Categoria: Revista

  • Só as ruas podem superar o caos econômico e sanitário

    Só as ruas podem superar o caos econômico e sanitário

    Só as ruas podem superar
    o caos econômico e sanitário

    Como no mito da caverna, de Platão, uma parte da esquerda olha de dentro do confinamento as sombras gigantes do governo Bolsonaro e conclui tratar-se de um monstro imbatível. Mas se formos olhar a realidade, como nos propõe o grego, o mundo mudou muito da posse para cá. Um ano e meio depois, as expectativas em seu governo e na “nova política” prometida já não empolgam o eleitor que votou preocupado com o futuro do Brasil

    Por Mario Azeredo

    O desprezo com a situação dos mais necessitados, com os desempregados, com os setores médios e, principalmente, o trato com a saúde da população em plena pandemia, desidratou parte da base eleitoral de Bolsonaro. A prisão de Queiroz, as investigações da CPI sobre fake news e as detenções de bolsonaristas que atacam as instituições devem chegar à família Bolsonaro e ampliar o desgaste. É por isso que os generais do governo saíram às pressas para comprar deputados do “Centrão”, tentando evitar um possível impeachment.

    Se até agora a disputa de alternativas se concentrava entre os dois setores da elite brasileira, daqui para frente as ruas vão dar o tom do embate e nosso prognóstico é que Bolsonaro não deve terminar o mandato e sua tropa de fanáticos e criminosos milicianos vão acirrar os ataques. A esquerda consequente, mesmo aquela em quarentena, tem a obrigação de chamar ao enfrentamento para derrubar Bolsonaro. É com um programa com medidas anticapitalistas, sem Bolsonaro na Presidência, que o Brasil poderá enfrentar a grande depressão econômica e o dissabor das mortes pela Covid-19, fruto das criminosas políticas de governo que negam a ciência e as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

    Uma trajetória desastrada

    Há um ano, Bolsonaro estava na ofensiva. Parte considerável dos 57 milhões que nele votou, ainda tinha muitas expectativas no novo governo. Mas, uma sucessão de fatos vem desgastando o presidente. As crises econômicas, social, ambiental e, principalmente, a sanitária se entrecruzam. Nesse último ano, vimos estarrecidos Brumadinho ser engolida pela lama da Vale do Rio Doce e o dia do fogo, que fez São Paulo anoitecer no meio da tarde. Na Amazônia a ordem foi: matem líderes indígenas e ocupem as terras.

    No terreno econômico, os indicadores davam mostras de desaceleração da produção industrial e do investimento. O mesmo acontecia com os indicadores da construção civil. O emprego formal praticamente desapareceu e o Brasil vê saltar o trabalho informal para 39,5 milhões de trabalhadores, sendo 14 milhões ocupados em aplicativos.

    Na arena internacional, o Brasil foi rompendo pontes, uma atrás da outra. Bolsonaro lamentou a vitória de Alberto Fernández na Argentina e disse que o povo escolheu mal o presidente. No Oriente Médio ofendeu palestinos ao anunciar a transferência da Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém e, agora, o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, desagrada israelenses comparando a prisão de seus apoiadores com a Noite dos Cristais

    Na arena internacional, o Brasil foi rompendo pontes, uma atrás da outra. Bolsonaro lamentou a vitória de Alberto Fernández na Argentina e disse que o povo escolheu mal o presidente. No Oriente Médio ofendeu palestinos ao anunciar a transferência da Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém e agora o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, desagrada israelenses comparando a prisão de seus apoiadores com a Noite dos Cristais. O mesmo ex-ministro criou um incidente internacional com piadas sobre os chineses, desagradando o poderoso agronegócio.

    No terreno político Bolsonaro é um verdadeiro “bombeiro louco” que, à falta de água, joga gasolina ao fogo. A promessa de reduzir o número de ministérios foi pelos ares. No desespero para evitar o impeachment, ampliou para 24 os ministérios, para acomodar corruptos do Centrão, da velha política do toma lá dá cá. Chama manifestações pelo AI-5 e guerra contra o Congresso e o STF.

    Economia, pandemia e milícia

    No meio deste “novo normal” na política de Brasília, três fatos são centrais para seu desgaste: a crise econômica, a resposta à pandemia e a relação da família Bolsonaro com as milícias (assassinato de Marielle, laranjal, morte do miliciano Adriano e prisão de Queiroz). Afirmamos que os mais de 50 mil mortos e a brutal crise econômica estão derretendo o capital eleitoral de Bolsonaro, afastando setores importantes da burguesia tradicional e da classe média que veem na administração do ex-capitão e nas relações entre os poderes da República um verdadeiro desastre para seus negócios.

    A reunião ministerial de 22 de abril último foi a gota d’água, um verdadeiro “circo dos horrores”, para uma gestão em turbulências sérias.

    Em nenhum momento, os participantes trataram das dificuldades do SUS para enfrentar a pandemia e nada foi dito sobre o atraso no pagamento do auxílio emergencial. Na verdade, ficou evidente que os mercenários, encabeçados por Bolsonaro e Paulo Guedes, só trataram de expor seus projetos íntimos. Intervir na Justiça e na Polícia Federal para proteger familiares e amigos.

    Enquanto a mídia divulga as mortes, eles aproveitam para “passar a boiada” de destruição da legislação sobre a preservação ambiental, reservas naturais, território dos povos originários e quilombolas; venda do patrimônio público, incluindo o Banco do Brasil e prender os ministros do STF.

    Uma corrente fascista minoritária

    Bolsonaro é parte de um processo internacional que veio se formando na esteira da crise de 2008. Não é um fenômeno isolado. A xenofobia cresceu assustadoramente com a maior onda migratória que a Europa presenciou desde a II Guerra Mundial. Muros para conter refugiados e imigrantes, que fogem de guerras, miséria, fome e perseguições, foram levantados em diversos países. Partidos fascistas e ultranacionalistas viram seus votos aumentarem na Itália, França, Espanha, assim como, grupos neonazistas proliferam na Alemanha e em outras regiões do mundo. Governos como de Modi na Índia e de Viktor Orbán, na Hungria, são também expressões desse fenômeno de intolerância religiosa, nacionalista e com traços fascistas como Bolsonaro. Donald Trump é a expressão mais perigosa dessa vertente, porque preside os EUA, o centro do capitalismo e, consequentemente, influencia os demais países.

    Bolsonaro é parte de um processo internacional que veio se formando na esteira da crise de 2008. Não é um fenômeno isolado. A xenofobia cresceu assustadoramente com a maior onda migratória que a Europa presenciou desde a II Guerra Mundial. Grupos neonazistas proliferam na Alemanha e em outras regiões do mundo

    Esse fenômeno se expressou também na negação desses governos em seguir as orientações da OMS para conter a propagação da Covid-19. Defenderam o efeito rebanho, indo contra o que cientistas de todo mundo apontavam – e que na prática se mostrou correta – política do isolamento. Bolsonaro, mesmo com mais de um milhão de contaminados segue a política da “gripezinha”.

    O importante para nós militantes políticos e lutadores sociais é que independentemente da manutenção ou não de Bolsonaro na presidência, o bolsonarismo é uma corrente que vai seguir atuando na política, no submundo e nas ruas. Tais movimentos respondem a uma base objetiva. Portanto, enquanto não os enfrentarmos politicamente com um programa radical contra as desigualdades e que ataque aos milionários deste país, Bolsonaro seguirá sendo porta-voz de milhões. O líder é o fruto podre de uma sociedade historicamente injusta, que jamais enfrentou o passivo de mais de 300 anos de escravidão e o fato de ser o último país em nosso continente a construir universidades, campeão em concentração de renda e de um Estado autoritário e violento, com a polícia que mais mata e que mais morre e que foi administrado, na maior parte de sua história pelas Forças Armadas ou no mínimo tutelado por elas.

    O golpe aconteceu em 2016

    A existência do bolsonarismo como corrente fascista no país não significa que não podemos derrotá-lo. Para alguns setores da sociedade o grande perigo que corremos é de um golpe que feche mais o regime. Para nós, o golpe já ocorreu. Pouca gente viu esse processo ou quando viu ele já estava consolidado. Pode haver mais restrições às instituições democráticas, claro que sim. No entanto, o que vemos hoje é um movimento inverso. O bloco golpista dividido, as instituições como o STF, Congresso Nacional e frente de governadores enfrentando o governo em diversas pautas democráticas e de combate à pandemia. Por outro lado, todos seguem com a agenda neoliberal de ataque aos direitos e privatizante. Por isso, o “novo” bloco formado por FHC/PSDB, Folha de São Paulo, Estadão, Luciano Huck, Governadores, Maia e STF, não tem nada de novo. Representam a velha elite brasileira que articulou o golpe e foi vítima dele também.

    Como chegamos até aqui?

    O bolsonarismo tem bases objetivas na realidade recente. As insuficientes respostas à crise econômica nos governos de conciliação de classes, em especial de Dilma, somadas à política de descartar o PT como gestor dela, setores do Judiciário com a Lava Jato e a grande mídia impulsionaram o impeachment e a prisão de Lula. Tudo isso com muita fake news.

    Mas, o golpe só foi vitorioso porque Dilma fez escolhas erradas.

    Perry Anderson, em um artigo de 2016, já apontava que a presidenta, ao assumir o segundo mandato, implantou medidas de austeridade que causaram uma profunda recessão, derrubando o PIB em -3,4% ao ano entre 2015/2016. Ela optou por assumir o projeto de seu adversário derrotado nas eleições. Um verdadeiro estelionato eleitoral que cobrou seu preço. Três meses depois da posse, mais de dois milhões de pessoas estavam nas ruas pedindo o impeachment.

    O líder é o fruto podre de uma sociedade historicamente injusta, que jamais enfrentou o passivo de mais de 300 anos de escravidão e o fato de ser o último país em nosso continente a construir universidades, campeão em concentração de renda e de um Estado autoritário e violento, com a polícia que mais mata e que mais morre

    Esse processo foi arquitetado pelos partidos de oposição, pela mídia corporativa e por grande parte dos aliados do governo de coalizão de Dilma, inclusive o MDB do vice Michel Temer. Eles se apoiaram em setores da classe média e dos trabalhadores que viram suas expectativas de consumo e melhoria de vida serem frustradas com o governo da petista.

    Temer, na transição, anunciou o Projeto “Ponte para o Futuro”, que nada mais era do que o ultraliberalismo em defesa do capital financeiro e dos grandes empresários, em detrimento dos direitos e conquistas dos trabalhadores. O plano golpista da burguesia tradicional, no entanto, deu errado. Não foi Alckmin que se beneficiou do golpe e da campanha contra o PT e a esquerda de conjunto, mas um ex-capitão com discurso fascista e defensor da ditadura militar.

    Pós-pandemia promete o caos

    A crise econômica não é produto da crise sanitária, como tenta passar a mídia coorporativa. A pandemia da Covid-19, acelerou todos os sintomas da “gripe” econômica anterior. Vivemos uma gigantesca crise humanitária. Ela tende a aumentar muito até que se consiga uma vacina para aplacar essa tragédia. Mas a crise econômica, que já víamos sintomas desde meados do ano passado, teve um crescimento exponencial com a pandemia. David Harvey já havia alertado de que a política dos juros infinitos levaria a uma explosão da economia.

    A pandemia expôs as contradições do ultraliberalismo. Os representantes no governo diziam não ter dinheiro para investir em saúde, educação, transporte público ou no aumento do salário mínimo. Mas do nada surgiram R$ 1.2 trilhão para os bancos e mais de 50 milhões de brasileiros estão recebendo, com atraso, uma ajuda emergencial de R$ 600,00.

    O bolsonarismo tem bases objetivas na realidade recente. As insuficientes respostas à crise econômica nos governos de conciliação de classes, em especial de Dilma, somadas à política de descartar o PT como gestor da mesma, setores do Judiciário com a Lava Jato e a grande mídia impulsionaram o impeachment e a prisão de Lula. Tudo isso com muita fake news. Mas, o golpe só foi vitorioso porque Dilma fez escolhas erradas

    A promessa pós-pandemia é de milhões de desempregados, subempregados e de miseráveis no mundo. Em um país como o Brasil de economia dependente, será explosivo. Agora sabemos, dinheiro há. Por isso, organizar nossa tropa, estimular e participar das mobilizações que virão em resposta ao ataque a nossa classe será uma grande tarefa.

    Quem vai pagar a conta no pós-pandemia?

    Se depender dos banqueiros, dos Trump e dos Bolsonaro da vida, seremos nós, numa “superexploração” jamais vista. Com ampliação geométrica da miséria e com repressão redobrada sobre as populações pobres e periféricas. Hoje, estamos a passos largos em direção a um limite: superação do capitalismo ou o aumento da repressão sobre as populações periféricas e pobres, por parte das forças policiais, com restrições de espaços democráticos.

    O assassinato de George Floyd nos EUA, assim como o de Marielle Franco se constituíram em sementes de uma rebeldia da população negra e periférica que não aguenta mais a repressão policial, os políticos corruptos que servem ao patrão, as injustiças e a falta de perspectiva num mundo formatado para uma minoria. Agora, estamos assistindo a uma onda internacional contra o racismo e em defesa da saúde pública, como foi o levante em mais de 200 cidades francesas. O Brasil é parte dessa mudança de ânimo das massas.

    Nessa fase tensa da luta de classes onde a extrema direita se organiza para ocupar cada vez mais espaços de poder e legitimidade numa parte da sociedade, faz-se necessário, mais do que nunca, apresentar saídas que apontem para a superação do capitalismo.

    Organizar nossa tropa: Fora Bolsonaro!

    Mas nada acontecerá por fora da luta encarniçada inter e entre classes. Portanto, não é secundário o dilema colocado a nós em plena pandemia. Sair ou não sair às ruas?

    Ninguém quer sair às ruas. A maioria vai trabalhar porque precisa ou porque os patrões obrigam. Os trabalhadores da saúde, os garis, os policiais e milhares de trabalhadores envolvidos diretamente na produção só saem, diariamente, para trabalhar porque suas tarefas são consideradas serviços essenciais. O auxílio emergencial de R$ 600,00 aprovado pelo Congresso Nacional, além da demora, deixou de fora milhões de famílias por questões burocráticas que nada têm a ver com a emergência da vida das pessoas. Então, é claro que o povo pobre sairá e continuará saindo às ruas, mesmo sabendo do risco de ser infectado e de colocar a vida em risco. Outros milhões sequer têm casa ou água e sabão.

