Categoria: Revista

  • Novos ventos nas eleições na Argentina

    Novos ventos nas eleições na Argentina

    Novos ventos nas
    eleições na Argentina

    Saudado como a grande novidade do continente em 2015, Maurício Macri deixa como legado um desastre econômico e social de grandes proporções. É difícil falar em nova onda continental, mas a vitória peronista no país vizinho mostra que a segunda onda neoliberal no continente vive crescentes questionamentos populares

    Por Monique Lemos

    No último dia 27 de outubro, a Argentina elegeu um novo presidente, Alberto Fernandez. Junto com ele e a ex-presidenta Cristina F. Kirchner, um grupo de políticos de diversas correntes ideológicas formaram uma coalizão política nomeada Frente de Todos. Desde a criação no início deste ano, a frente chama atenção por coexistir junto a peronistas tradicionais, peronistas modernos, representantes de uma juventude ligada ao radicalismo e outra ligada à militância de base. O objetivo dessa nova coalizão (segundo os discursos dos próprios integrantes) será reconstruir a política econômica argentina e motivar o desenvolvimento social abandonado pelo governo de Maurício Macri. O slogan principal será: Argentina de pé!

    O novo governo deve renegociar a maior dívida externa adquirida com o FMI na história do país. O total soma 47% do que o Fundo tem emprestado atualmente a diversos países. Entre as principais iniciativas estão enfrentar o aumento significativo da pobreza e da taxa de desemprego nos últimos 30 meses; estabilizar uma inflação anual que chega a mais de 40%; e transformar uma economia dolarizada e pouco confiável em uma economia com políticas que tendem ao mercado interno

    A partir do final da tarde do dia das eleições, no bairro de Chacarita, um dos mais tradicionais da cidade, milhares de pessoas se reuniram para esperar os resultados do primeiro turno. A expectativa era de que a fórmula Fernandez-Fernandez ganhasse com mais de 10 pontos de diferença. Não obstante, conseguiram alcançar uma diferença de 8 pontos, uma surpresa para os presentes, mas ainda sim uma grande vitória. A campanha Sim, podemos, do macrismo, conquistou mais votos do que se imaginava durante as semanas anteriores à eleição. Dois de seus principais gritos foram: “Macri vai virar” e “Que cristina seja presa”. Uma mistura de ataque pessoal e frases de estilo coach motivacional, grande marca do estilo macrista.

    Abismo econômico-social

    Mesmo com a surpresa dos números finais (48,24% contra 40,28%), na rua se escutavam os cantos peronistas (nome dado aos seguidores do ex-presidente Juan Dominguez Perón), os gritos enfáticos dos camporistas (integrantes e admiradores do grupo de jovens militantes La campora, liderado por Máximo Kirchner, filho da vice-presidenta eleita) e kirchneristas-albertistas em geral. De um lado argentinos, argentinas e migrantes receberam a notícia de que Alberto e Cristina iriam governar o país pelos próximos quatro anos e, de outro, Mauricio Macri aceitava a derrota com um discurso disposto em ajudar a que nova fórmula chegue ao poder com condições básicas para governar e tirar o país do abismo econômico-social legado pelo governo Macri.

    Para o mundo progressista, esquerdista ou mesmo o mundo dos pequenos comerciantes, operários, pobres, migrantes e de dissidências, a vitória da Frente de Todos foi um alívio e um sopro de esperança política. O novo governo deve renegociar a maior dívida externa adquirida com o FMI na história do país. O total soma 47% do que o Fundo tem emprestado atualmente a diversos países. Enfrentar o aumento significativo da pobreza e da taxa de desemprego nos últimos 30 meses; estabilizar uma inflação anual que chega a mais de 40%; e transformar uma economia dolarizada e pouco confiável em uma economia com políticas que tendem ao mercado interno.

    Recuperação econômica

    Especula-se que os planos de resgate econômico e social de Alberto Fernandez começarão atendendo as pequenas indústrias que fecharam as portas nos últimos dois anos devido ao aumento nas contas de luz, gás e água. A estratégia política também deverá se centrar em conseguir um plano de renegociação da dívida externa e, por último, um consenso sindical múltiplo com todos os setores que coincidam em ativar planos de aumento e reajuste salarial para aliviar os trabalhadores (o salário mínimo em diversos segmentos está 20% mais baixo em relação ao impacto inflacionário nos bens de consumo básico). É necessário que a medida não sobrecarregue a receita pública já gravemente comprometida.

    A política argentina entra em um processo importante de retomada de credibilidades. É necessário que Alberto e Cristina coloquem em prática o que eles mesmos chamam de “pacto social” junto a todos os setores políticos e sociais para recuperar o poder de compra e consumo dos trabalhadores e principalmente, diminuir os índices de pobreza

    A política argentina entra em um processo importante de retomada de credibilidades. É necessário que Alberto e Cristina coloquem em prática o que eles mesmos chamam de “pacto social” junto a todos os setores políticos e sociais para recuperar o poder de compra e consumo dos trabalhadores e, principalmente, diminuir o índice de pobreza para pessoas em situação de emergência que não chegam a consumir mais de uma refeição por dia.

    Giro político continental

    A vitória de Alberto Fernandez não é só uma esperança política para a Argentina, também é um giro político importante em todo o continente. As manifestações contínuas no Chile, o golpe na Bolívia, as denúncias contra Jair Bolsonaro e a ditadura miliciana são claros alertas aos latino-americanos de que os governos neoliberais e com tendências a direita, não atendem as demandas e idiossincrasias dos seus países. Não possuem e não desenvolveram ferramentas de leitura da realidade que se manifestem em políticas públicas que atendam aos setores mais vulneráveis. Os governos continuam sendo para poucos e para os seus.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    Monique Lemos é jornalista e integra o Coletivo Passarinho.

     

     

  • Coringa: fogo no circo assusta o andar de cima

    Coringa: fogo no circo assusta o andar de cima

    Coringa: fogo no circo
    assusta o andar de cima

    “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas às margens que o comprimem.” Bertold Brecht

    Por João Paulo Rillo

    Depois de dez dias em cartaz, fui assistir ao filme Coringa e notei relativo esvaziamento nas salas de exibição. Já era recorde de público no mundo inteiro, por isso estranhei a não lotação. Sucessos inferiores de bilheteria levaram grande público por mais tempo às salas dos shoppings paulistas.

    O estranhamento durou pouco. Logo, fui abduzido pela magia da sétima arte, comi um saco de pipoca e aproveitei cada segundo da obra projetada na tela.

    Tudo é encantador, o roteiro, a fotografia e a brilhante interpretação de Joaquin Phoenix. O filme é sensível e profundo. Traduz com exatidão e urgência os conflitos e as letais doenças sociais produzidas pelo capitalismo.
    Passei a indicar a fita aos amigos e conhecidos. E encontrei a mesma resistência e preocupação em várias pessoas: “Ah, mas não é muito violento?”.

    Eis a principal a razão do esvaziamento precoce das confortáveis salas de cinemas.

    Os mesmos que naturalizam a violência real contra pretos e pobres e inflam o peito para dizer que “passou da hora de adotar a pena de morte neste país”, assustaram-se ao verem desmoronar a ilusão pré-concebida do super-herói. Passaram a difamar e a demonizar o filme que tanto os incomodou

    Os mesmos que naturalizam a violência real contra pretos e pobres e inflam o peito para dizer que “passou da hora de adotar a pena de morte neste país”, assustaram-se ao verem desmoronar a ilusão pré-concebida do super-herói. Passaram a difamar e a demonizar o filme que tanto os incomodou.

    Nenhuma tese sociológica explicaria de forma tão impactante o caos que a indiferença social pode causar.

    Imprevisível e perigoso

    O protagonista é o anti-herói, um cidadão emocionalmente quebrado, perturbado e completamente solitário.

    À medida que a sociedade do consumo empurra tudo que não é espelho para a margem, cria um ambiente paralelo extremamente imprevisível e perigoso. Quem não se sente parte do mundo oficial não tem compromisso com ele. Esse é o detalhe sórdido que a burguesia produz e não admite.

    Longe de ser panfletário e avesso ao maniqueísmo trivial dos filmes de heróis, Coringa é extremamente poético e assume lado nessa atmosfera de ódio e intolerância que acomete o mundo em seus quatro cantos.

    Denuncia a degradação do tecido social e a ausência de Estado na vida dos mais desprovidos de renda e afeto.

    Incomoda os opressores e os aliados. Impossível não se mexer na poltrona, não se sentir opressor ou cúmplice pelo menos uma única vez durante a exibição.

    O riso desesperado do protagonista – inconsciente do papel político – desperta indignação e insurgência aos moradores da cidade. O filme desvenda, de maneira genial, a origem da violência e radicaliza a problemática do germinar da semente ao desmoronar da árvore.

    O espectador é tirado da zona de conforto e apresenta uma perspectiva utópica e revolucionária. No meio do caos econômico e social que vive a cidade, o filme propõe que uma classe derrote a outra. Que os muitos ricos e opressores paguem com a própria vida todo mal que causaram ao mundo.

    Palhaço doutrinador?

    Um final apoteótico para alguns e aterrorizador para outros.

    Por isso que parte da burguesia nacional passou a militar contra o filme, dizendo se tratar de um palhaço marxista e doutrinador.

    Incapaz de olhar em torno e assumir a responsabilidade nessa tragédia social, a burguesia histérica prefere eleger fantasmas e confundir a realidade.

    Para essa gente, a culpa é sempre dos outros; dos pobres, dos pretos, dos marginais, das prostitutas, dos gays e dos comunistas.

    Uma obra de arte verdadeira carrega sempre uma beleza livre e subjetiva aos olhos de quem aprecia. Cada um entende como quiser a narrativa exposta. Eu gosto da metáfora de que precisamos derrotar tudo que nos faz sofrer. Como alcançar esse objetivo é a busca diária dos que lutam por um mundo menos injusto.

    O caos na velha Gotham City, fez-me lembrar de uma frase do jurista e ex-governador de São Paulo Claudio Lembo sobre os ataques do PCC em 2006: “Nós temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa. A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira no sentido de haver mais empregos, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações.”

    Em tempo, Claudio Lembo não é um marxista, muito pelo contrário, é um liberal clássico.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    João Paulo Rillo é advogado e ex-deputado estadual (PSOL-SP)

     

     

  • Desemprego empobrece, adoece e paralisa milhões

    Desemprego empobrece, adoece e paralisa milhões

    Desemprego empobrece,
    adoece e paralisa milhões

    O desemprego é um importante disciplinador da força de trabalho. Com medo de perder sua vaga, o trabalhador se mobiliza menos e protesta menos. No Brasil, a desocupação se acelera a partir de 2015. Ela teve a função de preparar o terreno para as reformas trabalhistas e previdenciária. Combater o desemprego é um dos principais caminhos para se mudar o país

    Por Edson Carneiro Índio

    Uma legião de espectros ronda o Brasil. Golpes, neofascismo, reformas neoliberais, privatizações, milícias, fake news, ameaças da volta do AI-5 etc. É extensa a lista das graves ameaças que espreitam a frágil democracia e a soberania do país, gerando enorme apreensão entre os setores progressistas e de esquerda.

    A falta de emprego ou de uma ocupação remunerada é uma das maiores preocupações a causar angústia, desalento, paralisia, depressão e medo do futuro em muita gente. Segundo o Ipea, 52% dos lares brasileiros não dispõem de nenhuma renda proveniente do trabalho

    A maioria da população, porém, está assombrada por outros “fantasmas” que já se fazem muito presentes no cotidiano de dificuldades e restrições. Elevação do desemprego, queda dos rendimentos, endividamento das famílias e dificuldades para fazer frente às despesas básicas, como alimentação, aluguel, água, luz e a piora do serviço público como saúde, educação, transporte e moradia popular em função dos sucessivos cortes orçamentários promovem o empobrecimento e o aumento das desigualdades sociais. O quadro se agrava com o recente pacote de Medidas Provisórias e PECs anunciado por Bolsonaro no momento em que finalizávamos este artigo.

    A falta de emprego ou de uma ocupação remunerada é uma das maiores preocupações a causar angústia, desalento, paralisia, depressão e medo do futuro em muita gente. Segundo o Ipea, 52% dos lares brasileiros não dispõem de nenhuma renda proveniente do trabalho. Além de garantir a sobrevivência individual e familiar e de propiciar sociabilidade, o trabalho (formal) é a porta principal de entrada da proteção social no Brasil.


    A uberização gera milhões de trabalhadores sem direitos ou garantias

    O desemprego se acelerou principalmente a partir de 2015, consequência da adoção de um ajuste fiscal que levou a economia à recessão e rápida escalada dos níveis de desocupação da força de trabalho. Segundo o IBGE, em novembro de 2014, a taxa de desemprego era da ordem de 6,5%. Um ano depois, ela havia escalado o patamar de 9% e em março de 2016, pouco antes do impeachment da presidenta Dilma, chegava a 11,5%! Após o golpe, o pico se deu no início de 2017, chegando a 13,7%. Desde então, a taxa vem declinando a passos de tartaruga, puxada pela subocupação, o famoso bico. Em setembro de 2018, a marca estava em 11,9%, percentual que se mantém praticamente inalterado (11,8%).

    O aperto e o salve-se como puder

    Os dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), ao final de setembro de 2019 são alarmantes. A taxa combinada de desocupação e subocupação atinge expressivos 18,7% da força de trabalho. Nada menos que 27,5 milhões de pessoas estão involuntariamente subutilizadas, somando 12,5 milhões de desempregados, 7 milhões de pessoas subocupadas por insuficiência de horas de trabalho e 4,7 milhões que se encontram no chamado desalento.

