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  • “Gosto do cinema político que alcança um público amplo”, comenta Silvio Tendler

    “Gosto do cinema político que alcança um público amplo”, comenta Silvio Tendler

    “Gosto do cinema político que alcança um público amplo”, comenta Silvio Tendler

    Com 50 anos de carreira, Silvio Tendler decidiu disponibilizar toda sua obra cinematográfica gratuitamente na internet. “Se não ganho dinheiro, pelo menos meus filmes são vistos”, comenta com ironia o diretor de Jango. Trabalhando com movimentos populares, Tendler se torna cada vez mais engajado nas lutas do dia a dia do povo

    Por Andrea Penna

    Silvio Tendler se tornou nacionalmente conhecido por ter dirigido o filme definitivo sobre o golpe de 1964. Lançado em plena ebulição do movimento pelas Diretas Já, em 1984, Jango lotou salas pelo país e é hoje disponibilizado gratuitamente no YouTube, como toda a obra do diretor.

    “Estamos num momento político muito ruim no Brasil. O país está numa penúria total. Lula e Dilma deixaram um arcabouço de cultura montado, funcionando. Existe o espaço para a arte. Não existe esse espaço nas salas de cinema que foram moldadas pelo neoliberalismo”

    Com a maior parte dos personagens centrais da trama ainda vivos, Tendler realizou uma das obras capitais para o entendimento do nó histórico representado pela chegada dos militares ao poder.

    Aos 69 anos e com uma carreira de mais de cinco décadas, Tendler construiu uma obra coerente, de alta qualidade e que não foge da polêmica.

    Em 2018, lançou Dedo na Ferida, documentário que trata “do fim do Estado de bem-estar social e da interrupção dos sonhos de uma vida melhor para todos”, em um cenário no qual a lógica homicida do capital financeiro inviabiliza qualquer alternativa de justiça social. Colecionador de mais de 60 prêmios, esse carioca inquieto concedeu a seguinte entrevista a Socialismo e Liberdade.


    Quem é Silvio Tendler

    Licenciado em História pela Universidade de Paris VII, mestre em Cinema e História pela École des Hautes-Études/Sorbonne, em Paris, e especializado em cinema documental aplicado às Ciências Sociais no Museu Guimet. Sílvio Tendler iniciou a trajetória no movimento cineclubista dos anos 1960. O primeiro filme foi um documentário sobre a Revolta da Chibata (1968). Tendler realizou mais de 50 filmes, entre curtas, médios e longas-metragens. Nos últimos anos, tem produzido películas junto ao movimento popular e disponibilizado trabalhos gratuitamente no YouTube.


    Andrea Penna – Você sempre fez política no cinema?
    Silvio Tendler – Eu gosto muito do cinema político que consegue alcançar um público amplo. Dedo na ferida veio dentro de uma série que estou fazendo ligada aos movimentos sociais. Fiz Privatizações, a distopia do capital (2014) e Dedo na ferida com o pessoal do Sindicato dos Engenheiros do Rio e da Fisenge (Federação Interestadual dos Sindicatos dos Engenheiros). Com outros movimentos sociais fiz O veneno está na mesa 1 (2011), O veneno está na mesa 2 (2014) e Agricultura tamanho família (2014). Tenho trabalhado em um cinema ligado às lutas sociais de forma mais direta.

    Andrea Penna – Como surgiu a ideia de fazer o Dedo na ferida?
    Silvio Tendler – A ideia é discutir o problema da financeirização da vida, em que acaba o capitalismo produtivo e nasce o capitalismo financeiro especulativo, que não produz nada. Ele faz uma transferência cotidiana de renda dos mais pobres para os mais ricos. Busco mostrar que com a vitória do pensamento único não existe o contraditório. Resolvi mostrar como o sistema financeiro prejudica o desenvolvimento humano, econômico e social.

    Andrea Penna – E você faz isso por meio de uma narrativa dinâmica.
    Silvio Tendler – Não adiantava fazer um filme-tese em que falasse só de economia. Era preciso mostrar as consequências da financerização no cotidiano das pessoas. Há entrevistas com economistas muito importantes, como Paulo Nogueira Batista, Guilherme Melo, Laura Carvalho Ladislau Dawbor, Yanis Varufakis (ex-ministro grego), Costa Gavras (cineasta) e outros. E aí eu peguei, como contraponto, o Anderson, um podólogo que trabalha todo dia em Copacabana e mora a quase 3 horas de distância, em Japeri, cidade com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado do Rio de Janeiro. E desse contraponto, nasce o Dedo na Ferida.

    “Meus filmes são produções públicas. Viralizo-os pela internet. Já que não dão dinheiro, pelo menos são assistidos. Tenho conseguido público nesses esquemas alternativos. A obra artística só existe se houver um olhar que a admire”

    Andrea Penna – Como você vence a barreira da distribuição?
    Silvio Tendler – Levei o Dedo na Ferida no Brasil inteiro. Foi lançado em cinema, ficou em cartaz sete semanas, o que é um recorde no país para esse tipo de filme. O mais importante é que está atingindo os mais variados públicos. Tenho conseguido passar para estudantes secundaristas (ensino médio), tanto no cinema como em escolas públicas e particulares, assim como em universidades.

    Andrea Penna – Você participou da escola de cinema em Cuba. Como foi essa experiência?
    Silvio Tendler – Nos anos 1980, fui admitido no Comitê dos Cineastas da America Latina, impulsionados pelo estado Cubano. Na época havia recursos. Ainda existia a URSS que apoiava muito Fidel Castro, incentivado por Gabriel Garcia Márquez, e resolveu fazer uma escola de cinema. O Comitê se transformou em Fundación del Nuevo Cine Latino-americano. Fundaram a Escola de Cinema, da qual faço parte. Ela tem um grande impacto na América Latina e criou espaço para muitos jovens que queriam fazer cinema, mas não tinham meios.

    Cena de “Dedo na ferida” (2018), filme que aborda a influência que a especulação financeira e a agiotagem tem na vida das pessoas e nas políticas de Estado

    Andrea Penna – Como você está vendo o quadro da cultura hoje no Brasil e, particularmente, a situação do cinema?
    Silvio Tendler – Nós estamos num momento político muito ruim no Brasil. O país está numa penúria total. Lula e Dilma deixaram um arcabouço de cultura montado, funcionando. Existe o espaço para a arte, mas não existe nas salas de cinema que foram moldadas pelo neo-liberalismo, pelo processo de globalitarismo dos anos 90. Mudaram-nas da rua para dentro dos shoppings, acabaram com as salas nas cidades do interior. Cidades que não têm shoppings dificilmente têm salas de cinema. O que prevalece hoje na exibição cinematográfica são os filmes de entretenimento. Não tenho nada contra o entretenimento. Sempre tivemos espaço para tal, também para o neo-realismo italiano, para a nouvelle vague francesa, para o cinema novo brasileiro. E esses espaços praticamente acabaram. Então, hoje, ver um filme político em sala de cinema é muito complicado. Está tudo dominado, loteado. Então temos de criar novas formas de comunicação.

    Andrea Penna – O que o levou a disponibilizar sua obra gratuitamente na internet?
    Silvio Tendler – Meus filmes são produções públicas. Viralizo-os pela internet. Já que não dão dinheiro, pelo menos são assistidos. Tenho conseguido público nesses esquemas alternativos. A obra artística só existe se houver um olhar que a admire, caso contrário não existe obra. Tenho conseguido isso, por meio dessas estratégias alternativas. Está funcionando muito bem.

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  • O colapso da Nova República e o espectro da ditadura

    O colapso da Nova República e o espectro da ditadura

    O colapso da Nova República
    e o espectro da ditadura

    A vitória eleitoral de uma candidatura que se apresentava claramente como antidemocrática manifestou o inequívoco repúdio dos eleitores aos partidos da ordem – PSDB, MDB e PT à frente. A eleição de um candidato da extrema direita, com um programa que defende abertamente a violência política como solução para os problemas nacionais, marcou a falência definitiva da Nova República

    Por Plínio de Arruda Sampaio Jr.

    A ascensão de uma direita que coloca abertamente a violência como solução para os problemas políticos é consequência direta da resposta regressiva e autoritária da burguesia à polarização da luta de classes provocada pelo impacto devastador da crise capitalista sobre as classes trabalhadoras. Trata-se de um fenômeno mundial.

    No Brasil, as tendências autoritárias manifestam-se de maneira particularmente primitiva. Sem projeto nacional para enfrentar os desafios de um momento histórico adverso, a burguesia submete-se docilmente à “solução americana”, cuja essência reside no rebaixamento da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho e o consequente rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores

    No Brasil, as tendências autoritárias manifestam-se de maneira particularmente primitiva. Sem projeto nacional para enfrentar os desafios de um momento histórico adverso, a burguesia submete-se docilmente à “solução americana”, cuja essência reside no rebaixamento da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho e o consequente rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores. O novo padrão de acumulação solapa as bases da democracia de cooptação cristalizada na transição da ditadura militar para o Estado de direito.

    Ricos e pobres

    Enquanto o crescimento da economia alimentou a expectativa de melhoria social, as terríveis contradições de uma sociedade brutalmente cindida entre ricos e pobres foram ignoradas e empurradas para frente. A esperança de dias melhores funcionava como um apaziguador da luta de classes.

    Entretanto, assim que a expansão econômica cessou, vieram à tona os gigantescos antagonismos de uma sociedade subdesenvolvida e dependente que ao longo de sua história não resolveu nenhum de seus problemas históricos. O fim do espaço de acomodação dos antagonismos sociais pela expansão da renda, do emprego e das políticas públicas obrigou o Estado a exacerbar a repressão contra as classes subalternas. O ataque às liberdades democráticas tornou-se generalizado: guerra aberta aos pobres como forma de militarização da ordem pública; criminalização dos movimentos sociais como meio de intimidação do protesto social; cruzada moralista como expediente de desmoralização da política; crescente judicialização da política como recurso autoritário para esvaziar a soberania popular; e ofensiva ideológica liberal e anticomunista como estratégia para naturalizar o status quo.

    O ocaso da Nova República

    As contradições latentes na acanhada democracia da Nova República converteram-se em antagonismos abertos nas Jornadas de Junho de 2013.

    Frustrados com o mesquinho “melhorismo” dos governos petistas, os jovens que tomaram as ruas cobraram dos governantes as promessas vazias da Constituição de 1988. Posta contra a parede por um Estado de mal estar social que corria o risco de fugir ao controle e premida pela necessidade de dar uma resposta à crise econômica, a burguesia assumiu sem rodeios seu caráter autocrático e antissocial e partiu para a ofensiva contra os trabalhadores.

    Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às demandas da população. A convicção de que “todos os políticos são iguais” decorre da constatação prática de que, no final das contas, os imperativos do capital sempre acabam prevalecendo. Para as classes dominantes, é o oposto. A crise política reflete a impossibilidade de conciliar as exigências dos negócios – “ordem e progresso” – com o respeito às regras do jogo democrático. Os de cima enxergam as aspirações da classe trabalhadora como uma ameaça a seus privilégios e assumem sem disfarce seu caráter despótico.

    A resposta reacionária da burguesia à crise da democracia de baixa intensidade que substituiu a ditadura militar não pode ser dissociada do afã de recompor a qualquer custo a taxa de lucro e abrir frente de acumulação para o capital.

    Especialização regressiva

    O ajuste neoliberal aprofundou a especialização regressiva da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. A retomada do crescimento da renda ficou condicionada à retirada de direitos trabalhistas e à maior precarização das condições de trabalho. O aprofundamento da liberalização comercial acelerou a reprimarização da economia, aprofundando a desarticulação do sistema econômico nacional. O avanço da liberalização financeira, da privatização do patrimônio público e da desregulamentação da economia levou ao paroxismo o desmanche dos centros internos de decisão, deixando o Estados nacional desarmado para enfrentar uma situação particularmente difícil. A revitalização do agronegócio e do extrativismo mineral como principais frentes de acumulação de capital potencializou a devastação ambiental.

    Além de agir diretamente sobre a consciência da classe trabalhadora, o capital investe sistematicamente contra as migalhas democráticas existentes nos interstícios de uma estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma burguesia que não superou o espírito despótico do senhor de escravo, os direitos adquiridos dos trabalhadores não podem se sobrepor às exigências dos negócio

    O acirramento do conflito social decretou a falência dos governos de conciliação de classes, evidenciando a necessidade de um padrão de dominação burguês à altura das barbaridades exigidas pelos imperativos do capital – rebaixamento substancial do nível tradicional de vida dos trabalhadores; esvaziamento progressivo da soberania nacional, intensificação da devastação ambiental e ataque implacável às liberdades democráticas.

    Assim como a abolição da escravidão decretou a morte da Monarquia em 1889 e a crise da economia cafeeira em 1929 selou a sorte da República Velha, a crise terminal do processo de industrialização por substituição de importações, cuja pá de cal foi o ciclo neodesenvolvimentista de Lula e Dilma, destruiu as bases objetivas que davam sustentação à Nova República.