    A pandemia expôs as contradições do ultraliberalismo. A promessa pós-pandemia é de milhões de desempregados, subempregados e de miseráveis no mundo. Em um país como o Brasil de economia dependente, será explosivo. Agora sabemos, dinheiro há. Por isso, organizar nossa tropa, estimular e participar das mobilizações que virão em resposta ao ataque à nossa classe será uma grande tarefa

    Todos saem em busca de sobrevivência, de comida para não morrer de fome. Fazem isso porque o Brasil está entre as nações com pior distribuição de renda, com um governo que nega a pandemia, se recusa a seguir as orientações da OMS e mantém o projeto ultraliberal de desmonte da saúde e educação públicas, para entregar aos tubarões do “mercado”. De nossa parte, da esquerda, de movimentos sociais e das próprias torcidas antifascistas que começaram a sair às ruas, também somos parte de um serviço essencial para combater o vírus: derrotar Bolsonaro.

    Portanto, a luta de classes determina a impossibilidade de termos um isolamento social total. Inclusive os grupos bolsonaristas estão submetidos a essa lógica. Se eles não forem às ruas mostrar apoio ao presidente, se não radicalizarem a luta, tendem a ver a base eleitoral de seu chefe se esvair por completo.

    Nessa guerra, acreditamos que mais do que nunca temos que fortalecer o PSOL como parte fundamental da reorganização do movimento de esquerda no Brasil e de um novo bloco histórico.

    *Mário Azeredo é dirigente estadual do PSOL-RS

  • O Estado na crise da Covid-19

    O Estado na crise da Covid-19

    O Estado na crise da Covid-19

    A crise sanitária provocada pela Covid-19 e o impacto sobre o nível de atividade econômica levaram governos do mundo inteiro a se colocarem como protagonistas no combate à doença e a adotarem uma série de medidas com o intuito de mitigar a grave crise econômica e social que assola os países. O volume de recursos envolvido nessas ações não é desprezível, com destaque para os realizados pelas economias mais fortes. Esse fato levou muitos a caracterizarem essas ações como keynesianas e a considerarem que o mundo pós-pandemia não seria mais neoliberal. É sobre isso que trata este artigo

    Por Rosa Maria Marques

    As medidas adotadas

    Em março, mês em que a Organização Mundial da Saúde (OMS), diante da propagação do novo coronavírus no globo, definia que estávamos vivendo uma pandemia. Importantes instituições como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defenderam enfaticamente que as perdas decorrentes da crise fossem assumidas pelo Estado, ou seja, que ele atuasse como emprestador de última instância, e que houvesse uma ação conjunta dos governos para vencer as ameaças sanitária, econômica e social provocadas pela Covid-19, respectivamente.

    O Banco Mundial destacou, ainda, a necessidade de as cadeias de pagamento serem protegidas, a simplificação da reestruturação extrajudicial da dívida ou de formas mais radicais como moratória ou programas de adiamento dos pagamentos (para países da América Latina e Caribe) e a possibilidade dos governos, para garantir empregos e apoiar empresas, assumirem participações de propriedade em empresas estratégicas. Já a OCDE, por meio do secretário geral, Angel Gurría, defendeu, além do esforço científico conjunto para garantir o desenvolvimento da vacina, a necessidade de os governos reforçarem a economia, atenuando o impacto negativo imediato mediante três categorias de despesas.

    A primeira, em cuidados da saúde: financiar o uso intensivo de testes, o tratamento universal dos pacientes, o fornecimento de equipamentos de proteção individual para os profissionais da área e a disponibilização necessária de unidades de cuidados intensivos e de respiradores, entre outros.

    É necessário financiar empregos temporários, permitir condições mais flexíveis para a obtenção do seguro-desemprego, destinar transferências de renda para trabalhadores por conta própria e garantir assistência aos mais vulneráveis

    A segunda, dirigida aos trabalhadores e suas famílias: financiar empregos temporários, permitir condições mais flexíveis para a obtenção do seguro-desemprego, destinar transferências de renda para trabalhadores por conta própria e garantir assistência aos mais vulneráveis.

    A terceira, voltada às empresas: considerar o adiamento do pagamento de encargos e impostos; reduzir ou diferir temporariamente o imposto sobre o valor adicionado (IVA – principal imposto na Europa); garantir acesso mais amplo ao capital de giro com a criação de linhas de crédito ou garantias estatais; criar dispositivos especiais de sustentação às pequenas e médias empresas, especialmente nos setores de serviços e turismo.

    Essas ações seriam combinadas com esforços de regulação e supervisão financeira pelos bancos centrais e com o combate ao alto endividamento das empresas e à desigualdade econômica entre as empresas.

    E, assim, procederam os governos pelo mundo, dos mais progressistas aos que têm seus presidentes claramente identificados como sendo de direita.

    Políticas fiscais e monetárias

    O conjunto de medidas adotado pelos países pode ser agrupado em duas categorias, além daquelas relacionadas ao isolamento social: políticas fiscais e monetárias; e políticas de emprego e social.

    De maneira geral, as medidas visaram manter os contratos, adiando e cancelando pagamentos e propondo, em certos casos, a renegociação; manter a liquidez na economia mediante o aumento da oferta monetária; introduzir linha de crédito mais favorável às pequenas e médias empresas; fomentar o crédito para o capital de giro das empresas, especialmente com vista ao pagamento dos salários dos trabalhadores; apoiar os setores de atividade mais afetados pela crise econômica; manter empregos; aumentar a faixa de isenção dos serviços essenciais; ampliar a cobertura da transferência de renda para a população para os novos necessitados, imediatamente prejudicados pela paralisação das atividades econômicas; flexibilizar o acesso ao seguro desemprego; aumentar a disponibilidade de recursos para as ações da área de assistência social e serviços de saúde, nisso incluída a compra de materiais e equipamentos necessários ao combate à Covid-19, entre outras medidas. Parte dessas ações foram objeto de crítica em diversos países, seja pela demora da aplicação e/ou pela baixa efetividade.

    Ao mesmo tempo, quando se tornou evidente a profundidade da crise econômica e a dificuldade que os países teriam para retomar a atividade, o que implicaria a permanência por um longo tempo de um amplo segmento da população em condição de pobreza, houve a retomada da discussão em torno da proposta de uma renda básica. Diferentemente do que ocorreu em outros momentos, essa proposta passou a ser defendida por economistas e personalidades até há pouco identificados com o pensamento neoliberal. No máximo, para sermos generosos, situados em um campo bastante heterodoxo, mas que dificilmente justificam a renda básica como um direito nascido do reconhecimento de que a sociedade deve garantir a todos o acesso ao que se considera o mínimo necessário não só para as pessoas sobrevirem, mas para poderem participar integralmente de todas as atividades, nisso incluído o lazer, a cultura, a educação, a saúde, etc.

    Será o fim do neoliberalismo?

    Frente a esse evidente protagonismo do Estado (realizado por governos com diferentes orientações), não foram poucos os que começaram a dizer que a pandemia teria enterrado o neoliberalismo e que, de certa forma, todos os governos teriam se tornado keynesianos. Os que assim procederam estão equivocados e o erro deriva da não compreensão de pelo menos três aspectos:

    1 – DE QUE O NEOLIBERALISMO NÃO CONSTITUI um “regime” de acumulação e sim a expressão, no plano da política econômica e no plano do ordenamento e da reprodução societal, de um específico regime de acumulação.
    2 – DE QUE A CONDUÇÃO NEOLIBERAL DO ESTADO não implica um Estado Mínimo e sim uma clara escolha das atividades onde ele atua, entregando outras ao setor privado, especialmente aquelas identificadas com o período dos trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial, conhecido como Estado do Bem-Estar.
    3 – DE QUE O ESTADO É UM INSTRUMENTO de dominação de classe (das classes capitalistas e proprietárias), que deve prezar pela manutenção da dominação.
    Há mais ou menos quarenta anos, o capital que está no centro das relações econômicas e sociais é o capital portador de juros (chamado de capital financeiro pela mídia). Esse capital, especialmente na forma de capital fictício, não tem nenhum comprometimento com a geração de emprego e renda, colocando-se numa posição de exterioridade à da produção. Como dizia Marx, dinheiro que faz dinheiro sem passar pelas agruras da produção. E desde que esse capital readquiriu liberdade para atuar (quando foram procedidas as desregulamentações financeiras), o crescimento foi descomunal, principalmente enquanto capital fictício, equivalendo a dez vezes o PIB mundial.

    A liberdade de ação desse capital somente pôde ser promovida se, simultaneamente, fosse defendida a liberdade de todos os capitais, isto é, se fosse colocada em marcha uma ampla desregulamentação, de modo a eleger o mercado “locus” da alocação ótima de recursos. É o que aconteceu.

    A supremacia definidora

    São esses os fundamentos que nos permitem afirmar que, nas últimas décadas, a reprodução do capital ocorreu sob a supremacia do capital portador de juros, o que acarreta um conjunto de consequências no plano econômico e social que, no espaço deste artigo, não podemos aqui aprofundar.

    Apenas para lembrar as principais, mencionamos: baixo crescimento; baixo nível de investimento; elevado desemprego; queda da participação dos salários na renda nacional dos países; e aumento da desigualdade e da pobreza. A dominância desse capital expressa-se, no plano ideológico e das políticas empreendidas pelos Estados, como neoliberalismo, de modo que um não pode existir sem o outro.

    A condução neoliberal do Estado não implica um Estado Mínimo, mas uma clara escolha das atividades onde ele atua, entregando outras ao setor privado, especialmente aquelas identificadas com o período dos trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial, conhecido como Estado do Bem-Estar

    Pensar que a pandemia encerrou o neoliberalismo e que o mundo pós-pandemia pode se organizar de uma outra forma pela simples razão de o Estado ter assumido o protagonismo no combate à Covid-19 e à crise por ela provocada é esquecer este fato básico: que a dominância do capital portador de juros e neoliberalismo constituem uma unidade indissociável. Além disso, considerar o neoliberalismo superado é desconsiderar que o período anterior, o dos trinta anos dourados, foi resultado de uma especial configuração de fatores econômicos, políticos e sociais que se seguiram ao final da II Guerra Mundial, os quais não estão presentes no atual cenário mundial.

    Ademais, o aumento do gasto dos governos observado no mundo todo – para lastrear as medidas mencionadas – não é sinônimo de abandono do neoliberalismo.

    O Estado das finanças

    Ao contrário do que muitos dizem, o neoliberalismo não propõe a construção de um Estado Mínimo, mas o abandono pelo Estado de certas áreas ou atividades e a entrega da economia ao setor privado. Isso, em geral, é acompanhado do aumento do Estado, sobretudo, na área de segurança e de produção de armamentos. Os Estados nacionais, mesmo aqueles que promoveram acentuada privatização de suas empresas e que diminuíram a responsabilidade nas áreas sociais, privatizando quase que totalmente a saúde e a educação, não viram o tamanho ser reduzido como percentual do PIB.

    Um terceiro aspecto que precisa ser levado em conta – para se analisar o significado dos Estados terem assumido o protagonismo nesse momento de pandemia – decorre da sua natureza enquanto instrumento da manutenção da forma de dominação vigente. Na situação do avanço da Covid-19, seria totalmente inimaginável supor que os governos nada fizessem para frear a contaminação, para garantir as ações e serviços de saúde e mesmo para mitigar os efeitos da crise econômica decorrente da crise sanitária. O custo político disso seria enorme, provocando um cenário de desestabilização num segundo momento.

    O papel assumido pelos diferentes governos, mesmo aqueles que agiram de forma mais tímida ou descompromissada, é o de garantidor da soberania nacional, o qual o inimigo externo foi substituído pela Sars-CoV2. Permitir a entrada sem nada fazer é atestar a incapacidade de manter a ordem constituída, isto é, a manutenção da dominação das classes dominantes sobre o conjunto da população trabalhadora e, para isso, é fundamental a manutenção da coesão social. Mesmo se colocando na coluna da frente da batalha contra a Covid-19, aqueles que cometeram erros e titubeios durante a condução da pandemia não passarão impunes e serão cobrados em um momento futuro.

    No mundo pós-pandemia, é possível que os Estados das principais economias do mundo concedam especial atenção aos sistemas de saúde, fortalecendo o lado público e elevando o nível do gasto da assistência social em geral

    Uma última observação se faz necessária. No mundo pós-pandemia, é possível que os Estados das principais economias do mundo concedam especial atenção aos sistemas de saúde, fortalecendo o lado público e elevando o nível do gasto da assistência social em geral.

    A expansão do gasto na pandemia

    A ressignificação do sistema público decorre do fato de esta não ser a última pandemia a que estaremos submetidos. Frente a essa possibilidade, os governos procurarão estar preparados, inclusive mantendo ou desenvolvendo a indústria da saúde para não ficar dependente, como foi o caso da maioria dos países, da produção de equipamentos e reagentes dos testes altamente concentrada na China e na Índia. A expansão do gasto com assistência social, por sua vez, será obrigatória, decorrente da necessidade da manutenção da coesão social em um mundo em que a população pobre terá aumentado significativamente como resultado da crise.

    *Rosa Maria Marques é professora titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSP e ex-presidenta da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)

  • A China e a pandemia: do Covid-19: do papel do Estado à estratégia global

    A China e a pandemia: do Covid-19: do papel do Estado à estratégia global

    A China e a pandemia: do Covid-19: do papel do Estado à estratégia global

    Por Valéria Lopes Ribeiro*

    Ainda é cedo para mensurar o impacto que a pandemia do vírus Covid-19 causará em todo o globo. Em termos de saúde pública e da vida de milhões de pessoas, os impactos já são evidentes, com a expansão do contágio alcançando diversos países e o número de mortes aumentando.

    Com relação aos impactos econômicos e geopolíticos, estes são mais difíceis de mensurar no presente momento. Ainda assim, levando em conta o ponto de onde partimos, o futuro é bastante desanimador.

    A pandemia pode provocar uma crise profunda na economia mundial, com consequências sociais difíceis de prever. No centro desse debate, dois temas são fundamentais. Primeiro, a discussão sobre o papel do Estado e as controvérsias do modelo neoliberal. Segundo, a forma como a China vem lidando com a pandemia e sua estratégia global

    Mesmo após mais de dez anos desde a crise de 2008, as taxas de crescimento econômico mundiais não tinham se recuperado completamente. O baixo crescimento suscitava debates acerca de uma possível “estagnação secular” e de características do capitalismo contemporâneo que acabavam por adiar a solução da crise, como “a inflação; […] o endividamento do Estado; […] a expansão dos mercados de crédito privados; e […] a compra de dívidas de Estados e de bancos pelos bancos centrais”. Alguns alertavam para a existência de uma crise de sobreacumulação, marcada pela contínua expansão dos instrumentos de acumulação financeira.

