Categoria: Revista

  • Lula Livre será conquistado nas ruas

    Lula Livre será conquistado nas ruas

    Lula Livre
    será conquistado
    nas ruas

    Lula não está preso porque o PT foi financiado, eleitoralmente, pelas empreiteiras. Lula está preso por um crime que não cometeu, em função de uma estratégia política que teve como resultado a eleição de Bolsonaro. Enquanto não acontecer uma inversão profunda da relação social de forças, ou seja, uma nova situação política, Lula continuará preso. A defesa da campanha Lula Livre não diminui o PSOL, ao contrário, o fortalece.

    Por Valério Arcary 

    Há mais de um ano Lula está preso em Curitiba. A liberdade dele será conquistada nas ruas, não nos tribunais. Não há perspectiva de que uma decisão judicial, em prazo previsível, venha sequer beneficiá-lo com prisão domiciliar.

    Claro que, circunstancialmente, porque há desarticulação e confusão dentro do governo, e divergência entre o governo e o Congresso, e entre ambos e o Judiciário, não podemos descartar que, em algum momento, haja autorização de prisão domiciliar, pois o mais decisivo é que Lula permaneça sem direitos políticos. Ele nas ruas apelando à mobilização popular contra o governo Bolsonaro seria intolerável.


    Enquanto não explodir mobilização de massas na escala de milhões de trabalhadores e jovens nas ruas, Lula vai continuar preso. O centro da tática para conquistar Lula Livre é impulsionar, incansavelmente, essas lutas. As ruas libertarão Lula. A Justiça só concederá a liberdade quando estiver encurralada pela pressão popular.


    Enquanto não acontecer uma inversão profunda da relação social de forças, ou seja, uma nova situação política, Lula continuará preso. Enquanto a resistência à destruição do direito à aposentadoria contra a reforma da Previdência, de defesa das verbas para a educação pública contra o corte para as Universidades e Institutos Federais; de proteção da população pobre e negra contra a violência policial; de garantia dos indígenas à demarcação das terras contra a invasão dos latifundiários; de regulação do uso de agrotóxicos contra o agronegócio; de limitação da atividade das mineradoras para impedir novas catástrofes como em Mariana e Brumadinho; e tantas outras, não ganharem volume, intensidade e radicalidade, Lula vai continuar preso.

    Enquanto não explodir mobilização de massas na escala de milhões de trabalhadores e jovens nas ruas, Lula vai continuar preso. O centro da tática para conquistar Lula Livre é impulsionar, incansavelmente, essas lutas. As ruas libertarão Lula. A Justiça só concederá a liberdade quando estiver encurralada pela pressão popular.

    Sem ilusões

    O cenário da luta jurídica da defesa legal de Lula não é favorável. Qualquer ilusão de que o destino da luta pela liberdade de Lula será resolvido no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou no Supremo Tribunal Federal (STF) é autoengano. Não será. Embora não seja impossível que alguns ministros, individualmente, venham a se posicionar de forma crítica diante de alguma das muitas arbitrariedades do processo conduzido por Sérgio Moro, uma decisão colegiada favorável a Lula é improvável, na atual conjuntura.


    O cenário da luta jurídica da defesa legal de Lula não é favorável. Qualquer ilusão de que o destino da luta pela liberdade de Lula será resolvido no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou no Supremo Tribunal Federal (STF) é autoengano. Não será. Embora não seja impossível que alguns ministros, individualmente, venham a se posicionar de forma crítica diante de alguma das muitas arbitrariedades do processo conduzido por Sérgio Moro, uma decisão colegiada favorável a Lula é improvável, na atual conjuntura.


    A classe dominante brasileira, ainda que parcialmente dividida, apoia, em sua maioria, a operação Lava Jato. O maior símbolo político da Lava Jato é a prisão de Lula. O projeto do governo Bolsonaro, e o arco de alianças políticas que lhe oferece sustentação, tem como estratégia uma agressiva ofensiva contra os direitos econômico-sociais da classe trabalhadora e do povo. Todas as organizações da classe trabalhadora, todos os movimentos sociais, sejam sindicais ou populares, de negros ou mulheres, da juventude ou LGBTs, indígenas ou ambientalistas estão ameaçadas.

    O PSOL foi oposição de esquerda aos governos do PT. Discordou, energicamente, durante mais de doze anos, com o programa da coalizão articulada por Lula e Dilma Rousseff para preservar a governabilidade, cedendo às exigências da classe dominante e dos partidos que a representam no Congresso Nacional. O PSOL nasceu de uma ruptura com o PT porque não concordava com essa orientação estratégica. Esse combate foi conduzido, honestamente, nas ruas e no Congresso.

    Concessões perigosas

    O PSOL denunciou, incontáveis vezes, as concessões feitas em perigosas negociações entre os governos de coalizão liderados pelo PT, e as maiores corporações capitalistas, inclusive o financiamento eleitoral. O PSOL criticou a impotência do PT diante de seu próprio governo. Nem o PT, nem o governo em que tinha a presidência ousaram apelar, seriamente, à mobilização social dos trabalhadores, nem mesmo quando o golpe do impeachment se precipitou no início de 2016.

    Mas essa localização frontal não impediu o PSOL de integrar o Comitê Nacional da campanha Lula Livre. Essa posição decorre da conclusão de que os julgamentos em Curitiba e no TRF-4, em Porto Alegre, que condenaram Lula, foram insustentáveis, porque violaram o princípio democrático de presunção de inocência. Isso por três razões sumárias: (a) porque Lula não comprou o apartamento no Guarujá; (b) porque a única prova da acusação de corrupção foi uma delação premiada que beneficiou o delator sendo tudo somente ilações; e (c) porque o ônus da prova deve ser sempre da acusação, não do acusado.

    O PSOL já tinha se posicionado contra o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e o considerou um golpe jurídico parlamentar, portanto, uma violação da Constituição.

    A operação política reacionária – que começou com a investigação da Lava Jato, em 2014, passou pelas mobilizações de 2015/16 que abriram o caminho para a derrubada do governo do PT, levou ao poder durante dois anos o arquicorrupto Michel Temer, e culminou com a prisão de Lula – obedeceu a uma estratégia planejada de luta pelo poder.

    União ou divisão?

    Por isso, o PSOL considera Lula um preso político. Por quê? (a) porque a operação Lava Jato esteve comprometida em judicializar a luta política para fundamentar a tese de que o maior problema do Brasil seria a corrupção, sendo o PT, presumidamente, o mais corrupto dos partidos; (b) porque a intencionalidade do processo foi desde o início impedir a candidatura de Lula, que estava, ainda, em condição de amplo favoritismo nas pesquisas, e colocar sobre a cabeça de toda a esquerda uma ameaça; e (c) porque o objetivo da desmoralização de Lula é desqualificar junto ao povo toda a esquerda.

    Ainda assim, alguns na esquerda se perguntam: a campanha Lula Livre divide a luta contra Bolsonaro? Não há uma resposta simples. A defesa da liberdade para Lula divide o Brasil e, evidentemente, é polêmica no seio do povo. Ainda são muito mais numerosos aqueles que, potencialmente, poderão se unir ou apoiar lutas contra Bolsonaro, do que aqueles dispostos a defender o Lula Livre. Mas esse não é um argumento razoável.

    Mesmo que a defesa de Lula Livre fosse ultraminoritária, o que não é, porque pelo menos metade da população se posiciona contra a prisão dele, sendo uma causa justa estaríamos comprometidos com ela. Claro que na classe média a defesa de Lula Livre permanece, por enquanto, minoritária. Contudo, ceder às pressões da classe média não pode ser a bússola da esquerda. Uma esquerda que não tenha coragem de lutar em condições de minoria não poderá nunca vencer.

    Centro da tática

    Dessa conclusão não decorre que a campanha Lula Livre deva ser o eixo central da agitação da esquerda. Não pode ser. O centro da tática é a luta de resistência contra o governo Bolsonaro.

    Mais grave, todavia, é que uma parcela do povo de esquerda concluiu, equivocadamente, que não é correto defender a liberdade de Lula, mesmo como exigência subordinada à luta central contra Bolsonaro.

    Equivocadamente, por quê?

    Argumenta-se que, se o PT esteve envolvido em corrupção, então Lula não pode ser inocente, pelo lugar que ocupava na direção. É verdade que a direção do PT esteve envolvida em crimes de caixa dois eleitoral. Aliás, admitiram ter sido financiados, ilegalmente. É verdade que alguns líderes do PT foram, pessoalmente, corrompidos. Abocanharam propinas, enriqueceram e confessaram em troca dos benefícios das delações premiadas.


    A operação política reacionária – que começou com a investigação da Lava Jato, em 2014, passou pelas mobilizações de 2015/16 que abriram o caminho para a derrubada do governo do PT, levou ao poder durante dois anos o arquicorrupto Michel Temer, e culminou com a prisão de Lula – obedeceu a uma estratégia planejada de luta pelo poder.


    Ainda que tudo seja verdade, nada disso legitima a prisão de Lula. Ele não está preso porque o PT foi financiado, eleitoralmente, pelas empreiteiras, mas por um crime que não cometeu, em função de uma estratégia política que teve como resultado a eleição de Bolsonaro.

    A defesa da campanha Lula Livre não diminui o PSOL, ao contrário, o fortalece. Na verdade, é exemplar. Ficará registrada na história, para aqueles que vierem depois de nós, pois o PSOL teve a coragem de ser oposição de esquerda, firme e valente, ao governo do PT, quando Lula era a liderança mais popular e poderosa do país. Mas teve a grandeza de defendê-lo, mesmo mantendo diferenças programáticas irreconciliáveis, quando a classe dominante e seus agentes políticos o escorraçaram e o humilharam na prisão.

    *Valério Arcary é professor titular do IFSP e doutor em História pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98. É militante do PSOL, membro da Resistência e autor de “O martelo da história”, entre outros livros

  • A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?

    A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?

    A esquerda deve
    investir na campanha
    do Impeachment?

    Por Chico Alencar e José Luis Fevereiro

    Com a agudização da crise econômica e institucional, a grande imprensa e setores do mundo político começam a ventilar abertamente a possibilidade de impeachment do Presidente da República.

    O impeachment – ou impedimento – entrou na cena pública brasileira pela primeira vez na Constituição de 1946, no Capítulo III, artigo 79. A lei complementar que concretiza a norma constitucional é a de número 1.079, sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 10 de abril de 1950.

    Segue em vigor. Trata-se de uma transposição do voto de desconfiança dado a um primeiro-ministro, num regime parlamentarista, para um chefe do Executivo, no regime presidencialista. Assim, o processo de impedimento sempre se situa na fronteira entre medida legal e iniciativa política. A perda de maioria congressual qualificada – no caso brasileiro – sempre coloca o mandatário dos três níveis de governo sob o risco de impedimento.

    Diante da tensa conjuntura que o país enfrenta, o Partido Socialismo e Liberdade convidou o ex-deputado federal e professor de História, Chico Alencar, e o economista e membro do Diretório Nacional do PSOL, José Luiz Fevereiro, para comentarem acerca do polêmico tema.


    Impeachment: o povo é
    quem mais ordena?

    Mais do que debater o impedimento como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o desafio urgente é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão

    Por Chico Alencar*

    Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre do mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações. A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.


    “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”

    Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brasil’, 1630

    A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.

    O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.

    E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos dos cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram as derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista – a de Dilma, em 2016.

    Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militar.

    Maioria rara

    É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar a base de sustentação no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão sub-representadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.

    Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram os mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.

    Cerco popular

    Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.

    “Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo estes é que acabam governando.

    Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.


    “Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário


    A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).

    A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria por meio de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para esse fim.

    Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão?

    Espírito de submissão

    Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ (no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.

    No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.

    Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços.

    *Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)


    Impeachment, o descarte
    dos peões?

    A vulgarização do impeachment e sua naturalização como método de apear governos eleitos serão sempre usadas impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata

    Por José Luis Fevereiro*

    A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação política de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que esse mecanismo tem servido à burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.

    A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise.

    Concertação oligárquica

    Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente, não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola, que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações dessa ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira às tentativas de derrubar Vargas, de impedir a posse de Juscelino, de bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente, o sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.

    Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez, mas, pela natureza da base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, o destino dela estava traçado.


    A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise


    No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises políticas da burguesia.

    Impeachment de Bolsonaro

    Quando escrevo este texto, em 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do ministério minam o apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.

    As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário político pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital político de peso. O sucesso dessas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que por um lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.

    Tempos acelerados

    Os tempos da política estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas confirma-se um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, bem como a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar os seguidores mais fiéis, com dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes. Nesse sentido, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.

    Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi essa mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os casos atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise política decorrente do recurso a outsiders empoderados.

    Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor, nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e, se necessário, descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.

    Novas eleições

    O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise política por parte da elite. Sempre que esta falou em pacificação da política foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou as forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.

    A vulgarização do impeachment, a naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usada impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.

    No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na política e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise política devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.

    Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo.