    A guerra aberta contra os trabalhadores para impor condições ainda mais draconianas de exploração da força de trabalho requer uma compressão brutal do espaço de manifestação da vontade política das classes subalternas. Se os direitos trabalhistas não cabem nos cálculos de rentabilidade dos empresários e a política social não cabe no regime de austeridade imposto pela comunidade financeira, o padrão de dominação baseado na democracia de cooptação não coaduna com um ajuste econômico que coloca no horizonte um padrão de acumulação baseado na produção de commodities para o mercado internacional.

    Lavagem cerebral

    A solução reacionária para a crise econômica é simplesmente impossível sem a anomia política da classe trabalhadora. Para evitar qualquer possibilidade de oposição aos imperativos do capital, a opinião pública tem de ser submetida à lavagem cerebral de que os remédios amargos que compõem as “reformas” liberais constituem o único meio de tirar o país do atoleiro. Como o protesto social poderia furar o cerco da ignorância difundida pela grande mídia e dialogar diretamente com as massas, torna-se obrigatório criminalizar a luta social, estigmatizar a crítica e cercear a atuação dos partidos de esquerda.

    Além de agir diretamente sobre a consciência da classe trabalhadora, o capital investe sistematicamente contra as migalhas democráticas existentes nos interstícios de uma estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma burguesia que não superou o espírito despótico do senhor de escravo, os direitos adquiridos dos trabalhadores não podem se sobrepor às exigências dos negócios. Uma vez que os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas sociais jamais passariam pelo crivo do voto popular, torna-se necessário desmoralizar as instituições que expressam – mesmo que muito precariamente – a vontade do cidadão.

    O ataque à Nova República assumiu a forma de uma cruzada moralista contra a corrupção. As investigações judiciais comprovaram o que todos sabiam. A corrupção é um elemento estrutural do padrão de acumulação e dominação do capitalismo brasileiro. As delações dos altos executivos do capital são didáticas. O capital é o elo dominante da relação criminosa. Os partidos são comprados pelos empresários. Os políticos funcionam como despachantes de interesses privados nos aparelhos de Estado. A radiografia das relações promíscuas da política com o capital feita pelo poder judiciário e sua espetacularização pelos grandes meios de comunicação trucidaram o sistema político e todas as suas instituições. Paradoxalmente, as causas profundas da corrupção – a absoluta preponderância dos negócios na vida nacional – em nenhum momento foram colocadas em questão.

    Os que esperavam uma solução jurídica para a grave crise política que assola a nação fazem lembrar as fantásticas aventuras do Barão de Münchhausen, que se salvou do pântano onde afundava puxando-se pelos cabelos. Os paladinos da moralização – Janot, Moro, Dallagnol e Fachin – não foram à raiz do problema. A corrupção foi reduzida a uma questão moral de foro individual e circunscritas a casos específicos.

    Na melhor tradição da justiça brasileira, a República de Curitiba operava segundo a norma “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. As investigações foram seletivas. O sistema financeiro foi blindado de qualquer investigação, mesmo sendo evidente que seria impossível a lavagem de magnitudes amazônicas de dinheiro sujo sem a sua cumplicidade. A ramificação da rede criminosa no sistema judiciário e na grande mídia foi negligenciada. O capital estrangeiro não foi sequer investigado. Os acordos de leniência deixaram as empresas livres para continuar saqueando os cofres públicos e pilhando o país. No final, sob a aparência de uma faxina geral, permaneceu tudo como dantes. A engrenagem do roubo não foi abalada. As relações promíscuas entre o grande capital e o Estado permaneceram incólumes.

    Submissão do Estado

    Os limites pouco republicanos da investida contra a corrupção revelam que o verdadeiro objetivo da operação “Fora Todos” não nunca foi o de moralizar a vida pública, mas aumentar ainda mais a submissão do Estado aos interesses dos grandes negócios.

    O ajuste neoliberal aprofundou a especialização regressiva da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. A retomada do crescimento da renda ficou condicionada à retirada de direitos trabalhistas e à maior precarização das condições de trabalho

    Ao se explicitar que por trás de cada representante do povo existe invariavelmente o patrocínio de uma grande empresa, a relação de confiança entre os eleitores e seus representantes foi aviltada.

    Desmoralizados perante seus constituintes, os políticos perderam toda autonomia para mediar o conflito entre o interesse privado e o interesse público. Acuados pela ofensiva avassaladora da campanha midiática contra a política, abraçaram, sem qualquer contraponto, a agenda de desmonte das conquistas trabalhistas e democráticas que estabeleciam um patamar mínimo de civilidade à sociedade brasileira.

    A regra do jogo

    Em suma, a corrupção faz parte da regra do jogo e o poder judiciário não está acima da Lei. A corrupção sistêmica é uma característica inerente ao Estado brasileiro, permeia todos os poros da administração pública e envolve todos os partidos da ordem. Sem a promiscuidade do público e do privado, a dominação burguesa entra em colapso. Problemas políticos, relacionados com a forma de organização do poder, só podem ser resolvidos com decisões políticas. A operação “Fora Todos” apenas preparou o caminho para uma “modernização” dos esquemas de intermediação ilícita dos interesses do capital nos aparelhos de Estado, adaptando-os às exigências do novo padrão de acumulação.

    Ao assumir sem disfarce o conteúdo de classe do Estado, a burguesia afirma sua ditadura implacável sobre a sociedade. A banalização do debate público, a criminalização dos movimentos sociais e a destruição do sistema político esvaziam a democracia de qualquer conteúdo popular.

    Hermeticamente fechado aos de baixo, o circuito político apresenta-se como o que é: um condomínio exclusivo da plutocracia destituído de qualquer verniz democrático. A soberania popular fica ainda mais comprimida, deixando a sociedade a um fio da autocracia explícita.

    A tirania como solução

    Assustada com a possibilidade de que a volta de Lula ao Planalto pudesse arrefecer a intensidade do ajuste ortodoxo exigido pelo capital internacional e dar uma sobrevida à democracia de cooptação, na eleição de 2018, a burguesia brasileira jogou-se abertamente na aventura autoritária e, sem medir as consequências de partir para o confronto aberto com as classes subalternas, convocou um capitão de mato para por ordem na senzala. As tectônicas frustrações e ressentimentos com as promessas fraudadas da Nova República foram galvanizadas pela extrema direita. O obscurantismo venceu a esperança.

    Na melhor tradição da justiça brasileira, a República de Curitiba operava segundo a norma “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. As investigações foram seletivas. O sistema financeiro foi blindado de qualquer investigação

    A vitória eleitoral de uma candidatura que se apresentava abertamente como antídemocrática manifestou o inequívoco repúdio dos eleitores aos partidos da ordem – PSDB, MDB e PT à frente. A eleição de um candidato da extrema direita, com um programa que defende abertamente a violência política como solução para os problemas nacionais, marcou a falência definitiva da Nova República. A contrarrevolução vitoriosa em abril de 1964 voltou a assumir formas abertamente ditatoriais, cuja expressão concreta – ditadura civil, abertamente militar ou de matiz abertamente totalitária – ainda não está definida.

    Os primeiros passos do governo Bolsonaro revelam que as ameaças retrógradas e autoritárias do ex-capitão não eram bravatas de campanha para explorar as frustrações de uma população fatigada, mas sim anúncios de uma intenção real de retirar direitos trabalhistas, destruir políticas sociais, atacar negros, mulheres, indígenas, LGBTs, cercear o pensamento crítico e a livre expressão artística, eliminar as parcas restrições à depredação do meio ambiente, e, na contramão da retórica pseudo-nacionalista esboçada timidamente durante a campanha eleitoral, liquidar a identidade nacional e franquear o espaço econômico brasileiro à sanha do capital internacional, entregando a soberania nacional ao arbítrio do imperialismo norte-americano.

    Delírios e realidade

    Não obstante a genuína disposição de atacar tudo que represente conquistas civilizatórias do povo brasileiro, os aventureiros que chegaram ao Planalto, apesar da falta de disposição de luta das forças de oposição dentro da ordem, têm enfrentado grandes dificuldades para transformar seus delírios distópicos em realidade. A distância entre o terrorismo retórico e as ações práticas explica-se fundamentalmente pela enorme dificuldade encontrada pelo novo governo para lidar com as contradições da realidade.

    Os obstáculos mais visível são o gigantesco despreparo e a assustadora incompetência de seus quadros dirigentes, começando pelo próprio presidente. O primitivismo, a inépcia e a falta de compostura de Bolsonaro expuseram sua brutal limitação intelectual, política, retórica e moral para o exercício do cargo para o qual foi eleito. Os escândalos que envolvem diretamente seu filho mais velho e seu partido com gravíssimas denúncias de desvio de dinheiro público, financiamento ilegal de campanha, enriquecimento ilícito e envolvimento orgânico com grupos milicianos desmoralizaram toda e qualquer ilusão em relação à idoneidade dos novos governantes.

    A guerra sem quartel entre as diferentes facções que compõem governo, dividido entre grupos de extrema direita, seitas evangélicas, militares, políticos fisiológicos e empresários, evidenciou a absoluta inépcia de Bolsonaro para dar um mínimo de coerência, solidez e efetividade às ações do Estado.

    A dificuldade do governo Bolsonaro de transformar a teoria em prática esbarra, sobretudo, em problemas institucionais. Ao contrapor a chamada “Nova Política” – a imposição da vontade do mercado sem mediação política alguma – à “Velha Política” – o encaminhamento dos imperativos do mercado mediado pelo toma lá, da cá da fisiologia parlamentar – Bolsonaro reiterou sua aposta na negação da Nova República como panaceia para os problemas nacionais. No entanto, enquanto a Constituição de 1988 não for revogada e o Congresso Nacional não for formalmente fechado, não se governa sem apoio parlamentar.

    O crivo da luta de classes

    Por fim, o governo Bolsonaro terá que passar pelo crivo da luta de classes. O caráter extraordinariamente regressivo de suas políticas desperta forte resistência em amplos setores da população. Os efeitos recessivos do corte nos gastos públicos sobre o nível de atividade econômica, a concorrência predatória de produtos importados provocada pela maior abertura comercial e o impacto devastador do corte de benefícios sociais sobre os pequenos negócios das cidades do interior, sobretudo nas regiões mais pobres, são alguns exemplos que mostram as dificuldades para unificar o apoio de segmentos da própria burguesia a Bolsonaro.

    A incapacidade de dar uma resposta objetiva aos problemas que afligem a população – o flagelo do desemprego, a assustadora degradação dos serviços públicos, a escalada da violência social – tende a corroer seu apoio nas classes trabalhadoras. Se o crescimento econômico não for recuperado, criando condições para a acomodação dos diferentes interesses sociais, possibilidade que não se inscreve no horizonte imediato, a sustentação política de Bolsonaro pode rapidamente evaporar.

    O impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira não tem solução à vista. O velho morre, mas o novo ainda não tem força para nascer. Sem resolver a crise política, não há possibilidade de resolver a crise econômica. E, sem uma ruptura radical com o ajuste neoliberal, não há como evitar o aprofundamento da barbárie

    Sem se intimidar com as ameaças de violência política vociferadas pelo presidente, a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores tem encontrado forte resistência popular. O carnaval de 2019 foi uma catarse contra a ignorância reacionária de Bolsonaro. Em defesa da educação pública e da Previdência Social, estudantes e trabalhadores têm protagonizado greves nacionais e manifestações multitudinárias. Ainda que o antagonismo à solução liberal-autoritária, latente em crescentes parcelas da população, não tenha conseguido se transformar em força política organizada, capaz de levar os protestos às últimas consequências e dar um xeque-mate na aventura de Bolsonaro, tudo indica que o conflito social tende a se intensificar, colocando em questão a possibilidade de uma escalada autoritária sem uma ruptura formal com o Estado de direito.

    A ameaça autocrática

    A ausência de bases institucionais, sociais e políticas para transformar as intenções tirânicas do presidente eleito em realidade não significa necessariamente uma derrota do consenso burguês em torno da via autoritária como resposta à crise política. Divididas entre caudilhos decadentes – Lula e Ciro Gomes -, que apostam todas as fichas no fiasco de Bolsonaro e na reciclagem da política tradicional, as forças de oposição têm se demonstrado impotentes para oferecer uma alternativa à moribunda Nova República e ao ajuste neoliberal sem fim. Na ausência de uma saída democrática, construída de baixo para cima, mais dia menos dia, a burguesia encontrará uma forma política para consolidar sua resposta autocrática para a crise política.

    O impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira não tem solução à vista. O velho morre, mas o novo ainda não tem força para nascer. Sem resolver a crise política, não há possibilidade de resolver a crise econômica. E, sem uma ruptura radical com o ajuste neoliberal, não há como evitar o aprofundamento da barbárie. Na periferia brasileira, a crise estrutural do capital assume dimensões dantescas. O futuro é de grande instabilidade política, conflito social e turbulência política.