    Diante da crise, a insistência dos governos de diversos países na adoção de políticas de austeridade, já nos colocava em uma situação de baixo crescimento, concentração de renda e baixos níveis salariais.

    O cenário de crise manifestava-se também no acirramento das disputas interestatais, por meio da postura nacionalista de governos (como o caso da Inglaterra com o Brexit), das tensões entre EUA e Irã, além da contínua guerra comercial entre Estados Unidos e China.

    Diante desse cenário, a pandemia do Covid-19 pode provocar uma crise profunda na economia mundial, com consequências sociais difíceis de prever. No centro desse complexo debate sobre as consequências da pandemia, parecem-me fundamental dois aspectos diferentes, mas ligados entre si: primeiro a discussão sobre o papel do Estado e as controvérsias do modelo neoliberal; segundo, a forma como a China vem lidando com a pandemia e sua estratégia global. Falarei aqui sobre o segundo aspecto, na tentativa de ajudar no debate sobre o primeiro.

    Início do contágio

    A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid-19. Em novembro de 2019 ocorreu o primeiro caso em Wuhan, província de Hubei. Até 15 de dezembro, o número total de infecções era 27 e até 20 de dezembro já havia 60 infectados. Em 30 de março a China registrou 81.470 casos e 3.304 mortes.

    Uma série de controvérsias se apresentaram a partir do surgimento do vírus na China, entre elas: o episódio em que o governo chinês teria controlado informações sobre o vírus, silenciando a denúncia feita pelo médico Li Wenliang, que depois acabaria falecendo pelo Covid-19; e a campanha realizada pela mídia ocidental, acusando a China de ser responsável pela pandemia global, ressoando em um ataque de xenofobia e racismo, com a divulgação de vídeos e acusações sobre hábitos alimentares e sanitários chineses.

    Após o surto inicial e as controvérsias sobre a origem da crise, a China começa um programa amplo de contensão da pandemia. Segundo o Relatório OMS, “diante de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou, talvez, o esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”

    Após o surto inicial e as controvérsias sobre a origem da crise, a China começa um programa amplo de contensão da pandemia. Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China sobre Doença de Coronavírus 2019 (COVID-19) “diante de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou, talvez, o esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”.

    Quais foram essas medidas? Como elas podem ser entendidas dentro do modelo de Estado e economia da China?

    Emergência nacional

    Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China, após a detecção de um conjunto de casos de pneumonia de etiologia desconhecida em Wuhan, o CPC, Comitê Central e o Conselho de Estado lançaram a resposta nacional de emergência. A partir daí foram criados dois grupos para coordenar os esforços de controle do vírus, o “Central Leadership Group for Epidemic Response” e o “Joint Prevention and Control Mechanism”.

    As medidas de prevenção e controle foram implementadas rapidamente, desde os estágios iniciais em Wuhan e outras áreas-chave de Hubei até o nível nacional. As medidas adotadas podem ser divididas em três fases:

    Na primeira fase, de início do surto, a principal estratégia esteve focada na prevenção da exportação de casos de Wuhan e outras áreas prioritárias da província de Hubei. O mecanismo de resposta foi iniciado com envolvimento multissetorial em medidas conjuntas de prevenção e controle. Mercados foram fechados e foram feitos esforços para identificar a fonte zoonótica. A formação epidêmica foi notificada à OMS em 3 de janeiro e sequências genômicas inteiras do COVID-19 foram compartilhadas com a OMS em 10 de janeiro. A partir daí, protocolos para diagnóstico de COVID-19 e para tratamento foram formulados, além do gerenciamento de contatos próximos de pessoas contaminadas e aplicação de testes laboratoriais.

    Na segunda etapa, durante a segunda fase do surto, a principal estratégia foi reduzir a intensidade de epidemia e retardar o aumento de casos. Em Wuhan e outras áreas prioritárias da Província de Hubei, o foco era o tratamento ativo de pacientes, a redução de mortes e a prevenção de exportações. Em outras províncias, o foco estava na prevenção de importações, restringindo a propagação da doença e implementação de medidas conjuntas de prevenção e controle. Nacionalmente, os mercados de animais silvestres foram fechados e as instalações de criação de animais em cativeiro foram isoladas. Em 23 de janeiro, estritas restrições de tráfego e um cordão sanitário foram estabelecidos em torno de Wuhan e municípios vizinhos, impedindo efetivamente a exportação de indivíduos infectados para o resto do país. Restrições de viagens foram impostas em 14 cidades próximas a Wuhan na província de Hubei.

    Apesar do combate bem sucedido diante da epidemia, não se sabe ainda os impactos da crise para o país. Em 2019, a China já vinha apresentando taxas de crescimento menores. Os primeiros dados após a pandemia mostram um cenário bastante complicado

    Nessa fase o protocolo para diagnóstico, tratamento, prevenção e controle de epidemias foram aprimorados; o isolamento e o tratamento dos casos foram reforçados. Foram tomadas medidas para garantir que todos os casos fossem tratados e contatos próximos fossem isolados e colocados sob observação médica. Segundo a OMS, a China tem uma política de identificação meticulosa de casos e contatos para o COVID-19. Em Wuhan, cerca de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, rastreavam dezenas de milhares de contatos por dia.

    Além das medidas de controle de tráfego e controle da capacidade de transporte para reduzir o movimento de pessoas, informações sobre a epidemia e medidas de prevenção e controle foram divulgadas regularmente. A alocação de suprimentos médicos foi coordenada e novos hospitais foram construídos, como o Hospital Huoshenshan. Camas de reserva foram usadas e instalações foram redirecionados para garantir que todos os casos pudessem ser tratados, além de esforços para manter um fornecimento estável de mercadorias e seus preços para garantir o bom funcionamento da sociedade. (Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), 2020).

    Na terceira etapa, as autoridades procuraram controlar a epidemia mediante o controle e prevenção. O foco foi no tratamento dos pacientes e na interrupção da transmissão, com ênfase em medidas para implementar plenamente o teste e prevenção de disseminação em lugares públicos. Para isso novas tecnologias foram aplicadas, como o uso de big data e inteligência artificial (IA) para fortalecer o rastreamento de contatos e o gerenciamento de populações prioritárias. Políticas de expansão dos seguros de saúde foram promulgadas, com pagamentos de seguros e liquidação e compensação financeira.

    Ainda que a China não tenha um sistema universal de saúde, e seu modelo seja baseado em seguros de saúde, a cobertura foi sendo ampliada ao longo dos anos 2000, de forma a atender a maioria da população

    Em meados de março a curva de contágio na China começa a se estabilizar. Em 7 de março não foram registrados novos casos na China. Novas manifestações surgem, mas importadas de fora, fazendo o país reforçar o controle da entrada de estrangeiros. O número de mortes pelo contágio caiu. Em 28 de março registraram-se cinco mortes na China.

    Como foi possível essa resposta chinesa e o sucesso em termos de redução do contágio?

    Planejamento estatal

    A discussão sobre as medidas adotadas pela China certamente ainda deverá ser aprofundada. Para iniciar esse debate parece fundamental apontar um aspecto essencial, qual seja, a capacidade do Estado chinês em responder ao desafio da pandemia. A trajetória chinesa das últimas décadas esteve amplamente ligada “à flexibilidade adaptativa diante das recorrentes transformações da conjuntura global – como num constante esforço de “gestão planejada do imprevisível”. Nesse sentido, assim como em diversos momentos de sua trajetória, a China procurou adaptar-se aos desafios, a partir da capacidade de planejamento estatal, que sempre esteve no centro da trajetória, mesmo após a abertura econômica dos anos 1980.

    Assim, ainda que convivendo com uma série de contradições (como a desigualdade de renda entre a população, a degradação ambiental, a ascensão de uma burguesia cada vez mais forte) diante da pandemia, a capacidade de planejamento do Estado e o controle da gestão de sua economia, inclusive em termos fiscais, certamente foram essenciais para responder aos desafios de expansão do atendimento aos pacientes infectados, disponibilização de testes, criação de novos postos de saúde, ampliação dos investimentos em infraestrutura como construção de hospitais, além da ação coordenada de gestão da crise, como o controle da mobilidade de pessoas e tráfego.

    Vale ressaltar um aspecto importante nessa discussão: a atual estrutura do sistema de saúde na China. O país enfrentou um desmonte considerável no sistema de saúde que vigorou durante o período socialista, sob Mao Tsé-Tung.

    A partir das reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos 1970, diversos direitos sociais foram atingidos, inclusive a oferta de saúde pública. O descuido ficou evidente com a epidemia de SARS em 2003, quando a China enfrentou o desafio semelhante a pandemia atual. A epidemia de SARS marcou um ponto de inflexão da política governamental chinesa ligada a saúde, e desde então o governo vem procurando estender o sistema de saúde, na esteira da construção da “sociedade harmoniosa” empreendida pelo presidente Hu Jintao. Ainda que não tenha um sistema universal de saúde, e o modelo seja baseado em seguros de saúde, a cobertura foi sendo ampliada ao longo dos anos 2000, de forma a atender a maioria da população.

    Hoje, existem três principais seguros sociais de saúde vigentes na China que cobrem quase a totalidade da população: o Urban Employee Basic Medical Insurance (UEBMI), para trabalhadores formais urbanos, o New Rural Cooperative Medical Scheme (NRCMS), para residentes rurais, e o Urban Resident Basic Medical Insurance (URBMI), para trabalhadores não formais. O sistema tem muitos problemas do ponto de vista de não corresponder a um sistema universal e até mesmo reforçar a desigualdade, mas houve uma melhora importante no fornecimento de saúde na

    China, o que também deve ser considerado quando se pensa em como o Estado chinês conseguiu responder a epidemia do Covid-19.

    Impactos incertos

    Apesar do combate bem sucedido diante da epidemia, não se sabe ainda os impactos da crise para o país. Em 2019, a China já vinha apresentando taxas de crescimento menores. Os primeiros dados após a pandemia mostram um cenário bastante complicado. Houve uma queda dos lucros industriais de 38,3% nos dois primeiros meses de 2020. O investimento concluído por empresas estatais caiu 23,1% em fevereiro. A taxa de crescimento acumulado do valor agregado da indústria caiu 13,5%. A taxa de desemprego urbano aumentou de 5,3% em janeiro para 6,2% em fevereiro.

    Nos anos mais recentes a taxa de crescimento menor da economia chinesa refletia, para além dos efeitos da crise de 2008, uma mudança do perfil do crescimento. Apesar do investimento permanecer sempre alto como proporção do PIB, observa-se maior convergência, principalmente desde 2010, entre as taxas de expansão do PIB, do investimento e do consumo das famílias, o que sinaliza para o fato de que o consumo das famílias começava a avançar em paralelo ao investimento. Ou seja, a China estaria tentando adequar o crescimento a partir do fortalecimento do mercado interno, aliado à modernização da indústria via programas como o China Manufacturing 2025.

    Nesse sentido, é possível que enfrente uma queda brusca na economia, mas o futuro dependerá de como ela responderá a própria crise, em termos de ações estatais, políticas de manutenção e investimento, do emprego e do mercado interno. Essa resposta será fundamental não apenas para a dinâmica do crescimento chinês, mas de todo o mundo, além dos impactos em termos políticos, na medida em que diante da crise a resposta neoliberal de países ocidentais tende a ser desastrosa.

    Finalmente, outro aspecto fundamental com relação à China e à pandemia diz respeito a projeção global.

    Protagonismo global

    Até o momento os Estados Unidos têm fracassado na resposta global à crise. Isso se refere à capacidade de fornecer bens públicos globais e apresentar vontade de coordenar uma resposta global. A pandemia estaria assim testando os elementos da liderança dos EUA. Até agora, Washington estaria falhando e ao mesmo tempo abrindo uma espécie de vácuo global.

    Por outro lado, a China está se movendo, aproveitando esse vácuo e buscando se posicionar como líder global em resposta à pandemia. O presidente Xi Jinping afirmou na abertura do Congresso do Partido Comunista Chinês realizado recentemente que chegou a hora de o país assumir uma posição central no mundo.

    A pandemia está testando os elementos da liderança dos EUA. Até agora Washington estaria falhando e ao mesmo tempo estaria se abrindo uma espécie de vácuo global. A China está se movendo, aproveitando esse vácuo e buscando se posicionar como líder global

    Diante disso, a China vem fortalecendo a narrativa de que está disposta a ajudar o mundo a combater a pandemia. Em março, o governo chinês forneceu assistência material a diversos países, incluindo máscaras, roupas de proteção, kits para testes, respiradores, ventiladores e medicamentos enviados a países como Sérvia, Libéria, Filipinas, Paquistão, República Checa, Itália, Espanha, Irã, Egito, Iraque, Malásia, Camboja, Sri Lanka. Empresas chinesas, como Alibaba, prometeram enviar grandes quantidades de kits de teste e máscaras para os Estados Unidos, além de 20.000 kits de teste e 100.000 máscaras para cada um dos 54 países da África.

    Apesar da postura mais assertiva da China, ainda é cedo para afirmar algo no sentido de uma ruptura hegemônica norte-americana. A capacidade dos Estados Unidos de enfrentar os impactos da pandemia internamente será crucial para manter a posição global, mesmo sem apresentar uma solução, uma vez que sua força está assentada em aspectos estruturais, sejam eles militares ou monetários.

    Ainda assim, o sucesso da resposta da China à pandemia e seu reposicionamento global podem contribuir para acentuar as críticas ao modelo neoliberal, como aquele incapaz de fornecer soluções para a pandemia e à crise global. Aqui a discussão sobre o papel do Estado no combate a pandemia e na recuperação social e econômica será crucial. As ações da China ligadas à centralidade do Estado e ao planejamento podem influenciar significativamente essa discussão.

    *Valéria Lopes Ribeiro é professora do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial e do Programa de Pós-graduação em Relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC)

  • O papel dos cristãos diante do fascismo

    O papel dos cristãos diante do fascismo

    O papel dos cristãos diante do fascismo

    Qual a relação da esquerda com os evangélicos? Ribamar Passos, da Assembleia de Deus e dirigente do PSOL, comenta os dilemas entre igrejas e política no Brasil de hoje

    Por Ribamar Passos

    Vivemos em tempos sombrios, com o avanço do fascismo, a retirada de direitos vitais para os pobres e o acúmulo de riquezas em poucas mãos. Isso tudo exige que o povo cristão, sobretudo os líderes, tenham lado nessa história. Em qual lado deve estar a igreja de Cristo?