    *José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL

  • O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    Por Pedro Paulo Zahluth Bastos*

    Alguém se lembra da promessa dos economistas do mercado financeiro e da maioria do jornalismo econômico de que a PEC do Teto animaria a confiança empresarial e estimularia a retomada do crescimento econômico? A aversão ao Estado, aos direitos sociais, aos impostos e a salários decentes por parte de muitos empresários e da maioria dos gestores financeiros inviabiliza a admissão de que ainda dependemos do gasto público. Não há solução para a recuperação econômica sem a revogação do teto de gastos, sem distribuição de renda e direitos e sem animar a demanda e o emprego

    Não é novidade que o governo de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes quer executar um programa radical de redução de direitos sociais e trabalhistas (e quem sabe até políticos). A outra face é a busca de “economicizar” tudo. Não se quer apenas a privatização do patrimônio público como a Eletrobras, o Banco do Brasil e, talvez, a Petrobras, mas algo bem mais radical: impor critérios de rentabilidade privada e desfinanciar de recursos públicos as diferentes instituições que garantem “reprodução social” do capitalismo:

    1) A família e o trabalho na reprodução de crianças e idosos, assim como do próprio trabalhador(a), com a reforma da Previdência e a nova rodada da Reforma Trabalhista.

    2) A escola e, em particular, a universidade, com a seca de recursos, a cobrança de mensalidades e a regulamentação leniente do ensino a distância.

    3) O próprio acesso ao aparato judicial (como um custo privado, contribuindo para esvaziar formal e substantivamente a noção de justiça social), bem como o meio-ambiente, a saúde, o esporte e a produção cultural.

    A Emenda Constitucional (EC) do Teto do Gasto Público, como eu e vários economistas afirmam desde sua proposição em 2016, é o instrumento jurídico para forçar este programa. Ao colocar as diferentes demandas por recursos públicos em concorrência, ela pretende forçar novos cortes e “desconstitucionalizar” direitos. Sem a reforma da previdência, juram os economistas, não há recursos para a universidade. Logo, aconselham que se mercantilize um serviço para não mercantilizar (a curto prazo) o outro.

    A fada da confiança

    Alguém se lembra da promessa dos economistas do mercado financeiro e da imensa maioria do jornalismo econômico de que a EC do Teto animaria a confiança empresarial a ponto de estimular o investimento e a retomada do crescimento econômico?


    A confiança empresarial e do mercado financeiro subiu no impeachment de Dilma Rousseff e na aprovação da Reforma Trabalhista, depois da EC do Teto. A cada ocasião, os defensores nos diziam que o choque de confiança ia tirar a economia do fundo do poço pelos próprios cabelos. É curioso que Paulo Guedes tenha admitido que a economia está no fundo do poço. Onde foi parar o choque de confiança?


    Não foi a primeira vez: a mesma promessa surgiu quando Joaquim Levy foi nomeado no final de 2014. Como sabemos, ao invés do crescimento esperado pelo mercado em 0,8%, tivemos uma recessão de 3,8%.

    A confiança empresarial e do mercado financeiro subiu de novo no impeachment de Dilma Rousseff e na aprovação da Reforma Trabalhista, depois da EC do Teto. A cada ocasião, os defensores nos diziam que o choque de confiança ia tirar a economia do fundo do poço pelos próprios cabelos.

    É curioso que Paulo Guedes tenha admitido que a economia está no fundo do poço. Onde foi parar o choque de confiança?

    Previsões irreais

    Poucos lembram também que, no final de 2017, a previsão dos economistas do mercado financeiro era que a economia cresceria 3% em 2018. A desculpa para mais um erro de previsão foi a greve dos caminhoneiros, como se ela, em si, não fosse uma reação ao próprio programa do mercado financeiro para valorizar as ações da Petrobras com repasse automático das variações especulativas do preço internacional do petróleo.


    Poucos lembram, também, que no final de 2017 a previsão dos economistas do mercado financeiro era que a economia cresceria 3% em 2018. A desculpa para mais um erro de previsão foi a greve dos caminhoneiros, como se ela, em si, não fosse uma reação ao próprio programa do mercado financeiro para valorizar as ações da Petrobras com repasse automático das variações especulativas do preço internacional do petróleo


    No final de 2018, a previsão do mercado para o crescimento do PIB em 2019 era novamente de 3%. A bolsa bombou depois que Jair Bolsonaro chegou perto de levar a eleição no primeiro turno. Enquanto isso, a confiança do empresário industrial subiu 20% entre outubro e novembro de 2018.

    O que prometia Bolsonaro? Respeitar a EC do Teto do Gasto e até mesmo cortar o gasto público ainda mais do que a lei exige para financiar a diminuição de tributos para empresas e cidadãos de alta renda. Reduzir ainda mais direitos trabalhistas e salários com a chamada Carteira Verde-Amarela. Mudar a Previdência para, de novo, cortar o gasto público com aposentados e (quem diria?) aumentar impostos (ou melhor, a “contribuição previdenciária” dos cidadãos).

    Ao invés do milagre do crescimento, o fundo do poço parece chegar de novo. Se excluirmos a hipótese que os economistas do mercado financeiro aparentemente se equivocam de propósito, por que eles errariam sistematicamente as previsões de crescimento?

    Base teórica ortodoxa

    A explicação mais benigna para tais falhas é a pobreza da formação teórica. A maioria deles é educada em faculdades (brasileiras e estadunidenses) de base teórica neoclássica.



    A escola neoclássica se desenvolveu a partir da década de 1870 em reação ao realce conferido pela economia política clássica (Adam Smith e David Ricardo) e por Karl Marx nas classes sociais e no trabalho como fonte de valor, assim como na ênfase marxista no desequilíbrio e nas crises do capitalismo.

    A ortodoxia neoclássica parte do axioma (não-empírico) de indivíduos racionais e autointeressados que agem de acordo com preferências e dotações de recursos que precedem a interação social. Por meio da livre concorrência e mobilidade entre setores, o movimento flexível dos preços asseguraria que as interações livres entre indivíduos (e países) levariam a um equilíbrio estável e maximizador, satisfatório para todos.

    A grande anomalia empírica da escola neoclássica resulta da hipótese teórica que o capitalismo não tem problemas de demanda que evitem o pleno emprego dos recursos existentes. Diante da anomalia, a explicação neoclássica é que, se crises ocorrerem, resultariam de alguma interferência exógena no funcionamento da economia de mercado e do sistema de preços flexíveis. Ao longo da história, a culpa passou por burocratas aliados a empresários que capturam Estados mercantilistas para se proteger da livre concorrência, por sindicatos ou pelo Estado populista que cede aos clamores irresponsáveis de seus eleitores. Não por problemas de demanda.

    Keynes recupera Marx

    Depois da Grande Depressão da década de 1930, o ataque teórico de John Maynard Keynes recuperou aspectos da crítica de Marx aos clássicos, direcionados agora aos neoclássicos. Na caracterização de desacelerações e crises, Marx enfatizou a falta de demanda e de expectativas de lucros para animar investimentos, mesmo que tenha sido provocada pela geração de capacidade ociosa e desemprego tecnológico em razão do superinvestimento prévio. Nos esboços preparatórios do clássico Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda (1936), Keynes citou a distinção entre os circuitos do consumidor privado e do capitalista feita por Marx para enfatizar a possibilidade de crises periódicas. Essa passagem acabou omitida da versão final.


    Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas só investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa


    Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa. Se prevalecer a convenção que a capacidade ociosa não será ocupada, os empresários podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a constituição de reservas monetárias ou ativos financeiros.

    O que é racional para o indivíduo, contudo, é ruim para a classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de receitas, o que pode tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas contrações dos gastos e das receitas.

    O sistema não se regula sozinho

    O recado de Keynes é que o sistema não tem a capacidade de se autorregular. Sem que o governo diminua a poupança e incorra em déficits quando os empresários resolvem poupar coletivamente, a busca de poupança individual será frustrada pela queda da renda agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira resultariam em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis. Finalmente, políticas de renda e sociais deveriam inibir a desigualdade, tanto por motivos políticos (o medo da opção socialista) quanto econômicos: a maior propensão a consumir dos trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os investimentos.

    Ao contrário de Marx, Keynes propunha uma “socialização do investimento” dentro do capitalismo, o que se mostrou muito mais factível nas circunstâncias políticas e geopolíticas excepcionais durante a Guerra Fria do que depois.

    Desde a década de 1980, o ataque capitalista às instituições do Estado de Bem-Estar Social e do Estado Desenvolvimentista assumiu ares de um movimento social que integrou parte dos trabalhadores, particularmente das camadas médias brancas: o neoliberalismo. Em geral, como no Brasil contemporâneo, tais camadas queriam o neoliberalismo contra os mais pobres e mais negros, não contra si mesmas.

    Da frustração das promessas se buscam hoje novos líderes à direita (Trump, LePen, Alternativa para a Alemanha – AfD) e à esquerda (Sanders, Corbyn, Podemos etc), mas é cedo para dizer que o neoliberalismo global está em crise terminal.


    Não há como uma economia combalida por meia década de austeridade possa reagir positivamente a um novo choque de contração da demanda pública. Não surpreende que a confiança não tenha resistido e, em maio de 2019, já se aproximava do índice de outubro de 2018


    No plano acadêmico, as tradições neoliberais (austríacas como na Europa continental ou neoclássicas como no mundo anglo-saxão e na América Latina) serviram para legitimar o ataque contra as instituições de regulação do capitalismo construídas no pós-guerra. A revolução das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao extremo a confiança na mecânica dos mercados livres.

    Para os autores novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o pagamento futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto, cortar o gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado desde logo!

    “Austeridade expansionista”

    A crença teórica é que se o governo cortar gastos (e impuser maior “contribuição previdenciária”, como no Brasil), a contração da demanda, das vendas e do emprego provocada pelos cortes vai ser mais do que compensada pelo investimento privado animado pelo aumento da confiança empresarial. Ou seja, a austeridade seria expansionista porque o efeito positivo da confiança no investimento empresarial superaria o efeito negativo da queda da demanda pública.

    Gráfico 1 Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br)/ Confiança empresarial

    Por isso, dizem os austeros, Keynes estaria errado: ao invés de reagir a desaceleração do gasto privado com ação contracíclica que recupere a demanda, o governo deveria cortar os gastos pró-ciclicamente. Como os cortes tentam conter o déficit fiscal gerado pela desaceleração da arrecadação tributária, o choque de confiança faria os empresários criarem (com o próprio investimento) a demanda perdida que os fizera gastar menos de início.

    A doutrina da “austeridade expansionista” ativada pela “fada da confiança” já foi demolida na academia e na prática algumas vezes, inclusive no Brasil desde 2015. Aqui, contudo, a aversão ao Estado e a direitos sociais, a impostos e a salários decentes por parte de muitos empresários e da maioria dos gestores financeiros, assim como as ilusões ideológicas e até mesmo (no caso dos economistas) a pobreza da formação teórica, inviabiliza a admissão de que ainda dependemos do gasto público, da redistribuição de renda e do consumo dos trabalhadores para sair da crise.

    Índice de confiança

    Se quiserem mais um teste, o fracasso das expectativas empresariais e do mercado financeiro em mover a demanda agregada desde a eleição de Bolsonaro serve? O melhor indicador da evolução mensal da demanda agregada é o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). Ele mostra (no eixo esquerdo do gráfico a seguir) que, a partir de junho de 2018, a economia retomou a trajetória de recuperação lenta verificada até a greve dos caminhoneiros. Nada justificava o aumento da confiança empresarial (eixo direito do gráfico) verificado entre outubro e novembro de 2018, exceto os preconceitos compartilhados com Jair Bolsonaro em relação ao gasto público, aos direitos sociais e aos salários “altos”.

    Pior, a demanda agregada caiu fortemente no primeiro trimestre de 2019 enquanto a confiança empresarial e o Ibovespa batiam recordes. Em janeiro de 2019, a confiança empresarial chegou ao maior valor desde junho de 2010, ano em que a economia cresceu 7,5%. Ou seja, o choque de confiança nada fez para elevar a demanda agregada e entregar o milagre do crescimento. Pelo contrário.

    Problemas de demanda

    Tudo indica que, depois do surto exportador e da breve recomposição de estoques de bens de capital e bens de consumo verificados em 2017, nossa recuperação lenta esbarrou em problemas de demanda: 1) na grande capacidade ociosa que inibe os investimentos privados que a fada da confiança quer estimular; 2) no desemprego e na estagnação salarial que limitam o crescimento do consumo; 3) na desaceleração da economia mundial e regional que se manifestou na queda das exportações, e que pode se agravar com a guerra comercial EUA-China, as incertezas do Brexit e as fragilidades financeiras que podem ser reveladas com a própria desaceleração; e 4) na forte contração do gasto público.

    De fato, para reanimar a confiança (e contrair a demanda), o ministro Guedes cortou em março o gasto federal (cerca de 20% do PIB) em 3,2% em relação ao mesmo mês do ano anterior. No acumulado do primeiro trimestre, o corte é de 1,2%, o que subtrai o PIB em cerca de 0,24%.