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  • Acordo Mercosul e União Europeia: Neocolonialismo Descarado

    Acordo Mercosul e União Europeia: Neocolonialismo Descarado

    Acordo Mercosul e União Europeia: Neocolonialismo Descarado

    O entendimento firmado no início de julho de 2019 – após vinte anos de controvérsias – não teve suas cláusulas integralmente reveladas. Sua efetivação pode ter dramáticas consequências para a indústria dos países latino-americanos diante do desenvolvimento tecnológico em especial da Alemanha

    Por Leandro Recife

    A imagem do Brasil em nível internacional só tem piorado após o processo do impeachment e os assassinatos de Marielle e Anderson. Embora toda tradição de eficiência do corpo diplomático brasileiro, a política externa desmoralizou-se após Jair Bolsonaro nomear Ernesto Araújo, o pupilo do astrólogo Olavo de Carvalho, para o cargo de chanceler.

    Diante do pior Chanceler da história do Brasil, como um acordo com a União Europeia, que se arrasta há vinte anos, pode ser aceito sem o devido respaldo da população ou sem a devida transparência das tratativas? Tal acordo realmente será positivo para o Brasil?

    Por solicitação do Itamaraty, a diplomacia brasileira exigiu que toda e qualquer menção de gênero fosse retirada do texto no meio de uma discussão realizada em junho deste ano em Genebra, sobre o fim da discriminação de mulheres e meninas. Além das novas orientações antagônicas à tradição diplomática brasileira, Ernesto Araújo defende coisas inconcebíveis do ponto de vista das ciências, como “nazismo é de esquerda”, “terra plana” e “não existe aquecimento Global”.

    Diante do pior Chanceler da história do Brasil, como um acordo com a União Europeia, que se arrasta há vinte anos, pode ser aceito sem o devido respaldo da população ou sem a devida transparência das tratativas? Tal acordo realmente será positivo para o Brasil?

    Momento de crise

    Apesar da euforia do governo Bolsonaro, o acordo entre Mercosul e União Europeia deve ser analisado com muitas ressalvas. Ele foi celebrado num momento em que Brasil e Argentina, além dos demais países membros e associados, passam por dificuldades econômicas e fragilidades que levam os governos a toparem qualquer tratado para dizer que conseguiram alguma coisa. E quando analisamos o panorama histórico, do período de tentativas que consolidaram o fechamento do acordo foram duas décadas de negociação. As conversas foram lançadas em junho de 1999. Uma troca de ofertas chegou a ser feita em 2004, mas não agradou aos dois blocos e as discussões foram pausadas. Entretanto, em 2010, houve uma nova abertura para negociações.

    Apesar das idas e vindas, somente em 2016 os dois blocos voltaram a trocar propostas e neste ano, de forma nebulosa, até agora sem a devida transparência dos termos, o acordo foi celebrado.

    Isso que nos faz crer que esse acordo não equivale às sete maravilhas propagadas pelos bolsonaristas, sendo fechado nesse contexto de crise na Argentina, ocasionada pela política neoliberal do governo Maurício Macri. Já o Brasil sofre com a crise econômica e social, além do desgoverno do clã Bolsonaro. Com os dois principais países do Mercosul fragilizados, o entendimento serviu potencialmente aos interesses dos respectivos governantes, não trazendo benefícios aos trabalhadores dos dois países.

    Diante do pior Chanceler da história do Brasil, como um acordo com a União Europeia, que se arrasta há vinte anos, pode ser aceito sem o devido respaldo da população ou sem a devida transparência das tratativas? Tal acordo realmente será positivo para o Brasil?

    Além do mais, o acordo tem fortes características de seguir a antiga lógica colonialista, na qual Brasil e demais países da América Latina exportam produtos agrícolas e importam produtos industrializados dos países europeus.

    Assimetria nas negociações

    Pelo que se sabe, o acordo é caracterizado da seguinte forma: A UE abre o mercado agrícola e o Brasil abre o mercado industrial de serviço e financeiro escalonando a redução de tarifas aduaneiras, ao longo de um determinado período, até zero.

    Existem algumas coisas que precisam ser ponderadas. O capitalismo até à década de 1990, por meio das grandes corporações, tinha como uma das características buscar novos mercados para diminuir os custos da produção. Em outras palavras, os países capitalistas desenvolvidos exportavam capitais, instalavam empresas e produziam em países não desenvolvidos. No Brasil, um bom exemplo é a indústria automobilística que recebeu todas as concessões, benesses e benefícios fiscais do Estado brasileiro. Representa bem essa fase do sistema capitalista.

    Voltando ao acordo do Mercosul com a EU, pelas características, pela conjuntura e pelo notório despreparo do chanceler Ernesto Araújo, esse pacto pode impulsionar o processo de desindustrialização brasileira. Vale ressaltar que o país hoje já sofre muito com o avanço do rentismo e da ganância das elites, sob o argumento de diminuir o custo no Brasil e reduzir o déficit público, sem mexer no pagamento dos juros da dívida pública. O país congelou por 20 anos os investimentos na educação, saúde e assistência social, além de implantar uma reforma trabalhista que diminuiu a renda, precarizou os empregos e reduziu o número de postos de trabalho. O acordo com a União Europeia poderá alargar diferenças entre o capitalismo dos países desenvolvidos e a América Latina.

    Desenvolvimento superior

    A economia da Europa tem um grau de desenvolvimento muito superior à do Brasil. Em outras palavras, o Brasil ainda produz majoritariamente produtos primários e a UE produtos com grande valor agregado. O acordo ainda precisa passar pela aprovação do Congresso Nacional brasileiro e de todos os países efetivos do Mercosul e da União Europeia. Mas, mesmo assim, não podemos deixar de levar em consideração alguns pontos extremamente preocupantes. Toda política do governo Bolsonaro, em especial do senhor Paulo Guedes, visa a destruição do Estado brasileiro. Ou seja, estão implementando o que existe de mais atrasado na relação Estado e mercado. Uma verdadeira selvageria, com o Brasil cedendo espaço aos produtos industrializados da UE e sem o Estado brasileiro ser indutor do desenvolvimento econômico e social.

    O pacto tem fortes características de seguir a antiga lógica colonialista, na qual Brasil e demais países da América Latina exportam produtos agrícolas e importam produtos industrializados dos países europeus

    A política bolsonarista segue privatizando, destruindo a educação e aumentando a desigualdade social. Diante disso: como a indústria brasileira vai ter competitividade diante da europeia? Com os cortes na educação, que mão de obra qualificada a indústria brasileira vai produzir? Com o desmonte das Universidades brasileiras e Institutos Federais, que pesquisas serão desenvolvidas para solucionar, criar, diminuir custos e tornar o Brasil desenvolvido economicamente e socialmente?

    Compras governamentais

    O acordo tem potencial de aprofundar diferenças internamente e na relação do Brasil com outras economias. Um dos itens do entendimento versa sobre o mercado de compras governamentais. O Brasil, nos últimos 4 anos, teve a indústria da construção civil reduzida, enquanto na Europa existe incentivo, proteção e subsídios para empresas de engenharia voltadas ao mercado da América Latina.

    Imaginemos que se abra uma licitação no Brasil para construção de uma estrada. Empresas europeias de engenharia, diante da situação atual das empresas brasileiras, terão ampla vantagem na disputa. O nexo colonialista predomina, pelo que se sabe, na essência do acordo. Historicamente, todos os países que se desenvolveram partiram da lógica de comprar produtos primários e vender produtos com valor agregado. E o acordo conduzido pelo senhor Ernesto Araújo parece negar isso, sob a falsa premissa de querer forçar a qualidade da indústria brasileira, quando, na verdade, tira a proteção e facilita a entrada de produtos industrializados da UE. Além do mais, o acordo, apesar do “princípio de precaução” que pode colocar barreiras para compra de produtos considerados suspeitos por uso de agrotóxicos proibidos ou criados em áreas de desmatamento, estimula exatamente o contrário e coloca em risco políticas ambientais, povos indígenas e aniquila ações governamentais voltadas à agricultura familiar e reforma agrária.

    O papel do agronegócio

    O agronegócio brasileiro, potencializado sem a devida regulação e controle estatal, como sempre se caracterizou, atrasará ainda mais o desenvolvimento brasileiro. Exatos 0,91% das propriedades rurais concentram 45% de toda área agrícola do Brasil, que utiliza imensas extensões de terra para o monocultivo de soja, milho, eucalipto e algodão, com sementes transgênicas que recebem altas doses de agrotóxicos levados por quilômetros contaminando solo, pessoas e rios.

    O agronegócio brasileiro é responsável por 25% do PIB, sem praticamente pagar impostos, carrega assassinatos de indígenas, quilombolas, assentados, além do trabalho análogo à escravidão. Trata-se de um setor com peso na economia, mas que não gera muitos empregos, amplia a concentração de renda e desigualdades. É um dos principais responsáveis pelo atraso do Brasil. Enquanto países desenvolvidos, como a Alemanha, já estão implementando a 4ª Revolução Industrial.

    Enquanto o Brasil corta 25% do orçamento da educação, ataca professores e tenta flexibilizar leis para a volta do trabalho análogo à escravidão, a Alemanha, somente em 2019, libera 160 bilhões de euros para universidades

    Qualquer acordo comercial, seja com a UE ou com os EUA que não coloque o Brasil competitivo industrialmente para o mundo, que não gere empregos qualificados, não combata a desigualdade social e nem invista no desenvolvimento acadêmico, profissional e científico, além de não acabar com a dependência econômica da monocultura agrícola; não resolverá os problemas do Brasil. Países desenvolvidos estão discutindo e implementando a 4ª Revolução Industrial que tem como características sistemas ciber-físicos, internet das coisas, BigData, impressão 3d, inteligência artificial, além de robótica avançada, energias alternativas, redes inteligentes, realidade aumentada, nanotecnologia, biotecnologia etc. A 4ª revolução industrial devolverá competitividade aos países ricos, mas com graves sequelas para o mundo. Segundo a McKinsey, empresa de consultoria empresarial americana, 60% das profissões deverão desaparecer até 2025. Até 2022, um quarto dos shoppings centers americanos fecharão em decorrências das plataformas de vendas on line. Diante de tudo isso, como o Brasil que firma um acordo com a UE que pode dilacerar a indústria poderá se desenvolver economicamente?

    O desenvolvimento prejudicado

    Enquanto o Brasil permanece potencializando o agronegócio em detrimento do desenvolvimento nacional, como um todo, a Alemanha conceitua e cria a indústria 4.0. Trata-se de uma iniciativa estratégica, lançada pelo governo alemão em parceira com a academia, sindicatos e indústria para o país assumir um papel pioneiro na produção e utilização de tecnologia de informação, gerando novos empregos e se colocando de forma competitiva para o mundo. Enquanto o Brasil corta 25% do orçamento da educação, ataca professores e tenta flexibilizar leis para a volta do trabalho análogo à escravidão, a Alemanha, somente em 2019, libera 160 bilhões de euros para universidades. O Brasil vive na “sojocracia”, a Alemanha na indústria 4.0. É preciso não esquecer que a Alemanha pretende assumir, até 2020, a posição de liderança na provisão de sistemas ciber-físicos. E o Brasil? aumenta o desmatamento? Acaba com reservas indígenas e aumenta a desigualdade. Os impactos dessas mudanças vão muito além da produção industrial.

    Em grande medida, esses desenvolvimentos afetam toda a economia e a sociedade e colocam em discussão elementos fundamentais do mundo do trabalho e da produção. O Brasil sem investimentos na educação, com Universidades sucateadas, sem empregos e sem governo com visão estratégica, terá competitividade para enfrentar os novos desafios que o mundo capitalista nos impõe sem sacrificar ainda mais o nosso povo?

    Impacto social

    O acordo com a União Europeia pode ter um grande impacto social na América Latina, em especial Brasil e Argentina. Em nosso caso, uma das áreas afetadas poderá ser o programa dos medicamentos genéricos. Esse risco está relacionado à insistência da União Europeia em exigir que os países do Mercosul não quebrem patentes para a fabricação de medicamentos por um período de cinco anos após o registro. Outro pedido previsto no tratado é para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) conceda registro a remédios já aceitos no bloco europeu. Ambas as medidas retardariam a produção das versões de genéricos e prejudicariam o acesso da população aos medicamentos.

    A implementação do acordo pode durar até um ano e meio. Alguns pontos se tornaram públicos, mas outros não. Infelizmente, sob a condução de Bolsonaro e Ernesto Araújo é impossível nutrir uma expectativa positiva, mas nos resta espaço para exigir que nenhum acordo comercial atente contra a soberania e o bem-estar do povo. É preciso ficar atento e pressionar o Congresso Nacional para não aprovar nenhuma medida com a União Europeia que aumente ainda mais a desigualdade.