    O desemprego se acelerou principalmente a partir de 2015, consequência da adoção de um ajuste fiscal que levou a economia à recessão e à rápida escalada dos níveis de desocupação da força de trabalho. Segundo o IBGE, em novembro de 2014, a taxa de desemprego era da ordem de 6,5%. Um ano depois, ela havia escalado o patamar de 9% e em março de 2016, pouco antes do impeachment da presidenta Dilma, chegava a 11,5%! Após o golpe, o pico se deu no início de 2017, chegando a 13,7%

    Essa última é a situação em que a pessoa desempregada não procurou emprego nos últimos dias anteriores à pesquisa, muitas vezes por não dispor de dinheiro para o transporte ou para se alimentar ou simplesmente pela desistência de bater de porta em porta das empresas e ouvir o desanimador “não há vagas”. No primeiro trimestre de 2019, nada menos que 3,3 milhões de pessoas estavam desempregadas há mais de dois anos, a maioria mulher.

    “Emprego ou direitos”

    O desejo manifesto de Jair Bolsonaro, pelo qual o trabalhador tem de escolher entre ter emprego ou ter direito está se realizando, infelizmente. O amigo do Queiroz afirmou após a posse que os empregos no Brasil têm de beirar a informalidade e tudo faz para generalizar essa condição de trabalho, agravando uma realidade já bastante conhecida pelos setores mais empobrecidos da classe trabalhadora, como a população negra, mulheres e LGBTs. O impacto da informalidade e da subocupação sobre a renda é brutal. Enquanto o rendimento médio da população ocupada é de R$ 2.298, o ganho médio auferido pela parcela subocupada é de apenas R$ 826.

    Os assalariados sem carteira assinada chegam a 18,8 milhões de pessoas, sendo 11,8 milhões de empregados no setor privado sem vínculo formal, 4,5 milhões no trabalho doméstico sem carteira e 2,5 milhões de assalariados no setor público sem carteira assinada. Esses milhões de empregados sem vínculo formal não dispõem de várias garantias, como seguro-desemprego, fundo de garantia, férias ou abono salarial. Para completar esse quadro grave temos, ainda, 24,4 milhões de pessoas no trabalho por conta. É o salve-se quem e como puder. Outro dado a inspirar preocupações é o número de pessoas ocupadas e que não contribuem regularmente para a Previdência Social. Nada menos que 47,5 milhões de pessoas estão nessa situação de desproteção social e impossibilidade de acesso a benefícios como salário-maternidade, seguro-desemprego, auxílio-doença, acidente de trabalho, aposentadoria ou pensão.

    Identidades crispadas pelo trabalho

    O desemprego atinge de maneira diferente setores sociais distintos. Entre jovens de 18 a 24 anos o martírio do desemprego bate em 25,8%. A alta incidência nessa faixa etária ajuda a explicar o fato de três empresas de entregas por aplicativo, Rappi, iFood e Uber Eats explorarem, apenas na cidade de São Paulo, trinta mil jovens que pedalam as próprias bicicletas com uma caixa de 45 quilos nas costas por um salário médio mensal de R$ 936. Seis em cada dez trabalham 84 horas semanais, doze horas por dia, sete dias por semana.

    Os assalariados sem carteira assinada chegam a 18,8 milhões de pessoas, sendo 11,8 milhões de empregados no setor privado sem vínculo formal, 4,5 milhões no trabalho doméstico sem carteira e 2,5 milhões de assalariados no setor público sem carteira assinada

    De maneira geral, o alto desemprego nos últimos cinco anos empurrou um exército de trabalhadoras e trabalhadores para as plataformas digitais por aplicativos. Estima-se que as plataformas de mobilidade e de entrega de produtos como Uber, 99, Cabify e iFood têm juntas 5,5 milhões de profissionais cadastrados. Na maioria, autônomos que trabalham longas jornadas, além de uns poucos que utilizam essas plataformas como complemento da renda do trabalho formal.

    O desemprego também abate desigualmente as diversas regiões do país. É maior nas regiões metropolitanas (13,8%) que fora dos grandes centros urbanos (10,6%). No Nordeste, o desemprego é um flagelo que atinge 14,6% da população. Já na região Sul a taxa chega a 8% puxada por Santa Catarina com “apenas” 6%. Na região Centro Oeste o desemprego também está abaixo da média nacional. A Bahia é o estado com o maior desemprego entre as unidades da federação, com 17,3%. O desemprego também tem sua divisão sexual. Castiga menos os homens (10,3%) e mais as mulheres (14,1%).

    Segundo o IBGE, 63,7% das pessoas que se encontravam desempregadas ao final de 2017 eram pretas ou pardas. Essa parcela é também amplamente majoritária (67%) entre os ambulantes do país. O fosso se apresenta, também, na remuneração. Naquele ano, a média salarial entre os brancos era de R$ 2.757 em contraste com a média auferida pelos pretos e pardos (classificação usada pelo Instituto) de R$ 1.531.

    A composição da parcela com vínculo formal é de 44 milhões de pessoas. Dessas, 33 milhões estão no setor privado, 1,8 milhões no emprego doméstico com carteira assinada, além de 7,9 milhões de servidores públicos estatutários e militares. Não é incomum encontrar nesse contingente “formalizado” pessoas que ajudam financeiramente filhos adultos, parentes ou amigos desempregados. O mesmo acontece com milhões de pessoas, na maioria idosas, que usam parte do benefício previdenciário ou assistencial para compor o orçamento da família, conformando o colchão que amortece a grave crise social que está instalada em nosso país. Para a parcela ainda empregada no setor privado, o fantasma do desemprego é um espectro a tirar o sono e a causar insegurança e medo da demissão. Para os demais, esse fantasma encarna um cotidiano dramático de carências, restrições, humilhação e dor.

    Pleno emprego, ajuste fiscal e golpe

    Os três primeiros governos presididos pelo PT lograram significativa redução do desemprego e aumento da formalização do trabalho com o impulso inicial do cenário internacional favorável até à irrupção da crise em 2008. A economia brasileira se beneficiou do forte crescimento econômico internacional, em particular da China, da elevação dos preços e da demanda externa por commodities, com impactos importantes nos indicadores do mercado de trabalho.



    ELABORAÇÃO PRÓPRIA. FONTE: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de Trabalho e Rendimento, PNAD Contínua, 2012-2019. Link: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=72421

    Outra variável importante foi o dinamismo do mercado interno fruto das políticas de estímulos à demanda, como a valorização do salário mínimo, a ampliação do crédito, elevação do investimento público e aumento das políticas públicas de transferências de renda. Assim, a taxa média do crescimento do PIB entre 2004 a 2010 foi da ordem de 4,5%, contra uma variação de apenas 1,6% do produto no período de 1998 a 2003.

    Segundo o IBGE, 63,7% das pessoas que se encontravam desempregadas ao final de 2017 eram pretas ou pardas. Essa parcela é amplamente majoritária (67%) entre os ambulantes do país . O fosso se apresenta, também, na remuneração. Naquele ano, a média salarial entre os brancos era de R$ 2.757 em contraste com a média auferida pelos pretos e pardos (classificação usada pelo Instituto) de R$ 1.531

    A crise internacional não tardou a afetar a economia brasileira. Ao final de 2014, o governo optou por um ajuste fiscal que agravou a desaceleração econômica já em curso. Cortes dos gastos públicos, elevação da taxa de juros, aumento das tarifas de energia elétrica, dos preços dos combustíveis, desinvestimentos nos setores de petróleo, gás e construção civil, entre outras medidas restritivas levaram o país à recessão e aumento do desemprego.

    Essas medidas teriam alto custo político, pois desarmou o campo popular e facilitou a ofensiva da direita que já articulava as manobras para derrubar o governo da presidenta Dilma.

    Se em 2014 a variação do Produto Interno Bruto (PIB) foi 0,1%, em 2015 o produto desabou 3,8% e a demanda doméstica despencou 6,5%, alterando uma trajetória positiva do mercado interno sobre a variação do PIB desde 2004. Essa situação foi agravada pela crise política instalada pelas manobras da direita e pelos reflexos da operação Lava-Jato sobre os níveis de emprego na construção civil e nas cadeias do petróleo e gás.

    Após o golpe de 2016, a aprovação da Emenda Constitucional 95 institucionalizou um torniquete fiscal duradouro com efeitos evidentes sobre a atividade econômica já garroteada.

    Discurso surrado

    Com o surrado discurso de que o desemprego é consequência do excesso de regulamentação e rigidez do mercado de trabalho, os promotores do golpe aprovaram uma reforma trabalhista que legalizou diversas formas de contratação barata e precária da força de trabalho, institucionalizando o bico e o subemprego. Além das medidas de desregulação do trabalho, a política econômica adotada desde o governo Temer agravou o viés contracionista e recessivo. Ao final de 2016, o PIB marcaria um mergulho de 3,6% que elevou o desemprego ao patamar de 12% e seguiria – como já mencionado – em marcha ascendente até o primeiro trimestre de 2017, quando bateu 13,7%.



    ELABORAÇÃO PRÓPRIA. FONTE: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais. Link: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101680_informativo.pdf

    O governo Bolsonaro com o ultraliberal Paulo Guedes à frente do Ministério da Fazenda arrochou, ainda mais, o garrote sobre investimentos e gastos estatais nas mais diversas áreas. Aprovou uma reforma da Previdência pela qual o Estado deixará de repassar aos trabalhadores e trabalhadoras cerca de R$ 4,5 trilhões em vinte anos, reduzindo fortemente a renda e o poder de compra das famílias e a atividade econômica do país. Em meio à queda dos rendimentos do trabalho, Bolsonaro patrocina o fim da política de valorização do salário mínimo, que foi fundamental para reduzir desigualdades e ampliar a demanda interna. Se dependesse apenas da correção pela inflação do ano anterior, como acaba fazer Bolsonaro, o valor do salário mínimo seria hoje de apenas R$ 573.

    Desemprego como mecanismo de controle social

    O desemprego atua quase sempre como disciplinador da rebeldia das forças do trabalho contra o capital, além de ser muito eficiente para pressionar para baixo os salários. A rigor, é um mecanismo efetivo de controle social. O levantamento anual do Dieese sobre negociações salariais e balanço das greves confirma o fenômeno.

    Em 2013, o levantamento apontou 1.112 greves no setor privado. Em 2014, os trabalhadores brasileiros cruzaram os braços em 1012 greves. Em 2015 o número caiu para 966 e teve pequena oscilação positiva no ano seguinte, com 1000 paralisações, mas despencou para 748 greves em 2017. O número de movimentos paredistas manteve trajetória de queda em 2018, com 655 paralisações, sendo 369 no primeiro semestre.

    Durante os primeiros seis meses de governo Bolsonaro houve apenas 268 greves no setor privado o país. O altíssimo desemprego ajuda a explicar as dificuldades de mobilização da classe trabalhadora, em particular em um momento em que os níveis de desocupação estacionaram em patamar tão elevado.

    Necessidades reais das pessoas

    A luta para derrotar Bolsonaro e os projetos do capital financeiro em curso exige uma forte conexão das esquerdas com as necessidades mais sentidas pelo povo. Iniciativa que merece apoio é o projeto apresentado pelo nosso bravo deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que institui o Fundo Nacional de Garantia do Emprego.

    O projeto visa garantir pleno emprego, redução das desigualdades sociais e regionais, desenvolvimento econômico, social e ambiental, estabelecendo um Estado garantidor de emprego da força de trabalho excedente. Com execução a partir dos municípios, o projeto prevê recursos financeiros orientados ao atendimento das demandas nas áreas de infraestrutura social como moradia, saneamento básico, cultura, esporte, lazer e cuidados aos idosos e demais necessitados, além de recompor o reflorestamento e reparação de danos ambientais.

    Com a proposta, o deputado Glauber Braga vai na jugular do discurso que advoga uma falsa crise fiscal para justificar o desmonte do papel social do Estado e orientador do desenvolvimento econômico do país. Num cenário persistente de capacidade ociosa, o projeto vai à raiz do problema e não se intimida em afirmar que “é o gasto do governo que cria moeda e não a disponibilidade de moeda que viabiliza os gastos do governo”.

    Diante das dificuldades de mobilização neste momento é fundamental obter vitórias parciais. Nesse sentido, é muito importante estimular lutas por medidas emergenciais, como passe livre para pessoas desempregadas, moratória de impostos (como o IPTU), tarifas sociais de água, luz, gás de cozinha, frentes de trabalho, retomada das obras e investimentos públicos

    Merece atenção, também, a iniciativa unitária dos partidos de esquerda no Congresso Nacional, como o PSOL, que apresentaram quinze medidas emergenciais como a reativação do programa Minha Casa Minha Vida e das obras paralisadas, aumento real do salário mínimo, expansão do Bolsa Família, renegociação das dívidas das famílias, correção da tabela de imposto de renda e fim das privatizações, entre outras medidas, com capacidade de criar, no curto e médio prazos, mais de sete milhões de novos postos de trabalho.

    Assessoradas pelo Dieese, as centrais sindicais também vêm defendendo um conjunto de medidas de combate ao desemprego e à queda da renda. Combate à informalidade, ampliação das parcelas do seguro-desemprego e das políticas de amparo aos desempregados e promoção de direitos para os trabalhadores de aplicativos compõem as propostas unitárias das centrais sindicais. Num quadro de aceleração da introdução de novas tecnologias poupadoras de trabalho humano, recoloca-se, também, a necessidade da redução da jornada de trabalho, que no Brasil se afigura como uma das mais elevadas do mundo.

    Os cálculos realizados pelo Dieese apontam para a geração de mais de 3,5 milhões de novos postos de trabalho com a redução de 44 para 40 horas de trabalho semanal. A diminuição da jornada máxima legal de trabalho se tornou ainda mais urgente após a aprovação da reforma da Previdência que estendeu, em vários anos, o tempo de vida destinado ao trabalho. Muito mais anos de trabalho ao longo da vida requer redução na jornada laboral diária e semanal.