    Nas ruas e no Congresso a pressão do desemprego, a baixa arrecadação tributária e a resistência a novos cortes de verbas orçamentárias podem forçar a revogação da regra de ouro da Lei de Responsabilidade Fiscal ou até mesmo da EC do Teto. Caso isso não aconteça, o governo corre o risco de sofrer um processo de impeachment


    O corte nos governos regionais foi ainda mais radical segundo o Banco Central, gerando um superávit de quase 1% do PIB (0,98%) no acumulado trimestral. Nesse caso, saímos do déficit de R$ 10,5 bilhões no último trimestre de 2018 (cerca de 0,6% do PIB trimestral) para um superávit de R$ 17 bilhões (cerca de 1% do PIB trimestral). Uma verdadeira chacina no gasto público.

    Choque de contração

    Não há como uma economia combalida por meia década de austeridade possa reagir positivamente a um novo choque de contração da demanda pública dessa magnitude. Esse choque real é muito mais efetivo do que o choque imaginário produzido pela elevação inefável da confiança empresarial graças à retórica antiestado e antitrabalho de Bolsonaro e Guedes. Não surpreende que a confiança não tenha resistido e, em maio de 2019, já se aproximava do índice de outubro de 2018.

    O que esse salto para a estagnação ou mesmo para a recessão implica?

    Primeiro, podemos esperar que a crise política em gestação no primeiro semestre do governo Bolsonaro seja agravada por uma economia estagnada (no mínimo). Nas ruas e no Congresso Nacional, a pressão do desemprego, a baixa arrecadação tributária gerada pela economia no fundo do poço e a resistência a novos cortes de verbas orçamentárias podem forçar o relaxamento da regra de ouro no art. 167.III da Constituição Federal (a proibição de endividamento público para gastos correntes) ou até mesmo da EC do Teto. Caso isso não aconteça, o governo corre o risco de descumprir umas das leis e ficar vulnerável (legalmente) a um processo de impeachment.

    Segundo, o governo vai usar a crise orçamentária produzida pela constitucionalização da austeridade para justificar ainda mais austeridade e corte de direitos, sobretudo na Previdência Social. Contudo, novos cortes orçamentários vão reiterar o círculo vicioso da austeridade, mantendo a economia e a arrecadação tributária na lona e aumentando o cordão dos desiludidos com o governo Bolsonaro nas ruas e no Congresso.

    O improvável é que, sem que a economia mundial nos puxe pelos cabelos, a economia brasileira saia do fundo do poço levantada pela confiança empresarial ou pela euforia da Bolsa de Valores. Não há solução sem revogar a emenda constitucional da austeridade, distribuir renda e direitos, animar a demanda efetiva e o emprego.

    *Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor Associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da UNICAMP. O artigo é uma versão bem maior e modificada de texto publicado no site da Carta Capital em 23/05/2019

  • Dois barbudos  e um velho tarado

    Dois barbudos e um velho tarado

    Dois barbudos
    e um velho tarado

    Linchamento público, Google Trends e os
    novos leitores de Karl Marx, Paulo Freire
    e Olavo de Carvalho

    Por Fernando Cássio*

    O exercício especulativo que gerou este texto começou na noite do dia 4 de maio de 2019, em um evento na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco: o aniversário de 201 anos de Karl Marx – comemorado, na verdade, no dia seguinte. A editora Boitempo, organizadora da atividade, contou um número acima de duas mil pessoas na festa, ainda maior do que na comemoração dos 200 anos. Na efeméride do bicentenário, disseram-me, o bolo que sobrou serviu de lanche na editora durante alguns dias. O bolo dos 201 anos era um pouco menor. Mas sobrou gente e faltou bolo.

    Havia pessoas sentadas no chão entre as cadeiras da área externa, dentro da Fundação, na rua, por toda parte. No começo da noite, já não era possível comprar na banca da editora títulos tão específicos quanto Ideologia e propaganda na educação, trabalho de Nurit Peled-Elhanan sobre as representações da Palestina nos livros didáticos israelenses.

    Enorme público

    Alguns disseram que o enorme público do ducentésimo primeiro aniversário de Marx tinha a ver com a presença de um grupo de youtubers de esquerda: Sabrina Fernandes (Tese Onze), Larissa Coutinho (Revolushow), Humberto Matos (Saia da Matrix) e Jones Manoel. É provável que sim, mas também é verdade que a própria existência desses canais no YouTube – feitos por gente jovem e leitora de Marx – sinaliza a vitalidade das ideias do mouro. Recorro ao Google Trends para buscar indícios da vitalidade de Marx para além da observação empírica singular de uma festa de aniversário lotada. Restringindo o período de consulta a 1º de janeiro de 2016, quando a Google refinou a metodologia de contagem de buscas, vemos um padrão oscilante na Figura 1.

    Figura 1 Buscas gerais no Google por “Karl Marx”. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Os “vales” do gráfico coincidem com as férias escolares e recessos acadêmicos. Fonte: Google Trends.

    Figura 2 Buscas gerais no Google por “Paulo Freire”. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Os “vales” do gráfico coincidem com as férias escolares e recessos acadêmicos, e os “picos” coincidem com períodos de alta exposição do educador na imprensa. Fonte: Google Trends.

    Figura 3 Buscas gerais no Google por “Karl Marx” (vermelho), “Paulo Freire” (azul), “Max Weber” (verde), “Platão” (amarelo) e “Olavo de Carvalho” (roxo). Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. A partir de meados de 2018, a frequência de buscas por Freire alcança a de Marx. Fonte: Google Trends.

    Figura 4 Buscas gerais no Google pelos livros Pedagogia do oprimido (azul) e Pedagogia da autonomia (vermelho), de Paulo Freire; O imbecil coletivo (amarelo) e O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (verde), de Olavo de Carvalho; e O Capital (roxo), de Karl Marx. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Fonte: Google Trends.

    O pico mais alto dessa série de medições se dá na semana seguinte ao bicentenário de Marx (6-12 mai. 2018), o que não significa muita coisa, já que muitos picos chegam perto de 100. No mais, observa-se um padrão de oscilação semelhante ao das buscas por termos como “Max Weber” ou “Platão”. Nos meses de dezembro-janeiro e julho – períodos de férias nas universidades e escolas – a frequência de buscas no Google diminui.

    A estatística da busca por imagens revela, além de um pico na semana do bicentenário do mouro (escala 100), outro na semana de 7-13 de outubro de 2018 (escala 93), imediatamente após o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. É provável que a fábula do “marxismo cultural”, insuflada pela malta reacionária que circunda o presidente eleito, tenha gerado nas pessoas a curiosidade de conhecer o rosto daquele barbudo alemão do século XIX com ideias tão más. De toda forma, o padrão de oscilação das buscas gerais – em fase com recessos acadêmicos e férias escolares – indica que Marx é tão lido quanto sempre foi nas salas de aula do Brasil. Ou, se não é propriamente lido, é tão buscado quanto sempre foi nos períodos letivos das escolas e universidades. Tudo leva a crer que é esse padrão de oscilação que caracteriza a estabilidade de um autor como leitura em cursos de formação e popularidade a longo prazo.

    Ideias apedrejadas

    Outro pensador cujas ideias têm sido apedrejadas em praça pública pela direita brasileira é Paulo Freire. Assim como a festa de arromba na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco me deu a impressão de que Marx está mais vivo do que nunca – ou, no mínimo, tão vivo quanto nunca – diversas situações têm me mostrado que algo semelhante deve se passar com Freire.

    Foto: Fernando Diegues

    Tanto na Universidade Federal do ABC, onde trabalho, quanto em outras instituições de ensino superior, vejo colegas incorporando ideias freireanas em trabalhos de pesquisa. Colegas que até então passavam longe dos textos e livros do educador. Disciplinas optativas sobre a obra de Freire pipocam em cursos de graduação e pós-graduação Brasil afora, bem como projetos de extensão voltados à formação continuada de professores da educação básica focalizados nas obras de Freire. Alunos da graduação têm demandado leituras do educador em disciplinas nas quais ele nunca fora lido. Também na educação básica, tenho ouvido de colegas professores que estudantes do Ensino Médio perguntam cada vez mais quem foi Paulo Freire e por que razão as ideias dele são tão perigosas.


    É provável que a fábula do “marxismo cultural”, insuflada pela malta reacionária que circunda o presidente eleito, tenha gerado nas pessoas a curiosidade de conhecer o rosto daquele barbudo alemão do século XIX com ideias tão más. De toda forma, o padrão de oscilação das buscas gerais no Google indica que Marx é tão lido quanto sempre foi nas salas de aula do Brasil


    As tendências de busca por “Paulo Freire” no Google também exibem um padrão de oscilação, embora menos definido que o padrão de buscas por “Karl Marx”. Os maiores picos de interesse aparecem em 1-7 mai. 2016, quando repercutiram no Brasil levantamentos que apontavam Freire como um dos pensadores mais citados no mundo; entre outubro e dezembro de 2017, quando uma militante de extrema direita conseguiu reunir 20 mil assinaturas em torno de uma proposição legislativa para revogar a outorga do título de “Patrono da Educação Brasileira” a Freire (a proposição foi rejeitada no final de 2017); nas semanas de 14-20 out. 2018 e 4-10 nov. 2018, durante o período eleitoral; e a partir de abril de 2019, com tendência ascendente no mês de maio corrente (Figura 2).


    Outro pensador cujas ideias têm sido apedrejadas em praça pública pela direita brasileira é Paulo Freire. Tanto na Universidade Federal do ABC, onde trabalho, quanto em outras instituições de ensino superior, vejo colegas incorporando ideias freireanas em trabalhos de pesquisa. Também na educação básica, tenho ouvido de colegas professores que estudantes do Ensino Médio perguntam cada vez mais quem foi Paulo Freire e por que razão as ideias dele são tão perigosas


    Nas buscas por imagens de Paulo Freire, um pico se destaca na semana de 14-20 out. 2018, indiciando o súbito aumento da vontade de ver o rosto desse outro barbudo, um brasileiro do século XX com ideias perniciosas sobre a educação e as escolas. É assim, aliás, que alguns apoiadores do movimento reacionário “Escola Sem Partido”, que prega a censura e a intimidação de professores nas escolas, definem Freire: um homem de “ideias perniciosas”.

    Pouco lido

    Embora a ultradireita diga o contrário, e embora a relevância internacional da obra de Freire seja enorme, ele é relativamente pouco lido nas universidades brasileiras, certamente menos do que Marx. De fato, apesar do padrão de buscas do Google em fase com os recessos acadêmicos, Paulo Freire sempre foi menos buscado do que Marx. Isso talvez se explique pelo maior alcance das ideias marxianas nas humanidades – história, sociologia, economia, política – do que as freireanas, provavelmente mais restritas aos estudos da educação e áreas correlatas. Estou, obviamente, chutando uma interpretação. A partir de meados de 2018, entretanto, isso parece ter começado a mudar, e o padrão de buscas de Freire e Marx começa a coincidir não apenas na forma oscilante, mas também na frequência das pesquisas (a altura dos picos, Figura 3).

    Comparemos agora os padrões de busca para Freire, Marx e um terceiro “pensador”: Olavo de Carvalho. Considerando-se apenas a popularidade instantânea dos autores (a altura dos picos no tempo recente), Carvalho é hoje mais buscado no Google Brasil do que Freire e Marx. Mas o padrão das buscas, ao contrário de Marx, Weber, Platão – e agora Freire – não oscila em fase com recessos universitários e férias escolares. Para avaliar que tipo de popularidade é essa, podemos comparar, em vez das buscas diretas pelos nomes dos autores, as buscas por seus livros mais famosos (Figura 4).

    Aqui se vê, finalmente, que as buscas no Google por Paulo Freire têm não apenas seguido o padrão oscilante que caracteriza autores cuja obra é lida regularmente (como Marx), mas que a popularidade do educador – a partir das buscas dos livros dele – está definitivamente aumentando.


    Embora a ultradireita diga o contrário, e embora a relevância internacional da obra de Freire seja enorme, ele é relativamente pouco lido nas universidades brasileiras, certamente menos do que Marx


    Os livros de Carvalho, por seu turno, suscitaram um interesse maior no segundo semestre de 2018, mas as buscas já parecem retornar à linha base, em comparação com o padrão de oscilação estável de buscas dos livros de Freire e Marx, a popularidade a longo prazo. Além do interesse recente nos escritos de Carvalho, observou-se um pico de interesse na semana de 5-11 fev. de 2017, quando se anunciou na imprensa a reedição do livro O imbecil coletivo pela editora Record. Embora o aumento da popularidade de Paulo Freire tenha sido alavancado pela mesma exposição midiática que alavancou a de Olavo de Carvalho, os efeitos disso a longo prazo parecem ser diferentes para um e outro.