    O Brasil precisa investir na educação, nas Universidades, na indústria, gerar empregos e se tornar competitivo enquanto nação. O país não pode ser teleguiado pela imprensa, que não representa a opinião do povo brasileiro.

    Acordo comercial bom é aquele que nos faz crescer e não o que amplia nossas diferenças e desigualdades. Qualquer acordo comercial com qualquer bloco econômico ou país que não seja para o benefício pleno de nação serve apenas para alimentar a ganância das nossas elites e empobrecer a maioria do povo, a classe trabalhadora.

    *Leandro Recife é Secretário Geral do PSOL Nacional.

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  • O Brasil desamparado

    O Brasil desamparado

    O Brasil desamparado

    Na guerra, a principal tática consiste em confundir o inimigo. Se um dos oponentes souber o próximo passo do outro, é possível reagir, contra-atacar ou, no mínimo, defender-se. Quando se consegue confundir o adversário e impedi-lo de saber dos passos seguintes, a disputa está decidida. A ausência de lógica e de racionalidade é uma movimentação de guerra, que até agora tem sido vitoriosa

    Por Wanderley Codo

    Bolsonaro já foi classificado como louco, perverso, ignorante, racista, homofóbico, mentiroso, autoritário, nepotista, perseguidor, mal-educado e despreparado. Tudo isso é verdade. Vejamos cada classificação:

    • Louco: Divulga pornografia (golden shower) para demonizar o carnaval.
    • Perverso: Elege Brilhante Ustra – o mais conhecido torturador da ditadura e o único a ser responsabilizado legalmente por isso – como herói nacional.
    • Ignorante: Não sabe nada do desmatamento e ainda contesta metodologias, consagradas internacionalmente, como a do IBGE e do INPE, punindo quem conhece.
    • Racista: Trata quilombolas como se fossem animais.
    • Homofóbico: “Venham ao Brasil para fazer sexo com mulheres, mas não para um paraíso gay”.
    • Mentiroso: “No Brasil não há fome e nem desmatamento”.
    • Despreparado: Se comporta como um garoto em uma pelada de rua, sem a mínima ideia da liturgia do cargo.
    • Falso: Afirma que o pai do presidente da OAB, foi justiçado, quando a própria ditadura admitiu o assassinato.
    • Autoritário: Persegue jornalistas que o criticam e quando pode os manda demitir.
    • Nepotista: Indica um filho para ser embaixador nos Estados Unidos por ter fritado hambúrgueres por seis meses no Maine.
    • Perseguidor: Considera todos os adversários como inimigos e até a Folha de S. Paulo recebe a ‘pecha’ de comunista.
    • Mal-educado: Xinga e agride os jornalistas que fazem perguntas incômodas.

    Há que se notar, Bolsonaro é coerente, pois segue à risca o guru, o astrólogo iletrado Olavo de Carvalho, que afirmou, com razão, ser o segundo do governo, e que é o autor de pérolas como: “A ONU apoia o terrorismo”, “A Pepsi é feita com fetos abortados”, “Há uma conspiração comunista global e o movimento gay é parte dela”, “A Lei da Inércia é falsa e Isaac Newton era burro”, “Há livros ensinando crianças fazer sexo oral com elefantes” e “O Brasil hoje é uma ditadura comunista”.

    É preciso ter cuidado, prestar muita atenção, pois abaixo das sandices, logo abaixo das loucuras, está um projeto claro, um propósito bem delineado. Nos EUA, Bolsonaro assegurou que o governo terá a missão de “desconstruir” e “desfazer muita coisa”

    Sim, coerente, escolhe uma ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos que beira a alucinações delirantes, um ministro da Educação empenhado em acabar com a Educação, um astronauta que vendia “travesseiros da Nasa” para cuidar da ciência e um chanceler que acredita ser o nazismo uma corrente de esquerda.

    Projeto claro

    É preciso ter cuidado, prestar muita atenção, pois abaixo dessas sandices e abaixo das loucuras, está um projeto claro, um propósito bem delineado, declarado em prosa e verso, pelo próprio Bolsonaro na primeira cerimônia de beijar a mão dos EUA, na embaixada do Brasil, em março de 2019. Lá, ele assegurou que o governo terá a missão de “desconstruir” e “desfazer muita coisa”. Vai indo bem, está destruindo a aposentadoria, a rede de proteção social, a Amazônia, a vida indígena, e por aí vai.

    Aqui não é o lugar de deslindar melhor esse projeto alucinado e fascista, realizado com afinco e enorme eficiência. É preciso prestar atenção ao método que esse projeto utiliza, talvez intuitivamente, talvez bem orientado por John Bolton e sua camarilha.

    O escritor italiano Umberto Eco (1932-2016) nos avisava: “Para um Ur-Fascista não há luta pela vida, mas a vida é vivida pela luta, Mussolini é dono da frase mais sintética sobre isso: ‘Somos fortes porque não temos amigos’”. O prefixo “ur” refere-se àquilo que é primordial ou essencial.

    O fascismo não tem adversários, tem inimigos e o que promove é a mera destruição do inimigo, como Hitler contra os judeus. Bolsonaro chegou a declarar, com a elegância que é sua marca: “Vamos acabar com o cocô, que são os corruptos e os comunistas”. Não se pode acusar Bolsonaro de incoerente

    Governar, para Bolsonaro, é enfrentar inimigos, quando estes não existem ele os inventa, como o “kit gay”. Repare que falo inimigos, pois o fascismo não tem adversários, tem inimigos e o que promove é a mera destruição do inimigo, como Hitler contra os judeus. Bolsonaro chegou a declarar, com a elegância que é a sua marca: “Vamos acabar com o cocô, que são os corruptos e os comunistas”.

    Não se pode acusar Bolsonaro de incoerente, as loucuras dele são compartilhadas fielmente por quase todo ministério.

    O inimigo de
    Bolsonaro é o Brasil

    Não discordarei se você concluir que o inimigo eleito por Bolsonaro, aliado a Trump e iluminado por Olavo de Carvalho, é o Brasil. Bolsonaro conta ainda com apoio interno para essa tarefa. Destruição é a palavra mais ouvida e temida do governo atual: destruir a Previdência, as Universidades, as empresas estatais.

    Com a honrosa exceção dos estudantes, UNE e UBES, e dos 25% que ainda aprovam as sandices de Bolsonaro, o resto do país sofre de desesperança, sente-se incapaz de fazer algo e não faz nada. Há um estado psicológico de desamparo, normalmente associado à ansiedade

    Além da força bruta, que Bolsonaro usa sempre que consegue, há outros métodos de governo, leia-se, de eliminar os inimigos. O sociólogo Carlos Serra se utiliza de um verbo angolano, ‘confusionar’, provocar confusão no adversário, e elenca mandamentos para isso, sendo os preferidos de Bolsonaro:

    Diabolização – “Jair Bolsonaro afirmou, durante um evento evangélico, que a “ideologia de gênero” é “coisa do capeta”, o PT, a esquerda, são coisas do demônio, e devem ser exorcizadas. Note-se que todos – Rede Globo, Folha de SP, MEC – antes de serem destruídos, todos são comunistas, portanto, todos guerreiros do demônio, que devem ser destruídos. Como candidato, Bolsonaro afirmou querer abolir Paulo Freire do MEC com lança chamas”.

    A demonização encerra o inimigo em uma vala comum, o inferno, onde qualquer coisa que ele fizer será uma estratégia insidiosa para capturar nossa alma. Nenhum diálogo com ele faz sentido.

    Ironia – Bolsonaro: ‘Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida’. A ironia, pesada e chula, quando usada contra um inimigo, destrói a capacidade de enfrentamento, de crítica, de contestação.

    Complô – Aqui a função é dupla, Bolsonaro inventa complôs e depois os combate ferrenhamente, como as organizações comunistas que dominam as Universidades (sic) e organiza complôs contra a sociedade organizada.
    Provocação – Carlos Serra, com razão, considera a provocação o mandamento que aglutina todos os outros, uma espécie de síntese de todos. Bolsonaro provoca a tudo e a todos, inclusive figuras tidas como aliados, como Sérgio Moro – “vai fazer troca-troca”. Procure, será difícil você encontrar uma fala de Bolsonaro no Twitter que não implique, direta ou indiretamente, uma provocação.

    Confusionar o inimigo

    O efeito de tudo é o de confusionar os inimigos, ou seja, todos nós. Qual o efeito da confusão que Bolsonaro provoca?

    Já se viu que Bolsonaro governa como quem guerreia e que o inimigo somos todos nós. Na guerra, a principal estratégia consiste em confundir esse inimigo. Se você souber o próximo passo do contendor, você pode reagir, contra-atacar ou no mínimo se defender. Quando o inimigo conseguir confusionar e lhe deixar sem saber de nada sobre os próximos passos, você perdeu. A ausência de lógica e de racionalidade é uma estratégia de guerra, que até agora tem sido vitoriosa.

    Se você apertar o botão, o elevador vem. Você aprendeu que, para trazer o elevador você precisa apertar o botão. Agora, imagine que o elevador não venha se você apertar o botão, você também aprende isso, o que não deve fazer para que o elevador venha. Você pega o biscoito e leva um tapa.

    Aprende a não pegar o biscoito para evitar o tapa. Se você levar o tapa porque não pega o biscoito, outra vez você aprende a evitar o tapa, você pega o biscoito.

    Mas você pode aprender ainda outra coisa; imagine que você aperta o botão ou pega a bolacha e o elevador ou o tapa, venha algumas vezes e não venha outras. Idem, você não aperta o botão e não pega biscoito e às vezes o elevador ou o tapa vem ou não, você aprende. Aprende que nada do que você faça ou não faça lhe traz algum resultado previsível. Você aprende que não adianta fazer nada para controlar as respostas do seu meio. Você está desamparado. Desamparo aprendido.

    Evitando choques

    O psicólogo estadunidense Martin Seligman estudou isso há meio século. Um cão recebia choques e tinha ao alcance uma alavanca para apertar e evitar o castigo. O seu par recebia os mesmos choques, mas não tinha alavanca para os evitar. Depois, os dois cães iam para uma situação na qual bastava saltar para o outro lado da gaiola em que haviam sido colocados para evitar o choque assim que ouvissem a campainha. Dessa forma, quem conseguia evitar os choques antes rapidamente aprendia a se livrar deles. No entanto, aquele que recebera choques inevitáveis, abaixava, gania, mas não conseguia evitá-los. O fenômeno é análogo à depressão, o desamparo aprendido. O mundo ensinou que não adianta fazer nada para evitar o sofrimento ou conquistar o prazer, e aprendemos a não fazer nada, a não agir ou reagir, sendo levado à depressão.

    Isso dói, isso provoca sofrimento, sofrimento emocional.

    O nosso mundo não é composto apenas de botões e biscoitos. A maioria das coisas que vivemos e enfrentamos tem origem e repercussão social. São situações que demandam um controle social, e que podem produzir a percepção de que nada do que fizermos pode alterar o quadro, somos vítimas do desamparo também em nível coletivo.

    Um garoto que recebe castigos e afagos sem poder perceber o que fez para que um ou outro ocorra, é um forte candidato ao desamparo aprendido, um fenômeno psicológico análogo à depressão.

    Uma tristeza profunda, sem fim, associada a sentimentos de dor, amargura, desencanto, desesperança, baixa autoestima e culpa, alguns sinais de depressão. Parece familiar?

    Desesperança e inação

    Com a honrosa exceção dos estudantes, UNE e UBES, e dos 25% que ainda aprovam as sandices de Bolsonaro, o resto do país sofre de desesperança, sente-se incapaz de fazer algo e não faz nada. Claro que existem razões fortes advindas da má organização das forças progressistas ou ainda na falta crônica de um programa político, quer seja de enfrentamento, quer seja de alternativas de poder. Mas também há um estado psicológico de desamparo, um estado psicológico normalmente associado à ansiedade.

    Haverá reversão da situação, a menos que as Universidades já tenham sido eliminadas, a Amazônia tenha se tornado um deserto, os índios eliminados por garimpeiros, os velhinhos já tenham morrido trabalhando e o povo esteja se matando. A menos que não haja mais Brasil

    O psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook, relatado por Eliane Brum, no jornal El País: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos.

    Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila”. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil.

    A reversão do quadro

    Os brasileiros estão doentes de Brasil, depressão e ansiedade que nos atingem como epidemia, cotidiano que nos entristece, com um dia a dia de absurdos vomitados pelo presidente da República.

    Haverá reversão, a menos que as Universidades já tenham sido eliminadas, a Amazônia tenha se tornado um deserto, os índios eliminados por garimpeiros, os velhinhos já tenham morrido trabalhando, ou por receber 400 reais por mês e o povo armado esteja se matando. A menos que não haja mais Brasil.

    O Brasil sofre de desamparo e aprendeu que nada pode ser feito. Aprendeu a sofrer calado com todas as artimanhas usadas para nos confusionar. Até agora, Bolsonaro e asseclas lograram o maior objetivo: destruir o Brasil.