    “Assim diz o Senhor: por causa de três transgressões de Israel, e por causa de quatro, não voltarei atrás, porque vendem o justo por prata, e o pobre por um par de sandálias” (Amós 2:6)

    Se seguimos os preceitos bíblicos históricos, não temos dúvida de que a igreja deve estar ao lado do povo pobre e necessitado, dos sem-teto, dos sem-terra, dos desempregados, das prostitutas, dos idosos, dos órfãos. Foi esse o exemplo que Deus, nosso criador, nos deixou quando da edição das tábuas da lei Mosaica, “E, quando teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo”. (Levítico 25:35).

    Se seguimos os preceitos bíblicos históricos, não temos dúvida de que a igreja deve estar ao lado do povo pobre e necessitado, dos sem-teto, dos sem-terra, dos desempregados, das prostitutas, dos idosos, dos órfãos

    Foi esse o ensinamento passado pelos diversos profetas que viveram antes da era cristã, e foi esse o exemplo daquele que deu a vida na cruz por nós. “E quando Jesus ouviu isto, lhe disse: ainda te falta uma coisa; vende tudo quanto tens, reparte-o com os pobres, e terás um tesouro no céu; vem e segue-me” (Lucas 18:22).

    Por isso, devemos estar ao lado desse povo sofrido. Isso significa ser contra esse governo nefasto, contra esse sistema opressor que joga milhões de pais e mães de família na miséria extrema e que destrói os sonhos de nossa juventude.

    O pior para o povo

    O governo Bolsonaro, representa o que há de pior para o povo brasileiro. Se o compararmos aos governantes bíblicos da antiguidade, poderíamos nos lembrar de Nabucodonosor, um tirano que blasfemava e usava o povo de Deus para satisfazer seus delírios.

    Como filhas e filhos de Deus precisamos contribuir para a manutenção do bem-estar social e da paz. Devemos lutar e assegurar que nossos contemporâneos tenham seus direitos garantidos, pois assim, garantimos também a dignidade humana. “Vede que ninguém dê a outrem mal por mal, mas segui, sempre, o bem, tanto uns para com os outros como para com todos” (1 Tessalonicenses 5:15).

    O Brasil é um país de maioria cristã, os evangélicos somam mais de 42 milhões de pessoas no Brasil. Destes, em torno de 80% são assalariados que vivem nas periferias das grandes cidades, são idosos que sonham com uma aposentadoria digna, para que possam ter uma velhice sem tantos sofrimentos, são jovens que sonham com uma educação pública digna e que pensam em ter uma carreira promissora.

    As eleições de 2018

    No ano de 2018 vivenciamos uma situação inusitada, para não dizer outra coisa. Nas eleições para presidente da República e para governadores dos estados, os cristãos apoiaram candidaturas de extrema direita.

    No ano de 2018 vivenciamos uma situação inusitada. Nas eleições para presidente da República e para governadores dos estados, os cristãos apoiaram candidaturas de extrema direita

    A pergunta imediata é: o que está acontecendo com os cristãos no Brasil? A resposta pode demandar muito tempo de estudo e análises. A esquerda no Brasil passou por um momento de inércia nos últimos 13 anos, tendo deixado de lado a formação política da juventude e da militância em geral e se distanciado da base formadora, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja católica. Por outro lado, a crítica aos evangélicos e a defesa das pautas identitárias se tornaram as principais bandeiras de algumas organizações. Com isso, parte dos evangélicos se deixou levar por aqueles que se dizem defensores do povo cristão, da moral e dos bons costumes. Nós Evangélicos, que militamos na esquerda, compreendemos e defendemos as pautas identitárias. Elas são vitais para que esses setores conquistem direitos. No entanto, representamos um número ainda pequeno de cristãos na esquerda.

    Ainda há tempo

    Hoje, partidos como o PSOL e o PT têm um número grande de evangélicos em seus quadros. Alguns são apenas membros de alguma igreja outros são pastores e dirigentes de congregações. Faltam, no entanto, à esquerda brasileira, projetos que façam com que esse grupo social se sinta representado e acolhido. Os cristãos e evangélicos são partes do povo pobre que está nos sindicatos, nas associações de moradores, nos movimentos de sem-terra e sem-teto. “Mas deixarei no meio de ti um povo humilde e pobre; e eles confiarão no nome do Senhor.” (Sofonias 3:12)

    Os cristãos e a esquerda mundial

    A esquerda se caracteriza classicamente pela defesa da justiça, igualdade social e liberdade para todos os povos. Nas últimas décadas, acrescentaram-se a afirmação da pluralidade social, em todas as suas expressões não discriminatórias e não impositivas. No Brasil há desigualdades injustificadas que devem ser abolidas, particularmente quando elas envolvem hierarquias e ordenamentos sociais opressivos e exploradores, sancionados por argumentos baseados na “natureza”, no “costume” ou na “vontade de Deus”. Não restam dúvidas que os cristãos por natureza são de esquerda, ou ao menos deveriam ser, pois seguem preceitos bíblicos, que nos conduzem à prática de ações, que hoje são pautadas pela esquerda no mundo todo. As maiores riquezas que Cristo nos ensinou foi o amor aos pobres e se fazer pobre. Devemos aprender a enxergar Jesus no pobre.

    Há um bombardeio televisivo, com alguns canais de TVs voltados quase que exclusivamente para a transmissão de programas evangélicos, com pastores cada vez mais reacionários. Em sua maioria tais personagens defendem as políticas neoliberais, a teologia da prosperidade e que exibem um Deus que odeia os pobres. Falam o tempo todo em riqueza material, pregam o ódio a homossexuais, presidiários e prostitutas.

    Os cristãos e evangélicos são partes do povo pobre que está nos sindicatos, nas associações de moradores, nos movimentos de sem-terra e sem-teto

    Por isso, é importante que o povo de Deus fique atento aos discursos e às candidaturas políticas que utilizam os anseios e angústias do povo para sua autopromoção. Acabam por colocar em mãos perigosas e muitas vezes criminosas a direção política do país.

    Utilitarismo fascista

    Em tempos anteriores o povo Cristão já foi usado por políticas fascistas, como nos regimes fascista e nazista, na primeira metade do século XX. Precisamos de estudo que nos leve a criar e disseminar a teologia dos direitos sociais, baseados exatamente nas lições extraídas da bíblia.

    Vejamos: “Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás: o salário diário do trabalhador não ficará contigo até a manhã seguinte. (Levítico 19:13);
    “Não oprimas um assalariado pobre, necessitado, seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em tua cidade.” (Deuteronômio 24:14-15);

    É muito difícil dialogar com o povo evangélico, mas não é impossível. Hoje, no Brasil, temos diversas frentes que se criaram com o objetivo de organizar esse povo cristão, com diferentes ideologias políticas e religiosas.

    As frentes em ação

    Temos as seguintes organizações religiosas em atuação:

    – Frente de Evangélicos pelo Estado Democrático de Direito
    Coordenação: Pr. Ariovaldo Ramos e Nilza Valéria Zacarias.
    É um movimento nascido no meio cristão evangélico, com os objetivos de promover a justiça social, a defesa dos direitos garantidos pela Constituição (direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais etc.) e pela legislação internacional de Direitos Humanos.

    – Cristãos Contra o Fascismo
    Coordenação: Tiago Santos e Heber Farias.
    Movimento cristão plural, ecumênico, suprapartidário, radicado na defesa da democracia e contra intolerâncias.

    – Aliança de Batistas do Brasil.
    Coordenação: Pr. Paulo Cesar Pereira.
    Organismo de identidade batista e com caráter ecumênico, constituído por pessoas e comunidades identificadas com os princípios expressos na “Carta de compromissos e princípios”.

    Lugar na esquerda

    No evangelho de Mateus vemos o relato do jovem rico, que não conseguiu se desprender de suas posses materiais, e as declarações de Cristo sobre o perigo das riquezas. Depois que o jovem se retirou triste, Cristo afirmou: “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt. 19:22-24).

    A afirmação de Cristo é mais verdadeira que nunca em nossos dias. Se assim não fosse, os 206 bilionários brasileiros já teriam aberto mão de parte de suas riquezas para ajudar o povo pobre que vive em situações de extrema pobreza no país.

    Claro que cada um cria sua própria interpretação para o que lê, mas não temos dúvidas que nosso lugar é na esquerda.

    Ribamar Passos é presbítero da Assembleia de Deus ministério Madureira Campo de Vila Industrial, Secretário de Política Sindical da Intersindical CCT, membro da comissão de PCCS da Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios, graduando em Química Industrial no IFSP-SZ e presidente do PSOL em Ferraz de Vasconcelos – SP.

  • Confinamento e os limites do capitalismo

    Confinamento e os limites do capitalismo

    Confinamento e os limites do capitalismo

    Esta é a primeira vez na história de 300 mil anos do homo sapiens que todas as sociedades do mundo se concentram ao mesmo tempo sobre o mesmo acontecimento, com tamanho grau de mobilização e impacto econômico

    Por Guilherme Prado Almeida de Souza

    Na batalha contra o covid-19, enquanto as figuras políticas de alto escalão do sistema desejam criar um Leviatã sanitário – como bem classifica a socióloga argentina Maristella Svampa -, na busca por devolver uma situação de estabilidade para o sistema, – algo impossível -, nossa tarefa deve ser diferente. É preciso situar a importância do covid-19 como resultado e como ponto agravante de dois problemas que o atual sistema histórico em declínio enfrenta em sua dissipação. Ambos se denominam os limites do crescimento capitalista e seus limites ecológicos. Ao fazê-lo temos mais possibilidades de eleger reais alternativas sistêmicas.

    Os limites do crescimento capitalista e a emergência do capitaloceno

    Revisitando os “peakists”, como Richard Heinberg, intelectuais que consideram os picos de recursos e limites ecológicos em suas análises, lembramos que as possibilidades para a volta do crescimento estável como nos ditos “anos dourados” do século XX, parecem acabadas. Podemos elencar principalmente três dos limites para o crescimento tal qual conhecíamos:

    O esgotamento de recursos minerais e fósseis ou escassez de suas fontes de fácil extração (que são mais rentáveis), além da instabilidade nos preços dessas commodities. Mercados tranquilos e que favorecem o crescimento “sustentável” são aqueles nos quais os preços sobem devagar.

    Não há apenas um sistema mundial com uma economia regente, há também uma ecologia-mundo. Vermos ecologia e economia em unicidade nos ajuda a entender melhor a atual crise

    A proliferação de impactos ambientais negativos devido à exaustão dos ecossistemas, o que consumirá cada vez mais o orçamento dos Estados e a produtividade das empresas. Os EUA desde 1980 possuem gastos com desastres climáticos que excedem US$ 1.1 trilhão. Só no ano de 2016, foram gastos US$ 46 bilhões.

    Crises financeiras, como a que aconteceu em 2008. Elas poderão ser motivadas inclusive por fenômenos climáticos, como o relatório “The Green Swan”, de atores desse mercado.

    Como tais afirmações antecipam, estamos também diante de limites ecológicos, como:

    • A maior taxa de perda de biodiversidade já registrada.
    • Os impactos do aquecimento global que mata, por exemplo, 5 indianos por dia em eventos relacionados às chuvas.
    • A queda generalizada de 23% da produtividade das terras agricultáveis no mundo.
    • Uma pegada ecológica global de 1,75, ou seja, que torna necessário quase dois planetas por ano para sustentar o atual metabolismo econômico.

    Tal cenário crítico fez o geógrafo britânico Jason W. Moore afirmar estarmos diante do capitaloceno, era geológica na qual as forças produtivas do capitalismo – forças destrutivas, como diz Michael Löwy -, alteram o destino da vida na Terra. Ele inclusive complementa a teoria criada pelo grande sociólogo Immanuel Wallerstein, dizendo que não há apenas um sistema mundial com uma economia regente, há também uma ecologia-mundo. ermos ecologia e economia em unicidade nos ajuda a entender melhor a atual crise.

    Covid-19: um vírus que piora os sintomas do Capitalismo

    Em ligação com essa perspectiva, o marxista argentino Enrique Dussel defende que dentro desse cenário dramático, o coronavírus inaugura um momento único. Seria a primeira vez na história de 300 mil anos do homo sapiens que todas as sociedades do mundo se concernam ao mesmo tempo sobre o mesmo acontecimento, com tamanho grau de mobilização e impacto econômico.

    Isso revela o lado nefasto e regressivo da globalização criada pela modernidade capitalista. Ela exporta cada vez mais rapidamente prejuízos, doenças, desemprego e perdas para a maioria. Consequentemente, não é culpa de nossos coabitantes da terra o fato de 70% das novas doenças em humanos terem origem animal, mas do sistema histórico que nos rege.

    Do ponto de vista ecológico, portanto, essa é mais uma das epidemias zoonóticas que se somam à gripe aviária, suína, e tantas outras decorrentes, dentre outros motivos, do modo capitalista industrial de produzir, e de nossa intrusão ou destruição dos ecossistemas de animais silvestres. Esses espaços se encontram cada vez mais restritos pela urbanização ou expansão das fronteiras das commodities.

    Nesse sentido, estudos mostraram que o surgimento do ebola, por exemplo, está relacionado com os morcegos. Esses animais, também ligados a outras epidemias, já voam para as cidades em busca de comida devido ao desmatamento de suas florestas, entrando em contato com seres humanos. Assim, como nos antes raríssimos extremos climáticos, as epidemias graves têm se tornado cada vez mais comuns e letais. Apesar de tudo isso, de Alberto Fernández, na Argentina, a López Obrador, no México, provavelmente não apareceu nenhuma palavra sobre a questão ecológica até agora.

    Do ponto de vista ecológico, esta é mais uma das epidemias zoonóticas que se somam à gripe aviária, suína, e tantas outras decorrentes, dentre outros motivos, do modo capitalista industrial de produzir, e de nossa intrusão ou destruição dos ecossistemas de animais silvestres

    Nascido na China, o coronavírus resultou em medidas drásticas do governo local, visando isolamento social e fechamento de empresas. Uma das consequências foi a redução da poluição do ar, o que pode ter poupado cerca de vinte vezes mais vidas do que as perdidas pela doença. Esses dados mostram que, longe de dizer que o vírus tenha impacto ambiental positivo, o caos sistêmico já estava instalado muito antes de seu primeiro caso ter sido constatado.