    Olavo a jato

    Entre as consultas relacionadas ao termo “Olavo de Carvalho”, informa o Google Trends, estão termos como “olavo [de carvalho] terra plana”, “ministro da educação”, “brasil paralelo”, “olavo de carvalho donald trump”. Já entre as consultas relacionadas ao termo “Paulo Freire”, encontramos “paulo freire bolsonaro”, “escola sem partido”, “ideologia [de] paulo freire”. Entre os assuntos relacionados a “Paulo Freire”, estão “Escola sem Partido”, “Comunismo”, “Ideologia” e… “Olavo de Carvalho”. É sabido que tanto aqueles que atacam Paulo Freire quanto os que atacam Olavo de Carvalho estimulam o engajamento virtual e o aumento do interesse por conhecer (e eventualmente ler) ambos os autores. Porém, o efeito dessa curiosidade se manifesta de formas diferentes – pelo menos segundo o que se vê nas tendências do Google: Freire (e seus livros) exibem um padrão de buscas semelhante ao de Marx, enquanto Carvalho suscita uma explosão de buscas sazonais, mas, ao que tudo indica, evanescente.

    O que é fascismo? Essa foi a pergunta mais feita nos campos de busca do Google em 2018 no Brasil (categoria “o que é?”). Entre as buscas gerais, o assunto “copa do mundo” dominou os campos de pesquisa. Não há muito para ler sobre a metodologia de coleta e de cálculo do Google Trends, mas uma profusão de textos de vários países tenta cotejar as tendências de busca do Google com este ou aquele acontecimento, com esta ou aquela conjuntura política. Ainda que uma análise baseada nessa ferramenta seja necessariamente limitada, tenho a impressão de que ela corrobora o aumento do interesse das pessoas pela obra de Paulo Freire que tenho observado em minha vida offline.

    Adoração e achincalhe

    Os adoradores de Olavo de Carvalho são os mesmos que cotidianamente achincalham as ideias de Marx e Freire, e que apesar disso continuam atraindo leitores e formando pessoas no Brasil. Dois barbudos que já foram intelectualmente desafiados incontáveis vezes ao longo do tempo, mas que continuam tendo algo a dizer sobre o mundo.

    A primeira conclusão a que chego é que, do ponto de vista da popularidade e do engajamento, Freire está sendo mais ajudado pela direita do que Olavo de Carvalho pela esquerda, ao passo que Marx parece intocado. Enquanto Freire é cada vez mais lido (e não apenas nas instituições educacionais), Carvalho é cada vez mais tratado como um velho tarado, produtor de escatologias – inclusive por setores da direita e do reacionarismo militar. Daí advém a segunda conclusão: algumas ideias são definitivamente mais arrojadas do que outras, e não há nada que os linchadores de Paulo Freire e Karl Marx possam fazer a respeito. Além, é claro, de parar de falar mal de livros e autores que não leram. Ou de os lerem de uma vez por todas.

    *Fernando Cássio é professor de Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC. Em 2019, organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, publicado pela Boitempo.
  • “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL do Rio de Janeiro, vive sob proteção policial desde que presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias, na Assembleia Legislativa do Estado, há 11 anos. O relatório final pediu o indiciamento de 260 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e personagens civis. Freixo liderou ainda duas CPIs, a do tráfico de armas e a dos autos de resistência. Enfrentando uma briga que poucos encaram, Freixo tornou-se alvo visível para grupos perigosos que controlam pedaços do poder público, territórios e inúmeros serviços em bairros populares. A trajetória parlamentar desse professor de História e ativista de Direitos Humanos de 52 anos recebe um crescente reconhecimento popular. Eleito para a Assembleia Legislativa em 2006, com 13.547 votos, ele multiplicou por 13 vezes o desempenho na segunda disputa (2010), alcançando 177.253 sufrágios. Em 2014, a marca quase dobrou, chegando a 350.408 votos. Dois anos depois, Freixo chegou ao segundo turno das eleições municipais do Rio, com 1.163.662 eleitores escolhendo o nome dele (40,64% do total). Perdeu para Marcelo Crivella, numa disputa tremendamente desigual em volume de recursos. Marcelo Freixo exerce o primeiro mandato de deputado federal.

    Entrevista concedida para
    Francisvaldo Mendes e Gilberto Maringoni

    Uma pergunta ronda as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Pedro Gomes, mais de um ano depois das execuções: quem mandou matar?  A identificação dos assassinos, em março deste ano, resultou de uma investigação repleta de idas e vindas. O fuzilamento aconteceu numa cidade marcada pela atuação de milícias e grupos criminosos, até mesmo dentro do Estado, oferecendo proteção e serviços que deveriam ser públicos. Encontrar os mandantes e saber das motivações significa desvendar uma teia de claras conotações políticas. Para falar sobre o sentido dessa execução, do andamento das investigações e o que se acumulou até aqui, Socialismo e Liberdade entrevista Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL-RJ e um dos maiores especialistas em segurança pública de todo o país.


    “Quem matou Marielle é um assassino profissional e orgânico no crime. É uma pessoa conhecida por quem estuda a segurança pública, é investigado por outras mortes e era traficante de armas. Não há o menor sentido em imaginar que uma pessoa dessas resolva matar por ódio alguém que ele sequer conhecia. Ele não é um assassino vingativo e violento solto na rua; é orgânico no crime. Por isso foi contratado”


    Quem mandou matar Marielle?
    Acho que essa é a principal pergunta a ser feita agora. Depois de muito sacrifício, a polícia conseguiu descobrir quem apertou o gatilho. Não foi qualquer pessoa. O assassinato da Marielle foi um dos crimes mais bem planejados da história do Rio de Janeiro, e não estou falando de um lugar pouco violento. Temos taxas de homicídio altíssimas e com crime organizado implantado. O crime organizado no Estado se envolve com política e com domínio de território. O Rio apresenta uma circulação de armamentos sem paralelo com outros lugares, nem mesmo com São Paulo. Você imaginar que o crime da Marielle aconteceu aqui não é qualquer coisa. É sinal de que havia uma motivação política.

    Não foi um crime de ódio?
    É preciso descartar qualquer ideia que foi crime de ódio ou sentimento específico de quem atirou. Quem matou Marielle – Ronnie Lessa – é um assassino profissional e orgânico no crime. É uma pessoa conhecida por quem estuda a segurança pública, é investigado por outras mortes e era traficante de armas. A ficha inclui o fato de ser um PM reformado por um atentado que sofreu, com salário de R$ 7 mil. Morava no mesmo condomínio do Presidente da República, tinha o carro mais luxuoso da vizinhança, casa e lancha em Angra dos Reis. Está com a vida financeira bem resolvida. Ele mata há muitos anos, enriqueceu assim, mas nunca foi investigado por conta do poder político que seu grupo de matadores tem. Trata-se do chamado Escritório do Crime. O nome “Escritório” dá bem um perfil empresarial da atividade. Não há o menor sentido em imaginar que uma pessoa dessas resolva matar por ódio alguém que ele sequer conhecia. Ele não é um assassino vingativo e violento solto na rua; é orgânico no crime. Por isso foi contratado. Seja lá quem cuidou do negócio, contratou bem.

    Isso implica a existência de um mandante?
    Houve mandante e isso é o mais importante. Quem mandou matar Marielle não mandou matar por ódio à Marielle, especificamente. Pagou um profissional caro e sofisticado. Tanto é que se demorou muito a chegar ao nome dele.


    “O assassinato indica, claramente, a existência de um grupo no Rio de Janeiro capaz de matar na disputa política. Se não soubermos quem mandou matar, não saberemos a razão da morte. E esse grupo vai continuar com suas ações. A Polícia Federal me diz que os criminosos se arrependeram muito do crime contra a Marielle, pois não acreditavam que a repercussão fosse tão ampla. Caminhamos para um lugar perigoso em termos de barbárie”


    Por que demorou para descobrir o assassino, sabendo que havia uma intervenção militar no Rio?
    Há vários problemas nessa investigação. Ela foi feita pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e pela Delegacia de Homicídios. Era o setor indicado a não ser que se federalizasse a busca, o que não é uma decisão simples e corriqueira. Eu defendo que crimes de milícias sejam sempre investigados pela Polícia Federal. Trata-se de uma mudança legislativa necessária. As polícias locais não têm condições de investigar a própria polícia nesse nível de organização criminosa. A milícia tem, no comando, policiais. É um problema você imaginar que polícia vá investigar polícia.

    Mas o fato de o Exército, que é uma força federal, estar no Rio não poderia ter agilizado as investigações?
    A intervenção aconteceu, inclusive, sobre as polícias. Durante boa parte do tempo, a investigação foi comandada pelo Exército e a delegacia de homicídios estava submetida à intervenção. O Secretário de Segurança passou a ser o General Richard Nunes. Esse crime é um divisor de águas e revela muito do Rio de Janeiro. É um crime que indica, claramente, que há um grupo político no Rio de Janeiro capaz de matar na disputa política. É um crime contra a democracia! Se nós não soubermos quem mandou matar, não saberemos a razão da morte. E esse grupo vai continuar matando. A Polícia Federal me diz que os criminosos se arrependeram muito de terem matado a Marielle, pois não acreditavam que a repercussão fosse tão ampla. Caminhamos para um lugar muito perigoso em termos de barbárie, em termos de força política de extrema direita, que é capaz de tudo.


    Deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) apresenta a sua candidatura à Presidência da Câmara dos Deputados no púlpito do Plenário Ulysses Guimarães no início da noite desta sexta-feira (1).

    O crime organizado está dentro do Estado?
    Crime organizado está sempre dentro do Estado, como falo há muitos anos. Isso não quer dizer que seja o único crime ali existente. O tráfico de drogas, com a complexidade e com o trajeto de riqueza, é um crime organizado. O dinheiro do tráfico de drogas está no mercado imobiliário, no mercado financeiro e na bolsa de valores. Não há um mercado paralelo para o dinheiro do crime. Só há um mercado. Mas o varejo da droga, o domínio territorial e a venda têm muito pouco de crime organizado. O domínio de um território – por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro – é um poder absolutamente local em um mundo cada vez mais globalizado. A quantidade de armas não define a organização de nenhum crime. Para mim, quanto menos organizado é um crime, de mais armas ele precisa, pois você vai enfrentar apenas uma questão territorial, ou militar, e não uma questão política e financeira. Quanto menos armas você utiliza no domínio de atividades criminosas, mais organizado você é, por estar dentro de uma lógica de mercado de poder. Essa é a lógica do Gramsci quando fala em hegemonia. A relação entre convencimento e coação se dá de acordo com a possibilidade de se exercer a hegemonia. Claro. O crime verdadeiramente organizado tem braços muito profundos dentro do Estado. Não só na máquina pública, mas nos negócios. Por isso que, quando presidi a CPI das milícias, em 2008, nós criamos um conceito. As milícias tinham pouco tempo de existência, mas elegeram vereadores em 2004 e deputados em 2006, quando fui eleito. A milícia, claramente, leva-me a um conceito de “Estado leiloado”, que é o contrário de “Estado paralelo”. É muito comum, no vocabulário da criminologia, você ouvir a ideia de Estado paralelo. Acho que o Estado paralelo não existe. Só existe um Estado. O que você tem é domínio territorial armado, e isso não é Estado paralelo. Sempre lembro do seguinte: na eleição de 2006, havia uma facção no Complexo do Alemão com um grande líder preso há anos. O irmão dele foi candidato a deputado, teve seis mil votos e não foi eleito. No mesmo ano, Sérgio Cabral ganhou a eleição no primeiro turno, com 76% dos votos naquela região. Quem controlava o local era a facção ou o PMDB? Faço sempre essa pergunta para quem quer discutir crime organizado.


    “Para mim, quanto menos organizado é um crime, de mais armas ele precisa, pois você vai enfrentar apenas uma questão territorial, ou militar, e não uma questão política e financeira. Quanto menos armas você utiliza no domínio de atividades criminosas, mais organizado você é, por estar dentro de uma lógica de mercado de poder.”


    E como você classifica a milícia?
    Milícia não é Estado paralelo, é Estado leiloado. Porque esses caras dominam o território militarmente. Se tiver que matar, eles matam, e matam muito, têm grandes taxas de homicídio. Mas eles não têm a ostensividade das armas, até porque eles são, em suas cabeças, agentes públicos na área de segurança, e dominam diversas atividades econômicas desse lugar. Por que a milícia é um grande salto organizacional do crime? Porque é a primeira vez em que um grupo transforma domínio territorial em domínio eleitoral. Todo miliciano é dono de um centro social. Então, eles têm a mão do terror e a mão do favor. Aí nasce um espírito de máfia no Rio de Janeiro. E eles elegem gente e não somente deles. É uma máquina eleitoral muito forte e com muito dinheiro.

    Vamos esmiuçar mais a questão do domínio territorial. Em abril de 2019, desabou um edifício em Muzema e revelou-se que a construção era de responsabilidade das milícias. Isso representa um controle não apenas do território, mas também de todo o aparato legal de regularização do solo e da urbanização?
    Dominam tudo. Ali, por exemplo, eles têm controle de factoring, emprestam dinheiro a juros e funcionam como um banco. Além disso, formam imobiliárias, constroem prédios sem fiscalização e cobram pela segurança. Como se não bastasse, controlam todas as TVs a cabo, com sinais clandestinos, o fornecimento de gás e o transporte alternativo. Você tem ideia de quanto isso vale em dinheiro? E eles transformam todos os negócios em domínio eleitoral.