    Para isso, instalar a ausência de uma resposta da sociedade aos descalabros, como os cães de Seligman, aprendemos a não reagir.

    A ausência de resposta das ruas aos descalabros, o jogo de cabra-cega que assola a oposição e o silêncio constrangedor da cidadania não podem ser explicados apenas pelo desamparo aprendido. Mas essa trama joga o papel na situação que estamos vivendo. Vale repetir, aprendemos todos que não há nada a fazer, estamos todos acabrunhados, tristes, vendo o mundo desabar, com a cabeça enterrada no chão, à espera do pior. “A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão” Outra vez Chico.

    Os cães do experimento de Seligman, só venciam a letargia quando eram puxados fortemente pela coleira, obrigados a enfrentar o desamparo. De quem, de onde virá o ato de força que nos obrigará a reagir? De nós mesmos?

    De onde quer que venha, que não demore, ainda é tempo de salvar o país. Do brasileiro expulsar o sentimento de abandono a si mesmo, recuperar a dignidade que só se conquista com a cabeça erguida.

    *Wanderley Codo é professor titular aposentado do departamento de Psicologia Social da UnB. É autor, entre outros, de Educação, Carinho e Trabalho (Editora Vozes).

    BAIXE AQUI A REVISTA N.26 COMPLETA

  • Sob Bolsonaro, em direção ao Estado Zero

    Sob Bolsonaro, em direção ao Estado Zero

    Sob Bolsonaro,
    em direção ao
    Estado Zero

    Está em curso uma regressão histórica no universo de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Nesse terreno, é muito importante pontuar que há unidade burguesa na agenda liberal, mostrando a manutenção de uma hegemonia indiscutível dos interesses do capital financeiro sobre as frações políticas da classe dominante

    Por Fernando Silva (Tostão) 

    Para compreender o projeto ou os nexos do projeto do governo de Jair Bolsonaro – Paulo Guedes, entre a cínica frieza da agenda liberal-econômica com os destemperos e provocações constantes do presidente – é preciso um olhar panorâmico sobre o período aberto desde o golpe parlamentar de 2016.

    Esses anos são marcados por uma profunda ofensiva do capital financeiro em busca de um reordenamento ultraliberal do Estado brasileiro e uma mudança qualitativa nas relações capital-trabalho, com retrocessos históricos na legislação trabalhista. Tais diretrizes vão se traduzir politicamente na, cada vez mais evidente, ruptura com o pacto articulado em torno da Constituição de 1988, no terreno dos direitos sociais, econômicos, bem como no terreno jurídico e político.

    Alinhamento ao Trump

    O aprofundamento da agenda liberal sob o governo atual aponta na direção de uma maior subordinação ao capital financeiro, da perda de soberania, agravado com o alinhamento político Bolsonaro-Trump.

    Não é tema deste artigo abordar as responsabilidades dos governos de colaboração de classe do PT, suas inúmeras concessões – em particular o ajuste iniciado pelo segundo mandato de Dilma Roussef. Também não examinaremos a lógica da governabilidade com a própria direita para obter maioria no Congresso Nacional. Lógica que levou a um total esvaziamento da participação e mobilização popular. Como sabemos, essa deseducação política cobrou um preço altíssimo quando da conjuntura do golpe de 2016.
    Portanto, sem querer diminuir as responsabilidades dos governos petistas na tragédia que se abate sobre o país, essa pontuação crítica serve para se ter dimensão da ofensiva capitalista e da direita em torno do profundo reordenamento neoliberal em curso, pois nem mesmo as concessões dilmistas chegavam perto dos objetivos desta nova etapa.

    O primeiro tripé de
    uma regressão histórica

    O golpe de 2016 resultou num governo frágil e muito impopular que mesmo enfrentando crises políticas, denúncias de corrupção e uma fortíssima greve geral em 2017 aprovou o congelamento dos gastos no orçamento por 20 anos, a reforma trabalhista e o projeto de terceirizações. Ficou para o governo seguinte a missão de aprovar a reforma da Previdência que, esta sim, Temer não teve forças para conseguir.

    Sob o governo Bolsonaro a referida reforma foi aprovada na Câmara dos Deputados e com isso um tripé estratégico do reordenamento ultraliberal do Estado se conclui.

    “Esses anos são marcados por uma profunda ofensiva do capital financeiro em busca de um reordenamento ultraliberal do Estado brasileiro e por uma mudança qualitativa nas relações capital-trabalho, com retrocessos históricos na legislação trabalhista”

    Trata-se, portanto, de uma regressão histórica no universo de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Nesse terreno é muito importante pontuar que há unidade burguesa na agenda liberal mostrando a manutenção de uma hegemonia indiscutível dos interesses do capital financeiro sobre as frações políticas da classe dominante. Afinal, a reforma da Previdência foi conduzida pelo chamado “centrão”, em que pese os inúmeros choques desse bloco com a facção bolsonarista e o próprio presidente.

    Além de estarem de acordo com a agenda econômica liberal, também é preciso observar que a sanha destruidora e provocadora de Bolsonaro e dos ministros mais fundamentalistas em nada é contraditória com a agenda global. Os cortes na Educação, a desastrosa política ambiental, os ataques aos sindicatos, as provocações e medidas na área de direitos humanos e democráticos se inserem dentro de uma lógica política, ideológica e também ultraliberal. A destruição de direitos de toda a ordem, o estrangulamento da Universidade Pública, a tentativa de reduzir a capacidade de resistência popular são totalmente úteis e instrumentais para a aplicação da agenda econômica.

    A agressiva política
    de privatizações

    Os ataques estruturais não se encerram com a reforma da Previdência. Chegamos então ao que parece ser o novo momento ou novo objetivo nessa lógica de destruição do Estado e subordinação ao capital financeiro e imperialista: a política de um amplo programa de privatizações e destruição de uma política social de investimento.

    “O golpe de 2016 resultou num governo frágil e muito impopular que, mesmo enfrentando crises políticas, denúncias de corrupção e uma fortíssima greve geral em 2017, aprovou o congelamento dos gastos no orçamento por 20 anos, a reforma trabalhista e o projeto de terceirizações”

    Este objetivo vem sendo perseguido de maneira mais explícita e selvagem pelo ministro Paulo Guedes e ganha mais força após a reforma da Previdência. Não obstante as inúmeras e desastradas declarações de Bolsonaro do tipo “tem que privatizar nem que seja uma estatal pequena por semana” ou dos anúncios contraditórios (primeiro o plano era anunciar 17 privatizações relevantes, depois foram 9), o fato é que também esses objetivos são para valer e são estratégicos para a agenda liberal. Gigantes como Correios e Eletrobras já estão na mira imediata. Não é pouca coisa.
    Estamos falando de um profundo processo de destruição do patrimônio público, da soberania e de um aprofundamento ainda maior da desnacionalização da economia, pois tal como nos processos anteriores, como o das telecomunicações, é evidente que o capital transnacional e imperialista são os mais sérios candidatos a abocanhar uma nova onda de privatizações.

    Senão vejamos: a gravíssima venda de 30% das ações da BR Distribuidora acabou com o controle majoritário da Petrobras e abriu as portas para gigantes multinacionais terem o controle da distribuição e comercialização dos combustíveis e derivados no país. E isso como parte de um aberto e cara de pau plano de “desinvestimentos da Petrobras”, assim assumido pela atual gestão liberal-bolsonarista na empresa.

    A perda de controle da produção e distribuição de energia pelo Estado brasileiro ou do controle dos Correios vão na direção do aumento dos lucros capitalistas, mas não do desenvolvimento, da soberania e sequer da melhoria dos serviços ou de qualquer possibilidade de regulação pelo Estado dentro dessa lógica selvagem do bolsonarismo.

    O exemplo da política da atual direção da Petrobras não é nada isolada, pois basta observar que os bancos públicos em particular o BNDES estão sendo esvaziados em relação à função de investimentos e empréstimos para produção e infraestrutura. É uma estratégia de Estado zero na economia e nos direitos.

    Mas é um engano estratégico ou diretamente uma falsa e cínica a ideia de que as privatizações e as mudanças nas legislações trabalhista e previdenciária vão atrair fortes investimentos, recuperar a economia, trazer empregos e desenvolvimento.

    Segundo artigo dos economistas Fernando Sarti e Mariano Laplane, no Observatório da Economia Contemporânea, 75% do investimento direto estrangeiro que entrou no país nos últimos 20 anos vieram após a crise internacional de 2008. Destes, grande parte veio para a aquisição ou fusão com empresas domésticas. De 2008 aos dias atuais aumentou sobremaneira a desnacionalização ampla da economia com mais de 2,5 mil operações de aquisição ou 57% do total das operações.

    Com toda essa abertura e esse aumento de investimento externo o país está no sexto ano de estagnação com 13 milhões de desempregados. Enquanto isso, a receita bruta das empresas estrangeiras no Brasil não parou de crescer, ou seja, quadruplicou no período de 1995-2015.

    De 2015 para cá – mesmo atualizando essa falsa ideia com o discurso oficial para uma perspectiva de que “agora o capital e os investimentos virão para valer” com a nova regulamentação trabalhista e previdenciária e com a desestatização global do patrimônio público – outros novos e velhos fatores podem contribuir para que essa equação do capital nunca vá se fechar.

    Uma longa estagnação?

    O cenário mundial é de extrema incerteza. A hipótese de que um aumento da temperatura na guerra comercial EUA/China coloque a economia capitalista na rota de uma nova recessão mundial pode por si só tornar o cenário de investimentos volátil, com deslocamentos para os portos mais seguros. Não se sabe o que pode acontecer com uma etapa de guerra de barreiras tarifárias e como a subordinada economia brasileira exportadora de commodities vai se localizar, dado inclusive o estado atual de “semianarquia” na política externa brasileira.

    Gigantes da economia capitalista, como a Alemanha, dão sinais abertos de recessão. E a permanente instabilidade que o próprio presidente gerou como o desgaste da imagem do país na crise ambiental em torno das queimadas na Amazônia, num cenário internacional turbulento, pode não só inviabilizar o acordo EU/Mercosul, como adiar por um bom tempo a esperada enxurrada de investimentos.

    Do ponto de vista do cenário interno uma política de ampla flexibilização e precarização de direitos, empregos e salários para a maioria da população, um esvaziamento do papel do Estado na economia e uma maior redução de direitos e cobertura social passam longe de serem indutores de retomada de crescimento, mesmo com baixos índices de inflação por ora. Para além do desemprego e do desalento, os recentes dados do aumento da miséria extrema dão pistas de que a agenda ultraliberal vai aprofundar a desigualdade social (segundo dados do Cadastro Único do Ministério da Cidadania, entre junho de 2018 e junho de 2019 a pobreza extrema aumentou e há mais de 13 milhões de pessoas nessa condição).
    A hipótese deste artigo é a de que a perspectiva mais provável é de estagnação ou crescimento medíocre em relação à capacidade de saída da crise econômica e social.

    Jair Bolsonaro venceu as eleições convencendo boa parte do eleitorado de que seria necessário sacrificar direitos para voltar a ter empregos para todos. A regressão monumental de direitos está em andamento, o “sacrífico” está sendo feito, mas o cenário externo e o selvagem reordenamento liberal do Estado e das relações capital-trabalho não parecem apresentar a solução mágica de curto prazo. Esta poderá ser a última fronteira para um deslocamento da maioria da população para a oposição ao governo. As brechas para uma resistência ampla e popular têm sido abertas em episódios como a mobilização da educação, a defesa da Amazônia entre outras.

    Em busca de outro
    desenvolvimento

    Será preciso estar preparado para a hipótese de um deslocamento maior da população contra as medidas do governo que permitam ao menos deter o aprofundamento da ofensiva reacionária. Continua sendo para ontem a busca de uma ampla frente única para acumular posições, resistência de massas e evitar dispersão das lutas sociais. Sem o protagonismo popular não se derrota a agenda liberal onde o andar de cima está de acordo.

    Ao mesmo tempo, a esquerda precisa entrar no debate do desenvolvimento com outra lógica, capaz de oferecer uma alternativa estratégica ao desastre que se anuncia. A alternativa à agenda liberal não pode ser um mais do mesmo das alternativas nacional-desenvolvimentistas burguesas. Será preciso, com certeza, um amplo resgate do Estado brasileiro no que diz respeito à universalização de direitos sociais e humanos, da capacidade de controlar setores estratégicos da economia, na capacidade de priorizar investimentos em pesquisa e tecnologia, numa inédita e soberana regulamentação estatal sobre o capital financeiro.