    Diante das dificuldades de mobilização neste momento é fundamental obter vitórias parciais. Nesse sentido, é muito importante estimular lutas por medidas emergenciais, como passe livre para pessoas desempregadas, moratória de impostos (como o IPTU), tarifas sociais de água, luz, gás de cozinha, frentes de trabalho, retomada das obras e investimentos públicos. Essas lutas imediatas podem dar musculatura social para enfrentar o desmonte do Estado, as privatizações, as ameaças à soberania nacional e à democracia.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    Edson Carneiro Índio é secretário-geral da Intersindical

     

     

  • Sexualidade  e gênero: um movimento para o socialismo e a liberdade

    Sexualidade e gênero: um movimento para o socialismo e a liberdade

    Sexualidade e gênero:
    um movimento para o
    socialismo e a liberdade

    Precisamos construir uma militância de dissidentes de sexualidade e de gênero que seja anticapitalista e com uma tática clara para tornar a classe trabalhadora a nossa principal aliada na luta contra a contra a opressão. Essa aliança ampla não pode se curvar às ideias liberais e deve entender tais demandas como parte indissociável da democratização da sociedade

    Por Everton Vieira

    Para pensarmos em um movimento de sexualidade e gêneros dissidentes para o socialismo e a liberdade, precisamos voltar no mínimo 50 anos antes da Revolta de Stonewall. Ela é considerada por muitos, não por acaso, o marco zero da luta organizada das dissidências de sexualidade e de gênero (DSG).

    Em 1918, segundo ano da Revolução de Outubro, houve pela primeira vez na história um Estado industrializado que descriminalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, aprovava a socialização dos trabalhos domésticos e o direito ao divórcio. Os primeiros anos após a tomada de poder pelos comunistas deixava um recado claro de combate duro ao patriarcalismo

    Em 28 de junho de 1969, as bichas, sapatões e travestis de Nova York resolveram enfrentar a violência policial. Mas a história da luta organizada por direitos para as dissidências de sexualidade e gênero começou no mínimo 51 anos antes dos acontecimentos do bar Stonewall Inn. Nós não reconhecemos esse acontecimento como o marco zero de nossas lutas.

    Em 1918, segundo ano da Revolução de Outubro, houve pela primeira vez na história um Estado industrializado que descriminalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, aprovava a socialização dos trabalhos domésticos e o direito ao divórcio. Os primeiros anos após a tomada de poder pelos comunistas deixava um recado claro de combate duro ao patriarcalismo.

    Vida curta

    Infelizmente, esse período em que a Revolução socialista dava as mãos a um novo momento histórico para as DSG não teve vida longa. No final da década de 1920, havia muitas coisas em disputa na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Uma delas foi a promoção incansável do nacionalismo russo, a consolidação da orientação do regime de socialismo em um só país, acabando com a perspectiva de revolução internacional, e também aos avanços no combate ao patriarcado.

    A luta pelos direitos das dissidências de sexualidade e gênero só será plenamente vitoriosa quando se tornar uma jornada de todos e todas os atingidos pela opressão capitalista

    De um lado tínhamos fortes defensores da lei soviética declarando que o Estado e a sociedade não deveriam interferir em questões sexuais, exceto em casos de envolvimento com menores de idade, uso de violência ou coerção. Importantes nomes da vanguarda bolchevique e referências para os estudos feministas marxistas – as revolucionárias Clara Zetkin e Alexsandra Kollontai – eram defensoras ferrenhas dessa tendência.

    Do outro lado, lutando contra a manutenção da descriminalização do que eles chamam de sodomia, tinham as forças políticas ligadas a Josef Stalin, que falavam abertamente contra as políticas dos primeiros anos da Revolução de Outubro. Foi na URSS, sob o stalinismo que, por meio do Artigo 175, essas forças restabeleceram a perseguição sistemática a população LGBT como política de Estado e criminalizaram novamente a “sodomia”, ou seja, todas as identidades e sexualidades marginalizadas. As justificativas eram um punhado de teorias reacionárias e patriarcais e a covardia de associar as sexualidades e identidades dissidentes ao fascismo.

    Dessa forma, bissexuais, gays, lésbicas e transgêneros passaram a ser para o stalinismo tão repugnante quanto os fascistas. Máximo Gorki, um aliado declarado de Stalin, em seu artigo “Humanismo proletário” argumentou: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e é severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: “Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo”.

    Tabus e ataques

    No chamado mundo liberal as coisas iam de mal a pior. Perseguições violentas, prisões, torturas com choques autorizadas como a “cura gay” daquele tempo e até castrações como no caso mundialmente conhecido de Alan Turing, na Inglaterra. Tantos anos de tabus e ataques sistemáticos às formas de sexualidade não reprodutoras e todas as normatizações que se estabeleceram por meio disso, tornam o mundo um lugar extremamente violento para todas as sexualidades e gênero dissidentes.

    Esse resgaste histórico serve para fazermos um balanço real, sem paixões ou distorções: a disputa sobre a liberdade das relações de sexualidade e gênero era polêmica não só no mundo liberal capitalista, mas também entre os comunistas. Foram os comunistas os primeiros a produzirem políticas em um Estado moderno que protegessem essas populações do reacionarismo patriarcal preservado e cultivado nas sociedades capitalistas.


    22ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo .Paulo Pinto/FotosPublicas

    Apesar dos avanços e recuos, o movimento socialista tornou-se novamente, com o enfraquecimento da influência stalinista e de tudo que ela representa, fundamental na luta antipatriarcal e, por consequência, na defesa dos direitos e da vida da população LGBT.

    Quem são nossos inimigos?

    Quando vivências subjetivas tornam-se inquestionáveis, temos um problema. A questão não é e nunca foi levar em conta as “vivências”, mas usar essa subjetividade como uma verdade sacrossanta que precisa ser religiosamente acatada. Deixamos a reflexão: se um senhor reacionário que vivenciou a ditadura militar me falar que esta foi ótima, preciso então “respeitar sua vivência”? É certo que as vivências são fatores a serem considerados em qualquer análise, mas considerá-las como verdades puras e inquestionáveis é um erro.

    Falar disso é mexer em vespeiro na militância. Há um grupo que decretou: “Não fale da opressão que você não sofre!”. Essa é uma “lógica” perversa para a construção de um projeto popular, pois é individualista e nada tem a ver com a esquerda socialista. Nosso “local de fala” não é o nosso lugar para falar, mas a partir de onde a gente fala e o local de onde falamos está contaminado para o bem e o mal por nossas subjetividades.

    Nosso “local de fala” não é o nosso lugar para falar, mas a partir de onde a gente fala e o local de onde falamos está contaminado para o bem e o mal por nossas subjetividades. Para rebater, por exemplo, o discurso homofóbico, alguns militantes acabam escolhendo o caminho mais fácil e igualmente despolitizado de atacar o falante no lugar da fala

    Para rebater, por exemplo, o discurso homofóbico, alguns militantes acabam escolhendo o caminho mais fácil e igualmente despolitizado de atacar o falante no lugar da fala. Depois que nos acostumamos a usar características físicas, comportamentais ou culturais para dizer quem pode falar do que, essa prática foi se generalizando e se propagando, sendo invocada até contra as falas sinceras e empáticas. Isso gerou rachas e até “privatizou” certos assuntos para determinadas pessoas, uma evidente influência de ideias liberais dentro de espaços que reivindicam o socialismo. Há uma confusão entre visibilidade e protagonismo com autopromoção, nesse ponto parece que o individualismo liberal já tomou conta.

    É preciso aprofundar a discussão sobre os limites da política de representatividade e o equívoco em criar ou reforçar categorias estáveis de opressão e identidade, ou então deixaremos a guarda baixa perante acusações de deturpação cabal da representação. Se nós assumimos posições casuísticas, abrimos espaço para contradições concretas, como são os casos nos quais a direita usa pessoas negras, de periferia, mulheres e dissidentes de sexualidade e gênero e as manipulam contra as lutas de combate as opressões.

    Criar categorias estáveis de opressão que detém a “verdade”, apresentando vivências “inquestionáveis” e “capazes” de produzir as mesmas sínteses, deturpando o conceito de “local de fala” para privatizar a fala e decidir quem pode falar sobre o quê, é a inadmissível interdição pura e simples do debate. É um atraso que precisa ser combatido de forma organizada e contundente.

    Articular a nossa classe como principal aliada

    É preciso entender o processo de consciência e a tarefa na construção do poder popular e as limitações da classe, ajudando a superá-las. Não precisamos de falas destrutivas, que surgem a partir de um discurso autoritário, banhado em uma interpretação equivocada, tentando substituir o argumento lógico por um ataque puro ao falante. O conceito de desconstrução do argelino Jacques Derrida fala exatamente sobre como produzir deslocamentos sem partir de uma fixidez de mim e do outro.

    Se não há uma preocupação em entender e ajudar a superar as limitações e preconceitos impostos estruturalmente à classe trabalhadora, então não há compromisso com a luta de classes, tampouco com a construção de um partido de massas. Tal melindre pequeno-burguês é contraproducente e acaba engessando a possibilidade de avançarmos enquanto classe e não enquanto indivíduos.

    Portanto, precisamos construir uma militância de dissidentes de sexualidade e gênero que seja também anticapitalista e com uma tática clara para tornar a classe trabalhadora a nossa principal aliada na luta contra a opressão, que não se curve às ideias liberais e entenda a diferença entre instituições que elaboram o discurso contra dissidentes de sexualidade/gênero e trabalhadoras e trabalhadores que são meros reprodutores desse discurso. Não podemos cair no erro de fortalecer uma militância liberal, incapaz, por exemplo, de se posicionar contra o imperialismo e em defesa da soberania do povo venezuelano.

    A luta pelos direitos das dissidências de sexualidade e gênero só será plenamente vitoriosa quando se tornar uma luta de todos e todas as oprimidas contra a opressão capitalista. Por isso é preciso que a militância socialista esteja disposta a disputar o vivo e enérgico movimento conhecido como “LGBT” para uma estratégia revolucionária e socialista. Portanto, devemos ser radicais nos propósitos e amplos no método.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    Everton Vieira, pedagogo, militante da Intersindical e membro da direção executiva do PSOL/SP

     

     

  • Glauber Braga: “É preciso tratar o emprego como um direito garantido, e não como um favor do mercado”

    Glauber Braga: “É preciso tratar o emprego como um direito garantido, e não como um favor do mercado”

    Glauber Braga: “É preciso tratar
    o emprego como um direito garantido,
    e não como um favor do mercado”

    Para o parlamentar do PSOL, a economia privada “precisa do estímulo do desemprego elevado para facilitar o seu processo de negociação com os trabalhadores” O objetivo é “domesticar a força de trabalho”.

    Entrevista concedida à Francisvaldo Mendes & Gilberto Maringoni

    “Eduardo Cunha, você é um gangster. O que dá sustentação à sua cadeira cheira a enxofre. Eu voto por aqueles que nunca escolheram o lado fácil da história. Voto por Marighella, por Plinio de Arruda Sampaio, por Luis Carlos Prestes, eu voto por Olga Benário, eu voto por Zumbi dos Palmares, eu voto não!”

    As palavras acima viralizaram por todas as redes e mídias na dramática noite de 17 de abril de 2016. Quem as pronunciou ao microfone, na tumultuada sessão que selou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi um deputado federal até então pouco conhecido além das divisas de seu estado natal, o Rio de Janeiro. A partir dali, o nome de Glauber Braga, então com 34 anos, tornou-se nacionalmente conhecido. A incessante e corajosa atividade parlamentar granjeou ódio por parte da direita e admiração e apoios crescentes nos setores populares.

    Nesta entrevista à Socialismo e Liberdade, Glauber fala da situação nacional, do avanço da extrema direita e da necessidade de a esquerda se voltar aos problemas reais da vida do povo, como emprego, salário e sobrevivência nesses duros tempos de Bolsonaro.


    Glauber por ele mesmo

    “Eu sou de uma família de brizolistas. Minha mãe, Saudade Braga, é médica, de Natal (RN). Ela foi prefeita de Nova Friburgo (RJ) entre 2001-08, por dois mandatos, e rompeu com um revezamento das elites locais no poder. Venceu uma eleição completamente inusitada, sendo nordestina e mulher. Ela realizava um importante trabalho de base. Na época, não existia médico de família, mas ela já atuava nas unidades escolares das periferias e na zona rural do município. Atuava no PDT. No primeiro mandato, de 19 vereadores, só dois davam sustentação ao governo. A administração se sustentou na rua para não cair, pois tentaram derrubá-la de todos os jeitos. Hoje, ela está afastada da militância cotidiana, mas participa do meu mandato como torcedora e conselheira.

    Minha filiação partidária inicial foi no PSB, tendo como referências figuras como Miguel Arraes, Luiza Erundina e Roberto Amaral. O PSB, diferentemente do PSOL, não se organizava por correntes, mas éramos considerados a esquerda do partido. Eu me elegi deputado federal em 2006. Quando o PSB resolveu apoiar o Aécio Neves no segundo turno das eleições presidenciais de 2014, o partido acabou como instrumento político de transformação para mim. E a melhor solução foi vir para o PSOL”


    Como o senhor analisa o primeiro ano do governo Bolsonaro?
    O momento é de preocupação com o avanço da direita, mas não nos lamentarmos. É necessário organizar a luta para enfrentar os pilares de sustentação do governo de Jair Bolsonaro. Esses pilares são, prioritariamente, três. Em primeiro, está o pilar econômico, a agenda ultraliberal, colocada em prática com o desmonte do Estado brasileiro no conjunto das suas garantias sociais, numa ação que subordina os interesses de um desenvolvimento próprio do Brasil aos interesses de grandes corporações e de outros Estados Nacionais – sobretudo, a adesão que faz o governo Bolsonaro ao governo Donald Trump. A segunda estrutura, é a ampliação do Estado penal, policial e punitivo, que tem como principal figura pública Sérgio Moro. E a terceira estruturação é a dos chamados capítulos ideológicos que tem como principal figura pública Olavo de Carvalho, além dos próprios filhos do presidente, da ministra Damares Alves e do ministro da Educação, Abraham Weintraub.