    Rio de Janeiro – Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

    Ao mesmo tempo, isso não torna as milícias populares? Não são vistos como gente eficiente para a resolução de pequenos e grandes problemas?
    Quando a gente começou a chegar às milícias em 2008, tive dificuldade em abrir a investigação. Primeiro, porque as milícias estavam presentes na Assembleia Legislativa. Havia deputados milicianos poderosos. Tive dificuldade porque, na sociedade, existia a ideia de que a milícia era um mal menor. Ela, pelo menos, expulsava o tráfico e mantinha ordem. Isso se combina com o discurso da assistência. E, claro que tem apelo popular. Eles são donos de centros sociais e fazem atendimento às pessoas. Ao mesmo tempo, tem a extorsão e a violência. Então, por exemplo, você só compra gás com eles e o gás é mais caro. Você tem que pagar a taxa de segurança, pois se não pagar, perde a sua casa. Assim, há a extorsão e a violência, mas tem a ideia de que, se fosse o tráfico, seria pior. Não existe a perspectiva de o Estado funcionar direito, por isso digo que temos um Estado leiloado. Eles se assumem como Estado, até porque são figuras da segurança pública, são agentes públicos, são funcionários públicos. É um grupo criminoso absolutamente próximo à lógica das máfias. E como a gente consegue começar a quebrar isso? Você vai mostrando o enriquecimento deles, a altíssima taxa de homicídios nas áreas, o terror, o medo e, de um tempo para cá, nas áreas de milícia, começa a ter tráfico, por causa de dinheiro. A grande eficiência da CPI das milícias foi ter mudado a opinião pública sobre as milícias.


    “As milícias continuam crescendo territorialmente e financeiramente no Rio de Janeiro porque não se mexeu em suas estruturas econômicas. Milícia é um bom negócio.”


    Essa virada aconteceu?
    Aconteceu. Hoje, ninguém defende milícia no Rio de Janeiro, tirando o Bolsonaro.

    E como eles ganharam a eleição em alguns territórios? O Witzel, por exemplo, elegeu-se auxiliado pela milícia?
    O Witzel vai a tudo quanto é lugar. Não foi só por causa de milícia, não. Nas áreas de milícias, claramente, ele tem o apoio desses grupos. Mas ele ganhou na zona sul inteira, ganhou em tudo quanto é lugar. Ele acompanha o fenômeno Bolsonaro. Mas a milícia tem perdido força eleitoral. Por exemplo, em 2006 e 2008, eles elegeram parlamentares. Em 2010, já não elegeram. Não há deputados eleitos por eles, apesar de fazerem campanha e dominarem militarmente os locais.


    “Milícias são grupos armados que dominam territórios e, ao dominar territórios, dominam atividades econômicas desses territórios. A chefia das milícias, em boa parte, é formada por agentes públicos ou ex-agentes públicos da área de segurança. São policiais militares, policiais civis, bombeiros, membros do Exército, ou PMs expulsos da corporação.”


    Eles perderam representação?
    Perderam. Para você ter uma ideia, quando eu presidi a CPI das milícias, a gente indiciou vários deputados e vereadores. Todos foram presos. Foram 260 pessoas presas diretamente, na CPI. Deputado saiu algemado, vereador saiu algemado. Os donos de milícia pararam de se candidatar e passaram a apoiar outros postulantes. Ficou perigoso para eles. Foi uma pancada grande. O relatório da CPI traz 58 propostas concretas para reduzir o poder das milícias. Sem tirar o domínio territorial, econômico e político deles, só prender não resolve. Como em qualquer máfia no mundo.

    A ascensão de Bolsonaro é um fenômeno extremamente complexo, mas representa também uma ascensão das milícias?
    Mais ou menos. As milícias continuam crescendo territorialmente e financeiramente no Rio de Janeiro porque não se mexeu na estrutura econômica deles. Milícia é um bom negócio. A expressão política da milícia, depois da CPI, cai, e agora começa a ter o risco de voltar a crescer, por causa da eleição do Bolsonaro. É o contrário.

    Como se define a milícia?
    São grupos armados que dominam territórios e, ao fazerem isso, dominam atividades econômicas desses territórios. A chefia das milícias, em boa parte, é formada por agentes públicos ou ex-agentes públicos da área de segurança. São policiais militares, policiais civis, bombeiros, membros do Exército, ou PMs expulsos da corporação. São grupos que, ao dominar as atividades econômicas, dominam as atividades sociais desses lugares, e que transformam o domínio territorial em domínio eleitoral. Isso é milícia. É muito comum o pessoal dizer que segurança privada é milícia. Não é. Nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro, o cara bota uma cancela, bota um colete e faz segurança do bairro. Isso não é milícia.

    Pela sua definição, pode-se dizer que milícia é um grupo muito mais político do que militar?
    Ele é militar e político. O domínio territorial é militar e armado, mas não é ostensivo. Por exemplo, se a polícia for fazer agora uma blitz em uma área de milícia, não vai encontrar ninguém trocando tiro com a polícia. Eles não disputam o domínio daquele território com a polícia, porque, inclusive, são policiais! Eles não vão enfrentar o Estado, eles são do Estado.


    “O Exército não ocupa área com milícia. Não se investiga ou se enfrenta militarmente a milícia. É preciso fazer um serviço de inteligência, identificar quem são as pessoas e fazer as prisões. E como você retoma uma área de milícia? Tirando da milícia o papel econômico, com o Estado assumindo suas funções. Para isso, o poder público teria de colocar posto da prefeitura, saúde preventiva, investimento, transporte público e regularizar o fornecimento de gás.”


    Por que o Estado não retoma esses lugares?
    Porque não se toma esses lugares agindo militarmente. E o Estado só sabe operar a segurança pública militarmente. Não há investimento em inteligência.

    A UPP não resolveu?
    Não. Primeiro, porque não teve UPP em área de milícia, o que já era sintomático. E por quê? Porque não interessa. Eles botaram uma UPP onde os jornalistas de O Dia foram torturados, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Muito simbólico. As UPPs são, todas, em áreas de tráfico. E todas na Zona Sul do Rio de Janeiro.

    Qual foi o papel do Exército nessas áreas?
    O Exército não ocupa área com milícia. Qual foi a grande operação do Exército contra área de milícia? Não tem. Porque não se investiga ou se enfrenta militarmente a milícia. É preciso fazer um serviço de inteligência, identificar quem são as pessoas e fazer a prisão. E como você retoma uma área de milícia? Tirando da milícia o papel econômico, com o Estado assumindo. Agora, na Muzema, cai o prédio, a sociedade está enfurecida com a milícia porque as pessoas morreram. Era hora de o Estado entrar ali e falar: “Acabou a milícia aqui”. Para isso, o poder público teria de colocar posto da prefeitura, saúde preventiva, investimento, transporte público e regularizar o fornecimento de gás.


    “A segurança não entrou no horizonte da esquerda. E aí, a direita pega a segurança como um tema dela e constrói uma narrativa sobre o medo, sobre as cidades, uma narrativa policial, quase que restringindo a segurança a um debate sobre polícia. Permitimos que essa lacuna ficasse aberta.”


    Mas, operacionalmente, para entrar com posto de saúde e escola, tem que entrar com uma cobertura militar.
    Claro. Tem que ter a Polícia Militar lá, como em qualquer lugar. Mas tem que tirar o braço econômico da milícia. Vai tirar o braço econômico da milícia? Por que não fazem isso agora?

    Qual o significado de Flávio Bolsonaro ter contratado Queiroz em seu gabinete de vereador?
    É grave. As pessoas me perguntam: “O que você acha do cara que matou a Marielle ser vizinho do Bolsonaro? Isso não é grave, não é um indício?”. Acho que a gente precisa tomar cuidado. Eu não posso garantir quem são todos os vizinhos do prédio em que moro, não sou responsável por isso. Daqui a pouco, descobrem que um grande traficante de armas reside no mesmo prédio que moro, e aí eu, que disse que o Bolsonaro tinha que explicar isso, vou ter que me explicar também. Se você me perguntar o nome e a cara dos meus vizinhos, eu não sei. Não encontro as pessoas, não sei quem são. Então, você não pode ser leviano. Mas Bolsonaro tem que responder pelo que sempre fez e disse. Ele defendeu a legalização das milícias no mesmo momento em que eu estava liderando a CPI. Quando falo “Bolsonaro”, estou falando do clã. O Bolsonaro defendeu os grupos de extermínio abertamente. Sempre defendeu os autos de resistência, ou seja, a ação letal da polícia. Sempre fez isso, sempre se aproximou ideologicamente da defesa da violência institucional. O Queiroz, um ex-braço direito do Jair, vai trabalhar com o Flávio. Trata-se de um policial militar que trabalhou em batalhões muito violentos. Ele serviu junto com o Ronnie Lessa, o matador da Marielle, com o Adriano Nóbrega, chefe do Escritório do Crime, e com o Cláudio Luiz Oliveira, o policial que está preso por ter sido mandante da morte da juíza Patrícia Acioli [assassinada em 2011, em Niterói, por sua atuação dura contra traficantes e policiais corruptos]. Há um setor de gente muito perigosa que sempre teve relações com a família, por meio do Queiroz. O Flávio, quando vereador, homenageou Adriano com uma medalha – e o Adriano hoje é um foragido – dentro da prisão, respondendo por homicídio. Até foi, posteriormente, absolvido, mas, na época, estava preso. Essas relações todas são muito graves.

    Qual a relação de grupos de extermínio com a milícia?
    São duas coisas completamente diferentes. Grupos de extermínio são históricos no Rio de Janeiro. Existiram vários, principalmente na área da baixada fluminense. São policiais, na maioria das vezes, contratados para fazer um serviço de extermínio. Então, por exemplo, comerciantes locais contratam para matar algum assaltante. A milícia é de outra natureza. A milícia não é contratada por comerciantes. Ela é dona do lugar e o comerciante paga à milícia para continuar sendo comerciante. A milícia muda a natureza da relação. Ela é muito mais sofisticada.

    A esquerda nunca conseguiu tratar corretamente a questão da segurança. Como você vê isso?
    É um erro histórico que a esquerda cometeu. Acho que, quando pensamos a Constituição de 1988, tivemos uma enorme preocupação com educação, com saúde e com terra. A segurança não entrou no horizonte da esquerda. E aí, a direita pegou a segurança como um tema dela e constrói uma narrativa sobre o medo, sobre as cidades, uma narrativa policial, quase que restringindo a segurança a um debate sobre polícia. Permitimos que essa lacuna ficasse aberta. É claro que a gente tinha que debater saúde, educação, mas a gente não atentou para a ideia de que o mundo se tornava cada vez mais urbano, e que um dos grandes desafios da vida urbana é o da segurança. E que seria necessário propor algo diferente da direita, que haveria também disputa, como há disputa na concepção de saúde, de educação, de segurança. O maior mecanismo de eleição de deputados conservadores hoje é a igreja e a segurança.

    Igreja?
    Nós também tivemos uma incapacidade religiosa muito grande, pois ficamos na teologia da libertação, e não entendemos o crescimento do mundo pentecostal e a nova formação religiosa das periferias. Demoramos muito a entender que ali há um elemento de pertencimento social muito profundo. Perdemos a sensibilidade religiosa e de segurança. É muito grave. Quando, hoje, você vê naturalizada a ideia de que Direitos Humanos é direito de bandido, temos uma sofisticação do debate. Não se permite a existência de outro elemento capaz de pensar a segurança que não a lógica militar, da polícia. Nessa matriz, só pode falar de segurança quem pega em armas. Os ataques mais violentos que sofro são nessa área. E estudo segurança há 30 anos.

    Apesar das diferenças evidentes entre religião e segurança, é possível dizer que ambas, de certa maneira, cobrem a insuficiência do Estado como ente público? Uma pela sociabilidade e acolhimento e outra pela ausência de ação do Estado?
    Claro que sim. São discursos que se aproximam, porque o mundo religioso também lhe oferta segurança. Seja a segurança espiritual, de pertencimento, afetiva, ou seja a segurança de querer um mundo mais estável, onde eu possa me sentir melhor.

    BAIXE AQUI a revista Socialismo e Liberdade n.25

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    Baixe a revista Socialismo e Liberdade n.25

    EDITORIAL – 25ª Edição . Revista Socialismo e Liberdade . FLCMF

    A revista Socialismo e Liberdade, nº 25, destaca as grandes mobilizações que ocorreram no último período em defesa da Educação e contra a reforma da Previdência, com ruas cheias, pessoas reivindicando direitos, educação, avanço democrático e com muita energia e garra. Uma grande demonstração de que somos sujeitos de nossas vidas e que é possível superar as condições de tentativa de retrocesso nos dias atuais. Impulsionar as mobilizações é, portanto, o desafio que apoiamos e abraçamos, com a convicção que é uma contribuição significativa na defesa da democracia rumo à radicalização.

    O que apresentamos nesta edição são insumos para pensar e agir com condições necessárias para superar esse período difícil e repleto de desafios a todas as pessoas. O governo atual amplia as limitações, aposta na individualização, apresenta saídas que interessam aos grandes banqueiros e investidores. Nós apostamos em organização e temos convicção de que ações coletivas para ampliar as mobilizações são as bases para superar o momento pelo qual vivemos.