    Na questão mais estritamente econômica, ele acentua as tendências já mostradas antes de sua ascensão. Para a pesquisadora estadunidense Gail Tverberg, que há tempos estuda as taxas declinantes do crescimento econômico, se a redução na produção do petróleo já foi de cerca de 1,6% em 2019, o impacto do vírus pode ser muito mais terrível do que estamos vendo.

    Queda dos preços do petróleo

    Em pouco mais de dez anos o petróleo bateu seus mais altos índices de preço da história (US$ 147 por barril em 2008), e também os mais baixos, chegando recentemente a preços negativos. Tamanha instabilidade pode tornar a produção em alguns lugares um total prejuízo, além de levar produtores até a desativar poços. Tal quadro tornaria ainda mais complicado o casamento entre oferta e demanda. Como estamos diante de um capitalismo fóssil, onde grande parte dos bens e serviços que acessamos para sobreviver é profundamente dependente de energia suja, essa instabilidade deve levar a grandes impactos.

    Se antes muitos economistas analisavam uma crise financeira, a queda ainda maior do crescimento, ou mesmo o encolhimento da economia mundial, tornará insolúvel o mercado financeiro. Somando-se ao endividamento das famílias e empresas, teremos pilhas de dívida estatal ainda maiores, feitas para combater os impactos do coronavírus.

    No terreno social, vemos a incapacidade dos sistemas de seguridade em lidar com o novo cenário de crises e pandemias constantes que enfrentaremos.

    Os benefícios geralmente são cedidos apenas mediante a alguma condicionalidade às pessoas, sejam elas contribuintes ou pobres o bastante. É por isso que o debate sobre renda básica deve se manter para além da atual crise, tendo em vista superar o falido Estado de bem-estar social.

    Nos EUA, um chefe executivo regional do FED diz que os níveis de desemprego podem chegar a 30% e o PIB cair incríveis 50%. Muito menos que isso já tornaria possível uma depressão bem mais séria que a de 1929, quando a economia mundial era muito menos globalizada.

    Mas o que isso tudo representa, sabendo-se que ondas de coronavírus podem manter em alguma proporção parte do isolamento e do fechamento de empresas até 2022?

    Crescimento contínuo

    A atual economia é feita para não parar de crescer. Assim, paradas intermitentes se tornam caóticas. Se olharmos para o caos global, constatando que o desabastecimento de máscaras produzidas na China ou o de cartelas de ovo na Inglaterra são resultado de uma globalização nefasta, tiraremos algumas lições. Talvez uma economia viciada em dogmas como eficiência e escala, – onde mais segurança consiste em maior produção e produção concentrada em um local com menos custos -, terá que dar lugar a resiliência em comunidade e diversidade produtiva local.

    Os tempos de coronavírus nos darão mostra de que conexões locais e circuitos cooperativos e solidários terão maior capacidade de absorção de choques que esta velha economia nos dá. Talvez estejamos diante de um fenômeno maior, de uma grande transição sistêmica

    Os tempos de coronavírus nos darão mostra de que conexões locais e circuitos cooperativos e solidários terão maior capacidade de absorção de choques que esta velha economia nos dá. Talvez estejamos diante de um fenômeno maior, de uma grande transição sistêmica que só nos daremos conta mais adiante. Resta-nos construir o caminho para o lado mais democrático e igualitário na bifurcação diante de nós.

    Guilherme Prado Almeida de Souza é mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC.

     

  • Hora de lutar pelo futuro

    Hora de lutar pelo futuro

    Hora de lutar pelo futuro

    A emergência de uma crise global que pode ser mais profunda que a Grande depressão de 1929 e gerar mais vítimas que a II Guerra Mundial coloca por terra mantras neoliberais, como os do mercado autorregulável e do Estado mínimo. Na contramão de todos, o governo Bolsonaro segue em sua campanha negacionista, com possibilidades de gerar uma hecatombe sanitária no Brasil. Abre-se uma nova possibilidade de disputas

    Por Luiz Arnaldo Campos e Edson Miagusko

    Finalizamos a elaboração deste texto no exato centésimo dia contado a partir do relato do primeiro caso de um vírus desconhecido e com alto poder de contaminação, identificado na região de Wuhan (China). Isso obrigou o governo chinês a decretar sérias restrições de isolamento e controle social para evitar a propagação. A maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil, relevou a epidemia como um problema chinês, resultado de costumes exóticos, num indisfarçável racismo ressuscitado contra esse povo oriental. O vírus só passou a ser levado a sério quando rompeu fronteiras e chegou à Europa, com o epicentro no Norte da Itália e cenas de enterros coletivos, falta de leitos e quarentena obrigatória decretada pelo governo desse país.

    Em cem dias o novo coronavírus se disseminou em escala global. A epidemia saiu da Ásia, se espalhou pela Europa (Itália e Espanha como países com maior quantidade de casos), deslocou-se para os Estados Unidos e chegou ao Brasil e à América Latina.

    Da China aos Estados Unidos, da Itália à França, da Espanha à Alemanha, da Índia ao Brasil, a maioria dos governos foi obrigada a impor medidas de quarentena suspendendo aulas, fechando indústrias e comércio, restringindo a mobilidade entre cidades e regiões, com a finalidade de achatar a curva da pandemia e evitar o colapso dos sistemas de saúde

    Da China aos Estados Unidos, da Itália à França, da Espanha à Alemanha, da Índia ao Brasil, a maioria dos governos foi obrigada a impor medidas de quarentena suspendendo aulas, fechando indústrias e comércio, restringindo a mobilidade entre cidades e regiões, com a finalidade de achatar a curva da pandemia e evitar o colapso dos sistemas de saúde.

    Efeitos imprevisíveis

    Os efeitos da pandemia não são totalmente previsíveis, mas estima-se que haverá uma perda de vidas maior que na II Guerra Mundial, uma crise econômica maior que 2008 e o colapso de sistemas de saúde pelo mundo. Segundo dados da Oxfam, estima-se que mais de 500 milhões de pessoas possam retornar à pobreza.

    Muitos dizem que o mundo nunca mais será como antes e que esta crise marcará os rumos da nossa geração. A imagem hiperbólica é carregada de sentido e faz cada um perceber a ameaça do vírus individual e coletivamente, agregando ao contexto atual de crise econômica, uma dimensão sanitária.

    O mundo pós-vírus será muito diferente deste que estamos presenciando e esse futuro já está em disputa agora. Por enquanto, quase todos os governos do mundo, à exceção do brasileiro e poucos outros, buscam preservar os cidadãos com medidas de quarentena e injeção de recursos do Estado na economia. Antigos neoliberais e defensores dos mercados recorreram ao remédio do Estado para salvar a economia e os cidadãos da crise, com medidas semelhantes de aumento da dívida pública, socorro das empresas e distribuição de recursos para que os indivíduos permaneçam em quarentena.

    Contudo, essa brecha que faz o neoliberal mais ortodoxo clamar pelos recursos estatais é apenas momentânea. O pós-pandemia já está em disputa neste presente insustentável que nos levou até aqui e da sua mudança dependerá o futuro.

    O desastre da ofensiva

    A pandemia chegou ao Brasil num cenário de baixo crescimento econômico e crise política do governo Bolsonaro. Os resultados medíocres do primeiro ano de governo, mesmo com as políticas de ajuste fiscal do ultraliberal Paulo Guedes, não reativaram a economia e tampouco geraram empregos, legando ao país um crescimento econômico pífio, alto desemprego e ataques aos direitos sociais e civis.

    A chegada do vírus, em grande escala, se deu quando Bolsonaro tentava se manter na ofensiva, convocando grandes manifestações contra o Congresso e o STF, num movimento destinado a fazer avançar o autoritarismo, emparedar a esquerda, os movimentos sociais e instituições da República. A sirene de alarme da pandemia e as primeiras medidas de isolamento social melaram as anunciadas manifestações da extrema direita. E as posições tomadas pelo ex-capitão para enfrentar a crise, num primeiro momento em compasso com líderes direitistas mundiais, como Donald Trump, dos Estados Unidos e Boris Johnson, do Reino Unido, tiveram um resultado desastroso para seu governo. Em primeiro lugar, o isolamento internacional.

    Abandono do negacionismo

    A violência da pandemia obrigou rapidamente os líderes dos EUA e Grã-Bretanha a abandonarem posturas negacionistas e aderirem ao isolamento social. Bolsonaro ficou sozinho, sendo alvo de ridicularização em todo planeta, acompanhado no seu despautério apenas por bufões grotescos como os presidentes da Bielo-Rússia e da Turcomenistão, tipos esdrúxulos, sem a menor relevância mundial. Em segundo lugar, abriu uma crise com o ex-ministro da Saúde, perdeu aliados importantes como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, o prefeito de Salvador ACM Neto e diversos cardeais do DEM. A insistência em menosprezar a epidemia e os apelos para a volta da normalidade como meio de salvar a economia erodiram o apoio na classe média que passou a expressar repúdio por meio de “panelaços” diários nas capitais e cidades médias do país.

    O desgaste presidencial resultou no fortalecimento de alternativas de centro-direita para as eleições presidenciais de 2022. Os governadores Dória “gerente privatizador” e Witzel “tiro na cabecinha” até ontem aliados, hoje se tornaram os principais opositores por fazerem o óbvio, sendo elogiados até mesmo por uma parte da esquerda.

    Do mesmo lado estão o vice-presidente Hamilton Mourão, que na campanha eleitoral defendeu posições golpistas, o presidente da Câmara Rodrigo Maia, parceiro do ultraliberal Paulo Guedes tanto no ajuste fiscal, responsável por inviabilizar o enfrentamento da pandemia pelos brasileiros de baixa renda como na destruição gradativa da proteção social e desregulamentação do trabalho.

    O capítulo dramático dessa ópera bufa foi o incensamento de, Luiz Henrique Mandetta, como novo herói nacional, simplesmente por fazer contraponto aos absurdos de Bolsonaro. Em seguida, o ministro foi demitido por brilhar mais que seu superior. No entanto, a insuficiência de leitos, a falta de insumos hospitalares, as dificuldades para o enfrentamento de uma pandemia que o governo antes observava passivamente, nada mais é do que o capítulo mais dramático de um modelo privatista de saúde, construído nas últimas décadas com o apoio relevante do ex-ministro.

    Rainha da Inglaterra

    Abandonado por aliados, o desgaste de Bolsonaro chegou a tal ponto que passaram a pipocar nas redes sociais rumores, até agora não confirmados, da transformação do presidente, pelos generais de seu governo, em uma espécie de ”rainha da Inglaterra”, cabendo ao general Braga Neto, chefe da Casa Civil, o comando administrativo do Planalto.

    Bolsonaro perdeu a oportunidade, que crises externas extremas abrem, de se tornar um líder capaz de unir e guiar o país no enfrentamento de um inimigo comum, que não distingue classes sociais. Porém, apesar de tudo, não está politicamente morto. O espetáculo diário promovido com suas caminhadas em locais públicos, espécie de reality show transmitido pelas redes sociais para os apoiadores, revela uma estratégia de “defensor da economia e dos empregos”, voltada simultaneamente para empresários e setores mais pobres da população. Desresponsabilizando-se pelo combate à pandemia e sendo extremamente vagaroso nas ações econômicas para minimizar os resultados do isolamento social, o presidente busca se eximir das medidas duras e necessárias para o enfrentamento do novo coronavírus.

    Com a popularidade em baixa, procura de imediato fidelizar os 30% da sociedade, considerados o núcleo duro e aposta num futuro de baixa letalidade do novo coronavírus para capitalizar o que chama de “histeria” de seus inimigos e adversários políticos.

    De qualquer forma, sairá da crise menor do que entrou. Se, como dizem vários autores, a pandemia pode ser comparada a uma guerra, o covid-19 tem para Bolsonaro o mesmo efeito do “General Inverno” que dizimou as tropas alemãs quando da invasão da União Soviética.

    Ampliando a desigualdade

    A política negacionista do governo brasileiro não se limita aos aspectos sanitários da crise e se estende para as medidas econômicas adotadas. Num momento em que bastiões do neoliberalismo reconhecem a falência do receituário neoliberal para se contrapor a uma hecatombe mundial e sem o menor constrangimento passam a adotar medidas keynesianas clássicas de garantia de emprego e renda para os trabalhadores e setores mais vulneráveis, a dupla Bolsonaro-Guedes permanece aferrada às ideias estapafúrdias como a facilitação de demissões e cortes salariais, em boa hora rejeitadas pelo povo e os parlamentares.

    A pandemia chegou ao Brasil num cenário de baixo crescimento econômico e crise política do governo Bolsonaro. Os resultados medíocres do primeiro ano de governo, mesmo com as políticas de ajuste fiscal do ultraliberal Paulo Guedes, não reativaram a economia e tampouco geraram empregos

    Uma primeira medida para destinar uma renda básica de R$ 600 para atender trabalhadores informais ou sem meios para obter renda no meio da quarentena foi aprovada pelo Congresso e começou a ser implementada apenas três semanas depois. Mas trata-se de algo insuficiente para enfrentar a crise. E ao se examinar mais detidamente o seu pacote, supostamente redistributivo, é possível notar uma série de arapucas. Segundo o Sebrae, dos 30% micro e pequenos empresários que tiveram de buscar empréstimos para manter os negócios, 29,5% ainda aguardam uma resposta das instituições financeiras e 58% tiveram os pedidos simplesmente negados, na segunda quinzena de abril. Apesar de o socorro aos bancos ter sido anunciado como meio de permitir o financiamento da produção, na prática, o sistema financeiro, numa atitude genocida, entesoura esses recursos destinados a minorar os efeitos da crise.

    Os mantras neoliberais anteriores são incapazes de oferecer qualquer alternativa para enfrentar os efeitos da pandemia. A única saída para o país minimizar e enfrentar essa crise de longo prazo é uma política distributiva capaz de privilegiar o atendimento da ampla maioria dos brasileiros que vivem do trabalho, com papel indutor do Estado e medidas de redistribuição para fazer pesar os sacrifícios sobre aqueles que mais podem arcar com a crise.

    Não é demais lembrar que o Brasil é o vice-campeão da desigualdade social no mundo com 1% dos habitantes concentrando 28,3% da renda nacional, atrás apenas do Catar. Segundo o mesmo relatório da Oxfam, cinco bilionários concentram a mesma renda de 100 milhões de brasileiros. A desigualdade brasileira é um dos principais entraves para a resolução dessa crise de largas proporções e só é possível salvar vidas se atentarmos para a centralidade.