    Votação do Impeachment de Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016

    Na votação do impeachment, o senhor enfrentou o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, chamando-o de gângster. Há semelhanças entre Cunha e Bolsonaro?
    Eles buscam objetivos parecidos, com características bem diferentes. Cunha trabalhava na política de atacado, comprando parlamentares, apoio político e fazendo negócios com todo tipo de ação governamental, por meio do poder como deputado federal. Agora, estamos falando de uma família que tem relações estreitas com a milícia do estado do Rio de Janeiro e que, propagando uma “nova política”, exibe as mesmas práticas de fortalecimento da política do “toma lá, dá cá” no varejo. A diferença é o fortalecimento de forças paramilitares. Aquilo que se apresentava como suspeita se transformou em uma realidade concreta. Há provas de que o representante do Escritório do Crime, atualmente foragido, nomeou a ex-companheira e a mãe no gabinete de Flávio Bolsonaro. Este alega que a iniciativa foi do Queiroz, que serviu com esse mesmo agente, que seria o Escritório do Crime. Estamos falando de uma família com relações estreitas com a milícia. Portanto, o objetivo patrimonial e financeiro é parecido, mas as características da política de Eduardo Cunha e de Jair Bolsonaro são diferentes.

    “Eduardo Cunha trabalhava na política de atacado, comprando parlamentares, apoio político e fazendo negócios com todo tipo de ação governamental, por meio de seu poder como deputado federal. Agora, estamos falando de uma família que tem relações estreitas com a milícia do estado do Rio de Janeiro”

    Nunca tivemos o crime organizado entranhado na estrutura do Estado, tal como agora. O que isso muda na política brasileira e na relação com a sociedade?
    Muda muito. Aquilo que o estado do Rio de Janeiro já viu – uma política baseada na dominação de territórios e na eliminação física de adversários – ganha uma dimensão nacional, com a força da presidência da República. Dos quatro parlamentares do PSOL pelo estado do Rio, três tiveram ameaças formalizadas, o que pede uma escolta permanente. Olhe o que é a representação disso na violência política. Veja a execução de Marielle e de Anderson. Essa turma ganhou poder nacional. E isso faz com que eles, o tempo inteiro, ampliem o poder e façam ameaças de fechamento de regime, contando com essas forças milicianas ao seu redor.

    Por que o governo e seus apoiadores volta e meia ameaçam com uma volta à ditadura?
    Essas ameaças são testes. O bolsonarismo que está mais ligado ao olavismo não tem dificuldade alguma em exercer sua força para que esse fechamento seja realizado. Ao mesmo tempo, acho que não podemos cair em uma armadilha. Uma parte daqueles que se apresentam como uma direita mais domesticada, ou mais racional, joga o que seria a boia de salvação para toda a sociedade brasileira contra o fechamento de regime. Com isso, gera uma cortina de fumaça para continuar tocando a política de desmonte do Estado, de privatizações, de demonização do funcionalismo público, de entrega das reservas de petróleo, de entrega do sistema elétrico brasileiro. Não podemos ter uma política que seja menos contundente com figuras como Rodrigo Maia e companhia. Elas tocam semanalmente, na Câmara dos Deputados, essa política de desmonte do Estado nas garantias sociais, com a implementação da agenda ultraliberal. Se, em determinado momento, temos alianças um pouco mais amplas contra o fechamento de regime, isso não pode ser um sinônimo de não fazer o enfrentamento necessário àqueles que são representantes de uma política de submissão do Brasil e de terra arrasada no que diz respeito a direitos e garantias sociais – aqueles que se apresentam como a direita domesticada.

    Outro fato novo é o governo contar com apoio de alguns integrantes das Forças Armadas. Na sua opinião, existe essa aliança entre governo e Forças Armadas?
    Existe, mas acho que precisamos colocar elementos novos. O primeiro foi o racha acontecido nas Forças Armadas a partir da política do próprio Jair Bolsonaro. Ele priorizou a defesa dos interesses de quem está no topo da hierarquia, dos oficiais, e excluiu garantias e direitos de quem está na base. A previdência dos militares foi o primeiro grande baque na hegemonia que Bolsonaro sempre teve, pelo menos nas últimas eleições, no interior das Forças Armadas. Ele privilegia quem está no topo, como os que compõem o ministério. Os da base ficam submetidos a uma política regressiva e de perda de rendimentos. A maioria dos militares não está no topo da hierarquia. Numericamente, estamos falando de 80% deles, que estão na base e que não são, necessariamente, oficiais. Ao mesmo tempo, parte significativa dos militares não embarca no governo por considerar o gesto uma aventura. Um exemplo disso são as ameaças que Eduardo Bolsonaro faz de uma guerra contra a Venezuela. Parte significativa dos militares não entram nessa aventura, inclusive por pragmatismo, porque sabem que a entrada numa guerra tem consequência incalculáveis para o Brasil. Essa aliança é inegável, mas ela já foi mais forte e mais homogênea.

    “Precisamos ter frentes de resistência ao projeto bolsonarista. Frente parlamentar, frente social e frente dos movimentos. Elas têm de se basear no enfrentamento das agendas ultraliberais”

    A grande mídia ataca o governo e a política institucional, mas apoia a agenda econômica. Por quê?
    Alguém tem dúvida que o lavajatismo fortaleceu o bolsonarismo? Eu não tenho nenhuma dúvida. Esses mesmos veículos que fortaleceram o lavajatismo e, consequentemente, o bolsonarismo, agora procuram estabelecer limites para o próprio bolsonarismo. Mas não abandonam por completo figuras como Sergio Moro e companhia. Na minha avaliação, é um movimento dúbio. Inclusive, porque a agenda lavajatista de ampliação do Estado penal, policial e punitivo é funcional para a agenda ultraliberal, que é extremamente impopular.

    Recentemente, fui fazer um bate-papo com estudantes em Acari, bairro do Rio de Janeiro. Eu perguntava sobre as medidas adotadas ainda pelo governo Temer. Reforma da Previdência? Todo mundo era contra. Reforma trabalhista? Todos contra. Privatizações? Contra. O Temer, se chegasse ali, não conseguiria sair. E aí surge, no decorrer da conversa, uma discussão sobre mandados coletivos de busca e apreensão, ou autorização judicial para entrar em várias residências ao mesmo tempo. Nesse momento, o pessoal rachou. Metade era a favor e metade era contra. E nós estávamos em uma comunidade que sofre as consequências desse tipo de medida judicial. Essa agenda punitivista atravessa o imaginário brasileiro com muita força. Quando se tem uma agenda extremamente impopular, é preciso equilibrar esse jogo com uma agenda que, necessariamente, seja mais popular. O lavajatismo e a agenda de ampliação do Estado policial servem, também, para a agenda da ampliação do desmonte, com a pauta ultraliberal, ao desfocar, muitas vezes, aquilo que é uma agenda que, se dependesse exclusivamente do povo, seria rejeitada majoritariamente. Estão aí as pesquisas de opinião mostrando que a maioria do povo brasileiro é contra rodadas de privatização. A cada dez brasileiros, de seis a sete se manifestam contra privatizações. A agenda do Estado policial vem para equilibrar isso. Então, parte desses segmentos que tentam impor limites ao bolsonarismo continua estimulando essa agenda que fortalece o governo.

    Por que a esquerda não conseguiu ter um projeto de segurança alternativo?
    Precisamos fazer uma autocrítica. A esquerda se esconde dessa discussão. Não existe batalha que seja vencida se ela não for disputada. Se tem uma votação de ampliação de pena no plenário da Câmara dos Deputados, conta-se nos dedos os parlamentares que vão fazer o enfrentamento a esse tipo de agenda. Se você fica com medo de uma discussão porque ela é impopular, você já perdeu, porque o adversário vai ter uma profunda capacidade de te enquadrar. Temos de fazer enfrentamentos onde não temos maioria social. Um exemplo é a presunção de inocência e dos julgamentos em segunda instância. Temos que fazer essa disputa e mostrar o que ocorre: há mais de um milhão de pessoas passando pelas unidades prisionais por ano. E o sentimento de insegurança social só se amplia. Nós temos propostas em relação à segurança pública? Temos. E precisamos fazer um enfrentamento que se contraponha à agenda de ampliação do Estado penal, policial punitivo total com a apresentação daquelas que são as nossas propostas. Como esquerda, não devemos ter dificuldade de discutir, por exemplo, ampliação do controle de fronteiras no que diz respeito à circulação de armamento no território nacional, política que é constantemente desmontada pelos governos de plantão – Temer, Bolsonaro e companhia. Veja um exemplo: o Rio de Janeiro não tem fábricas de fuzis. Todo mundo fala da entrada desse tipo de arma pela baía de Guanabara. Muitos dos que facilitam essa entrada podem estar ligados e relacionados aos poderes, como se viu com a prisão daquele que seria o executor de Marielle, o Ronnie Lessa. Ele possuía uma grande quantidade de fuzis. E mais, não dá para discutir diminuição de violência no Brasil sem discutir as unidades prisionais brasileiras. Apresentei uma proposta que cria um Plano Nacional de Educação nas unidades prisionais, atuando diretamente sobre a política de hiperencarceramento. A proposta trabalha a remissão mas, ao mesmo tempo, trabalha alternativas para a garantia de direito de quem está nas unidades. É algo óbvio: se não houver direitos para os encarcerados, quando essa pessoa sair da unidade prisional, haverá um fortalecimento da espiral da violência. Não dá para se discutir uma política de segurança sem tocar em um assunto tabu, que é a política de drogas. Um exemplo internacional a ser lembrado é o de Portugal. Lá se faz uma discussão sobre o uso abusivo de drogas como questão de saúde pública, e não como aqui, uma política de ampliação do controle das comunidades periféricas, com o genocídio da população negra. O argumento é que assim se controla a droga, o que não é verdadeiro. Além disso, é inadmissível que o Brasil não tenha um plano nacional de redução de homicídios, se temos mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano. Nós temos, sim, propostas. Não podemos ter medo de enfrentar a ultradireita, que repete as práticas que já não deram certo e que só ampliam a política de violência no nosso país. Isso serve muito bem para eleger deputado bolsonarista, mas serve muito pouco para se reduzir a violência.

    “Não dá para se discutir uma política de segurança sem tocar em um assunto tabu, que é a política de drogas. Um exemplo internacional a ser lembrado é o de Portugal. Lá se faz uma discussão sobre o uso abusivo de drogas como questão de saúde pública, e não como uma política de ampliação do controle das comunidades periféricas”

    Embora os indicadores falem em 13% de desemprego no Brasil, com a precarização, com a difusão do bico e com o trabalho intermitente, esse índice mais do que dobra, alcançando mais de 40% da população. O senhor apresentou um projeto para se atingir o pleno emprego no país. Qual é a ideia central?
    Fizemos uma discussão com economistas da liderança do PSOL e estabelecemos o emprego não um favor do mercado, mas um direito a ser garantido, que inclusive está na Constituição. E colocamos o Estado como o empregador de última instância. A proposta cria um fundo gerido prioritariamente por trabalhadores e por segmentos da sociedade civil organizada, direcionado para a garantia do emprego. Ele se diferencia de políticas de renda mínima, que já contam com propostas apresentadas, porque dá um foco às pessoas que estão desempregadas, garantindo, pelo menos, um salário mínimo de rendimento a cada uma e será operacionalizado com recursos do orçamento da União.

    E existem recursos para isso?
    Se o tipo de prioridade orçamentária que temos hoje for mantida, de fato, não teremos recursos. Mas estamos trabalhando com uma lógica que modifique as prioridades. Estamos falando de 2% do PIB brasileiro para, aproximadamente, os 13 milhões de desempregados que temos hoje. Se formos fazer uma comparação com o que se paga de juros, sem entrar na lógica ou na discussão da demonização ou não do pagamento da dívida, destinamos em torno de 6% do PIB para juros e amortização. E aqui estamos falando de 2% para uma política que seria de pleno emprego! Nossa proposta, objetivamente, é a seguinte: avalia-se que, em um determinado município do Nordeste brasileiro, haja 20% de desempregados. Então, nesse município, o fundo se voltaria para garantir emprego para esses desempregados. O projeto foi atacadíssimo por pensadores e políticos ultraliberais. É curioso. Se é algo extremamente absurdo e que não mereça nenhum tipo de atenção, não se deveria criticar. Mas a proposta não está isolada. Uma parte daqueles que trabalham na campanha do Bernie Sanders vêm apresentando sugestões parecidas a essa. Existe um programa semelhante na Índia, reconhecido pelo Banco Mundial. A ideia central, repito, é tratar o emprego como um direito garantido, e não como um favor do mercado. Mas o mercado não aceita isso porque precisa do estímulo do desemprego elevado para facilitar o processo de “negociação” com os trabalhadores, aquilo que eles chamam de “domesticação da força de trabalho”.

    “É impossível pensar em redução do desemprego com a vigência da EC do Teto de Gastos. Defendemos sua revogação. Isso não existe em nenhum lugar do mundo e reduz recursos voltados para direitos e garantias sociais”

    Essa proposta é possível com a vigência da Emenda Constitucional 95, a do teto de gastos?
    É impossível. Por isso, no texto da proposta, defendemos a revogação da Emenda Constitucional que estabeleceu um teto de gastos. Isso não existe em nenhum lugar do mundo e reduz recursos voltados para direitos e garantias sociais, que serão drenados para o pagamento de juros, amortização da dívida. Além disso, facilitam a entrada do setor privado em áreas como educação e saúde.