    “Chegamos ao que parece ser o novo momento ou novo objetivo nessa lógica de destruição do Estado e subordinação ao capital financeiro e imperialista: a política de um amplo programa de privatização e destruição de uma política social de investimento”

    Mas para além disso, é preciso pensar num modelo que coloque no eixo a busca de uma transição na matriz energética e produtiva que rompa a exclusividade na dependência dos combustíveis fósseis; numa profunda mudança no modal de transportes no país e nas grandes cidades; numa profunda reforma agrária que equacione os recursos da terra para colocar um fim na lógica predatória do desmatamento; e numa transição no modelo de mineração para colocar um fim nos desastres do modelo extrativista que geram Marianas e Brumadinhos. Precisamos de outra lógica que parta da ideia de um desenvolvimento distributivista das riquezas já produzidas e existentes, que por si só já significaria uma revolução na estrutural desigualdade e que, por fim, equacione as condições para uma ruptura com os modelos predatórios de crescimento.

    *Fernando Silva (Tostão) é jornalista
    e membro do Diretório Nacional do PSOL

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  • Amazônia, desmatamento e desnacionalização

    Amazônia, desmatamento e desnacionalização

    Amazônia,
    desmatamento e
    desnacionalização

    Há um grande risco colocado diante da soberania brasileira sobre a Amazônia. O avanço da cobiça estadunidense e dos grandes projetos de mineração e do agronegócio vêm promovendo a ampliação do desmatamento e dos conflitos pela posse da terra numa região detentora de exuberante biodiversidade

    Por Marinor Brito, André Marinho, Sandra Helena Ribeiro Cruz

    A Amazônia, desde a ocupação portuguesa até à implementação dos grandes projetos de infraestrutura patrocinados pelo Estado, sofre os impactos de ações exógenas e excludentes. Estas não valorizam a diversidade sociocultural das comunidades tradicionais e dos povos da floresta – indígenas, quilombolas, ribeirinhos e trabalhadores rurais -, pois enxergam a região como fonte de capital natural baseado na incorporação contínua de terras e recursos percebidos como infinitos.

    O avanço dos grandes projetos voltados para a produção de commodities provenientes da mineração e do agronegócio, assim como a exploração do potencial de geração de energia da rede hidrográfica vêm promovendo a ampliação do desmatamento e dos conflitos pela posse da terra numa região detentora de exuberante biodiversidade. À medida que aumenta o desmatamento, reduz-se bruscamente a qualidade de vida das populações nativas, que veem a sobrevivência cada vez mais ameaçada.

    Ecossistema complexo

    A Amazônia possui um complexo ecossistema com mais de 7 milhões de km², que se estende por 8 países – Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana Francesa e Suriname – e compreende cerca de 40% do território da América do Sul, a chamada “Pan-amazônia”. A região apresenta característica fisiográfica marcante, além de imensas reservas naturais, como água doce, minérios, madeira e um potencial hidroelétrico incontestável. Essas riquezas despertam a cobiça e a ganância de interesses internos e externos, que se utilizam de diversos mecanismos para garantir a apropriação privada dos recursos hídricos, florestais e do subsolo.


    As riquezas da região despertam a cobiça e a ganância de interesses internos e externos, que se utilizam de diversos mecanismos para garantir a apropriação privada dos recursos hídricos, florestais e do subsolo


    A região é o lar de 62 das 79 espécies de primatas existentes no Brasil, de cerca de 3 mil espécies de peixes e mais de mil espécies de árvores. A abundante biodiversidade da região a mantém como uma das poucas áreas ainda preservadas no planeta. Todavia, a Amazônia sofre, cada vez mais, com o avanço do grande capital sobre a floresta e sobre a população, alterando radicalmente o modo de vida, impondo ao lugar os processos decorrentes da globalização. A Comissão Pró-índio de São Paulo em trabalho realizado nas comunidades quilombolas de Oriximiná no Pará revelaram por meio de exames que os peixes dos corpos hídricos próximos aos locais de mineração, quando encontrados, não pareciam apropriados para o consumo.

    Dois movimentos internacionais atuam na região. O primeiro é ligado ao sistema financeiro informacional das grandes potências e tende a ter uma linha “conservacionista” em função da manutenção da Amazônia como reserva de capital natural futuro. O outro tem vínculos com movimentos sociais de caráter internacionalista e busca o “desenvolvimento sustentável” da região como forma de uso racional dos potenciais de nossa biodiversidade. Esses dois movimentos se cruzam contraditoriamente na defesa de objetivos convergentes, mas que, na verdade, guardam interesses antagônicos.

    Posição estratégica

    Grande parte da exuberante floresta tropical se encontra no território brasileiro, o que coloca o Brasil em posição estratégica no cone sul e direciona as lentes estadunidenses para o nosso país. Os Estados Unidos mantêm forte vigilância sobre o Brasil – assim como outras nações de importância regional no cenário global – pois a América do Sul está na zona de ação mais próxima.

    A abertura da base de Alcântara no Maranhão aos militares norte-americanos pode agravar esse cenário, possibilitando o maior controle dos

    EUA sobre a Amazônia

    A superação dos problemas relacionados à soberania dos países da Amazônia foi sendo construída a partir do entendimento de que a região não poderia ser tratada de forma isolada e fragmentada. No entanto, as tentativas de se estabelecer uma política voltada para a integração da Amazônia sempre esbarraram nas dificuldades de mobilidade impostas pelas características fisiográficas da região, que limitam a mobilidade entre os países vizinhos.

    Diante da grande preocupação com a geopolítica da região, o general Carlos Meira Mattos (1913-2007) defendia, nos anos 1970, a posição de que “para se obter sucesso na ocupação e desenvolvimento da região, é necessário levá-la em conta em sua totalidade, pensando sempre no conjunto das diversas Amazônias nacionais”. Nesse sentido, Meira Mattos “sugere o conceito de Pan-amazônia”, no qual o desenvolvimento seria um projeto comum de todos os países.


    A Amazônia é o lar de 62 das 79 espécies de primatas existentes no Brasil, de cerca de 3 mil espécies de peixes e mais de mil espécies de árvores. A abundante biodiversidade da região a mantém como umas das poucas áreas ainda preservadas no planeta. Todavia, a Amazônia sofre, cada vez mais, com o avanço do grande capital sobre a floresta e sobre sua população


    Esse entendimento tem desdobramento por meio dos encontros diplomáticos que inauguraram uma nova fase das relações entre as nações amazônicas. Essas relações inicialmente se davam de forma bilateral, mas o caráter multilateral foi sendo fortalecido progressivamente. Dentre as iniciativas voltadas para estabelecer a interação entre os países sul-americanos estava o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) que, a partir de 1980, pode ser visto como um marco do sucesso da cooperação e das boas relações entre os países da região.

    “No TAC estão firmados os princípios básicos para a cooperação regional, como a concepção de que para se alcançar o integral desenvolvimento dos respectivos territórios amazônicos é necessário manter o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente” (TILIO NETO, 2010).

    Integração da infraestrutura

    Outra iniciativa importante é o projeto Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), que visa à interligação do cone sul das Américas. A meta é a constituição de uma estrutura física que possibilite a intensificação dos fluxos humanos, comerciais e financeiros em função de uma ação contra-hegemônica e de consolidação do Brasil frente aos interesses norte-americanos, sobre tudo na Amazônia.

    Essas iniciativas pugnavam pelo fortalecimento dos países sul-americanos num bloco que poderia fazer frente aos interesses externos, principalmente para o fortalecimento do Mercosul em detrimento da ALCA e do bloco europeu. No entanto, o atual cenário político-conjuntural, regional e mundial, impõe novos desafios, pois a investida cada vez mais contundente dos EUA sobre o território sul-americano vem causando instabilidade e desestruturação política no continente.

    Hoje, as tentativas de consolidação da soberania da região passam por um crescente processo de desconstrução das políticas de afirmação dos países latino-americanos sobre os territórios. A ação imperialista dos EUA busca impedir o avanço dos setores progressistas e da esquerda democrática no continente. Segundo o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel:
    “O que está acontecendo no Brasil tem a ver com o projeto de recolonização do continente. Esse projeto tem alguns objetivos estratégicos: o controle dos nossos recursos naturais e, como já disse Michel Temer, a privatização das empresas estatais. Esse é o objetivo do golpe de Estado”.

    Esquivel afirmou, ainda, que os procedimentos utilizados em Honduras e no Paraguai – para a derrubada de Manuel Zelaya do poder em 2009 e de Fernando Lugo em 2012 – foram os mesmos. Eles envolvem o uso maciço dos meios de comunicação para alimentar um processo de desgaste por meio de uma série de acusações. Tudo conta com a cumplicidade de alguns juízes, como é o exemplo de Sérgio Moro.

    Subserviência externa

    No Brasil, a subserviência do governo Bolsonaro aos interesses norte-americanos se expressa por meio dos constantes ataques as populações originárias e tradicionais. Exemplo disso foi a retirada da demarcação de terras indígenas da competência da Fundação Nacional do Índio (Funai). O novo gestor é o Ministério da Agricultura, historicamente comandado pela bancada ruralista. Esse gesto demarca a posição do atual governo e as verdadeiras intenções para com os povos originários. Com a eliminação dos “entraves” para a ampliação do agronegócio e da mineração e a construção de hidroelétricas na região, potencializa-se exponencialmente um crescente processo de degradação ambiental na Amazônia.

    A materialização dessa política se dá por meio da forma descompromissada com que os órgãos licenciadores e de controle vêm agindo na Amazônia, principalmente nas Regiões Oeste, Sul e Sudeste, onde o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Mineração (ANM) estão liberando novos investimentos sem a garantia do cumprimento dos critérios básicos da legislação ambiental. Esses processos ocorrem para atender aos interesses das multinacionais e do capital, a exemplo da mudança do Código Florestal Brasileiro ocorrida em 2012.


    Uma proposta importante é o projeto Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), que visa à interligação do cone sul das Américas. A meta é a constituição de uma estrutura física que possibilite a intensificação dos fluxos humanos, comerciais e financeiros em função de uma ação contra-hegemônica e de consolidação do Brasil frente aos interesses norte americanos


    Segundo o World Wide Fund for Nature (WWF Brasil), entre agosto de 2017 e julho de 2018, o sistema Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes) registrou um aumento no desmatamento na região de 13,7% em relação aos 12 meses anteriores, nos quais foram suprimidos 7.900 km² de floresta. Por outro lado, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) conclui que o desmatamento na região aumentou 40% nos últimos 12 meses, e já chegou ao coração da floresta. Trata-se do cinturão verde que atravessa os estados do Acre, norte de Mato Grosso, sul do Amazonas, parte de Rondônia e vai até o oeste do Pará. Nas zonas de sacrifício, quanto menor são as condições socioeconômicas das regiões, maior a vulnerabilidade ao avanço do capital, consequentemente, maior a degradação ambiental.

    Empresas e poluentes

    Outros ataques provêm das grandes mineradoras, que não respeitam as populações locais e despejam sobre rios e igarapés da região o rejeito produzido durante a extração do ferro, bauxita e outros minerais. Um dos casos emblemáticos é o das empresas norueguesas Hydro e a Imerys, que há anos despejam seus rejeitos em barragens no município de Barcarena contaminando os recursos hídricos da região e, consequentemente, a população local. O mesmo ocorre em outras áreas onde estão instaladas empresas como a Vale e a Mineração Rio do Norte (MRN) que comprometem a qualidade de vida e colocam em situação de risco a população dessas áreas.

    “A Amazônia está diante de mais um perigo: áreas estão sendo vendidas para que empresas explorem petróleo e gás natural”. Quem faz essa denúncia é o Greenpeace, que alerta a espoliação comandada pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), que está leiloando terras brasileiras para a prospecção de petróleo. Segundo o Greenpeace, existem territórios indígenas cercados e outros sobrepostos a blocos de bolsões de petróleo que estão sendo negociados com multinacionais. As populações locais estarão expostas diretamente aos impactos decorrentes da atividade petrolífera.

    Como é possível perceber, a Amazônia está sendo ofertada em um grande banquete, no qual poderá ser saboreada e degustada pelo grande capital. O controle velado até o momento, que se exerce por meio da ingerência das grandes corporações sobre o aparelho estatal, assume agora dimensões cada vez mais nefastas.


    No Brasil, a subserviência do governo Bolsonaro aos interesses norte-americanos se expressa por meio dos constantes ataques as populações originárias e tradicionais. Exemplo foi a retirada da demarcação de terras indígenas da competência da Fundação Nacional do Índio (Funai). O novo gestor é o Ministério da Agricultura, historicamente comandado pela bancada ruralista


    A disposição do governo brasileiro em consentir a presença das forças armadas dos EUA em nosso território, sob o argumento de “libertar” o povo venezuelano, demonstra a total subserviência de Bolsonaro aos interesses da potência dominante. O risco de o Brasil perder a soberania sobre o território amazônico é real e iminente, pois ela já se processa e se consolida pelos subterrâneos políticos comandados pela agenda do grande capital e agora quer emergir de forma efetiva e letal contra o povo brasileiro.

    O povo brasileiro deverá cerrar fileiras junto às lutas de resistência dos movimentos sociais. É preciso organizar e reforçar a solidariedade entre os lutadores sociais em defesa da floresta amazônica e da soberania nacional.