    Assim, apresentamos contribuições para agir coletivamente, para atuarmos na economia e nas condições de vida superando as desigualdades brutais que existem em nossa sociedade. Já demonstramos que retomar as mobilizações é possível e estaremos unificados e apostando no crescimento organizativo. Não aceitaremos o comportamento machista, autoritário e preconceituoso contra nossas companheiras, a exemplo do que ocorre com a deputada Renata Souza-RJ, que tem sofrido ataques brutais.

    Enfrentaremos e superaremos todas as ameaças e ações contra a liberdade e seguiremos assertivos a favor da vida com dignidade para todas e todos.
    O governo federal vem se mostrando um desastre. Não apresenta qualquer perspectiva frente ao que marcou as próprias promessas de campanha. Longe de quaisquer aspectos de crescimento econômico, está piorando a vida das pessoas, principalmente das que mais precisam, as que mais sofrem o peso da exploração. O que se vive é um Estado de instabilidade, crise, desacertos e um rumo preocupante, que acabará por afogar o país em problemas cada vez maiores.

    Devemos superar essa ordem de caos que, se mantiver o caminho atual, afundará cada vez mais o Brasil. Somos convictos que a radicalização democrática, com maior participação popular e envolvimento da sociedade em todos os aspectos, ampliando e melhorando as condições de trabalho e de direitos pode melhorar a vida de todas e todos, sendo esse o caminho necessário para o momento. E essa superação do caminho em curso virá com o crescimento e fortalecimento das mobilizações e não da expectativa falsa e vã da melhoria deste (des) governo.

    Dessa forma, ampliar as mobilizações, contribuir para fortalecer a organização popular, fazer valer a educação de qualidade e investir em formação são as apostas para superar este retrocesso que estamos vivenciando. E será assim que avançaremos, pois, nenhum governo entreguista, covarde, submisso e medíocre, que aposta no medo ou na individualização das pessoas, sairá vencedor nesse processo.

    Portanto, não temos dúvidas que apresentamos nesta edição da revista, insumos para ampliar a organização dos setores populares, contribuir para o avanço democrático e fortalecer as mobilizações. Somos convictos que com organização, mobilização, formação e informação de qualidade construiremos uma vida melhor, junto às pessoas e fortalecendo a nação. Assim, seguirá sendo o nosso compromisso e investimento políticos.

    Boa leitura!

    Francisvaldo Mendes de Souza
    Diretor-presidente da Fundação
    Lauro Campos e Marielle Franco

    BAIXE AQUI a revista Socialismo e Liberdade n.25

     

  • Um negro comunista

    Um negro comunista

    Um negro comunista:
    o primeiro candidato operário
    à presidência da República

    Há quase 90 anos, o primeiro candidato comunista à presidência da República foi o operário negro Minervino de Oliveira. Filho de família muito pobre do Rio de Janeiro, esse marmorista de profissão destacou-se nas lutas populares por sua valentia, combatividade e inteligência aguda. Num país que ainda hoje conserva os preconceitos da escravidão, é vital recuperar a trajetória desse combatente exemplar

    Por Matheus Gomes – Militante do movimento negro, servidor do IBGE e mestrando em História/UFRGS

    Foi na eleição de março de 1930. Apenas quatro décadas se passaram entre a abolição formal da escravidão e a primeira candidatura presidencial de um homem de origem negra. A luta de classes também fez desse acontecimento o ponto de partida dos comunistas brasileiros em disputas presidenciais.

    Minervino de Oliveira é o nome do homem que encarnou essa responsabilidade e sabemos pouco sobre a trajetória dele. Uma breve pesquisa nos mostra que a vida de Minervino se confunde com a história do movimento operário das primeiras décadas do século XX e apresenta questões vivas sobre a relação entre o marxismo e a questão racial.

    Do sindicalismo ao comunismo,
    da marmoraria ao parlamento

    Condenado à clandestinidade a partir do estado de sítio decretado pelo governo de Arthur Bernardes (1922-26), em 1922, o Partido Comunista do Brasil (PCB) viveu um período de isolamento político permeado por intensos debates ideológicos no limiar de sua existência. Tampouco o cenário internacional ajudava, já que o ímpeto revolucionário russo esbarrava no primeiro refluxo. Entretanto, as táticas de caráter defensivo elaboradas nos dois primeiros congressos da Internacional Comunista (IC), especialmente a frente única entre comunistas e social-democratas, abriram novas possibilidades para os brasileiros.

    A consequência inicial foi a aproximação com a Confederação Sindicalista-Cooperativista Brasileira, os “sindicalistas amarelos”, que permitiram a livre propagação de opiniões dos comunistas por meio das páginas do jornal O Paiz.

    A tática possibilitou um crescimento do partido e colocou sob influência entidades como a dos trabalhadores têxteis e marmoristas (Karepovs, 2006). Desta última, destacava-se a liderança de Minervino, que adere ao partido nesse período.

    Filho da lavadeira

    Nascido no Rio de Janeiro em 1891, filho da lavadeira Augusta Laura de Oliveira e de José de Oliveira, Minervino cresceu no subúrbio em meio à organização da dinâmica social no pós-abolição. Aos dez anos, foi obrigado a iniciar a jornada no mundo do trabalho como aprendiz de tecelão. Depois, passou rapidamente a empregos no comércio, fábricas de vidro e móveis. Foi lavrador, carvoeiro e empregado da Light, até aprender, aos 14 anos, o ofício de marmorista. Ali começa a atividade sindical.

    Condenado à clandestinidade a partir do Estado de sítio decretado pelo governo de Arthur Bernardes (1922-26), o Partido Comunista do Brasil (PCB) viveu um período de isolamento político permeado por intensos debates ideológicos no limiar de sua existência

    Ao completar 20 anos, Minervino ingressa no Centro dos Operários Marmoristas e ocupa o cargo de secretário por diversas vezes, além de cumprir papel de destaque na articulação com outras categorias e participar como delegado do 3° Congresso Operário Brasileiro, em 1920. Uma intensa atuação na imprensa operária marcou a sua formação intelectual: foi redator do jornal A voz do marmorista e colaborou com A voz do trabalhador, Spartacus, A voz do povo e A Nação (Domingues, 2017).

    Nas palavras de Octávio Brandão, dirigente político e teórico do PCB, Minervino “não tinha, assim, uma cultura marxista, mas era homem de uma bravura extraordinária. (…) Há uma fotografia que saiu na Pátria, no meio do tiroteio da polícia na praça do Teatro Municipal, e Minervino apenas se encostou à porta de ferro do teatro. (…) cercado de policiais depois do tiroteio. Não correu. Uma bravura.” (Rego, 1993). Como consequência de sua liderança, foi duramente perseguido e amargou diversas passagens pelas prisões do Distrito Federal. Suas convicções e coragem o levaram a ser escolhido como candidato do Bloco Operário e Camponês (BOC) nas eleições para intendente do Distrito Federal (vereador), em outubro de 1928.

    Vereadores do barulho

    Surgido no ano anterior em meio ao impacto da Lei Celerada – que pôs fim a um breve período de legalidade do PCB -, o BOC representava a possibilidade de intervenção pública dos comunistas e a continuidade da tática de frente única, dessa vez no terreno eleitoral.

    Minervino liderou a campanha a partir de comícios em portas de fábricas e locais de trabalho, além de atividades como os “festivais”, momento de confraternização com as famílias operárias em bailes animados por grupos de música e teatro.

    Octávio Brandão concorreu pelo 1° Distrito e conseguiu se eleger, mas Minervino ficou de fora da Intendência por uma vaga, na disputa do 2° Distrito. Contudo, o destino favoreceu os comunistas: a morte acidental de um eleito abriu espaço para o marmorista e assim iniciava a trajetória dos operários no parlamento brasileiro.

    Assumir os mandatos foi uma luta árdua, já que os representantes do presidente Washington Luiz queriam impedir as posses. O historiador Dainis Karepovs (206, p. 103) nos mostra que, uma vez no Legislativo, o exercício dos mandatos foi uma ruptura com a lógica predominante de controle individual dos cargos, já que ambos colocavam em pauta demandas coletivas elaboradas pelo PCB, pelos centros políticos proletários e por comitês de categorias que compunham o BOC.

    Isso não impediu que algumas ações fossem consideradas “estreitas” e “imediatistas” pela direção do partido. Porém, a combatividade das intervenções em plenário contra o imperialismo e a ação extraparlamentar eram as marcas dos mandatos, como mostra o compromisso de Minervino com o cargo de Secretário Geral da recém fundada Confederação Geral do Trabalho, em abril de 1929. Nesse momento, a repressão já limitava a ação operária e logo os intendentes foram cassados de maneira velada pela “Indicação n° 180”, que proibia os “discursos subversivos” e impedia o registro das intervenções dos intendentes do BOC.

    Comunista para presidente!

    O centro das eleições de 1930 era a disputa em torno da ruptura do acordo entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. A crise econômica de 1929 fragilizou os lucros da burguesia cafeeira paulista, vanguarda da industrialização, obrigando o giro eleitoral pela concentração de poder. Acirrava-se a contradição entre o desenvolvimento econômico – marcado pela ampliação da industrialização, a formatação do mercado interno e a ingerência do imperialismo estadunidense -, e o processo político de consolidação da República, que oscilava entre a crescente centralização estatal promovida pelo poder executivo e a exigência de autonomia dos estados (Pedrosa, Xavier, 1987).

    Aos dez anos, Minervino foi obrigado a iniciar a jornada no mundo do trabalho como aprendiz de tecelão. Depois, passou rapidamente a empregos no comércio, fábricas de vidro e móveis. Foi lavrador, carvoeiro e empregado da Light, até aprender, aos 14 anos, o ofício de marmorista. Ali começa a atividade sindical

    Minervino e o ferroviário Gastão Valentim foram escolhidos para a difícil tarefa de representar o BOC, num clima de intensa repressão aos comunistas movida por ambas frações da elite. Devido à perseguição policial, o alistamento eleitoral prévio foi pequeno. Ocorreram poucos comícios e festivais e quase não houve distribuição de panfletos e colagem de cartazes. Apenas duas edições de A classe operária foram impressas e o trabalho de fiscalização da votação foi pífio. A prisão de Minervino no comício de lançamento da candidatura é a expressão máxima da situação.

    Apesar das vitórias conquistadas nos anos anteriores, as debilidades da jovem direção do PCB prevaleceram sobre as qualidades. A campanha foi organizada em base a uma superestimação das forças revolucionárias, inspirada pela linha do “Terceiro Período”, da IC de Josef Stalin. Durante a reunião do III Pleno do Comitê Central, em outubro de 1929, a maioria dos dirigentes avaliou a situação nacional como “objetivamente revolucionária”. Já em fevereiro, o slogan oficial era “A luta pela eleição dos candidatos proletários é a luta pela revolução!”.

    Pauta ampla

    Diversos temas compunham a plataforma programática. Questões referentes às relações de trabalho, taxação de impostos, direitos dos militares, reforma agrária e nacionalização das terras, a extensão do direito ao voto para mulheres, analfabetos, com a redução da idade mínima para 18 anos, direitos das populações indígenas e da classe média. Entretanto, para pensar a trajetória de Minervino, é fundamental refletir sobre uma ausência significativa: a questão racial.

    “Há uma fotografia que saiu na Pátria, no meio do tiroteio da polícia na praça do Teatro Municipal, e Minervino apenas se encostou à porta de ferro do teatro. (…) cercado de policiais depois do tiroteio. Não correu. Uma bravura”

    Como demonstra o Pedro Chadarevian (2012, p. 260), os debates realizados na Primeira Conferência Comunista Latino-Americana, em junho de 1929, explicitam a posição do partido. Na opinião da delegação, a situação no Brasil não era “de natureza tal como para exigir que nosso Partido organize campanhas reivindicativas para os negros, com palavras de ordem especiais. O cruzamento [racial] se faz cada dia mais intensamente, produzindo tipos cada vez mais claros já que não vêm ao país há mais de meio século imigrantes negros. (…) o Partido deve combater [o preconceito de cor] no momento em que ele apareça, mas é desnecessária uma ação permanente e sistemática, dado que muito raramente ele se manifesta.” (Sección Sudamericana de la Internacional Comunista, 1929 apud Chadarevian, 2012, p. 261).

    A intervenção demonstra certa influência da nascente ideologia da democracia racial e até mesmo das teses do branqueamento no interior do partido, o que não exclui a existência de contrapressões. Uma expressão do reconhecimento do racismo fica explícita num relato de Brandão. Ao referir-se sobre a militância negra na formação do PCB, o dirigente afirma que quando presos os negros “apanhavam por serem comunistas e apanhavam por serem negros” (1993, p.116), mesmo assim, a constatação não foi suficiente para o influente dirigente defender a luta antirracista como elemento de mobilização da revolução brasileira.