    Não podemos perder nossa radicalidade, no sentido de irmos à raiz dos problemas. Não podemos ter, numa eleição municipal, medo de falar em socialismo. Mas precisamos falar em socialismo vinculado à vida real das pessoas

    As forças democráticas e de esquerda podem atuar conjuntamente no Congresso?
    Precisamos ter frentes de resistência ao projeto bolsonarista. Frente parlamentar, frente social e frente dos movimentos. Agora, a viabilização disso como uma ação eleitoral, na minha opinião, tem que estar baseada em programas municipais de enfrentamento às agendas ultraliberais. Isso implica oposição ao processo de privatização da água no Brasil, para a defesa da escola pública e para que se impeça o reacionarismo de sufocar o pensamento crítico. Não podemos perder nossa radicalidade, no sentido de irmos à raiz dos problemas. Não podemos ter, numa eleição municipal, medo de falar em socialismo. Mas precisamos conseguir falar em socialismo fazendo essa discussão combinada com a vida real das pessoas.

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

  • O que muda em 2020 na CENA CONTINENTAL?

    O que muda em 2020 na CENA CONTINENTAL?

    O que muda em 2020 na
    CENA CONTINENTAL?

    Cenário regional se alterou significativamente. A maioria dos analistas previa, no início de 2019, que o governo Maduro cairia em poucas semanas. Um ano depois, o preferido dos mercados, Maurício Macri, foi o maior derrotado. A Bolívia vive um golpe brutal. Chile e Equador enfrentam levantes populares e as ruas da Colômbia se agitam. Nesse quadro, como se comporta o governo brasileiro?

    Por Gilberto Maringoni

    Do início ao final de 2019, a situação política da América do Sul se transformou significativamente. Se em janeiro, a grande pergunta era saber quantas semanas duraria o governo de Nicolás Maduro, em um continente pautado pela supremacia da direita e da extrema-direita, um ano depois o quadro é outro.


    O Chile vive um impressionante processo de mobilizações populares

    Maduro segue no poder e as ameaças que o rondavam se enfraqueceram (o que não significa dizer que a situação interna seja tranquila). Um dos faróis do ultraliberalismo no continente caiu, o governo Maurício Macri, na Argentina. Um golpe brutal, com características miliciano-fundamentalistas derrubou o governo Evo Morales, numa Bolívia em rebelião popular. O outrora tranquilo Chile enfrenta manifestações inéditas num lugar tido como vitrine dos ajustes estruturais. O Equador assistiu um levante que colocou o direitista Lenin Moreno contra a parede e o Peru se instabilizou em um enfrentamento entre duas facções direitistas, o fujimorismo no Congresso e a alta finança na Presidência. Ivan Duque, o reacionário governante da Colômbia se viu derrotado em eleições municipais nas grandes cidades e tem protestos populares crescentes diante de si. No Uruguai, o resultado eleitoral foi inusitado: deu empate, com vitória final para a direita neoliberal encabeçada por Lacalle Pou, gerando uma situação que se desenhará melhor ao longo de 2020 e pela evolução da crise econômica em seus vizinhos maiores, Argentina e Brasil. E a grande novidade em termos de articulação continental, o Grupo de Lima – formado por 14 países em aliança com a Casa Branca, cujo propósito essencial é isolar a Venezuela – se desmoraliza.

    A instabilidade não é novidade em um continente marcado por abissais desigualdades de classe, étnicas e regionais. A manutenção do que se convencionou chamar de “paz social”, na maior parte das vezes, foi obtida aqui com pesada repressão interna por parte dos aparatos de segurança dos Estados

    A instabilidade não é novidade em um continente marcado por abissais desigualdades de classe, étnicas e regionais. A manutenção do que se convencionou chamar de “paz social”, na maior parte das vezes, foi obtida aqui com pesada repressão interna por parte dos aparatos de segurança dos Estados. De tempos em tempos, a tensão social – quando não tem o escoadouro institucional de eleições – explode, mostrando a fragilidade das estruturas legais de cada país. Também não é surpreendente que tais fenômenos sejam muitas vezes concomitantes em vários locais.

    Alinhamento automático

    Nesse quadro todo, como se comporta o Brasil? O novo governo brasileiro inaugurou, em janeiro de 2019, uma diplomacia que vai muito além da submissão total a Washington, marca de pelo menos duas administrações anteriores, a de Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e a de Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-67). Bolsonaro colocou o Brasil como extensão das diretrizes globais emanadas pelo Departamento de Estado, em uma fase de direitização da política externa dos Estados Unidos. Isso implica um alinhamento passivo e acrítico, que compreende agressividade diplomática para com a China, Irã, Venezuela e aproximação com homólogos ideológicos do presidente brasileiro ao redor do mundo. São os casos, além do próprio Trump, do italiano Matteo Salvini, do húngaro Viktor Orbán e do israelense Benjamin “Bibi” Netanyahu. Todos enfrentam crises em seus países.

    O novo governo brasileiro inaugurou, em janeiro de 2019, uma diplomacia que vai muito além da submissão total a Washington, marca de pelo menos duas administrações anteriores, a de Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e a de Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-67). Bolsonaro colocou o Brasil como extensão das diretrizes globais emanadas pelo Departamento de Estado

    Exportando o bolsonarismo

    As intervenções políticas do Brasil na América do Sul ao longo de 2019 foram desastrosas. Poucos dias após as eleições de 2018, o já indicado ministro da Economia Paulo Guedes, ao ser interpelado por uma jornalista argentina sobre o futuro do Mercosul, respondeu aos berros: “Não é prioridade! Não é prioridade!”. Mesmo a diplomacia do governo Macri, com muita proximidade política ao recém-eleito, ficou surpresa.

    Ainda antes da posse, o eleito atacou violentamente os profissionais cubanos que participavam desde 2013 do programa “Mais Médicos”. A alegação é que os caribenhos teriam vindo para formar “núcleos de guerrilha” no Brasil. Em 13 novembro de 2018, o governo da Ilha decidiu sair do programa, citando “referências diretas, depreciativas e ameaçadoras” feitas pelo chefe do Executivo eleito.

    No segundo mês de mandato, Bolsonaro somou-se às articulações dos Estados Unidos, da Colômbia e do Grupo de Lima – conjunto de governos que se opõem ao governo de Nicolás Maduro – na tentativa de realizar uma provocação à Venezuela, com consequências imprevisíveis. O chanceler e o vice-presidente brasileiro chegaram a ir a Cúcuta, fronteira entre Colômbia e Venezuela, em 23 de fevereiro, para a montagem de uma suposta operação de ajuda humanitária. Era uma tentativa de golpe, que logo malogrou. Dois meses depois, em novo intento, o líder oposicionista Juán Guaidó busca sublevar uma base aérea em Caracas e é rechaçado. Nos dois episódios, o apoio brasileiro foi irrestrito.

    No fim, fica a pergunta: Donald Trump – alardeado como amigo do peito por Jair Bolsonaro – precisa dele agora exatamente para quê?

    A tais trapalhadas se somaria a invasão da embaixada venezuelana em Brasília, no mês de novembro. O episódio tem raízes obscuras, mas foi nítido a condescendência do Itamaraty e das forças de segurança brasileiras em reprimir a ação ilegal.
    Bolsonaro visitou a Argentina, na primeira semana de junho de 2019. Entre carnes nobres e tintos de qualidade, o brasileiro declarou apoio incondicional a Maurício Macri nas eleições.

    Derrotado Macri, Bolsonaro recusou-se a cumprimentar o novo presidente do terceiro maior parceiro comercial do Brasil. O gesto mostra-se ainda mais inusitado quando comparado às saudações feitas pela Casa Branca.


    Manifestação da Frente de Esquerda durante a campanha eleitoral argentina

    Em relação ao Chile, Jair Bolsonaro investiu pesadamente contra a ex-presidenta Michelle Bachelet, alta comissária de Direitos Humanos da ONU, no início de setembro. O ultradireitista acusou Bachelet de ingerência indevida, após esta declarar a “redução do espaço cívico e democrático” no Brasil para a fiscalização de abusos em crimes de direitos humanos. Não contente, atacou o pai, general assassinado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-89), a quem, volta e meia, elogia. O repúdio foi unânime no país, com condenações que foram da esquerda ao presidente direitista Sebastián Piñera. Este alegou não compartilhar “em absoluto a alusão feita pelo presidente Bolsonaro a uma ex-presidenta do Chile e, especialmente, a um assunto tão doloroso quanto a morte de seu pai”.

    Pela somatória de impropriedades continentais, o candidato de direita à presidência do Uruguai, Luis Lacalle Pou, rejeitou o apoio externado por Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais daquele país. No caso do golpe na Bolívia, o Brasil reconheceu o autoproclamado novo governo pouco mais de 48 horas após a renúncia de Evo Morales. Ainda não está clara a influência de Brasília nas violentas mudanças ocorridas no país.

    Isolado e inútil

    Bolsonaro não tem um projeto definido para o continente. Em maio, ele, Macri, Piñera e Iván Duque (Colômbia) assinaram a Declaração de Santiago, lançando o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul). Além de declarações vagas, há pouca coisa definida até agora, além da virtual dissolução da Unasul, lançada em 2008, durante o ciclo de governos progressistas na região.

    A campanha peronista

    A conduta errática e fora dos padrões correntes da política externa brasileira tem levado ao crescente isolamento do país na região. Ninguém tem Bolsonaro como interlocutor sério e todos querem distância do miliciano.

    Ao tomar partido em disputas internas de outros países, o brasileiro se torna disfuncional às próprias intenções de isolar a esquerda. Aliás, torna-se disfuncional para as duas tarefas que a Casa Branca tacitamente esperava verem cumpridas por Bolsonaro – a derrubada de Maduro e a contenção da China na região. Ambas malograram. Em seu malogrado périplo pelo Oriente e Oriente Médio e na reunião do BRICS, Bolsonaro derreteu-se em mesuras com Xi Jinping. Aceitou abrir o mercado brasileiro para a tecnologia 5G chinesa, fulcro da guerra comercial entre o gigante asiático e os Estados Unidos.

    No fim, fica a pergunta: Donald Trump – alardeado como o amigo do peito – precisa dele agora exatamente para quê?

    Leia a revista n. 27 na íntegra!

    Gilberto Maringoni é professor do curso de Relações Internacionais da UFABC. Este artigo é baseado em texto produzido com a colaboração de João Victor Pennacchio, Letícia Silva Ribeiro, Desiré Santil e Paulo Henrique Campos Gal, estudantes do mesmo curso.

     

  • Luiza Erundina: “O sonho é um negócio muito forte”

    Luiza Erundina: “O sonho é um negócio muito forte”

    Luiza Erundina: “O sonho é
    um negócio muito forte”

    Luíza Erundina de Sousa tornou-se personagem de destaque na vida pública brasileira ao ser a primeira mulher a assumir a prefeitura de São Paulo, em 1988. A passagem pela administração provocou uma reviravolta na ideia de como a esquerda deve governar. “A gente não assumiu para aceitar os limites vigentes; fomos lá para inverter prioridades”, relata Erundina numa tarde chuvosa de agosto, em seu escritório na zona sul paulistana.

    Sua gestão foi marcada por enfrentamentos com a grande imprensa e com os grandes interesses na cidade. “Sobrevivemos por contar com sólido apoio popular”, completa.

    Luíza Erundina está na política há mais de seis décadas. Assumiu o primeiro cargo público aos 24 anos, no impulso de uma militância com a Igreja católica. Era a diretora de Educação e Cultura da Prefeitura Mu-nicipal de Campina Grande. De lá para cá, não parou mais. Filiada ao PSOL desde 2016, essa paraibana de Uiraúna cumpre o sexto mandato como deputada federal com dedicação admirável. “Eu não me casei, não tenho marido, não tenho filho, não tenho nada. Eu me doei para a política. E por quê? Porque acredito na história!”, enfatiza.

    O melhor, em se tratando de Luíza Erundina, é deixar que fale por si mesma.

    Por Gilberto Maringoni, Francisvaldo Mendes, Bernadete Menezes, Mario Augusto de Azeredo

    Como a senhora ver a situação atual?
    Com muita preocupação e ao mesmo tempo indignação. Bolsonaro não reúne condições mínimas necessárias, nem do ponto de vista da capacidade política, nem no que tange a qualidades pessoais exigidas para o exercício do cargo de presidente da República. E o mais grave é que ele não tem o menor compromisso com a democracia. Não há nada que nos faça esperar de Bolsonaro alguma coisa, além do vazio de ideias, o que, aliás, foi marca registrada durante a campanha eleitoral.

    A agenda do país está marcada por denúncias de escândalos que envolveriam os filhos e integrantes do governo. O governo Bolsonaro conspira contra o interesse da sociedade ao produzir um sem-número de crises, enquanto milhões de brasileiras e brasileiros não têm a garantia dos direitos fundamentais, como o direito ao trabalho, por exemplo. Enquanto a sociedade é distraída com postagens no Twitter da família presidencial, aos poucos vai se sedimentando, sem grandes contestações, ideias de extrema direita que inspiram um projeto de poder que tenta se impor pelo medo, pela violência e pela intimidação. Além disso, temos uma administração obcecada por estabelecer o controle moral das pessoas, enfraquecer os mecanismos de luta social, alienar o patrimônio público e as riquezas nacionais, reduzir os gastos sociais, desarticular os órgãos e ações de proteção ambiental e fragilizar ainda mais as minorias sociais, como indígenas, quilombolas, mulheres, negros e homossexuais. Jair Bolsonaro tornou-se o demolidor de tudo aquilo que o povo brasileiro construiu ao longo da história. Não vai deixar pedra sobre pedra, se não reagirmos rápido e à altura para defendermos o patrimônio público.


    A primeira prefeita de São Paulo

    Luíza Erundina de Sousa, 84, é uma das mais emblemáticas personalidades públicas do PSOL. Sua trajetória mescla-se com as lutas sociais e políticas brasileiras, desde 1958. Sétima dos dez filhos do artesão de selas e arreios de couro, Antônio Evangelista de Sousa e de Enedina de Sousa Carvalho, Erundina começou a trabalhar ainda criança, vendendo bolos e doces produzidos pela mãe.

    A vida militante começou na prefeitura de Campina Grande, onde foi Secretária Municipal de Educação e Cultura, em fins dos anos 1950, atuando mais tarde com as Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Opôs-se claramente ao golpe de 1964.

    Formada em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba, mudou-se para São Paulo em 1971. Na cidade, trabalhou na Secretaria de Bem-estar Social da prefeitura, com migrantes nordestinos da periferia. Logo, vinculou-se a movimentos por moradia, tornando-se liderança destacada.
    Erundina foi fundadora do PT, em 1980. Elegeu-se vereadora dois anos depois e deputada estadual em 1986. O ponto alto da vida política se deu entre 1989-93, quando conquistou a prefeitura de São Paulo. Seria ainda ministra da Administração Federal, por poucos meses, em 1993 (governo Itamar Franco).

    Em 1997 deixaria o PT, vinculando-se ao PSB, pelo qual se elegeu deputada federal em 1998. Em 2016 trocaria a legenda pelo PSOL.


    Qual sua avaliação sobre a economia?
    Em relação às perspectivas de crescimento econômico, o futuro do país parece fadado ao fracasso total. O índice de desemprego atinge mais de 13 milhões de pessoas e o subemprego já é o maior desde que teve início a série histórica, em 2012. Isso significa que 1 em cada 4 brasileiros aptos a trabalhar está fora do mercado de trabalho. A reação de Bolsonaro a esse quadro alarmante foi debochar e desacreditar as informações do IBGE, dizendo que “a metodologia de cálculo da taxa de desemprego no País não mede a realidade”. Há claros sinais de que o governo Bolsonaro pretende avançar na agenda de redução do custo do trabalho que se dará, não só pelo achatamento dos salários, mas também por meio da desregulamentação do mercado de trabalho.

    Em um discurso na USP, no ano passado, a senhora disse ter vivido a ditadura do Getúlio, na infância, e, já na vida adulta, conheceu a ditadura de 1964. A situação atual se compara a qual delas? É possível fazer essa comparação?
    Não, acho que não. As coisas aconteceram de uma fase histórica para outra sem que houvesse ruptura alguma. Não há rupturas. As classes dominantes se acertam e resolvem as diferenças. Isso vale para a época da libertação dos escravos, a mudança da República, Getúlio Vargas, a ditadura de 1964 etc. Veja o governo Lula. O ministério dele era dos que detinham o poder na ditadura. É muito triste. A gente perde um pouco a perspectiva de mudança no nosso tempo, embora considere que o projeto que nos inspira é o sonho maior de uma sociedade verdadeiramente democrática, civilizada, igualitária, justa, com um nível de relação em que a natureza humana seja a referência principal como elemento de igualdade, de dignidade e de direitos.

    Bolsonaro não reúne condições mínimas necessárias para o exercício do cargo de presidente da República. E o mais grave é que ele não tem o menor compromisso com a democracia. Não há nada que nos faça esperar de Bolsonaro alguma coisa, além do vazio de ideias

    A situação atual é desafiadora por termos um governo aparentemente sem lógica. Há um projeto ultraliberal e um moralismo ideológico de extrema direita. Ele perde apoio social aceleradamente, mas segue forte. Como se explica o fato de um deputado apagado e conhecido apenas por ideias extremistas chegar à presidência da República?
    A realidade maior é muito anterior a ele. Desde 2013, a meu ver, a jornada daquele movimento de massa com mais de um milhão de pessoas na rua durante o mês inteiro já era uma sinalização de que estava havendo uma virada da realidade política, da realidade social, e da realidade na dimensão plural. E isso estava gestando um governo e um presidente com as características dele.

    Na sua opinião, não houve uma frustração em relação à segunda eleição da ex-presidenta Dilma, em que ela prometera emprego e desenvolvimento e ao assumir o governo, aplica um programa ultraliberal? Essa frustração não criou uma aversão à política e abriu espaço para um candidato como Bolsonaro?
    É verdade. Mas o que mais pegou para chegar a esse resultado é a questão moral, a da corrupção. O que mais frustrou, no meu ponto de vista, foi a ideia da maioria de que qualquer um podia roubar, menos o PT. Acho que a questão moral tem um apelo muito forte nas camadas populares. Começou com o mensalão, em que ficou evidente que o PT pôs a mão.

    Por que o PT não podia ser corrupto?
    Pelo critério de que alguém de esquerda não poderia não ser ético e honesto. Esse é um valor popular importante, forte, embora, para nós, não seja o principal – a corrupção é efeito, não é causa. E, para o povo brasileiro, a questão da ética é muito importante. O PT é um pouco udenista nesse sentido. A origem cristã do PT, nas comunidades eclesiais de base, a força da igreja, a Teologia da Libertação… Muitos de nós vínhamos de lá. Portanto, têm uma marca importante na nossa cultura, na nossa origem, esses valores cristãos. Alguns são bons, outros nem tanto, mas, sem dúvidas, na questão da honestidade, não roubar, não tirar do pobre, não tirar do público é um valor fundamental.

    A primeira Constituição republicana, de 1891, estabelece o Estado laico. Nós estamos regredindo quase 130 anos nesse aspecto. Como a senhora ver o peso que as igrejas pentecostais passaram a ter na política?
    Vamos pegar a história do Brasil, sobretudo, considerando a minha origem de classe. A religião foi sempre forte na política. O coronelismo, o poder, a disputa pelo poder, a conquista do poder e o exercício dele tinham como sustentação a religião. E era a religião católica, não a protestante. É verdade que, com as transformações da Teologia da Libertação e a renovação de certo setor da igreja, as coisas não se davam nos termos em que aconteciam tradicionalmente lá no nordeste.

    Mas por que agora temos os evangélicos? Primeiro, o fenômeno dos evangélicos floresce nas camadas mais pobres, mais desassistidas, menos informadas, com menos acesso à educação. Além disso, eles têm uma metodologia e uma pedagogia muito forte. Atraem as pessoas e as reconhecem, criando um ambiente de elevação da autoestima. Aprende-se a ler a bíblia, a usar a bíblia. Há a música, o canto e a promessa da prosperidade. Se você faz isso para Deus, você vai ser próspero. O projeto político dos evangélicos começou a partir do momento em que eles buscaram eleger um vereador. Tal vereador neste ano, no próximo mais tantos e no próximo um deputado. Eles têm um projeto de poder que foi se construindo ao longo do tempo de forma consolidada, consistente, planejada e hoje tem um cara deles dirigindo o país. É um projeto de poder.

    O índice de desemprego atinge mais de 13 milhões de pessoas e o subemprego já é o maior desde que teve início a série histórica, em 2012. Isso significa que 1 em cada 4 brasileiros aptos a trabalhar está fora do mercado de trabalho. A reação de Bolsonaro a esse quadro alarmante foi debochar e desacreditar as informações do IBGE

    Em 1930, houve um golpe e uma mudança de regime. Em 1964, também houve golpe e uma mudança de regime. Em 2016, houve golpe, mas não uma mudança. Tivemos a eleição de um presidente de extrema direita, mas sem mudança de regime. Formalmente, estamos em um regime constitucional. Não é uma anomalia estarmos em uma democracia que não é uma democracia?

    Nunca tivemos democracia plena. A democracia representativa se exercita até num período como o de agora, mas a democracia participativa, direta, sem a qual não há soberania popular, não. O artigo 14 da Constituição, que estabelece os mecanismos de democracia direta e participativa, nunca foi regulamentado devidamente.

    O governo Lula era a grande esperança de alargar essa democracia. Como a senhora avalia o período de 2003 a 2016?
    O projeto de Lula para presidente da República foi, a meu ver, muito pessoal. Era o PT disputando para o Lula ser presidente sem um compromisso mais concreto, mais público e mais assumido de que seria outro projeto. A preocupação era de que, elegendo o Lula, se teria completado o projeto do PT. Tanto é que as sucessivas eleições – Lula na segunda vez e Dilma na primeira e segunda vezes -, nunca foram realizadas a partir de uma avaliação de que os governos teriam que completar seu projeto, que se supunha ser aquele que deu origem ao PT. Aquele era o projeto de se promoverem as reformas. O PT não fez nenhuma reforma estrutural importante. Nenhuma. A estrutura de poder do Estado brasileiro e as relações com a sociedade civil não se alteraram essencialmente. Portanto, foi um governo progressista, popular, mais aberto ao diálogo, mas não um diálogo que atentasse para a soberania do interlocutor. A grande dívida histórica que o governo do PT deixou para a democracia brasileira é que desperdiçaram toda a popularidade, o prestígio e toda a força política que o partido tinha para promover as reformas pelas quais existia, ou existe, o PT.

    A senhora não acha que houve uma melhoria do padrão de vida ao longo dos governos petistas?
    Isso aconteceu diante de uma conjuntura internacional que favoreceu muito o Brasil. Mas distribuição de renda real nunca foi feita. O que se fez foi transferência de renda. O Bolsa Família e esses programas todos são políticas compensatórias. Você mandou para o Bolsa Família bilhões e bilhões durante vários anos e isso, de uma certa forma, dinamizou a economia local, o poder local. Mas tanto não emancipou esses setores que, logo que esse programa foi reduzido no peso e na importância, as pessoas voltaram a uma situação até pior. Não se mexeu na estrutura tributária e se fizeram reformas regressivas da Previdência.

    Por que a Dilma foi derrubada e o Lula foi preso, se eram governos que, segundo a senhora, não realizaram reformas progressistas?
    Porque era um governo de conciliação de classes. O próprio Lula costumava dizer que quem mais ganhou no governo dele foram os pobres e os banqueiros. Ele não mexeu muito nos interesses da classe dominante. Acontece que isso tem limites. Os banqueiros não poderiam continuar ganhando tanto e, ao mesmo tempo, os pobres serem atendidos naquilo que é básico e fundamental. Portanto, houve um tempo, até pela crise econômica, que fez com que esse modelo já não pudesse mais oferecer aquilo que prometia e que, de uma certa forma, atendia aos interesses daqueles cujos interesses sempre foram garantidos.

    O projeto político dos evangélicos começou a partir do momento em que eles buscaram eleger um vereador. Tal vereador neste ano, no próximo mais tantos e no próximo um deputado. Eles têm um projeto de poder que foi se construindo ao longo do tempo de forma consistente

    Tivemos 13 anos de governos do PT e a sociedade parece ter se despolitizado. Isso aconteceu? Não lhe parece contraditório?
    Sim, despolitizada. A gente tinha secretaria para tudo no PT. E eles impulsionavam a disputa na sociedade. Por exemplo, a política da educação. Tinha um setor do partido que elaborava a política da educação, e a militância ligada à educação militava no movimento de educação, interagindo dos dois lados. A política de educação que o partido elaborava por meio daquele coletivo era alimentada pela militância que, por sua vez, também se alimentava disso para levar posições aos movimentos. Ela influenciava o movimento politicamente, teoricamente, conceitualmente.
    Portanto, havia uma imersão real, porque a gente veio de lá. A gente não foi para lá depois que teve o PT. A gente estava lá antes do PT. Então, nossa origem no movimento, na luta concreta, de uma certa forma, contribuiu para o PT ser aquilo que ele era no início.

    O PT a atacou em duas oportunidades, pelo menos. Na primeira, quando a senhora foi para o governo Itamar, em 1994. Na outra, quando foi candidata à Prefeitura de São Paulo, em 2004, quando o vice era Michel Temer. O que acha dessas críticas?
    Em relação ao Itamar Franco, a participação do PT foi determinante para derrubar o Collor. Por que o PT se recusou a ajudar o governo Itamar? Ele não tinha tanta legitimidade, não tinha partido nem condição pessoal que pudesse dar uma estabilidade para garantir que a outra eleição pudesse ocorrer. Havia um risco grande de instabilidade. Por que o PT não foi ajudar? Por um cálculo eleitoreiro. “Nós derrubamos o Collor. O Lula perdeu para o Collor. Na próxima, será o Lula”. Só que faltavam mais de dois anos. O PT deveria ter tido a responsabilidade de ajudar o governo e o país, mas não fez assim. Era um momento delicado da vida nacional e pensaram que se fossem ajudar o Itamar isso poderia comprometer a eleição do Lula.

    Hoje a senhora reafirma essa posição?
    Não tenha a menor dúvida. Eu estava saindo da Prefeitura de São Paulo com uma equipe excepcional. Apesar das dificuldades e da oposição do governo do estado, começando com o Quércia [1987-91] e depois com o Fleury [1991-95], do governo federal, com Sarney [1985-91] e Collor [1990-92], e da Câmara Municipal durante os quatro anos de minha gestão, além do Tribunal de Contas, acho que nós acertamos muito mais do que erramos. Aprendi muito e saí com outro entendimento político, de ação política, e tinha a compreensão de que, inclusive, nosso governo havia participado da luta pelo impeachment do Collor.

    Em determinada ocasião, a senhora convocou a militância e os movimentos sociais para se concentrarem na Câmara Municipal, algo que nenhum outro governo do PT fez. Como foi esse episódio?
    A Câmara queria cassar o mandato porque o Tribunal de Contas recomendou rejeição das minhas contas. Até ali, o Tribunal tinha mais de 30 anos e nunca havia rejeitado conta de prefeito algum. Nós éramos minoritários na Câmara Municipal. Aí tentaram cassar meu mandato.

    Essa experiência de estar no Executivo, sofrer uma ameaça, convocar o movimento social para defender a administração nunca se repetiu do lado do PT. Por quê?
    Isso aconteceu a todo momento no nosso governo. Por que nós sobrevivemos com minoria durante quatro anos na Câmara? Por que nós sobrevivemos a um Tribunal de Contas que era um instrumento político contra o nosso governo? Por que nós sobrevivemos ao Partido dos Trabalhadores contra o nosso governo? Todo mês, a direção municipal se reunia, fazia o balanço do governo e punha na imprensa antes de falar com a prefeita, que era do partido. Só existe uma explicação para ter sobrevivido durante todo esse tempo. Foi o apoio popular real, e sem aparelhamento de movimento algum. Nós não trouxemos nenhuma liderança para o governo pelo simples fato de ser liderança de um movimento.

    A proposta de Lula para a presidência da República foi, a meu ver, muito pessoal. Era o PT disputando para o Lula ser chefe do Executivo sem um compromisso mais concreto, mais público e mais assumido de que seria outro projeto de país

    E outra coisa: essa prática de chamar o apoio popular não se fez apenas naquele momento, naquela situação com a Câmara. Quando entrei, os governos federal e estadual fecharam as torneiras de financiamentos. Na época, havia o Banespa, que arrecadava alguns tributos do município. E havia dívidas que a prefeitura tinha com o Banco do Brasil e com a Caixa Econômica. Eles fecharam a torneira enquanto não pagássemos dívidas de governos passados, que eles nunca cobraram! O presidente da Caixa não quis me receber. Eu coloquei, na frente da Câmara Municipal, um caminhão, e fui para cima dele com os movimentos. Naquele tempo, não tinha internet, mas o presidente da Caixa Econômica me mandou um telegrama, me chamando para conversar. Até ali ele não aceitava a audiência comigo, para eu poder colocar a situação da prefeitura. Eles iam inviabilizar o governo desde o primeiro momento.

    A senhora não aceitou os limites daquela institucionalidade vigente?
    A gente não foi lá para aceitar. A gente foi com uma proposta que se caracterizava por dois eixos. Primeiro, fazer um governo com inversão de prioridades: governar para a maioria e, ao mesmo tempo, cuidar da cidade, daquilo que é importante para manter a cidade com condições de vida para todo mundo. Porém, no investimento público, a meta era priorizar a periferia e as políticas sociais. Isso nós cumprimos do primeiro ao último dia. O chamado orçamento participativo era real. E era um orçamento feito regionalmente. A população definia as prioridades e era razoável na compreensão de que não dava para fazer tudo. Eles tinham instrumentos e informações, além de assessoria para acompanhar a execução orçamentária. Portanto, foi uma mudança. Acho que o governo correspondeu à origem, ao partido de esquerda não tanto por ter sido honesto, porque isso é o mínimo, e nem também pelas realizações. Um governo, mesmo que não seja de esquerda, mas que seja inteligente e capaz, pode atender, prioritariamente, a população. O que diferenciou nosso governo foi a mudança de cultura do que é ser governo.

    O PSOL é a única alternativa de esquerda que existe, de fato, no Brasil. Não sei até quando. Não sei se, quando chegar ao poder como o PT chegou, o partido vai mudar. Mas a alternativa atual é o PSOL, com todos os defeitos que tem, com todas as brigas que temos

    Seu secretariado era composto por nomes de peso, como Lúcio Gregori, Marilena Chauí, Ermínia Maricato, Paulo Freire, Amir Khair, Paul Singer, Coronel Silvestre e outros.

    Por isso, lastimo o que não aconteceu no governo Lula. Com Dilma não, porque nunca tive expectativa com ela. Mas os dois governos Lula, com o carisma, a popularidade e a capacidade que tinha com a massa, ele poderia ter feito tudo o que quisesse no primeiro governo. Mas ele conciliou. Nunca mexeu uma vírgula no marco legal das comunicações. Eles criticam a Globo e companhia, mas não fizeram nada. Trabalhei nessa área desde o primeiro mandato.

    E como responder ao ataque relacionado à aliança com Michel Temer?
    Veja, naquele tempo eu estava no PSB – após ter saído do PT – e o presidente do partido era o Miguel Arraes. O Quércia conversou com Arraes. Surgiu daí a negociação para que o Temer abrisse mão se ele ficasse como vice. Foi uma articulação nesse nível. Eu faria da mesma forma.

    A esquerda parece ter retirado do horizonte de reivindicações coisas básicas, brandidas nos anos 1980, como emprego, salário, renda e comida. A esquerda que no governo praticou ajuste fiscal e austeridade não perdeu a sensibilidade às dores do povo?
    Quando foi que o povo realmente protagonizou uma luta social e política real? Foi, primeiro, do lado da Igreja. É ela que organiza, que está junto todo dia lá na paróquia, como acontece hoje nos meios evangélicos. Aí veio junto a Teologia da Libertação e, ao mesmo tempo, o PT organizando politicamente a população. Os núcleos do PT tinham vida real. Eu militei nos núcleos por local de moradia, por categoria profissional. Ali era um núcleo real de vida política. E, ao mesmo tempo, organizava a população na defesa dos direitos sociais, humanos, de cidadania. Os movimentos eram fortes. Começa pelo movimento contra a carestia, depois pelo direito à creche. Era outra luta por posto de saúde, por coleta de lixo na periferia, pela canalização dó córrego que enchia a casa dos pobres de cocô quando havia enchente.

    O PT não fez nenhuma reforma estrutural importante. As engrenagens de poder do Estado brasileiro e suas relações com a sociedade civil não se alteraram. A grande dívida histórica que o governo do PT deixou para a democracia brasileira é que desperdiçaram toda a popularidade, o prestígio e toda a força política que o partido tinha para promover as reformas, que eram sua razão de existir

    Enfim, a ação dos movimentos sociais populares em torno de certas medidas veio com uma organização. A base da Teologia da Libertação, o apelo pela fé, pela religiosidade e, ao mesmo tempo, um partido político nascendo dessa origem, mas trazendo o componente da política numa linha de reconhecimento de direitos, de organizar o povo davam o tom há 30 ou 40 anos. Eu me lembro que, antes do PT e dessa ação completa ligada a esses setores, os movimentos populares não permitiam que se falasse em política. Não permitia se usassem politicamente os movimentos. Em vez de você politizar a luta, era neutralizar a luta sem que tivesse política no meio. Isso foi uma evolução no processo de ajudar a população a se conscientizar sobre a condição de sujeitos de direitos, da força dela quando se organiza. Isso veio muito ligado ao PT, politizando a partir da população pobre se organizando por meio da Igreja progressista. Por isso, tem uma marca forte do PT. Mas o PT tinha uma pluralidade enorme de tendências. Não é só tendência da disputa interna de poder do partido. É de concepção de vida. Tinha os cristãos que estavam lá, os trotskistas que vieram do exílio, os leninistas que também vieram. Enfim, o PT era um amálgama de experiências políticas das mais diversas compreensões, misturado com os que estavam chegando do exílio e os que estavam começando aqui.

    Por que nós sobrevivemos com minoria durante quatro anos na Câmara? Por que nós sobrevivemos a um Tribunal de Contas que era um instrumento político contra o nosso governo? Por que nós sobrevivemos ao Partido dos Trabalhadores contra o nosso governo? Foi por causa do apoio popular real

    O que a move hoje para seguir essa militância de forma tão intensa, com viagens, reuniões e participações em atividades que fogem da rotina?
    Primeiro, a responsabilidade de ter um mandato que não é meu. Eu tenho que dar conta disso. Tenho 84 anos e este é meu último mandato. Eu poderia pensar que, por ser meu último, poderia fazer de qualquer jeito. Eu não me casei, não tenho marido, não tenho filho, não tenho nada. Eu me doei à política, e não na política por ela mesma. E por quê? Porque eu acredito na história! O sonho me alimenta desde que me dei conta, precocemente, das coisas como elas são, de que elas precisam mudar e de que eu preciso contribuir com a mudança. Isso me acompanhou a vida toda, assim como a consciência de que dei a minha vida com muita alegria, com muita felicidade. Não vejo sacrifício algum, faria tudo de novo. Não vou ver as mudanças que almejo no meu tempo de vida. Não sei em qual geração essa transformação vai ocorrer, pois eu penso na perspectiva do tempo da história. A história não se mede só por anos, mas por décadas, séculos, milênios. E o sonho só vai se tornar real, se ele for capaz de sustentar o ânimo da gente, a alegria da gente, a disposição da gente de fazer política para além do nosso tempo.

    Acho que nosso governo em São Paulo correspondeu à sua origem de esquerda não tanto por ter sido honesto, porque isso é o mínimo a ser feito, e nem também pelas realizações. O que diferenciou nosso governo foi a mudança de cultura do que é ser governo no Brasil

    Como a senhora vê o PSOL?
    É a única alternativa de esquerda que existe, de fato, no Brasil. Não sei até quando. Não sei se, quando chegar ao poder, como o PT chegou, o partido não vai mudar. Mas a alternativa atual é o PSOL, com todos os defeitos que tem, com todas as brigas que temos. O sentimento que tenho com nós do PSOL é aquele que eu sentia na origem do PT. A essência, a substância mais forte que faz com que o PSOL seja reconhecido, apesar do tamanho dele e da pouca eficácia da nossa ação, é o sonho. O sonho é um negócio muito forte.

    BAIXE AQUI A REVISTA N.26 COMPLETA

  • Petrobras: energia em desintegração

    Petrobras: energia em desintegração

    Petrobras: energia em desintegração

    Processo de desinvestimento, venda de refinarias, sistema de distribuição e transportes causam grandes prejuízos à Petrobras e inviabilizam autossuficiência brasileira em petróleo. Governo favorece transnacionais do setor

    Por Raquel Oliveira Sousa

    A Petrobras em sua página oficial da internet se define como uma “empresa integrada de energia que evolui com a sociedade, gera alto valor e tem capacidade técnica única”. Está presente “nos segmentos de exploração e produção, refino, comercialização, transporte, petroquímica, distribuição de derivados, gás natural, energia elétrica, gás-química e biocombustíveis.”.

    O Plano de Desinvestimento da Petrobras tem levado ao desmonte da estatal, com a saída do setor petroquímico, de biocombustíveis, de gás natural, de transporte e, por fim, com a entrega de 60% do parque de refino

    Porém, o Plano de Desinvestimento, em especial após o golpe de 2016, tem levado à desintegração da estatal, com a saída do setor petroquímico, de biocombustíveis, de gás natural, de transporte e, por fim, com a entrega de 60% do parque de refino.

    Essa privatização fatiada está transformando a Petrobras numa empresa desintegrada e que tem por consequência a perda da soberania energética do país.

    Negócios lesivos ao país

    Esse Plano de Desinvestimento, codinome para privatização, sofre de três problemas que o tornam imensamente lesivo ao Brasil:

    a) Todas as vendas estão sendo realizadas sem licitação, por meio de convites com compradores escolhidos a dedo e de forma obscura.

    b) O preço total é vil, o que salta aos olhos pela apreciação de poucos dados como se demonstrará.

    c) Implica sério ataque à soberania nacional ao presentear o capital estrangeiro com o controle de toda a malha de transporte de gás do país, a produção de fertilizantes, 60% do parque de refino, a distribuição de gás de cozinha e de uso industrial, termelétricas, o maior polo integrado de resinas de poliéster das Américas, o Complexo Petroquímico de Suape, e com as imensas reservas de óleo e gás do Pré-sal.

    A premissa do Plano de Desinvestimento é a saída da Petrobras de áreas ditas “não estratégicas”, para levantar recursos a serem utilizados na atividade principal, a extração de petróleo, em especial da área do Pré-Sal.
    Mas a venda do campo de Carcará e das gigantes concessões de Lapa e Iara, todos na bacia de Santos, demonstra que o Plano de Desinvestimento é uma grande fraude e foi urdido contra a própria Petrobras e o Brasil.

    Pré-sal a preço de banana

    Carcará é um dos maiores campos de petróleo do país, considerado uma das joias da coroa do Pré-sal, capaz de gerar enormes lucros. Um total de 66% do campo foi vendido para a norueguesa Equinor por irrisórios U$ 2,5 bilhões. Os outros 34% do campo pertencem a Queiroz Galvão e Barra Energia.

    A privatização fatiada está transformando a Petrobras de uma empresa integrada de energia em uma empresa desintegrada e que tem por consequência a perda da soberania energética do país

    Mesmo considerando a pior estimativa de reservas de Carcará – 700 milhões de barris – o valor que a Equinor pagará é irrisório. Façamos as contas: US$ 2,5 bilhões divididos por 66% de 700 milhões de barris = US$ 5,41 por barril.

    Mesmo considerando a pior estimativa de reservas de Carcará – 700 milhões de barris – o valor que a Equinor pagará por 66% do campo pertencentes a Petrobras (34% do campo pertencia a Queiroz Galvão e Barra Energia) por barril é irrisório.

    Mas a negociata é ainda mais daninha: as reservas de Carcará chegam a dois bilhões de barris, como informa a Federação Brasileira de Geólogos com base em dados da própria Petrobras. Então, cada barril de óleo foi vendido por cerca de U$ 2!

    Ou seja, quatro vezes menos que os U$ 8,51 por barril que a Petrobras pagou ao governo no contrato de concessão onerosa, firmado em setembro de 2010, para explorar e extrair cinco bilhões de barris do Pré-sal.

    Negociata de igual magnitude ocorreu na venda de 35% do Campo de Lapa e de 22,5% da Participação da Petrobras na Concessão de Iara.

    O campo de Lapa é um dos maiores do Brasil, com reservas provadas de 1,6 bilhões de barris de petróleo e 39 bilhões de metros cúbicos de gás.

    A concessão de Iara contém oito campos de petróleo (Berbigão, Norte de Berbigão, Sul de Berbigão, Sururu, Norte de Sururu, Sul de Sururu, Atapu e Oeste de Atapu), com a fabulosa quantidade de 5 bilhões de barris de petróleo de alta qualidade.

    Essa imensa riqueza foi presenteada à empresa francesa Total por irrisórios US$ 2,225 bilhões, e destes, apenas U$ 1,675 bilhão à vista.

    No meio dessa negociata, a Total também foi presenteada com 50% da participação da Petrobras na Termobahia, empresa que controla duas usinas termelétricas:

    a) A moderna usina Celso Furtado, uma planta industrial integrada à refinaria Landulpho Alves, de Mataripe (RLAM), com capacidade nominal instalada de 185,89 MW de energia elétrica e 396 toneladas por hora de vapor.

    b) A moderna usina Rômulo de Almeida, uma planta industrial integrada ao polo petroquímico de Camaçari, com capacidade instalada de 138 MW de energia elétrica e 42 toneladas por hora de vapor, em ciclo combinado.

    Essas vendas ocorreram por meio da nebulosa e tenebrosa “parceria” com a Total, mundialmente consagrada por corrupção de agentes políticos:

    a) Nos EUA, a Total assinou acordo de leniência reconhecendo a prática de suborno e corrupção ativa e pagou multa de US$ 245 Milhões por ter destinado propina a políticos iranianos com o objetivo de obter a concessão de South Pars, o maior campo de gás do mundo.

    b) Na França, a Total foi condenada a pagar multa de US$ 825.000 por corromper funcionários do governo do Iraque.

    c) Na Itália, altos executivos da Total foram presos por subornar políticos italianos, para obter a concessão do campo de petróleo de Basilicata, maior campo de petróleo terrestre da Europa.

    A entrega da NTS e da TAG

    A descoberta do Pré-sal elevou o Brasil à posição de grande produtor mundial de óleo e gás. Isso só foi possível devido a Petrobras.
    A existência da Petrobras como empresa integrada de energia também é requisito essencial para realizar o processo de exploração e produção do Pré-sal de forma de eficiente.

    O discurso governamental de se acabar com o monopólio do transporte de gás natural no país é uma verdadeira falácia, pois apenas transferiu o monopólio da Petrobras para dois grandes grupos privados estrangeiros

    Aqui vale a história do tesouro numa ilha distante e deserta: ele só tem valor se puder ser transportado da ilha para o continente.

    O óleo e gás do Pré-sal são o tesouro. A Nova Transportadora do Sudeste (NTS) é o barco.

    A Petrobras tinha o tesouro e o barco nas mãos. Vendeu o barco e agora depende do barqueiro para escoar toda a produção do Pré-sal das plataformas para o continente.

    A NTS é uma empresa 100% construída com dinheiro público, que controla uma imensa rede de dutos de gás natural, pelos quais o gás produzido nos campos de petróleo de alto mar na bacia de Campos e na bacia de Santos é transportado para o continente e distribuído.

    Os dados publicados no “Manual da Assembleia Geral”, distribuído aos acionistas mostram que:

    Essa rede de dutos está pronta e funcional e opera com lucratividade imensa, que atinge cerca de 85% do faturamento. Ela apresenta as seguintes características:

    a) De 2013 a 2015 o lucro bruto da NTS foi de R$ 8,369 bilhões.

    b) A projeção dos lucros da NTS até 2028 é de R$ 49 bilhões.
    Esse gigantesco patrimônio foi doado pelo valor equivalente a cinco anos do lucro da NTS, ou seja: o feliz comprador pagou cerca de R$ 17 Bilhões e tem lucro garantido de R$ 49 bilhões.

    A isso se soma a catastrófica cláusula “ship-or-pay”: a Petrobras assume o compromisso de pagar um valor mínimo de aluguel pela utilização dos dutos de gás da NTS, mesmo que não utilize toda a quantidade de gás prevista. Dessa cláusula resulta que a Petrobras pagará aos novos donos da NTS o valor anual mínimo de quase R$ 3 bilhões.

    Na prática, a Petrobras fornecerá ao comprador o dinheiro para pagar as próximas parcelas. A venda da NTS representou imenso prejuízo à Petrobras, comprovado pelo Relatório ao Mercado Financeiro (RMF) – do 2º trimestre de 2017.

    O item 6 das informações adicionais do RMF contabiliza os ganhos apurados na venda da NTS.

    No mesmo item 6 do RMF destaca que, por outro lado, houve um aumento de 63% das despesas de vendas em relação ao trimestre anterior e que esse aumento é decorrente de:

    Despesas de vendas de R$ 3.889 milhões 64% superior ao 1T-2017 (R$ 2.390 milhões) devido ao aumento dos gastos logísticos em função do pagamento de tarifas a terceiros pela utilização dos gasodutos, a partir da venda da NTS (R$ 1.010 milhões)

    Vendas irresponsáveis

    Aproximadamente, um sexto do valor recebido pela venda da NTS foi gasto com o aluguel dos próprios gasodutos em apenas um trimestre: todo o valor recebido pela venda da NTS terá sido pago em aluguéis em apenas 18 meses.

    Mesmo ciente dos prejuízos obtidos com a venda da NTS, o governo e a direção da Petrobras resolveram vender outra importantíssima subsidiária a TAG.

    Assim, como a NTS a TAG é uma empresa 100% construída com dinheiro público, que controla uma imensa rede de dutos de gás natural, por dos quais se transporta todo o Gás produzido no Norte e Nordeste do País. Isso representa cerca de 47% da extensão de gasodutos no Brasil e 26% do total de capacidade de transporte de gás natural do país.

    A venda ocorreu nos mesmos moldes da NTS, com a cláusula “ship-or-pay”. A TAG produziu um lucro líquido de R$ 7 bilhões em 2016 e foi vendida para a ENGIE por 33 bilhões de reais, ou seja, por menos de cinco anos de lucro!

    O resultado da venda da NTS e da TAG é que toda a malha de gás do país está hoje sob o controle da Brookfield (um fundo de investimentos estrangeiros) e do grupo francês de energia Engie.

    O discurso governamental de se acabar com o monopólio do transporte de gás natural no país é uma verdadeira falácia, pois apenas transferiu o monopólio da Petrobras para dois grandes grupos privados estrangeiros.

    A falácia do acordo com o CADE

    A Petrobras firmou um termo de compromisso de cessação de prática com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão do Ministério da Justiça que busca fiscalizar, prevenir e apurar abusos do poder econômico. Nesse acordo se obrigou a vender oito refinarias.

    A Petrobras não era obrigada a assinar qualquer termo de compromisso com o CADE, pois não cometeu ou está cometendo qualquer infração à concorrência ou abuso do poder econômico.

    Desde a Emenda Constitucional 09/95, que quebrou o monopólio estatal do petróleo, qualquer ente privado pode atuar na atividade de refino no país, conforme o artigo 53 da Lei do Petróleo.

    A Petrobras detém a quase totalidade das refinarias do país. Desde a quebra do monopólio, praticamente nenhum ente privado quis arcar com os vultuosos custos para a construção de novas refinarias.

    Assim, não cabe ao CADE exigir que a Petrobras presenteie a iniciativa privada com as refinarias construídas com dinheiro público, sob o pretexto de prática abusiva ou monopolista.

    Da mesma forma o CADE não pode exigir que a Petrobras efetue vendas sem licitação. Mas é isso exatamente o que consta do tal termo de compromisso: que a venda das refinarias seguirá a inconstitucional sistemática de desinvestimentos e o inconstitucional Decreto nº 9.188/17, burlando as regras da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) pela qual qualquer venda de ativos deve obrigatoriamente ser feita por licitação.

    Para burlar a lei e vender as refinarias sem licitação, a Petrobras:

    a) Criará uma empresa e para ela transferir os ativos (refinarias, terminais e o conjunto de oleodutos que interligam a refinaria e os terminais).

    b) Em seguida alienará 100% da participação na empresa criada, buscando se beneficiar da decisão proferida pelo STF na ADI 5624, de que para alienação de controle acionário, não se exige licitação, mas apenas procedimento concorrencial.

    Ora, a Lei nº 9478/97 (Lei do Petróleo) autorizou a Petrobras a constituir empresas subsidiárias, apenas e tão somente para o “estrito cumprimento de atividades de seu objeto social que integrem a indústria do petróleo.” (Art. 64)

    Então é inconteste o desvio de finalidade, que “se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.” (Artigo, 2º, “e”, da Lei 4717/65)

    Tentativa de recolonização

    A Petrobras cumpriu papel fundamental para garantir a soberania energética do país.

    Realizou altos investimentos no descobrimento e possui a tecnologia necessária para a exploração de novas e imensas reservas de óleo e gás no Pré-sal e em águas ultraprofundas, levando o país à autossuficiência na produção de petróleo.

    A Petrobras detém a quase totalidade das refinarias do país. Desde a quebra do monopólio, praticamente nenhum ente privado quis arcar com os vultuosos custos para a construção de novas refinarias

    Também investiu, de forma insuficiente é verdade, na construção de refinarias para garantir que o país não ficasse totalmente dependente das empresas estrangeiras para obter combustíveis (gasolina, diesel) e derivados.

    Também fez altos investimentos na obtenção de formas alternativas de geração de energia com a construção de termelétricas, de unidades industriais para a produção de biodiesel.

    Como empresa integrada de energia, também promoveu o aproveitamento eficiente de toda a matéria prima na indústria petroquímica e de fertilizantes, bem como construindo uma imensa infraestrutura para aproveitamento de circulação de matéria prima e produtos finais.

    Em resumo, teve papel fundamental no processo de industrialização do país ao fornecer energia e matéria-prima para os mais diversos setores da indústria.

    Por óbvio o processo de desintegração da Petrobras, tem o efeito reverso: a perda da soberania energética e do processo de industrialização, vez que deixa nas mãos do capital internacional a decisão sobre o que o país irá produzir, o quanto dessa produção será voltada para o mercado interno e, consequentemente, o que o país será obrigado a importar.

    No caso das refinarias, por exemplo, vem sendo implementada uma política de sucateamento e redução da capacidade de refino para obrigar o país a importar cada vez mais combustível e derivados a preços regulados pelo mercado internacional, cujo resultado é o preço exorbitante nas bombas.

    A venda das refinarias vai aumentar ainda mais a nossa dependência das importações. Já se perguntaram por que Esso, Shell e outras, nunca quiseram construir uma refinaria no Brasil?

    Barrar o processo de privatização da Petrobras é essencial para que o Brasil possa gerar emprego e renda e garantir combustível e gás de cozinha a preços baixos aos trabalhadores

    A resposta é simples: elas lucram muito mais explorando e extraindo petróleo bruto do país, refinando esse óleo nos países de origem e depois exportando os produtos para cá.

    É a mesma lógica do Brasil colônia em pleno século XXI: exporta-se matéria prima e importa-se produto manufaturado.

    Barrar o processo de privatização da Petrobras é essencial para que o Brasil possa gerar emprego e renda e garantir combustível e gás de cozinha a preços baixos aos trabalhadores.

    *Raquel Sousa é historiadora formada pela Unesp e advogada do movimento sindical, em especial da categoria petroleira, na qual atua há 12 anos.

    BAIXE AQUI A REVISTA N.26 COMPLETA

  • Luiz Gê, Tio Hô e um  bang-bang inesquecível

    Luiz Gê, Tio Hô e um bang-bang inesquecível

    Luiz Gê, Tio Hô e um
    bang-bang inesquecível

    Página de um dos maiores quadrinhistas brasileiros marca 50 anos da morte do comandante da Revolução Vietnamita

    Da Redação

    Luiz Geraldo Ferrari Martins, 68, é um dos melhores quadrinhistas brasileiros de todos os tempos. Transita por linguagens visuais variadas com o vigor de um ginasta olímpico. Luiz Gê é formado em arquitetura pela FAU-USP. Rodou pelo que há de melhor na imprensa brasileira e publicou em algumas das principais revistas de quadrinhos do mundo.

    Gê lançou em livro duas coletâneas de histórias curtas, Quadrinhos em fúria (1984) e Território de bravos (1993). Seu clímax estético foi atingido em Fragmentos completos (1992), novela visual de 80 páginas sobre os cem anos da avenida Paulista (lançada em livro há sete anos).

    Os quadrinhos da página seguinte são uma homenagem a um dos maiores gênios políticos-militares da História. Trata-se de Nguyễn Sinh Cung, aliás Ho Chi Min (1890-1969). Comandando por décadas um partido e uma frente revolucionários, ele provou ser possível um país miserável impor uma derrota humilhante à maior potência planetária. Tio Ho, como é carinhosamente chamado por gerações de insurgentes, nos deixou há exatos 50 anos, em 2 de setembro de 1969. A vitória do Vietnã estava em sua reta final.

    Luiz Gê desenhou a página em 1976, logo após a comemoração do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Para juntar tudo, Gê recorre ao sucesso de Roberto Carlos, “História de um homem mau” (1965), versão livre de “Ol’ man mose”, de Louis Armstrong. Na página seguinte, Luiz Gê, voz, guitarra e pena certeira!

    Acima e no pé da página, quadrinhos de “Fragmentos completos”, história sobre os 100 anos da avenida Paulista, publicada em 1992 e lançada em livro em 2012

    À esquerda, abertura de “Tubarões voadores” (1984), quadrinho que virou música de Arrigo Barnabé. Acima, “Ano Santo, Ano da Mulher”, de 1975


    Tio Hô e um bang-bang inesquecível