    A Luta contra a destruição

    Nada melhor que esta pandemia para revelar o caráter de destruição nacional do governo Bolsonaro e a insânia que preside seus atos e orienta seus seguidores. Nas vésperas da Páscoa, como notou o jornalista Ricardo Kotscho, uma macabra carreata de apoiadores, com automóveis e motos importadas, além de caminhões de último tipo, circulou pela Avenida Paulista com sirenes ligadas sem se importar com os vários hospitais lotados de atingidos pelo coronavírus.

    Esse é apenas um símbolo de uma política, baseada na provocação e confrontação permanentes, indiferente à sorte da maioria da população. Porém, essa política débil, com diversos flancos expostos não tem sofrido um combate a altura por parte da oposição, particularmente do setor mais à esquerda. O PDT, de Ciro Gomes, se aferra ao projeto de construir um polo ao mesmo tempo, contrário a Bolsonaro e Lula e, com isso, consegue na prática, debilitar a luta contra o monstro genocida. Ao PSOL e o PT falta a elaboração de um programa de medidas econômicas para enfrentar a crise. Pois, se no terreno sanitário e contraposição entre o “fique em casa” e a política bolsonarista de “isolamento vertical” vem conseguindo ser feita, na área das medidas socioeconômicas, a esquerda até agora não conseguiu apresentar uma proposta que globalmente se confronte com os planos do governo, limitando-se a ações reativas contra os aspectos mais calamitosos dessa política. A lacuna precisa urgentemente ser preenchida, principalmente se considerarmos o cenário pós-crise onde o centro da política certamente será a disputa entre os distintos projetos de reconstrução do país.

    Abandonado por aliados, o desgaste de Bolsonaro chegou a tal ponto que passaram a pipocar nas redes sociais rumores, até agora não confirmados, da transformação do presidente, pelos generais de seu governo, em uma espécie de ”rainha da Inglaterra”

    Por outro lado trazem vivas esperanças os esforços e mobilizações autônomas desenvolvidas por grupos e pessoas sejam nos “panelaços”, nas redes sociais ou em ações de solidariedade social. Com as ruas interditadas a criação de novos espaços de militância social deve ser vista com grande otimismo.

    Um futuro imprevisível

    Até agora ninguém sabe quanto vai durar e até onde irá se estender a pandemia, mas uma coisa é certa: os resultados já são catastróficos para a Humanidade. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o covid-19 já destruiu o equivalente a 14 milhões de empregos na América Latina e Caribe. Já os dados do Sebrae são ainda mais alarmantes. Para este organismo, só no Brasil, nove milhões de trabalhadores já foram demitidos e, pelo menos, 600 mil micro e pequenas empresas fecharam as portas.

    Os mantras neoliberais anteriores são incapazes de oferecer qualquer alternativa para enfrentar os efeitos da pandemia. A única saída para o país minimizar e enfrentar essa crise de longo prazo é uma política distributiva capaz de privilegiar o atendimento da maioria dos brasileiros que vivem do trabalho, com papel indutor do Estado e medidas de redistribuição para fazer pesar os sacrifícios sobre aqueles que mais podem arcar com a crise

    É difícil prever o quadro social e político que emergirá no planeta quando o coronavírus passar. Mais angustiante ainda se ouvirmos as vozes que preveem esta como apenas a primeira de uma série de pandemias. Certamente o atual padrão de neoliberalismo global sairá profundamente debilitado, mas, estamos longe de vislumbrar que alternativa se afirmará. Por um lado, o crescimento de propostas de extrema direita nacionalistas e xenófobas parece ser uma possibilidade, assim como não pode ser descartado um retorno a um keynesianismo mitigado que procure fazer frente a um período prolongado de privações. Porém, se há algo espantoso nessa pandemia global, como nos alerta Bruno Latour, é a suspensão, em questão de semanas e em todo o mundo, de um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível redirecionar ou desacelerar.

    A esquerda até agora não conseguiu apresentar uma proposta que globalmente se confronte com os planos do governo, limitando-se a ações reativas contra os aspectos mais calamitosos dessa política. A lacuna precisa urgentemente ser preenchida

    Ficou provada a possibilidade de colocar fim à irracionalidade desse modelo responsável pela adoção de modos de vida predatórios e cada vez mais desiguais. Este acontecimento deve servir de estímulo às lutas contra novas catástrofes anunciadas como a crise ambiental e o aquecimento global. Para lutadores anticapitalistas do mundo inteiro é um motivo de alento.

    * Luiz Arnaldo Campos é cineasta e presidente do Conselho Curador da Fundação Lauro Campos/ Mariele Franco.
    * Edson Miagusko é sociólogo e professor de Sociologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

  • Fora Bolsonaro e Mourão! Eleições livre e antecipada!

    Fora Bolsonaro e Mourão! Eleições livre e antecipada!

    Fora Bolsonaro e Mourão!
    Eleições livre e antecipada!

    Quatro notas sobre a mudança da conjuntura e da tática

    A mudança na conjuntura impacta as distintas classes sociais de forma diferente. Os dias passaram a contar por semanas, e as semanas por meses. Tudo se acelerou. Uma parcela da classe média, sob a ameaça da iminência de um cataclismo sanitário sem precedentes, perdeu confiança na capacidade de Bolsonaro responder à emergência sanitária e começou a se manifestar nas janelas. Uma maioria dos setores organizados da classe trabalhadora se consolidou na oposição. Uma maioria burguesa pressiona para que todas as instituições, Congresso e STF e, se necessário até o generalato, enquadrem Bolsonaro, e imponham uma tutela

    Por Valério Arcary

    1. A conjuntura mudou, e exige da esquerda uma mudança na tática. Quando nossos inimigos enfraquecem, a mão não pode tremer, é preciso bater mais forte. Uma maioria dos setores organizados da classe trabalhadora e da juventude já está na oposição. Chegou a hora de agitar Fora Bolsonaro!

    O gatilho foi o alinhamento insólito de Bolsonaro com as teses negacionistas da pandemia devastadora que assola o mundo. Estamos na inusitada situação de um presidente em luta pública contra o próprio ministro diante de uma guerra pela saúde pública. A emergência sanitária e as divisões na classe dominante provocaram um isolamento de Bolsonaro. O desgaste é um processo em curso, tem dinâmica lenta, mas é clara.

    Nas últimas semanas, a maioria dos governos estaduais passou a questionar a orientação da Presidência da República e o apoio de alguns dos principais grupos de mídia do país a Mandetta. Uma crise política está escancarada, e vivemos uma situação anômala, excepcional e anormal de “dualidade de poder” institucional, porém, o paradoxo é que prevalece a linha do ministro, não de Bolsonaro. Não parece sustentável, indefinidamente.

    Mas, ao mesmo tempo, que a obtusa e teimosa atitude provocatória de Bolsonaro potencializa a crise do governo, o regime democrático-liberal se fortalece, revelando plasticidade, ou capacidade de absorção de choques, de adaptação ao conflito de poderes, e de iniciativa diante da crise. Abriu-se uma conjuntura de instabilidade, mas deve se fechar. O poder não é compatível com um impasse prolongado, quando há um perigo imenso no horizonte.

    A mudança na conjuntura impacta as distintas classes sociais de forma diferente. Os dias passaram a contar por semanas, e as semanas por meses. Tudo se acelerou. Uma parcela da classe média, sob a ameaça da iminência de um cataclismo sanitário sem precedentes, perdeu confiança na capacidade de Bolsonaro responder à emergência sanitária, e começou a se manifestar nas janelas. Uma maioria dos setores organizados da classe trabalhadora se consolidou na oposição. Uma maioria burguesa pressiona para que todas as instituições, Congresso e STF e, se necessário até o generalato, enquadrem Bolsonaro, e imponham uma tutela.

    Mas isso só é possível, parcial e efemeramente, e parece improvável que se mantenha, pois entre outros fatores, Bolsonaro tem uma personalidade messiânica, uma corrente de massas neofascista, importante resiliência política no aparelho repressivo do Estado e apoio do governo norte-americano.

    Uma nova conjuntura impõe uma mudança na tática. Quando há giros na situação política é comum que as organizações de esquerda sofram com um nível mais áspero de polêmica interna. Entram em crise e não é raro que se dividam. Portanto, o PSOL acaba de passar por uma prova importante.

    A executiva nacional do PSOL já aprovou uma resolução que levanta o Fora Bolsonaro e Mourão. Apresentou a defesa de que a melhor saída deve ser a luta por eleições diretas livres e antecipadas, pois Mourão não tem legitimidade para assumir a presidência. Livres porque é necessário anular as decisões da LavaJato, e garantir a restituição dos direitos políticos de Lula.

    Essa decisão facilita uma maior unidade entre as diferentes correntes do partido. Poderemos discutir se o fez de forma atrasada ou adiantada, o que é um debate que pode ser educativo, mas é um balanço. Balanços têm o seu lugar e são indispensáveis para uma militância séria, mas com maturidade. Nem mais, nem menos. O que é, realmente, importante é que a confluência na necessidade de exigir o Abaixo o governo abre o caminho para que o PSOL se fortaleça.

    2. Fora Bolsonaro é uma consigna de agitação. Não é para a ação. As palavras de ordem para a ação são aquelas articuladas com a necessidade de salvar vidas: defender os profissionais de saúde que estão abandonados na primeira linha de defesa, proibir demissões, defender os salários de quem tem emprego, e construir a solidariedade.

    A conjuntura mudou com o enfraquecimento de Bolsonaro, mas a situação reacionária ainda está longe de mudar. São dois níveis de abstração distintos na análise da realidade: estrutura social e superestrutura política. As relações sociais de força se alteram quando se precipitam embates em que, claramente, ocorre uma vitória ou derrota de uma das classes em luta.

    Dentro de uma mesma situação existem diversas conjunturas. Uma análise só é marxista se a sua referência é a luta de classes. O que define uma situação é a relação social de forças, ou o estudo das posições relativas na estrutura da sociedade da burguesia, dos trabalhadores e setores oprimidos e da classe média. As relações sociais de forças são mais estáveis que as relações políticas de força. Porque as relações políticas de força, ou a posição relativa do governo, das diferentes instituições de poder, como o Congresso, o Judiciário, as Forças Armadas, os governos estaduais, os partidos políticos, na superestrutura da vida social se alteram, oscilam, deslocam-se mais rapidamente. Mas este descompasso é transitório.

    A conjuntura mudou, embora a situação ainda seja reacionária, ou seja, a classe trabalhadora permanece, infelizmente, na defensiva. Até agora, foram os governadores que se fortaleceram, não a esquerda. Ignorar que a situação permanece reacionária seria uma ilusão, mas desconsiderar a mudança da conjuntura seria um erro gravíssimo. Podemos e devemos nos inspirar no bom e velho empirismo leninista para a análise.

    Recordemos que o contexto histórico recente deve ser levado em conta. O golpe de 2016 triunfou com pouca resistência, o que só é explicável pelo que foi a orientação dos governos do PT e as divisões que geraram dentro da classe trabalhadora e na juventude. Viemos de derrotas acumuladas, e abriu-se uma situação reacionária. Lembremos, também, que nenhum governo cai, se não for derrubado, seja a “frio” ou a “quente”. Acontece que a “ frio” é muito incomum. E a “quente” depende da entrada em cena das massas populares à chilena. Nenhuma luta está perdida antes que acabe. E a luta contra Bolsonaro está apenas começando.

    Nunca será bastante sublinhar que a potência da resistência a Bolsonaro esteve no movimento de mulheres que construiu o #EleNão na hora mais triste de 2018, e entre a juventude que protagonizou o tsunami da educação em 2019. Serão, provavelmente, a primeira linha quando pudermos voltar às ruas.

    A conjuntura mudou com o enfraquecimento de Bolsonaro, mas a situação reacionária ainda está longe de mudar. São dois níveis de abstração distintos na análise da realidade: estrutura social e superestrutura política. As relações sociais de força se alteram quando se precipitam embates em que, claramente, ocorre a vitória ou a derrota de uma das classes em luta

    Fora Bolsonaro é o centro da luta para salvar vidas. Por quatro razões: (a) porque a pandemia é de máxima gravidade; (b) porque Bolsonaro errou rude, deixou um flanco aberto, subestimou o medo da população diante de drama de saúde pública, abriu uma crise na relação com as instituições; (c) porque uma onda de protestos se iniciou mesmo nas condições de quarentena, com a ocupação das janelas e deve ser impulsionada; (d) porque o embrião de uma Frente Única de Esquerda ganhou força com a plataforma das Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular.

    3. Mudou a conjuntura, e ela exige lucidez e coragem. Audácia, audácia e audácia. Abriu-se uma brecha para a oposição, portanto, para a esquerda.

    Só que a luta para que a esquerda ocupe um lugar central na oposição a Bolsonaro não é simples. O Brasil contemporâneo nunca viveu as sequelas de uma guerra. O impacto de um cataclismo em poucas semanas, infelizmente, com a possibilidade de dezenas de milhares de mortes, é imprevisível. Será, provavelmente, um terremoto na consciência de dezenas de milhões.

    Não há razão, contudo, para alimentar ilusões “facilistas” de que o processo de desgaste de Bolsonaro será gradual e constante, menos ainda que resulte, necessariamente no aumento da confiança na esquerda. Tudo estará em disputa. Bolsonaro reagirá e tem ambições bonapartistas. Dória e Witzel, que foram garantia da governabilidade de Bolsonaro, já se reposicionaram pela necessidade de uma unidade nacional de emergência contra Bolsonaro. Haverá ação e reação, e uma luta implacável.

    Bolsonaro enfraqueceu, mas mantém apoio. Há uma oportunidade. A burguesia está dividida em torno de um tema central, o que é uma novidade. Não acontece desde 2017, quando do escândalo da gravação de Michel Temer com Joesley Batista na garagem do Palácio do Jaburu. Uma maioria da classe dominante apoia a tática de mitigação defendida pelos governadores e até por uma ala do próprio governo Bolsonaro, liderada por Mandetta.

    O golpe de 2016 triunfou com pouca resistência, o que só é explicável pelo que foi a orientação dos governos do PT, e as divisões que geraram dentro da classe trabalhadora e na juventude

    Salvar vidas é um programa humanitário. Unidade na ação é legítima contra Bolsonaro. Mas não há um programa comum possível. A tática da Frente Ampla com Maia ou Dória prepara uma derrota que será fatal. A esquerda deve se diferenciar com programa próprio que precisa ser ordenado pela defesa da quarentena total e nenhuma demissão, porque todas as vidas importam. Deve exigir que, diante da crise, os mais ricos devem pagar pelo preço dela e, portanto, diante da tragédia, as grandes fortunas e as grandes corporações têm que ser taxadas. Por último, deve-se dizer que Bolsonaro tem que ser deslocado.