    Ainda em 1929, a compreensão do PCB sobre a questão racial foi criticada pela direção da IC (Chadarevian, 2012). De fato, a visão estava atrasada ante a elaboração internacional. Desde 1920, a questão da revolução nos países de origem ou situação colonial foi fruto de intensas discussões. Já em 1922, durante o Quarto Congresso, é aprovada a Tese Sobre a Questão Negra. A palavra de ordem da “autodeterminação negra”, com foco na realidade dos EUA, mas utilizada pelos brasileiros na questão indígena em 1930, foi elaborada pelo Sexto Congresso da IC, em 1928. Já em meio ao debate de balanço das eleições, “a classe operária” publicou, em 17 de abril de 1930, uma análise do Secretariado Político da IC sobre o Brasil, na qual a necessidade de ampliação do trabalho “sistemático e sério” entre a população negra é defendida como um caminho para o aumento da influência do partido nas massas.

    Minervino de Oliveira,
    máximo respeito!

    Minervino foi conhecido como marmorista, sindicalista, jornalista, comunista, intendente e candidato à presidência do Brasil, mas por décadas teve a identidade negra omitida. Isso se explica pela negativa do PCB em elaborar demandas específicas para o combate ao racismo, não o reconhecendo como fenômeno social intrinsecamente ligado à formação do capitalismo brasileiro, principalmente entre 1922 e 1934.

    O protesto negro compunha a rede de inquietações que desaguou nas transformações ocorridas a partir de outubro de 1930 (Fernandes, 2008). É razoável sugerir que os comunistas perderam uma oportunidade de ampliar a influência sob o povo negro no pleito de 1930. Prova dessa efervescência política é a criação da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931.

    As características da ação política da FNB não conformavam um programa de ruptura com o capitalismo, o que define a fase da estratégia assimilacionista do movimento negro, na qual os “homens de cor” relacionavam a marginalização do negro ao despreparo moral e educacional oriundo do antigo regime e exigiam as condições para sua incorporação plena no capitalismo nascente (Domingues, 2007). Visando à disputa de influência com a FNB, a primeira formulação do PCB sobre negritude defende o inverso, a política de autodeterminação, palavra de ordem que jamais encontrou eco entre negras e negros, mas marca a “virada antirracista” do partido (Graham, 2014).

    Minervino liderou a campanha a partir de comícios em portas de fábricas e locais de trabalho, além de atividades como os “festivais”, momento de confraternização com as famílias operárias em bailes animados por grupos de música e teatro

    Não se sabe o destino final de Minervino. Nesse aspecto, sua vida soma-se a tantas outras histórias negras negligenciadas, o que amplia a simbologia de recuperar a memória e dotá-la de significados e inspirações para os embates do presente. A vida de Minervino se confunde com a história do marxismo brasileiro, o que inclui contradições e ambiguidades e, exatamente por isso, pode nos inspirar a construir uma esquerda profundamente antirracista e anticapitalista para o século XXI.


    Referências
    CHADAREVIAN, Pedro. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro (1922-1964).
    Política & Sociedade V.11 n°20, p.255-283, 2012.
    DOMINGUES, Petrônio. Minervino de Oliveira: Um negro comunista disputa a presidência do Brasil. Lua Nova, n.101, pp.13-51, 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-013051/101. (Acesso em 2/2/2019).
    Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Revista Tempo, n. 23, p. 100-122, 2007.
    FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. São Paulo, Editora Globo, 2008.
    GRAHAM, Jessica Lynn. A virada antirracista do Partido Comunista do Brasil, a Frente Negra Brasileira e a Ação Integralista Brasileira na década de 1930. In: GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio (orgs.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, p. 353-375, 2012.
    KAREPOVS, Dainis. A classe operária vai ao parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil. São Paulo, Editora Alameda, 2006.
    PEDROSA, Mário; XAVIER, Lívio. Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil. In: ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis. Na contra-corrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista, 1930-1933. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987.
    REGO, Otávio Brandão. Otávio Brandão (depoimento, 1977). Rio de Janeiro, CPDOC, 1993.
    Jornais consultados: A Classe Operária, maio de 1928 a maio de 1930
  • Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do
    Estado policial como política social

    O “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro busca legitimar execuções policiais. Isso não se constitui em mero equívoco ou ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana, ainda que fora da lei. Agora se pretende transformá-la em política de Estado

    Por Luciana Boiteux – advogada, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, pesquisadora, feminista e militante dos direitos humanos

    Escrevo este texto no final de fevereiro, pouco depois de treze pessoas serem mortas por policiais militares em operação na comunidade Fallet-Fogueteiro, no centro do Rio de Janeiro. As fotos da casa onde foram executados os supostos criminosos são chocantes: mostram uma parede de ladrilhos brancos cobertos de sangue. Enquanto os moradores denunciaram o caso como chacina, afirmando que a polícia chegou atirando pelas costas, a PM alegava troca de tiros e confronto, ou seja, que teriam atirado em legítima defesa.

    Não se sabe ainda como será registrada a ocorrência. Pela repercussão pública, pode haver uma investigação mais profunda. Tradicionalmente, no Rio de Janeiro, esse tipo de ação policial é catalogada como “auto de resistência”, algo denominado nos registros oficiais como “homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial”. Trata-se de um eufemismo que define uma ação policial legitimada de antemão. Provavelmente, o destino será o arquivamento.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Segundo o Observatório da Intervenção, durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, entre fevereiro e dezembro de 2018, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados em 2017 no mesmo período.

    Atirar “na cabecinha”

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha eleitoral em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. O aliado de Jair Bolsonaro tem se deixado fotografar em visitas ao quartel do Batalhão de Operações Policiais da PM (BOPE) fazendo flexões e corridas matinais ao lado de policiais militares. Tal posição leniente com a violência policial já rendeu um aumento da série histórica de mortes violentas no Estado: só no primeiro mês do novo governo, aliados de Jair Bolsonaro, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior, dezembro de 2018. É o segundo maior número de mortes para o primeiro mês do ano desde que se iniciou a série histórica em 1998. Tais números ainda nem incluem as mortes ocorridas em fevereiro no Fallet, já mencionadas.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados no mesmo período de 2017

    A pergunta a ser feita diante dessa realidade é: como o sistema legal trata essas ocorrências e qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Formalmente, pela lei, em caso de morte violenta por causas não naturais, instaura-se um inquérito para investigação de crime de homicídio e apuração de autoria e circunstâncias. A política de garantir imunidade ao policial quando este executa quem considera “bandido” rompe com a lógica da lei e da Constituição de tutela da vida e do controle da violência. Instaura-se a legalização da barbárie, pois permite a chancela estatal de uma execução extrajudicial como estratégia de segurança pública.
    Tal lógica repressiva e autoritária se reflete, na prática, em casos que envolvem mortes causadas por policiais em serviço, quando o registro de ocorrência adota uma denominação diferenciada de “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Isso já determina um procedimento alternativo, capaz de impedir investigação e levar ao arquivamento o mais rápido possível.

    Papel do Ministério Público

    Cabe aqui destacar o papel do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. Segundo a Constituição (Art. 129, parágrafo. 4º) este é o titular da ação penal, que tem a autoridade para denunciar crimes e responsabilizar policiais por abusos e atuações fora da lei. Por outro lado, cabe aos juízes, nesse momento processual, acatar ou não o pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público, ou receber a denúncia oferecida por este, caso tenha sido constatada a ocorrência de crime.

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. Um resultado imediato: só no primeiro mês do novo governo, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior

    Bruno Manso e Renato Sérgio Lima, autores de Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil, comentam que “a ideologia do ‘bandido bom é bandido morto’, muitas vezes [é] reforçada pelo Ministério Público e Judiciário quando estes não condenam os padrões policiais de uso da força no Brasil como anômalos e inaceitáveis”. Se temos o Ministério Público, o Judiciário e o governador incentivando esse tipo de iniciativa, a tendência será aumentar ainda mais a prática, já naturalizada.

    Licença para matar

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários, o objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”.

    Em caso ocorrido há alguns anos, quando se investigava a morte de um conhecido traficante de nome Matemático, chamou a atenção o despacho do juiz acatando a opinião ministerial, louvando a eficácia mortífera dos heróis da polícia no confronto com “bandidos” e arquivando o caso reconhecendo a legítima defesa (a pedido do Ministério Público), diante de elementos fortemente armados que teriam resistido à ação policial. Depois se descobriu que o suspeito procurado fugia de carro e foi alvejado por meio de tiros de fuzil dados do alto de um helicóptero da polícia civil do Rio de Janeiro. A legítima defesa, nesse caso, não se sustentava em evidências, mas na afirmação dos policiais.

    Qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Apesar de vendida como uma solução para a violência e a criminalidade, a lógica do enfrentamento e das execuções de suspeitos em favelas e periferias não logrou atingir os resultados esperados. Ainda segundo Manso e Lima, “as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447).”

    Não obstante, o senso comum tende a considerar que a melhor estratégia de combate à violência é a repressão policial e o enfrentamento armado em territórios periféricos e pobres, sendo essa reação legitimada por uma maioria da população que, movida pelo medo, falta de informação e alguma manipulação, apoia o mote “bandido bom é bandido morto”.

    Defesa da violência

    Nesse cenário, chama a atenção, nas eleições de 2018, não somente a ascensão de Jair Bolsonaro, cuja trajetória política é vinculada às corporações militares e às milícias formadas por policiais, que sempre teve posições de defesa de ações violentas praticadas por agentes da lei, mas também a quantidade de militares, policiais e delegados eleitos para a Câmara Federal. De 19 na legislatura anterior, há agora 28 deputados. Os pronunciamentos do presidente eleito e de boa parte do Congresso Nacional vão na linha de defesa da criação de mecanismos de “proteção” de policiais “que impeçam a punição ou responsabilização”.

    Sem dúvida, essa formulação de políticas ditas de segurança pública, deve ser situada na lógica de manutenção e reforço da dominação e controle das classes subalternas, baseadas não mais somente na criminalização da pobreza, que sempre se deu pelo investimento em encarceramento de corpos descartáveis em penitenciárias. A isso, agrega-se a adoção de políticas classistas e racistas de extermínio autorizado pelo sistema.

    A ascensão do chamado Estado Penal nos países centrais por meio de uma onda punitiva, apontada por Loic Wacquant como uma resposta ao crescimento da insegurança social e não à insegurança criminal, reverbera na América Latina e países periféricos. Aqui, nota-se uma intensidade ainda maior, que envolve a autorização para matar como método.

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários. O objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”

    Tudo isso para dizer que o “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro, que traz diversas propostas de alteração da lei penal com o objetivo de dar-lhe maior rigor, em especial nos casos de crimes de corrupção, segue a linha contrária em relação à responsabilização de agentes da lei por crimes violentos praticados no cumprimento da função. Esse, aliás, é o foco do ex-juiz, responsável pela condenação de Lula, que lhe valeu a indicação ao cargo de ministro da Justiça do maior adversário do ex-presidente. Enquanto, por um lado, o projeto enviado ao Congresso reduz as hipóteses de prescrição e o acesso a recursos defensivos, propõe a criminalização do caixa dois, ampliando o Estado punitivo. Há uma clara ampliação legal dos limites do uso da violência por particulares e agentes públicos, limitando a atuação formal do sistema penal para estes.

    Defesa em casos de feminicídio

    Aqui nos referimos à mudança no texto do Código Penal que trata das excludentes de ilicitude. Isso abrange estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito (Art. 23), por meio da redução e até mesmo isenção de penas nas hipóteses de abusos no direito de reagir, quando este for desproporcional, em face de perigo atual, de excesso de cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do agente decorrer de “escusável medo, surpresa e violenta emoção”, dando tratamento menos repressivos aos casos de excesso.

    Essa inovação se aplica a qualquer pessoa e poderá ser usada como defesa em casos de feminicídios, até mesmo para levar a absolvição de maridos e companheiros ciumentos, assim como a brigas de trânsito ou de torcidas e a reações desproporcionais de proprietários de terras em casos de “invasão”, que dificilmente serão punidos.

    Para isso, foi proposta a alteração da redação do § 2º. do Art. 23 que autoriza o juiz a “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso ocorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

    Especificamente, para proteger os agentes de segurança em geral e garantir-lhes ainda maior imunidade do que têm hoje, foi prevista a inclusão de dois dispositivos específicos às hipóteses de legítima defesa. A alteração se dá pela inclusão de um parágrafo ao Art. 25 do Código Penal, passando-se a considerar outras hipóteses de legítima defesa somente para agentes policiais: “Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

    O resultado da aplicação prática de tais dispositivos, caso esse projeto de lei venha a ser aprovado no Congresso, será a oficialização da imunidade já garantida aos policiais que executam pessoas em favelas e periferias, o que poderá levar ao aumento das mortes. É a lógica do medo e da sensação de insegurança que levam a população a legitimar tais execuções, incentivadas por manipulações midiáticas. Contudo, apesar de as pessoas em geral terem medo de morrer vítima de “bandidos”, é mais provável, no Brasil, uma pessoa ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante.

    Imunidade seletiva

    Trata-se da previsão legal de um tipo de “legítima defesa presumida”, que já constava anteriormente do Art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890, usada à época para beneficiar o proprietário que matava o ladrão noturno (mais classista impossível).

