerra Mundial.

    Poderemos assistir a uma aproximação ainda mais forte entre a Rússia e a China por conta da atuação dos Estados Unidos. Essa aproximação tem uma lógica econômica fundada na questão energética (necessidades chinesas e recursos russos abundantes) e na questão geopolítica (conter o excesso de poderio americano em termos militares e econômicos). No meio, poderemos ver, também, a uma rearticulação de todo um leque de alianças regionais, com países tentando se posicionarem diante dessa aproximação sino-russa em reação à política externa estadunidense.

    Nesse último aspecto, ressalte-se que os EUA têm uma vantagem estratégica de peso: a maioria das demais potências econômicas e militares do mundo é, de alguma forma, aliada do dispositivo geoestratégico norte-americano, ou tem interesses em conter a China. No primeiro caso, temos países como Japão, Austrália, Grã-Bretanha e França. No outro grupo, destacam-se a Índia e o Vietnã.

    Os efeitos do Coronavírus afetarão os países do chamado Sul-Global e como eles se posicionarão nessa competição entre as três grandes potências. A esmagadora maioria desses países tem problemas econômicos e sociais muito sérios, agora agravados pela pandemia. Há regiões com sistemas de saúde precários que buscam lidar com outras epidemias (sarampo, dengue, febre amarela), como é o caso de Estados africanos e latino-americanos.

    E o Brasil?

    A situação internacional de competição entre as grandes potências já estava se manifestando no Brasil. Desde as eleições de 2018, o presidente Jair Bolsonaro tenta realizar um processo de alinhamento com a política externa norte-americana. O acordo em torno do uso da Base Aeroespacial de Alcântara, por exemplo, está totalmente inserido na competição que os Estados Unidos têm com a China. Nessa disputa, a tecnologia é um setor-chave no qual os EUA e seus aliados tentam resguardar a sua posição de criadores mundiais de padrões frente a uma China que tenta se inserir como uma desafiante nesse jogo.

    Desde as eleições de 2018, o presidente Jair Bolsonaro tenta realizar um processo de alinhamento com a política externa norte-americana. O acordo em torno do uso da Base Aeroespacial de Alcântara, por exemplo, está totalmente inserido na competição que os Estados Unidos têm com a China

    O setor aeroespacial é visto pelos dois contendores como parte vital dessa disputa, e a base brasileira está, simplesmente, localizada no melhor ponto do planeta para o lançamento de cargas espaciais. A assinatura da cooperação, nos marcos em que foi feita, é uma declaração do governo Bolsonaro de que está tomando partido dos interesses estadunidenses.

    Não é só nesse exemplo que o governo brasileiro começa a realizar uma política externa subserviente. Em várias reuniões em órgãos internacionais, o Brasil sempre procura se alinhar com o governo Trump. O chanceler Ernesto Araújo dá constantes declarações fustigando a China, sendo que em maio ele emitiu um parecer aconselhando o presidente Bolsonaro a adiar o leilão do 5G de modo a favorecer interesses estadunidenses em detrimento da chinesa Huawei. O mesmo ocorre com membros do governo brasileiro, que sempre tratam de criticar em termos duros o governo chinês.

    Isso vem junto com uma política doméstica de negação da importância da doença, feita pelo próprio presidente da república. Durante o mês de fevereiro, Bolsonaro ecoava qualquer afirmativa do presidente Trump minimizando a gravidade do Coronavírus. Quando o dirigente norte-americano começou a mudar de posição, Bolsonaro permaneceu em negação.

    O Brasil perdeu tempo precioso em comprar suprimentos médicos como máscaras e respiradouros da China. Além disso, o governo brasileiro tratou de solapar as bases das relações especiais que haviam sido construídas com Beijing nos governos anteriores, e que mesmo o governo Temer tentou manter após o golpe de 2016

    Um dos resultados imediatos foi que o Brasil perdeu tempo precioso em comprar suprimentos médicos como máscaras e respiradouros da China. Além disso, o governo brasileiro tratou de solapar as bases das relações especiais que haviam sido construídas com Beijing nos governos anteriores, e que mesmo o governo Temer tentou manter após o golpe de 2016. Sob o impacto da Covid 19, começam a ser mostrados os limites da Política Externa Brasileira nessa nova era de competição entre as grandes potências.

    *Flavio Rocha de Oliveira é professor de Relações Internacionais da UFABC.