    *Marinor Brito é professora de Educação Física e Deputada Estadual no Pará pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

    *André Marinho é geógrafo e Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da UFPa/PPGEO. Assessor Parlamentar na Assembleia Legislativa do Pará e militante dos movimentos sociais urbanos.


    *Sandra Helena Ribeiro Cruz é Assistente Social, Doutora em Ciência Socioambiental e docente do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFPA.

    1. TILIO NETO, P. Soberania e ingerência na Amazônia brasileira. [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2010.
    2. RODRIGUES, Edmilson Brito. Território e Soberania na Globalização – Amazônia, Jardim de Águas Sedento. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.
    3. TILIO NETO, P., 2010.
    4. ANDRADE, L. M.M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná – Pará. Com. Pró-índio. São Paulo, 2018.
    5. BECKER, Bertha. Amazônia: Geopolítica na virada do III milênio. 2. ed. Rio de Janeiro: Garomond, 2006.
    6. SILVA, Ronaldo; VLACH, Vânia Rubens Farias. A integração continental Sul-Americana vista de uma Perspectiva da Geopolítica Brasileira. Uberlândia, MG, 2007.
    7. TILIO NETO, 2010.
    8. MATTOS, 1979, e MATTOS, 1980 apud TILIO NETO, 2010.
    9. TILIO NETO, 2010.
    10. UNASUR/COSIPLAN. Agenda de Projetos Prioritários de Integração. Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Suramericana – IIRSA. Novembro/2011.
    11. Sul21. Golpe no Brasil é parte de um projeto de recolonização da América Latina’, 2016. Disponível em: https://www.sul21.com.br/
      entrevistas-2/2016/05/golpe-no-brasil-e-parte-de-um-projeto-de-recolonizacao-da-america-latina/
    12. Designa a localidades em que se observa uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e riscos ambientais.
    13. Greenpeace. Petróleo na Amazônia, NÃO! Disponível em: https://www.greenpeace.org /brasil/participe /petroleo-na-amazonia-nao/. Acessado em: 29 de abril de 2019.
  • Marielle, Bolsonaro  e as milícias

    Marielle, Bolsonaro e as milícias

    Marielle, Bolsonaro
    e as milícias

    É preciso esclarecer um ponto fundamental no assassinato da vereadora do PSOL: quem foram os mandantes e quais os motivos? É uma questão decisiva para impedir que o crime organizado se instale definitivamente na vida política brasileira

    Por Cid Benjamin*

    Até agora, na data do fechamento desta edição de Socialismo e Liberdade, estão presos apenas os dois milicianos executores do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Falta o mais importante: a identificação e a prisão dos mandantes. Além disso, claro, saber as razões do crime e desvendar as vinculações dos assassinos com o mundo da política.


    No fundo, essa história de crime de ódio é uma hipótese que serve mesmo a quem encomendou a execução. Crime de ódio é crime isolado, sem mandante. A morte de Marielle pode não ter sido pensada inicialmente como um atentado isolado. A execução aparentemente faria parte de uma série. Talvez a enorme repercussão do crime tenha sustados outros atentados que viriam


    Muito atuante na denúncia da violência policial contra os pobres, Marielle não tinha atuação localizada em áreas dominadas por milícias. Tampouco a ação dela no Legislativo teve como alvo prioritário os paramilitares, como foi o caso do hoje deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) – a principal figura da CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio em 2008. Por conta disso, aliás, Freixo é obrigado, até hoje, a viver protegido por segurança armada.

    Assim, tudo indica que não foi um problema local que levou ao assassinato de Marielle.

    A hipótese do ódio

    Pode, também, ser descartada uma hipótese levantada inicialmente pela polícia: a de que ela tenha sido morta por ódio individual a esquerdistas, mulheres, negros ou homossexuais. Ora, alguém acredita que um matador profissional vá passar três meses estudando os passos de uma pessoa, antes de matá-la, apenas por não gostar de “gente de esquerda”? Pois foi o que fez o matador de Marielle.

    No fundo, essa história de crime de ódio é uma hipótese que serve mesmo a quem encomendou a execução. Crime de ódio é crime isolado, sem mandante.

    Investigações mostraram que o ex-PM Ronnie Lessa, o principal dos matadores, fez também levantamento da vida de outros possíveis alvos. De uma forma ou de outra, todos eles com atuação na defesa dos direitos humanos.

    Mas há algo intrigante. Teve, também, a vida investigada pelo matador o professor Pedro Mara, diretor do Ciep 210, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Nesse caso, há uma diferença entre Mara e os demais. Ele não tem atuação política aberta. Mas tinha tido recentemente uma dura discussão com Flávio, um dos filhos de Bolsonaro e amigo íntimo de milicianos, tornando-se seu desafeto. Será que, por isso, passou a ser um alvo possível?

    Duas conclusões surgem do que foi dito acima.

    A primeira é que a morte de Marielle pode não ter sido pensada inicialmente como um atentado isolado. A execução aparentemente faria parte de uma série. Talvez a enorme repercussão do crime tenha sustados outros atentados que viriam em seguida.

    A segunda conclusão: o fato de o professor ser também um alvo do matador é mais um elemento a indicar a proximidade dos Bolsonaros com paramilitares. A hipótese fortalece a impressão de que o presidente e a família têm relações mais próximas com a milícia do que muitos pensam. Próximas a ponto de uma altercação individual do 1º (ou ele será o 2º? Ou o 3º?) levar o nome do desafeto à lista de alvos potenciais de um matador profissional.

    Perigo para a democracia

    Todo esse quadro traz à tona uma possibilidade macabra e perigosíssima para a democracia. Será que as milícias podem se transformar no embrião de algo semelhante à Aliança Anticomunista Argentina (Triple A), grupo paramilitar que eliminou ativistas de esquerda? Seria algo muito sério. Para que se tenha uma ideia da gravidade da hipótese, basta dizer que, segundo relatórios de entidades de defesa dos direitos humanos, a Triple A assassinou 1.122 pessoas, entre militantes, artistas, parlamentares, estudantes, historiadores, juízes e outros funcionários públicos na Argentina.


    Na campanha eleitoral, Wilson Witzel festejou o assassinato de Marielle em cima de um carro de som, ao lado de dois parceiros trogloditas que exibiam, em festa, a placa com o nome da vereadora partida em dois pedaços


    Começando a operar em 1973, quando do retorno do presidente Juan Domingo Perón ao país, aquela organização criminosa esteve em atividade até à derrubada de Isabelita Perón, em 1976, quando um golpe de Estado instaurou uma sangrenta ditadura militar. A partir daí, as próprias Forças Armadas se encarregaram do extermínio de militantes e simpatizantes da esquerda.

    Seja como for, parece evidente que uma tarefa se impõe: acabar com as milícias. E, claro, desvendar as ligações com o mundo da política.
    No Rio, elas já passaram de um domínio territorial localizado em áreas de periferia para voos mais altos, fora das regiões de influência originais. Tornaram-se quadrilhas de pistoleiros de aluguel, sem prejuízo de outras atividades criminosas que já exerciam.

    Os milicianos têm experiência militar e acesso a armamento de qualidade. Sabe-se, por exemplo, que foram contratados como matadores de aluguel nas disputas do jogo do bicho. Outras mortes fora das áreas de origem foram também de responsabilidade deles, admite a polícia.

    Crime e política

    Há outra pergunta relacionada ao caso Marielle e à promiscuidade das milícias com a polícia e o mundo da política: como vazou a operação que prendeu os dois ex-PMs matadores?

    A prisão deles traz mais indagações. Por razões legais, a polícia não pode entrar em residências antes das 6h da manhã. Talvez por isso, os assassinos tenham deixado as residências, preparados para desaparecer, em torno das 4h da madrugada. Não há dúvida de que tinham sido avisados da operação que os prenderia. Ao sair, porém, caíram nas mãos da polícia, que estava a postos desde as 3h da manhã, esperando amanhecer. Desconfiados de que, mais uma vez, uma operação vazaria, os policiais chegaram mais cedo.

    Quem alertou os dois matadores?

    É difícil pensar que em prisões dessa importância não tenha havido compartimentação de informações. É praxe que, em casos assim, os participantes da operação só sejam informados do objetivo no último momento. Até os celulares são recolhidos, por precaução.

    Se esses cuidados foram tomados, uma possível explicação para o vazamento é que ele tenha ocorrido “para cima”, a partir de quem, na cadeia hierárquica, era superior aos chefes da investigação. Eles seriam o secretário da Polícia Civil e o governador Wilson Witzel, que, pela relevância da operação, devem ter sido avisados.

    Claro que não se pode acusar quem quer que seja de ter vazado a operação. Seria uma leviandade. Mas, fica a pulga atrás da orelha.


    Os milicianos têm experiência militar e acesso a armamento de qualidade. Sabe-se, por exemplo, que foram contratados como matadores de aluguel nas disputas do jogo do bicho. Outras mortes fora das áreas de origem foram também de responsabilidade deles, admite a polícia


    Afinal, na campanha eleitoral, Witzel festejou o assassinato de Marielle em cima de um carro de som, ao lado de dois parceiros trogloditas que exibiam, em festa, a placa com o nome da vereadora partida em dois pedaços.

    Retrocesso civilizatório

    A execução de Marielle não foi mais uma morte, dentre tantas que ocorrem no Brasil. Embora toda vida humana tenha um valor igual – e incomensurável – a gravidade de assassinatos políticos vai além da perda de vidas. Os tiros atingem a democracia. Mostram que a luta política está sendo travada de forma inaceitável. São um retrocesso no processo civilizatório.

    O envolvimento de milícias com assassinatos políticos deixa claro, mais uma vez, que, no universo do chamado “crime organizado” (que deixa de lado os crimes cometidos por gente de paletó e gravata, limitando-se àqueles em que são usadas armas), os paramilitares são a principal ameaça.

    Daí ser preocupante que no pacote de combate à violência apresentado pelo ministro Sérgio Moro, em fevereiro, o combate às milícias não tenha lugar de destaque. Aliás, está quase ausente do documento, sendo citado apenas de passagem.

    A omissão só pode ser compreendida devido às ligações de milicianos com gente do poder. Mas, não seja por isso. O presidente tem uma boa oportunidade para demonstrar que não compactua com os crimes paramilitares. Foi proposta a abertura de uma CPI sobre milícias na Câmara dos Deputados. A bancada vai apoiá-la?

    Discurso comprometedor

    A propósito, vale lembrar o discurso de certo deputado no plenário da Câmara, em 12 de agosto de 2003, quando se tentou abrir uma investigação sobre um grupo de extermínio que agia na Bahia.

    “Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para eles na Bahia, podem ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio, porque no meu Estado só as pessoas inocentes são dizimadas”.

    O autor desse discurso foi o então deputado Jair Bolsonaro.

    De lá até hoje não houve qualquer indicação de que o presidente tenha mudado de opinião sobre esses grupos paramilitares.

    Talvez aí esteja a resposta à pergunta sobre as razões pelas quais Sérgio Moro não deu prioridade às milícias no plano de combate à criminalidade.

    *Cid Benjamin é militante do PSOL, jornalista e professor

  • Tenho que fazer o dobro para ser reconhecida pela metade

    Tenho que fazer o dobro para ser reconhecida pela metade

    Tenho que fazer o
    dobro para ser
    reconhecida
    pela metade

    Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade. Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu

    Por Manuela Trindade Oiticica*

    Uma cerveja bem gelada? Aceito. Dois goles de tutela? Não, obrigada. Sim, eu sei como segura um tamborim. É, é verdade. Um surdo mal tocado pode derrubar uma roda de samba. Tô sabendo, meu amigo, eu conheço essa música, mas olha, não necessariamente eu toco pra caramba. Toco o normal de quem sabe tocar e – eu sei que isso te dói em algum lugar que você nem sabe – o que tem é que eu conheço os códigos, compartilho saberes mundanos que envolvem uma manifestação popular. Igual a você. Rua, sabe? Eu também. Parece que meu lugar prosaico te deixa mais inseguro. Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade.

    Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu. Desagradeço, que isso nunca foi um elogio. Obrigada.

    Fica tranquilo que eu aguento tocar as três horas previstas de apresentação, não se aquiete que eu seguro o andamento mais rápido e não, não vou correr na música mais lenta. Pódeixar. Agora vem uma paradinha na música, eu sei que é minha vez de fazer a virada e, veja, vou dizer algo que você não deve perceber.

    Tenho que fazer o dobro pra ser reconhecida pela metade.

    A virada do meu instrumento na hora do silêncio vai ser boa. Aliás, muito boa. Muito melhor do que precisa pra essa roda de samba improvisada em que, sejamos francos, quase ninguém sabe tocar direito – mas em que quase todo mundo tem esse direito. Quase todo mundo. Se eu fizer tá tá tá, pode soar simples demais, tadinha, tá começando. Se eu fizer prapum tatá pracará tatatá, exibida demais, pra que isso, gente?, alguém diz pra moça que o samba é arte do singelo. Tudo bem, eu já sei a medida. Mais uma vez obrigada, com licença. E não se aquiete. Tente até não me enxergar muito.