    Tal proposta é inconstitucional por criar uma categoria de pessoas às quais se garante imunidade por crimes de homicídio apenas por serem agentes da lei. Tal visão viola a lógica e a racionalidade, pois espera-se de policiais e agentes de segurança que sejam melhor treinados e preparados no uso de armas de fogo em situações de confronto. Nessa perspectiva, esses funcionários públicos deveriam estar sujeitos a regras mais rígidas, pois são pagos e treinados pelo Estado para proteger vidas e não para executar pessoas.

    O dispositivo que Moro pretende aprovar, além de inconstitucional, fere ainda normas internacionais de direitos humanos, como o Código das Nações Unidas de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei, adotado pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, que no Art. 3º. determina que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever”.

    Nunca é demais lembrar também que uma política governamental de execuções policiais sumárias foi considerada caso grave de violação de direitos humanos pela Corte Interamericana que condenou o Brasil, em 2017, a adotar medidas de redução da violência policial e de lesões corporais e homicídios dela decorrentes. Examinava-se o caso das chacinas da Favela Nova Brasília, ocorridas em 1994-95. Expressamente, constou da sentença que o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deve ser abolido (cf. parágrafos 333 a 335 da sentença). Ou seja, o contrário do que se propõe agora.

    Institucionalização do genocídio

    A prática institucional de legitimar execuções policiais que Sérgio Moro quer legalizar no projeto não constitui mero equívoco ou uma ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana (ainda que fora da lei). Agora se pretende transformá-la em política de Estado.

    Essa proposição concomitante à apresentação de uma reforma da Previdência não se dá por acaso e evidencia exatamente a lógica denunciada por Wacquant: do casamento de uma política social (por meio da lógica neoliberal de redução de benefícios sociais que levará ao aumento da pobreza e a piora das condições de vida de grande parte da população) com uma política penal de encarceramento e de extermínio justamente da população pobre, precarizada e que já teve reduzidos direitos trabalhistas. Agora ela poderá se tornar alvo legalizado de políticas oficiais de extermínio, o que não pode ser tolerado ou naturalizado mais do que já se verifica hoje na prática das instituições penais e policiais aqui já ilustradas.


    1 https://ponte.org/policia-mata-13-pessoas-em-comunidade-do-rio-de-janeiro/
    2 http://observatoriodaintervencao.com.br/dados/relatorios1/; https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/policia-que-mata-policia-que-morre.ghtml
    3 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/02/22/policia-do-rio-matou-160-pessoas-em-janeiro-2-maior-patamar-para-o-mes-desde-98.htm; https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/entenda-o-plano-do-governador-do-rj-de-abater-bandidos-com-armas-pesadas.shtml
    4  MANSO, Bruno, LIMA, Renato Sérgio. “Os Desafios dos candidatos na segurança pública”. In: LIMA (Org.) Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil. São Paulo: Alameda, 2016, p. 103.
    5  http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/tj-rj-arquiva-pela-2-vez-inquerito-sobre-morte-de-traficante-matematico.html; http://www.cyberpolicia.com.br/artigos/artigos/501-uma-sentenca-para-ser-lida-a-morte-do-traficante-matematico
    6 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/numero-de-medicos-e-professores-cai-na-camara-militares-e-religiosos-sobem.shtml
    7  WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ; Vol.3, no 1, janeiro-junho de 2012.
    8 http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev18.htm
  • Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes
    amarelos franceses?

    Nos últimos meses de 2018, a França foi tomada por maciças mobilizações de rua sem lideranças visíveis e com uma difusa pauta de reivindicações que tem por centro a queda de impostos de combustíveis. Os protestos passaram a acontecer semanalmente. Entre os ativistas, encontra-se um amplo leque político que vai da esquerda à direita, excetuando-se apoiadores do presidente Emmanuel Macron. É algo novo no cenário francês. Mas que novidade é essa?

    Por Gil Delannoi – cientista político e sociólogo francês, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e diretor de Pesquisa da Fundação Nacional de Ciência Política

    Os “Coletes Amarelos” são um movimento de protesto popular iniciado em 17 de Novembro de 2018, na França. As manifestações se realizam sempre aos sábados e às vezes se prolongam até os domingos.

    O nome do movimento deriva dos coletes amarelos fosforecentes utilizados pelos manifestantes e que todo motorista deve possuir em seu carro, como peça de primeiros-socorros. Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, se associam em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas. As imagens circularam muito, notadamente porque essas violências ocorrem em belos bairros parisienses, como Champs Elysées, Torre Eiffel, Ópera, próximas aos ministérios e às lojas de departamentos.

    Os locais ocupados pelos Coletes Amarelos não são apenas emblemáticos bairros parisienses. São rotatórias e cruzamentos por toda a França. Os ativistas impedem a circulação de veículos, ocupando pedágios nas rodovias, muitas vezes impedindo a cobrança. A gratuidade daí decorrente provoca simpatia da maioria dos motoristas.

    Recuo governamental

    Depois dos primeiros sábados de protesto, em que se reuniram várias centenas de milhares de manifestantes, duas decisões governamentais foram tomadas: a suspensão do novo imposto sobre os combustíveis, em dezembro de 2018, e o lançamento de um “grande debate nacional” de consulta à população. Cadernos em que a população pode escrever perguntas e sugestões foram abertos nas prefeituras. Em janeiro se iniciou um longo período de discussões entre autoridades eleitas e diferentes públicos: representantes locais, militantes, cidadãos voluntários, pessoas escolhidas aleatoriamente – todos esses com os quais o presidente Macron debateu durante vários dias.

    A suspensão do imposto sobre combustíveis resultou em uma politização das reivindicações. Isso não extinguiu o movimento, mas o número de manifestações se reduziu.

    É difícil medir e qualificar um movimento que deseja continuar espontâneo e elusivo. Entre os manifestantes, a estimativa mais recente propõe três divisões: um terço mais à esquerda, um terço mais à direita, e um terço de pessoas pouco politizadas, que não votaram com frequência nas últimas décadas (os silenciosos rompem seu silêncio).

    Amplo espectro, exceto apoiadores de Macron

    O espectro político inteiro da política francesa se encontra presente entre os manifestantes – é por isso que eles insistem em suas reivindicações comuns e deixam de lado as diferenças. Todos os componentes políticos são encontrados entre os simpatizantes (segundo as pesquisas), exceto o centro e as elites pró-mundialização e pró-União Europeia. Podemos afirmar também: exceto a parte mais sólida do eleitorado de Macron.

    O caráter plural dos Coletes Amarelos se confirma quando nos voltamos para rebeliões passadas que apresentam um ou outro ponto de similitude: as revoltas camponesas durante a monarquia, os sans-culottes na Revolução Francesa, as barricadas das revoluções do século XIX, as ligas dos anos 1930, e certas manifestações estudantis de maio de 1968.

    Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, associam-se em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas

    Diz-se que a presidência francesa, de estilo muito monárquico, provocou esse tipo de movimento. É fato que Macron desempenhava seu papel de forma um tanto caricatural, fazendo, por vezes, intervenções provocativas à população que encontrava nas ruas. Comentários assim são tão inesperados no contexto francês quanto os tweets de Trump nos Estados Unidos. Isso explica que a figura presidencial tenha se tornado especialmente visada por alguns manifestantes (“Demissão do Macron”).

    O fato é que, pela legislação, o Parlamento é indispensável na França, mesmo quando se mostra um tanto dócil para um presidente apoiado por ampla maioria. Foi este, em um primeiro momento, o caso com Macron. A atual maioria parlamentar é composta por recém-chegados e inexperientes. O presidente liderou, logo após sua eleição, o enfraquecimento e quase aniquilamento dos principais partidos, o Partido Socialista (de François Hollande) e o Partido Republicano (de Nicolas Sakozy).

    Pagou-se caro por este triunfo de 2017. Hoje em dia, Macron não tem um partido bem estruturado atrás de si. Socialismo e gaullismo não existem mais da mesma fora após 1960. A centro esquerda e centro direita se unem por uma causa comum: defender a União Europeia e a adaptação da França à globalização econômica.

    Revolta contra Paris

    Duas principais novidades vão contra a tradição dos protestos e rebeliões franceses. Por um lado, a revolta não sai de Paris para se expandir em direção ao interior. Ela é feita contra Paris, suas elites e talvez até mesmo seus habitantes. Em segundo lugar, nenhum representante ou dirigente é designado ao movimento, e aqueles que tentam sê-lo são rejeitados. Os partidos existentes não recuperam mais sua legitimidade diante do movimento. Não podem mais do que, à distância, concordar ou não com determinados pontos reivindicados. O movimento é espontâneo e elusivo, o que significa, também, sem organização e sem um discurso principal.

    Sua novidade pode ser explicada por fatores existentes em outros lugares que não a França: deslocalização industrial, abertura da Europa Ocidental à produção agro-alimentar do Leste Europeu, empobrecimento do campo e das pequenas cidades. O fim de serviços públicos nas áreas rurais e em pequenas cidades (hospitais, maternidades, escolas primárias, correios) afeta negativamente as coletividades, enquanto os impostos continuam a aumentar.

    A raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da popula­ção não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral

    Como consequência, surge um sentimento de injustiça em relação ao sistema tributário (combustível) que atinge os habitantes da zona rural sem afetar os da zona urbana (que, ao contrário, se beneficiam de transportes públicos subsidiados). Disso resulta uma raiva contra as elites não taxadas por seu consumo (como a que se vale indiretamente de querosene de aviões).

    Essa raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da população não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral. Menos subsídios e mais liberdade econômica, uma simplificação administrativa, mas também a manutenção da rede de proteção social e de saúde.

    Democracia direta

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares.

    Outra prática de protesto na democracia está tomando forma nesse movimento. É talvez a novidade mais promissora e também a mais questionável. A auto-organização das manifestações começa nas redes sociais e é feita sem direção oficial nem líderes.

    A experiência comum vivida pelos participantes é o elemento principal do discurso. Evocam-se soluções políticas e procedimentos democráticos para melhorar as coisas, mas nenhum programa ou partido são tolerados, ao mesmo tempo em que se exige uma maior representatividade da população no processo político nacional. A liberdade de expressão é reivindicada quase sem limite, com eventuais riscos de deslizes individuais (manifestação de ódio contra pessoas específicas, apelo a destruições materiais, justificação de alguns bloqueios). Entretanto, isso não tem nada a ver com movimentações como greves. Trata-se de uma prática de ocupação dos lugares públicos e, para os mais combativos, de uma confrontação violenta com a polícia – esses últimos compõem uma pequena minoria sem força e de difícil mensuração no interior do movimento.

    A perda de confiança em toda forma de representação (inclusive em uma representação dos próprios Coletes Amarelos) é total mas, ao mesmo tempo, há grande esperança em uma democracia direta.

    Mal-estar generalizado

    O que dizem os comentaristas na mídia? Qualificam essas demandas com os seguintes adjetivos: “popular, democrática, populista, protecionista, nacionalista, revolucionária, reacionária, utópica, inovadora, incoerente, efeito da pobreza, ingratidão de crianças mimadas”. Tais comentários dizem mais a respeito da orientação política dos próprios comentaristas do que da natureza do movimento em si.

    Todos concordam, no entanto, a respeito da existência de uma causalidade socio-econômica comparável ao voto do Brexit, ao desindustrializado Cinturão da Ferrugem (Rust Belt) escolhendo Trump, às classes médias votando em Sanders, ou ainda ao Movimento Cinco Estrelas, na Itália.

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares

    Os Coletes Amarelos não conseguem ser uma força política no âmbito da Quinta República francesa. Seu movimento só poderá desafiar o regime, derrubá-lo ou eventualmente ser canalizado pelos partidos. O beneficiário a curto prazo poderia ser o nacionalismo de Marine Le Pen. Podemos considerar também um retorno da direita ao gaullismo (menos Europa, mais protecionismo) ou a refundação de um socialismo menos livre-comércio e menos multicultural.

    O primeiro teste serão as eleições europeias de maio de 2019. Mas haverá um limite: a eleição do Parlamento Europeu não tem impacto imediato, favorecendo assim um voto de protesto da esquerda ou da direita.

    Podemos ver movimentos parecidos na Europa? Alguns indícios existem em diversos países (na Bélgica, por exemplo). Entretanto, ainda é muito cedo para dizer se são meras faíscas ou se o fogo que poderá persistir na França terminará por incendiar, também, o resto da Europa.


    1 – N.T.: Literalmente “sem calções”(vestimenta utilizada pelos nobres da época), o termo designa os revolucionários das classes populares – artesãos, trabalhadores, pequenos proprietários, etc – diretamente opostos à nobreza, à época da Revolução Francesa.

    2 – N.T.: Conjunto de ideias políticas que prezam a independência nacional francesa – seja ela política, econômica, social ou militar – em detrimento de associações internacionais (como a ONU, por exemplo) e de superpotências. O movimento é diverso e abriga posicionamentos políticos abrangendo desde a esquerda à direita. Seu nome advém do ex-presidente Charles de Gaulle (1890-1970).

    Tradução de Isadora França