    No início de março, a posição negacionista de Bolsonaro diante do perigo de uma pandemia catastrófica não era excepcional. Não era somente Bolsonaro que defendia a continuidade da atividade econômica, a facilitação do contágio em massa para uma rápida imunidade de grupo e o isolamento social dos idosos. Era compartilhada pelos governos dos EUA, do Reino Unido, e até da Itália e da França, e só o colapso do sistema hospitalar na Lombardia levou a um reposicionamento.

    A posição de Bolsonaro contra o distanciamento social parece uma loucura, mas obedece a um método. É a expressão de uma visão de mundo. Responde à assustadora mistura de estratégia neofascista e ideologia ultraliberal. Naturalizava uma visão assombrosa de eugenia social. Há um debate na esquerda sobre a sanidade mental de Bolsonaro. É plausível discutir, seriamente, o problema, pois é indispensável saber contra quem lutamos. É claro que há que considerar, em alguma medida, o papel do indivíduo na história. O comportamento de Bolsonaro sugere uma mente paranoica, mas subestimá-lo constantemente tem sido um grave erro.

    Salvar vidas é um programa humanitário. Unidade na ação é legítima contra Bolsonaro. Mas não há um programa comum possível. A tática da Frente Ampla com Maia ou Dória prepara uma derrota que será fatal. A esquerda deve se diferenciar com programa próprio que precisa ser ordenado pela defesa da quarentena total e nenhuma demissão, porque todas as vidas importam

    Ele é um monstro, não importa se é doido. Não será com um atestado médico de insanidade que será derrotado. Não é um bom critério de luta política priorizar a acusação dos inimigos de classe como dementes, maníacos, psicopatas. Socialistas não consideram que a sociedade se divide entre os saudáveis e os malucos. Não reduzimos nossa luta a uma avaliação clínica, psicológica. O bolsonarismo é uma corrente política neofascista que tem apoio de um terço da população. Mas, também, porque respeitamos aqueles que, entre nós, têm sofrimento psíquico.

    4. Aonde vamos? A situação vai ficar muito mais grave, antes de melhorar. Ela vai nos colocar diante de desafios perigosos. A possibilidade de interrupção do mandato se abriu, embora não seja a mais provável, porque não tem apoio de nenhuma fração burguesa importante. Mas a crise sanitária pode ser explosiva, Bolsonaro pode cometer erros muito mais graves, e as massas populares podem entrar em cena.

    Viemos há cinco anos de acumulação ininterrupta de vitórias das forças reacionárias, mas não houve derrota histórica. Há que evitar tanto os otimismos “selvagens”, quanto os pessimismos “hipocondríacos”. Sejamos realistas, portanto, paciência revolucionária. Nossa aposta repousa na confiança de que em situações extremas as massas populares e a juventude liberam forças extraordinárias, e tiram lições políticas mais rapidamente.

    Os cenários políticos serão condicionados pela evolução da crise sanitária e da crise econômico-social. Eles serão decisivos para prever os desdobramentos políticos. Os parâmetros objetivos que permitem projetar a dinâmica da evolução da pandemia no Brasil serão, essencialmente, a extensão e intensidade do contágio, e a taxa de letalidade.

    Bolsonaro é um monstro, não importa se ele é doido. Não será com um atestado médico de insanidade que será derrotado

    Não há dados incontroversos, uma vez que não foram feitos testes em massa e é improvável que se consiga fazê-los antes de maio. Não está claro quais serão as terríveis dimensões da catástrofe, mas serão dramáticos, porque as projeções mais moderadas consideram dezenas de milhares de óbitos já na primeira onda, e as mais apocalípticas não menos de centenas de milhares.

    O impacto poderá favorecer as inevitáveis conclamações à “unidade nacional” contra o vírus. Governos e mídia apresentarão o flagelo como inevitável, anistiando os governos em todas as esferas. Mesmo assim, é possível que esse discurso não seja suficiente para acalmar o mal-estar popular, pois associada ao crescimento da demanda por atendimento hospitalar, veremos as condições materiais de sobrevivência das grandes massas se deteriorar. A aprovação do programa de renda mínima de emergência para cinquenta milhões de pessoas será um fator de relativa atenuação da catástrofe, mas tem prazo curto de validade, porque uma segunda onda de contágio é previsível.

    Nesse contexto, temos três grandes cenários políticos. O primeiro e mais provável, no momento, é que a pressão pelo enquadramento de Bolsonaro seja, em alguma medida, bem sucedida durante a crise. Enquanto ganha tempo, e procura sair do isolamento, Bolsonaro pode tolerar um “freio de arrumação” das alas em disputa, ou uma gestão do ministério articulada pelos generais do Planalto e mediada por Braga Neto. Seria um passo atrás, transitório, enquanto se verifica o ritmo da pandemia e suas sequelas econômicas.

    Ninguém sabe, realmente, as negociações que aconteceram nessas últimas semanas na cozinha do Palácio, mas parece prevalecer um acordo de divisão de tarefas, em que Bolsonaro e sua ala neofascista, contrariados, aceitaram que a linha de Mandetta continue sendo aplicada, diante do jogo de pressões. Embora Bolsonaro tenha provado que é incontrolável. Essa hipótese é a que tem hoje o apoio explícito da maioria da classe dominante.

    A segunda hipótese é que diante de um agravamento desastroso da pandemia, da insatisfação social crescente, do comportamento irresponsável de Bolsonaro, e o perigo de uma subversão revolucionária a chilena, uma maioria burguesa se constitua defendendo um deslocamento de Bolsonaro a “frio”, pelas regras constitucionais. Acontece que o Brasil não é a Argentina. Seria uma solução extrema para a burguesia brasileira, portanto, menos provável. A tradição da cultura política em Brasília é a negociação permanente.

    O maior problema é que Bolsonaro nunca aceitará a renúncia. Não é o seu perfil político, social ou psicológico. Não é Jânio Quadros, embora venha ensaiando blefes bonapartistas, como o de 15 de março. Por outro lado, a urgência de manutenção da linha de distanciamento social não é a mesma do início dos anos 1960. Líderes como Bolsonaro lutam até o fim. Preferem a morte à rendição sem luta. Apelaria à mobilização de massas de suas hordas envenenadas pela ideologia neofascista.

    O maior problema é que Bolsonaro nunca aceitará a renúncia. Não é o seu perfil político, social ou psicológico. Não é Jânio Quadros, embora venha ensaiando blefes bonapartistas, como o de 15 de março

    Nessas circunstâncias, porque um animal político encurralado é muito perigoso, Bolsonaro poderia apelar para a decretação de Estado de sítio, a tentação golpista. Um deslocamento a “frio” teria que ser, portanto, uma intervenção implacável, cirúrgica, instantânea: um impeachment de emergência, feito às pressas, e negociado com o Supremo, “com tudo”. Ou uma combinação de impeachment parlamentar com julgamento do STF. Sempre existem advogados habilidosos para a arquitetura de um processo.

    A terceira hipótese seria a abertura de um deslocamento a “quente”, uma derrubada revolucionária de Bolsonaro. Essa hipótese, que deve ser a estratégia do PSOL, e por ela deve lutar para construir a Frente Única de Esquerda é, por enquanto, infelizmente, muito improvável, por várias razões. O maior obstáculo é que ela não depende somente das sequelas do cataclismo sanitário e social, ou das barbaridades que Bolsonaro venha a cometer.

    Para que a situação venha evoluir nessa direção são necessárias, também, outras três condições. A primeira é que a burguesia e seus representantes, tanto no Congresso Nacional e STF, como nos governos estaduais, venham a cometer erros de gestão da crise que levem a uma ruína nacional sem precedentes, um fracasso retumbante. A segunda é que as massas entrem em cena com disposição revolucionária de luta. A terceira é que os partidos de esquerda com maior influência não aceitem os cantos de sereia da classe dominante, e não abracem a estratégia quietista de deixar sangrar Bolsonaro até 2022, aceitando dar tempo para ele se recuperar, com medo de medir forças nas ruas. Ou, tão grave quanto, uma rendição diante de Mourão como um mal menor.

    O papel da esquerda deve ser a defesa de uma saída anticapitalista. O Brasil precisa de uma esquerda com instinto de poder e um programa socialista.

    Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP. Doutor em história pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98 e, desde 2016, é membro da Coordenação Nacional do MAIS/PSOL. É autor de O martelo da história, entre outros livros.

     

  • Bolsonaro e o grande capital no rastro das queimadas amazônicas

    Bolsonaro e o grande capital no rastro das queimadas amazônicas

    Bolsonaro e o grande capital
    no rastro das queimadas amazônicas

    Se a devastação ambiental não for detida, a maior floresta tropical do mundo pode chegar a um ponto de não-retorno em seu processo de extinção. A busca do lucro sem freios coloca em risco não apenas a biodiversidade, mas populações inteiras que dependem de rios e matas para existirem

    Por Priscilla Cardoso Rodrigues & Mônica Xavier de Medeiros

    Na tarde do dia 19 de agosto de 2019, o céu da cidade de São Paulo escureceu. O encontro de uma frente fria com nuvens de queimadas vindas da floresta amazônica formou um fenômeno que fez a tarde virar noite. Com isso, as queimadas na Amazônia ganharam visibilidade na imprensa, fazendo com que o mundo inteiro voltasse os olhos para a maior floresta tropical. Ela comporta um terço de toda a biodiversidade, forma a principal reserva de carbono e representa quase metade de todas as florestas tropicais remanescentes da Terra.

    A Amazônia começou a queimar com a articulação das atividades madeireira e pecuária: desmatava-se a floresta, retirava-se toda a madeira de valor e, finalmente, vinha o fogo a preparar a terra para a formação de pastos

    Tais fatores, entretanto, não impedem que o Brasil também seja um dos maiores emissores planetários de gases de efeito estufa por desmatamento, sendo responsável pela derrubada de mais de 2 milhões de hectares anuais de florestas somente na Amazônia.

    A sanha exploratória

    O desmatamento na Amazônia brasileira começou a crescer após a implementação de projetos econômicos e de infraestrutura realizados pela ditadura civil-militar (décadas de 1960-70), que colocou o “desenvolvimento econômico” da região amazônica na ordem do dia. O lema “integrar para não entregar”, engendrado a partir da lógica de Segurança Nacional, via a região como um imenso vazio demográfico, presa fácil aos grupos guerrilheiros que lutavam nos países fronteiriços.

    Milhares de plantas e animais que compõem a rica biodiversidade amazônica estão sob ameaça de extinção devido às queimadas e os efeitos do desmatamento para o aquecimento global têm atingido toda a humanidade

    Para “salvar” a Amazônia, a ditadura organizou a abertura da Floresta à exploração predatória por meio da promoção do crescimento populacional, da migração, invasão e ocupação de territórios indígenas, e da expansão do latifúndio e do subsídio aos projetos ligados à pecuária, extração de madeira, mineração, construção de hidrelétricas e estradas.

    A Amazônia começou a queimar com a articulação das atividades madeireira e pecuária: desmatava-se a floresta, retirava-se toda a madeira de valor e, finalmente, vinha o fogo a preparar a terra para a formação de pastos.

    Agronegócio e grandes projetos

    Adotando o agronegócio como a principal fonte de riquezas do Brasil, mesmo após a democratização, nas décadas de 1980-90, os diversos governos que se seguiram nada fizeram para mudar a política para a Amazônia. Até mesmo durante os 13 anos de governos petistas, os chamados “grandes projetos” continuaram sendo implementados, tendo a hidrelétrica de Belo Monte, construída no governo Dilma Rousseff, como marca indelével da submissão da natureza às ordens do capital. A floresta amazônica continuou sendo mercantilizada, enquanto os modos de vida e trabalho dos moradores foram sistematicamente alijados.

    Mais especificamente em relação às queimadas, desde 2009, cidades amazônicas como Manaus e Rio Branco têm o cotidiano afetado por nuvens de fumaça que transformam o dia em noite. Em 2015, formou-se um corredor de fumaça gigantesco que ia da região do baixo-Amazonas – no estado de mesmo nome – até o Pará. Esse corredor de fumaça era tão grande que podia ser detectado por satélites.
    Aeroportos fechados por falta de visibilidade e as pessoas da região lotam os postos de saúde devido a problemas respiratórios. Um estudo de 2017 demonstrou que a fumaça das queimadas na Amazônia causa danos ao material genético e morte das células pulmonares, podendo os efeitos se estenderem por toda a América do Sul. Além disso, milhares de plantas e animais que compõem a rica biodiversidade amazônica estão sob ameaça de extinção devido às queimadas e os efeitos do desmatamento para o aquecimento global têm atingido toda a humanidade.

    O que mudou com Bolsonaro?

    O governo Bolsonaro representou um salto de qualidade na mercantilização da Floresta Amazônica. Setores da burguesia ligados ao agronegócio, à mineração e ao capital internacional ocuparam cargos-chave no aparelho de Estado que deveriam elaborar políticas públicas de proteção ambiental, demarcação de terras indígenas e quilombolas, reforma agrária e apoio à agricultura familiar e, inclusive, programas de prevenção e combate às queimadas. Isso levou ao enfraquecimento de políticas e de órgãos estatais fundamentais para a defesa da Floresta – como o Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, ICMBIO, FUNAI, INCRA – e de programas como o Prev-Fogo.

    Se isso não fosse o suficiente para colocar a Floresta em risco, o discurso anti-índígena e antiambientalista de Bolsonaro deu força a atividades criminosas realizadas por agropecuaristas, grileiros, madeireiros e garimpeiros. Sentindo-se poderosos ao verem o presidente como aliado, e na certeza da impunidade em relação aos crimes ambientais, fazendeiros do sudoeste do Pará promoveram o “Dia do Fogo” em agosto, que consistiu na organização criminosa de incêndios florestais na região por meio de convocação feita por meio de mensagens de WhatsApp. Como resultado, de acordo com o INPE, as queimadas na Amazônia aumentaram 196% naquele mês, comparadas ao mesmo mês do ano passado.

    Desmatamento recorde

    O desmatamento aumentou exponencialmente no governo Bolsonaro e isso foi fundamental para a ampliação dos focos de incêndio na Amazônia e em todo o Brasil. A nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia (IPAM), divulgada em agosto de 2019, revelou que a estiagem deste ano pode ser considerada suave, portanto, não se pode apontar a falta de umidade como principal causa das queimadas. A nota técnica também concluiu que os dez municípios da Amazônia que tiveram as maiores taxas de desmatamento foram justamente aqueles que apresentaram mais focos de incêndio, o que revela que “a concentração de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem branda, representa um forte indicativo do caráter intencional dos incêndios: limpeza das áreas recém-desmatadas”.