    Tem mais gente tocando. Tocando melhor, tocando pior, normal. Olha pra mim. Normal, tá vendo? Pronto. Pode parar de olhar. Uma cerveja? Aceito. Uma hora alguma coisa vai dar errado, é do jogo. A gente bebe, se empolga, e o samba é desses que desnorteia. Você vai olhar de novo. Vai olhar, porque quando der errado, sem querer querendo, você vai olhar pra mim. Será que não foi ela? Pode ter sido, pode não ter sido, mas eu sempre vou ter que responder por isso.

    É, eu entendo. É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro. Violão sete cordas, daqueles bem maestro? Cabe nela. Escuta, desiste enquanto é tempo da teoria da unha mais mole, o dedo que não alcança, a mão menor que não crava. O Romário tinha 1,68m e fez gol de cabeça nos suecos. Com licença, obrigada. Eu não quero brigar, por favor, obrigada. Saí de casa pra tocar e só. Você nem sabe quantas coisas têm que se mexer pra eu ter o direito de ficar parada.


    É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro


    Um instrumento é porque é muito grande, o outro deve ser muito pesado, aquele ali exige força. Tem uns cientificismos que só servem pra ser os primeiros aliados pras desculpas. Pros vetos. Pras opressões. Mas deixa eu te dizer, se tiver chance a gente faz tudo. Senão, vejamos. A gente já faz mesmo sem muita chance. Deixa eu te dizer. Mas tem que ser no duro, chance desde pequenas.

    A guitarrinha de plástico, o rabisco fora da folha. Poder expulsar sem dó o berro da garganta que não vem ninguém dizer que fica tão feio pra menina berrar assim. Bater de espancar a lata de leite em pó sem se ouvir por aí que a mão da gente tem que ser – precisa ser! – delicada e não pode bater forte assim, que menina agressiva, meu deus. Depois tem que poder ficar até mais tarde na rua, porque muito desse baticum vem na fresca da madrugada, você sabe. Tem perigo pra todo mundo, né?, mas uma rua escura dessas, a gente sozinha, já pensou? E tem um ócio aí pra poder namorar a música, o instrumento. Lembre só que nossa jornada é maior.

    Nossa obrigação com o trabalho, a limpeza da casa, do corpo, da mochila, da calcinha, da dobrinha do pescoço, o caderno organizado, a letra bonita, as contas em ordem, nossa roupa não pode ser todo dia a mesma. Ficar amarrotada, ter mancha de sangue, não tem charme. A raiz branca do cabelo, sobrancelha, unha, aquela mulher tem um jeito de mal cuidada, né?

    Ainda por cima ganhamos pior e nosso espaço de lazer é menos o da brejeirice e mais o do controle, tipo uma casa com quatro paredes. Reparou: nem falei dos filhos.

    Mas olha, eu aceito uma cerveja, e teria muito mais pra te falar. Até porque eu não falei nada. Só ri quando você disse que eu deixava a roda de samba mais bonita e perfumada, e cada dente que eu não mostrei no meu sorriso amarelo de quem não quer se aporrinhar era uma dessas palavras escritas acima e que, tenho a mais plena convicção, você nem desconfia que existam.

    *Manuela Oiticica ou Manu da Cuíca é escritora, compositora e percussionista. É uma das autoras do samba da Mangueira de 2019.

  • A base de Alcântara e a soberania nacional

    A base de Alcântara e a soberania nacional

    A base de Alcântara
    e a soberania nacional

    O acordo para a cessão da base de lançamento de foguetes aos Estados Unidos apresenta pontos obscuros e imposições que ferem a soberania nacional. Para Washington, trata-se de reduzir custos. Para o Brasil, não haverá transferência de tecnologia e nem parcerias nas pesquisas efetuadas. E mais: em determinadas áreas, somente os estadunidenses terão acesso

    Por Flávio Rocha de Oliveira, Bruno Venâncio A. Costa, Gabriel Santos Carneiro, João Victor Dalla Pola, Lucas Macchia de Oliveira, Pedro Versolato e Tarcízio Rodrigo de Santana Melo*

    O governo brasileiro está em vias de alienar um fator estratégico da soberania nacional ao firmar um acordo de concessão da base de Alcântara com o governo dos Estados Unidos. Por qualquer ângulo que se examine, as desvantagens para o nosso país são evidentes.


    O litoral do Maranhão é, talvez, o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Quanto mais próximo da linha do Equador, isto é, quanto menor a latitude, maior é o impulso do movimento de rotação da Terra para a decolagem de tais veículos. Essa característica possibilita que se lancem cargas mais pesadas com grande economia de combustível


    A localidade no litoral do Maranhão é, talvez, o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Quanto mais próximo da linha do Equador, isto é, quanto menor a latitude, maior é o impulso do movimento de rotação da Terra para a decolagem de tais veículos. Para se ter uma ideia, a velocidade de rotação de superfície da região da principal base de lançamento dos EUA, o cabo Canaveral, Flórida, é de 408 metros por segundo. Em Alcântara, é de 465 m/s. Essa característica possibilita que se lancem cargas mais pesadas com grande economia de combustível. Assim, além de mais eficiente, a base brasileira implica barateamento de custos.

    A vantagem buscada por Washington não para por aí. Quando se examina o documento do acordo de Alcântara, fica evidente que a maior limitação imposta pelos EUA é o cerceamento da transferência de tecnologia e recursos. Isso interfere seriamente nas decisões soberanas para o Brasil se desenvolver na área espacial.

    Compensação monetária

    Em 18 de março de 2019, na visita de Jair Bolsonaro a Washington, os governos do Brasil e dos Estados Unidos assinaram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) que regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo norte-americano e de empresas daquele país. O Brasil receberá uma compensação monetária por isso. Para entrar em vigor, precisa ser aprovado pelo Congresso.

    Há mais propaganda e pressa em aprovar definitivamente a parceria com os EUA do que eficiência ou vantagens comprovadas para o nosso país. Brasília fornece dados de comprovação duvidosa e evita a discussão das implicações de um alinhamento geopolítico e tecnológico com os EUA no setor espacial.

    O governo Bolsonaro defende o acordo com argumentação de cunho exclusivamente econômico. Em documento publicado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, subscrito pelo titular Marcos Pontes, o Brasil deixou de arrecadar US$ 3,9 bilhões nos últimos vinte anos, em razão da não aprovação de um acordo semelhante com os próprios EUA, em 2000. Pontes não indica a origem dos cálculos e nem atenta para o fato de que o total alcança US$ 195 milhões anuais, montante quase irrisório diante do valor estratégico da base.


    O litoral do Maranhão é, talvez, o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Quanto mais próximo da linha do Equador, isto é, quanto menor a latitude, maior é o impulso do movimento de rotação da Terra para a decolagem de tais veículos. Essa característica possibilita que se lancem cargas mais pesadas com grande economia de combustível


    Com a aprovação do AST, ainda segundo o ministro, o Brasil terá a possibilidade de capturar 1% do volume global de negócios relativos à exploração do espaço, propagado por ele em US$ 1 trilhão ao ano em 2040. Há uma estimativa realizada pelo banco Morgan Stanley que aponta esse valor (https://www.morganstanley.com/ideas/investing-in-space.). Todavia, na papelada do MCT, nenhuma fonte é citada. Tais ausências são, no mínimo, curiosas num documento que pretende informar o Congresso Nacional sobre um acordo internacional importante.

    Sem transferência tecnológica

    Logo no Artigo I do AST, há a declaração de que o objetivo é “evitar o acesso ou a transferência não autorizada de tecnologias não relacionadas ao lançamento”. É possível observar que o acordo serve para garantir que os EUA, como sócio maior, reserve para si o direito de determinar quem e como utilizará a base.

    Ao longo do texto, torna-se claro que não haverá o repasse de capacidades científicas e de engenharia para que o Brasil retome a construção dos próprios veículos lançadores de satélites (VLSs). Pior: o acordo impede a transferência de recursos oriundos do aluguel da base para a pesquisa diretamente relacionada à construção de um VLS nacional. Isso é estipulado no Artigo I, que busca “evitar o acesso ou a transferência não autorizada de tecnologias dos Estados Unidos da América”.

    O acordo também impede que o Brasil invista os ganhos financeiros oriundos do aluguel da base em “programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação, ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados”.

    O AST proíbe que o Brasil negocie futuras parcerias que envolvam o lançamento de foguetes em Alcântara com países que não fazem parte do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR). Esse regime – imposto pelos EUA – veda aos signatários a construção de determinados tipos de foguetes que – pelas dimensões – possam ser convertidos em mísseis balísticos. O documento impõe ao Brasil limitações na busca de parceiros paralelos aos Estados Unidos. A recíproca não acontece. Aliados dos EUA podem se beneficiar da base, num claro favorecimento ao sócio mais forte na empreitada.

    O acordo também define que não haverá lançamentos de foguetes com carga explosiva em Alcântara, mas há uma inconsistência em relação à proibição do uso militar da base. Isso se dá pelos obstáculos colocados para a inspeção brasileira dos materiais que chegarem de fora. No inciso 1, alínea b, o Artigo define que “as autoridades brasileiras competentes deverão receber do governo dos Estados Unidos da América ou de um licenciado norte-americano a declaração por escrito sobre o conteúdo dos referidos contêineres lacrados. Essas atividades não deverão autorizar exame técnico, documentação (por meio de registro visual ou por outros meios) ou duplicação de qualquer tipo de conteúdo”.

    Há mais. É prevista a criação de dois tipos de áreas especiais, as “controladas” e as “restritas”. As primeiras possuem o acesso supervisionado pelos governos brasileiro e norte-americano. Nas “áreas restritas” só será permitido o acesso de pessoal autorizado pelos estrangeiros. Importante ressaltar que não são especificadas que áreas serão essas. Quem fará isso são os estadunidenses. Além das restrições de acesso a determinados setores internos, Washington impõe limites à recuperação de possíveis destroços de equipamentos em caso de acidente fora da base.

    Disputa de duas décadas

    O acordo de março não é o primeiro feito em torno do uso de Alcântara. Em abril de 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso assinou um documento também com os EUA, então sob a administração de Bill Clinton (1993-2001). O contrato era praticamente idêntico ao atual. No ano seguinte, o Congresso brasileiro o rejeitou. Em parecer, o então relator, deputado Waldir Pires (PT-BA), escreveu que “Trata-se, como já demonstramos, de diploma internacional que consubstancia (…) acima de tudo, o desprezo à soberania da nação brasileira”.

    Em 2002, foi firmado outro memorando, dessa vez com a Ucrânia, e que viria a criar a Alcântara Cyclone Space. A empresa binacional tinha o objetivo de comercializar e lançar satélites utilizando-se de tecnologia ucraniana. Estavam presentes restrições semelhantes às colocadas pelos estadunidenses. Todavia, a nova cooperação não vedava ao governo brasileiro a busca de outras parcerias, nem colocava empecilhos quanto ao uso do dinheiro obtido com o aluguel do centro de lançamentos.


    O acordo também impede que o Brasil invista os ganhos financeiros oriundos do aluguel da base em “programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação, ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados”


    Mas as negociações não prosperaram. Além de problemas políticos enfrentados entre Ucrânia e Rússia, pesou na interrupção o acidente em Alcântara com o VLS brasileiro, em 2003, que matou 21 cientistas, engenheiros e outros técnicos. Ali também houve pressão do governo de George W. Bush (2001-2009) para que os ucranianos não transferissem tecnologia para o Brasil. O projeto seria cancelado em 2015 durante o governo de Dilma Rousseff e, entre 2018 e 2019, a empresa binacional foi definitivamente sepultada nos governos Temer e Bolsonaro.

    Competência técnica

    O Brasil tem formado quadros técnicos no setor aeroespacial de reconhecida competência. Com estímulo governamental poderiam desenvolver uma gama de capacidades para mobilizar setores de pesquisa em Universidades e empresas e criar sinergias com outros ramos da economia. Vetando o aporte de recursos para o VLS nacional, os EUA impedem o desenvolvimento de qualquer política pública de estímulos a pesquisas espaciais brasileiras.

    Existe a possibilidade de que a utilização da base traga, de fato, um aumento nos recursos financeiros para o Brasil. Mas serão divisas esterilizadas, bloqueadas para demandas do setor aeroespacial, ferindo a própria legislação brasileira.

    O acordo, na forma atual, atende aos interesses dos EUA e coloca nosso país numa posição subalterna. Fica muito difícil acreditar que seremos um grande player global se o governo aceitar as limitações impostas de fora.

    *Flávio Rocha de Oliveira é professor de Relações Internacionais da UFABC. Bruno Venâncio A. Costa, Gabriel Santos Carneiro, João Victor Dalla Pola, Lucas Macchia de Oliveira, Pedro Versolato e Tarcízio Rodrigo de Santana Melo são estudantes de Relações Internacionais da UFABC