    Os povos da floresta

    Quilombolas, indígenas, ribeirinhos e trabalhadores rurais amazônicos têm maneiras próprias de conviver com a floresta. Os rios, lagos, terras, árvores são dimensões de sociabilidade, na qual plantas, animais e seres humanos formam uma rede bastante frágil de relações das espécies entre si e com o meio ambiente, de cujo equilíbrio dependem o clima, a qualidade da água, o solo, a reciclagem de nutrientes e demais serviços ecossistêmicos fornecidos por esse bioma.

    Entretanto, desde o golpe de 2016 e, de forma mais acentuada, desde o início do governo Bolsonaro, esse equilíbrio tem sido ameaçado em decorrência do avanço do agronegócio e da mineração em larga escala sobre os territórios desses povos tradicionais, especialmente dos povos indígenas. Além de o Presidente retirar a proteção governamental das áreas protegidas da Amazônia (terras indígenas e unidades de conservação), também tem feito pronunciamentos propondo a abertura dessas áreas para a produção capitalista, provocando aumento dos casos de queimadas, ocupação e garimpo ilegal, bem como a desestruturação dos modos de vida e trabalho desses povos.

    Golpe na reforma agrária

    No mesmo sentido, a reforma agrária também sofreu um duro golpe com a aprovação da Lei nº 13.465/2017 (apelidada Lei da Grilagem), que legalizou a mercantilização de terras, transformando-as em ativo comercial, tendo adotado, como principais medidas, a antecipação da emancipação dos assentamentos para que os lotes estivessem disponíveis mais cedo para a venda no mercado de terras e a legalização da grilagem. Soma-se a isso a ampliação para 2.500 hectares o limite de regularização de terras públicas devolutas no âmbito do programa Terra Legal na Amazônia.

    Desde o golpe de 2016 e, de forma mais acentuada, desde o início do governo Bolsonaro, o equilíbrio ecológico tem sido ameaçado em decorrência do avanço do agronegócio e da mineração em larga escala

    O grande problema é que, como qualquer outro ecossistema, a Amazônia também tem um ponto limite que, se ultrapassado, impedirá para sempre a recuperação: “Muitos cientistas temem que a floresta inicie um processo irreversível em direção a savanas se o desmatamento atingir 40% do território. As implicações dessa transformação para o aquecimento global, ciclos hidrológicos e biodiversidade seriam catastróficas”.

    Portanto, só conseguiremos entender melhor o contexto do aumento das queimadas – que chamou a atenção do mundo ao escurecer o céu de São Paulo no meio da tarde – e os reais efeitos desses fenômenos para os brasileiros e para toda a humanidade – se compreendermos que ele se encontra inserido num contexto mais amplo de desestruturação de direitos territoriais e ambientais duramente conquistados pelos movimentos sociais desde a queda da ditadura civil-militar. Tais direitos têm sido, por décadas, as principais armas dos povos amazônicos para a proteção e defesa da floresta, dos territórios ancestrais e da sobrevivência física e cultural.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

     

    Priscilla Cardoso Rodrigues é graduada e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista/UNESP; doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/FDUC; professora do Instituto de Ciências Jurídicas e do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima/UFRR; e investigadora do Instituto Jurídico da FDUC.

     

     

    Mônica Xavier de Medeiros é doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de SP–PUC/SP; e professora do curso de Licenciatura em História da Universidade do Estado do Amazonas/UEA.

     

     

     

    1. LAURANCE, William F. et al. The Future of the Brazilian Amazon. Science, v. 291, p. 438-439, Jan. 2001.
    2. STEVENS, Caleb; WINTERBOTTOM, Robert; SPRINGER, Jenny; REYTAR, Katie. Securing Rights, Combating Climate Change: How Strengthening Community Forest Rights Mitigates Climate Change. Washington, DC: World Resources Institute, 2014
    3. FOLHA DE SÃO PAULO. Fumaça de queimadas encobre Manaus (AM). 30/09/2009; O GLOBO. Nuvem de Fumaça cobre Manaus. https://oglobo.globo.com/brasil/nuvem-de-fumaca-cobre-manaus-3121078. Publicado em 30/09/2009. Acesso em 02/11/2019; Manaus amanhece com fumaça. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/manaus-amanhece-com-fumaca-de-queimadas. Publicado em 02/10/2009. Acesso 02/11/2019;
    4. Desmatamento e queimadas voltam a aumentar na Amazônia. Publicado em 26/11/2015. https://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2015/11/desmatamento-e-queimadas-voltam-aumentar-na-amazonia.html. Acesso em 02/11/2019;
    5. ALVES, Nilmara de Oliveira et al. Biomass burning in the Amazon region causes DNA damage and cell death in human lung cells. Scientific Reports, v. 7, artigo n. 10937, Set. 2017.
    6. DÍAZ Sandra; SETTELE, Josef; BRONDÍZIO, Eduardo. Summary for policymakers of the global assessment report on biodiversity and ecosystem services: unedited advance version. Paris: IPBES, 2019.
    7. Nesse sentido, ver o Banco de Dados de Queimadas, do Programa Queimadas do INPE. Disponível em: <http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/bdqueimadas/>. Ver também: G1. Agosto tem o maior número de focos de queimadas na Amazônia dos últimos 9 anos, segundo o Inpe. Publicado em 01/09/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/09/01/agosto-tem-o-maior-numero-de-focos-de-queimadas-na-amazonia-dos-ultimos-9-anos-segundo-o-inpe.ghtml > Acesso em 15/11/2019.
    8. Entre janeiro e setembro de 2019, o INPE identificou mais de 90 mil focos de incêndio em todo o território nacional, um aumento de 71% em relação ao mesmo período do ano passado. Nesse sentido ver dados do Programa Queimadas do INPE (Disponível em: <http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal>).
    9. Entre janeiro e setembro de 2019, o INPE identificou mais de 90 mil focos de incêndio em todo o território nacional, um aumento de 71% em relação ao mesmo período do ano passado. Nesse sentido ver dados do Programa Queimadas do INPE (Disponível em: <http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal>).
    10. VERÍSSIMO, Adalberto et al (org). Áreas protegidas na Amazônia brasileira: avanços e desafios. Belém: Imazon; São Paulo: ISA, 2011. p. 14.
  • A importância da soberania monetária

    A importância da soberania monetária

    A importância da
    soberania monetária

    Há uma fantasia econômica disseminada pelo liberalismo. É a fantasia da austeridade virtuosa. O corte de gastos seria a medida essencial para haver crescimento e melhoria das condições de vida. Trata-se de ideia falsa. Estado soberano que emite sua própria moeda tem limites elásticos para gastar e investir. Na maior parte dos casos, restrições fiscais restringem a demanda e alimentam crises econômicas. Gasto público é essencial para haver desenvolvimento

    Por José Luís Fevereiro

    Um dos elementos historicamente constitutivos do poder soberano é o poder de cunhar (emitir) moeda. Por moeda sempre se entendeu aquilo que o poder soberano estabelecia como denominação para pagamento dos impostos que lhe eram devidos pelos agentes econômicos a ele subordinados.

    O que determina que uma moeda tenha curso em um território é o fato de o poder político desse território exigir o pagamento de impostos nessa moeda. Assim, o Estado realiza os pagamentos na unidade de valor em que cobra tributos, fazendo com que a moeda tenha aceitação geral. Eu aceito essa moeda porque com ela pago meus impostos e porque sei que meu vizinho a aceitará também porque com ela ele pagará seus impostos.

    Fim do padrão-ouro

    Com o fim do padrão ouro, nos anos 1930, e com o fim do lastro em ouro para o dólar, em 1971, a moeda passa a ser estritamente fiduciária, sem qualquer valor metálico correspondente a não ser a própria aceitação geral. É fator inquestionável de soberania, pagar despesas com moeda de sua própria emissão e contrair dívidas nessa mesma moeda. Essa prerrogativa é exclusiva dos Estados nacionais que não abriram mão da soberania monetária. É o caso do Brasil e da maioria dos países latino-americanos, exceção feita ao Panamá e ao Equador, que adotaram o dólar norte-americano como moeda, abrindo mão, dessa forma, de parcela da sua soberania.

    Políticas de “ajuste fiscal” em geral não apresentam qualquer resultado no objetivo declarado, mas cumprem a função de reduzir o patamar de utilização de fatores de produção, gerando perda de postos de trabalho e possibilitando reduções do custo da mão de obra dado o poder “disciplinador” do desemprego sobre o trabalho

    Um estado nacional, emissor da própria moeda, pode custear gastos sem nenhuma restrição de caráter monetário. Esses estados não quebram, esses estados não têm limites monetários ao seu endividamento. Esses estados não precisam nem devem ter orçamentos equilibrados. O limite à ordenação de gastos não se dá por números arbitrários, em geral autoestabelecidos, mas pela capacidade produtiva instalada de atender à demanda provocada pelos gastos públicos. É a economia real que determina o limite possível dos gastos públicos. A ausência de mão de obra disponível ou a plena utilização da capacidade produtiva industrial ou de serviços instalada são limites reais. Patamares de endividamento ou de emissão monetária pré-estabelecidos de forma arbitrária não o são, apesar de o mercado financeiro e a grande mídia propagarem o contrário.

    A aceitação universal do dólar

    Países como o Brasil cuja moeda não é reserva de valor fora do território nacional e que, portanto, precisam gerar dólares para pagar as importações, têm também como limite a capacidade de viabilizar suas importações. Essa restrição os EUA, por exemplo, não têm. Emitindo dólares o governo dos EUA pode demandar qualquer bem ou serviço ofertado no próprio país ou em qualquer outro lugar do planeta, dada a universal aceitação do dólar. São as vantagens do Império.

    Dessa forma, cobrança de tributos e emissão de dívida não têm a função de financiar o Estado, mas de regular a liquidez da economia garantindo que a demanda agregada – a demanda total de produtos e serviços em uma economia – não supere a capacidade produtiva gerando ajuste via preços (inflação).

    Um Estado com soberania monetária tem equilíbrio macroeconômico convivendo com déficit fiscal continuado porque é do déficit do setor público que vem o superávit do setor privado – empresas e famílias. Como o setor privado – ou melhor dizendo o setor não emissor de moeda, já que inclui estados e municípios – precisa de superávit como forma de ampliar gastos e realizar investimentos, fazendo dessa forma com que o Produto Interno Bruto cresça, fica evidente que o déficit fiscal da União é condição para que a economia possa maximizar a utilização dos fatores de produção. As comparações entre as finanças de um Estado soberano com as finanças de uma família são, assim, totalmente indevidas. Famílias não emitem a moeda que utilizam para pagar suas contas.

    Políticas de “ajuste fiscal” em geral não apresentam qualquer resultado no objetivo declarado, mas cumprem a função de reduzir o patamar de utilização de fatores de produção, gerando perda de postos de trabalho e possibilitando reduções do custo da mão de obra dado o poder “disciplinador” do desemprego sobre o trabalho. Ao contrário, políticas que busquem o pleno emprego empoderam as classes trabalhadoras, aumentando a autoconfiança e o poder de barganha. Trabalhador que não tem medo de perder o emprego também não tem medo de ir à luta.

    O papel do desemprego

    As condições em que se trava o enfrentamento entre capital e trabalho se alteram profundamente conforme o nível de desemprego é maior ou menor. Essa compreensão deve nortear os socialistas a defenderem políticas que maximizem o emprego e, portanto, a plena utilização da capacidade produtiva instalada. E para isso, ter controle sobre os poderes soberanos de emitir moeda e emitir dívida em moeda soberana é um elemento essencial.

    O papel da Dívida Pública deve ser entendido como central para a regulação da liquidez da economia e, portanto, como mecanismo de controle da inflação e não de financiamento do Estado. Este não precisa tomar reais emprestados para custear gastos em reais que ele próprio emite. O Estado emite dívida para controlar excessos de liquidez que possam pressionar a demanda agregada e gerar inflação. Esse é um poder soberano do qual também não se pode abrir mão.

    Países que abriram mão da soberania monetária como ocorre na Europa do euro, perderam capacidade de gerir as próprias economias de forma plena. A crise grega talvez tenha sido o exemplo mais radical do desastre decorrente dessa perda de soberania. O Equador também caminha para novas crises de dívida, já que por não ter moeda própria, toda a dívida pública é dívida externa, retirando do Estado Equatoriano a capacidade de ter déficits fiscais sustentáveis.

    No caso brasileiro, ordenamentos legais como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Cláusula de Ouro e a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos são limites autoimpostos, cuja base científica é a tia do zap e cumprem as funções fundamentais de garantir desemprego estrutural e legitimação do desmonte do pouco que temos de Estado de Bem-Estar Social.

    Limite de gastos

    Um limite real à expansão dos gastos públicos é o impacto desses gastos nas importações e a capacidade de financiá-las, no caso brasileiro denominadas em moeda estrangeira, o dólar. Essa restrição as potências imperiais não têm. Até os anos 1960 tanto o franco francês como a libra esterlina tinham suas próprias áreas de influência, em geral nas suas ex-colônias. Isso lhes permitia comprar bens e serviços nessas economias na sua própria moeda que era aceita como reserva de valor e entesourada por esses países. Dos anos 1970 para cá a hegemonia universal do dólar se consolidou.

    Estima-se que cidadãos e empresas argentinas tenham cerca de US$ 350 bilhões entesourados. São recursos que, em algum momento, o governo dos EUA gastou e que estão empoçados, sem pressionar a demanda interna no país emissor que, dessa forma, se beneficia enormemente de ter realizado gastos em bens e serviços fornecidos por terceiros países e pagos em papel moeda.

    Por detrás da disputa entre EUA e China está a perspectiva de que a China – que já é o principal agente no comércio mundial – consolide a própria área hegemônica e torne o remimbi moeda de reserva internacional de valor. Déficits comercias com a China não são um problema para os EUA, já que são liquidados em dólar. Problema será quando parte do comércio internacional passar a se realizar em remimbi, quando preços de referência de comoditties passarem a ser denominados em remimbi e quando o dólar perder a sua capacidade de comprar qualquer bem ou serviço em qualquer lugar do planeta.

    Isso será a perda de hegemonia do Império. Por menos que isso já se foi à guerra.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL