Categoria: Revista

  • Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência:
    a vez do cada um por si!

    A disputa em torno das mudanças nas regras das aposentadorias esconde uma dinâmica perversa: a Previdência deixa de ser um direito público, solidário e universal e um mecanismo de distribuição de renda. Em seu lugar, entra o regime de capitalização, uma espécie de poupança individual, sem garantia alguma de que, na velhice, o trabalhador terá o suficiente para sobreviver

    Por Rosa Maria Marques
    economista, professora titular da PUCSP

    Trinta e um anos depois da promulgação da chamada Constituição Cidadã, que balanço podemos fazer dos direitos previdenciários da população brasileira definidos na Carta? Se o movimento democrático que encerrou o período da ditadura militar foi coroado de avanços nesse campo, estendendo benefícios aos trabalhadores rurais, adotando o piso de um salário mínimo e introduzindo cálculo do valor da aposentadoria mais favorável aos segurados, entre outros, os anos que se seguiram foram de constantes ataques à Previdência Social.

    Lembremos que, mesmo antes da promulgação do texto constitucional, o então presidente, José Sarney, em mensagem televisiva “alertou” a todos que os novos direitos sociais, neles incluídos os previdenciários, iriam levar a uma situação explosiva das finanças públicas.

    Duas décadas de reformas

    De lá para cá, ocorreram duas reformas previdenciárias, a de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1999) e a de Lula (2003) e, como uma constante, ao longo dos 31 anos, houve vários ajustes alterando as condições de acesso e valores de benefícios.
    A reforma de FHC centrou-se no Regime Geral da Previdência Social (RGPS), introduzindo um redutor do valor do benefício em função da expectativa de sobrevida do segurado no momento da aposentadoria (o chamado fator previdenciário) e a cobrança de uma contribuição sobre os benefícios (uma excrecência em termos previdenciários).

    Já Lula dirigiu a reforma para os servidores públicos, implantando um teto para o valor do benefício (no lugar do valor correspondente ao salário da ativa) e introduzindo idade mínima para o requerimento da aposentadoria. Vale lembrar que os aspectos tratados na reforma de Lula foram exatamente aqueles que FHC não conseguir aprovar em 1999. Nessa última fase, contaram com o apoio do Partido dos Trabalhadores.

    Esta é a primeira vez que o regime de capitalização é encampado por um presidente da República. A lógica é a mesma que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por vinte anos

    Mais recentemente, em dezembro de 2016, Michel Temer encaminhou para avaliação do Congresso Nacional proposta que tentava aproximar o RGPS do regime dos servidores, bem como tratar de maneira igual os trabalhadores rurais e urbanos, os homens e as mulheres. Essa “harmonização” entre os regimes e entre as clientelas e gêneros seria feita basicamente mediante os critérios de idade e de tempo de contribuição, alterando substancialmente o valor do beneficio a ser pago. Dada a reação enfrentada junto à população em geral, aos movimentos sociais e mesmo entre os deputados, a proposta inicial foi modificada pela comissão da Câmara e acabou não sendo apresentada ao plenário.

    Eis que, com a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República, novamente a reforma previdenciária está em pauta. A proposta elaborada pelo executivo foi encaminhada para a apreciação no Congresso Nacional em 20/02/2019. Além dos aspectos que são retomados e aprofundados da proposta de Temer, tal como a definição de idade, a elevação do tempo mínimo de contribuição e a redução do valor da aposentadoria, chama atenção a desindexação do piso dos benefícios ao salário mínimo e a introdução de um regime de capitalização.

    Qualquer desses aspectos mereceria reflexão sobre quais seriam as consequências para os trabalhadores. Sem menosprezar os demais, vamos aqui tratar de apenas um: o regime de capitalização, dada que a adoção implica não só uma mudança qualitativa nos fundamentos da proteção social do país, como na relação do Estado com os cidadãos e as famílias, pois pensa estruturar a sociedade unicamente a partir do indivíduo.

    O que está em jogo na discussão atual

    Não é a primeira vez que o regime de capitalização é proposto no Brasil. É, isso sim, a primeira vez que essa proposta é claramente encampada por um presidente da República. Em meados dos anos 1990, entre as mais de vinte propostas em discussão sobre a reformulação da Previdência Social, havia aquelas considerando que a proteção social era responsabilidade individual do cidadão.

    Situadas no campo neoliberal, justificavam que, somente adotando um sistema privado e de capitalização, as pessoas teriam estímulo para melhorar o rendimento e, por consequência, aumentarem a capacidade de poupança, criando as bases necessárias para a sustentação financeira do desenvolvimento do país. Para os defensores, o financiamento deveria ser unicamente sustentado pelo trabalhador/indivíduo.

    No regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Não há nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade

    Dessa forma, seria eliminado – no entender dessa perspectiva – o desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois os encargos sociais seriam ou eliminados no todo ou sensivelmente diminuídos, o que permitira aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, aumentando as exportações. Além disso, como reconheciam que o mercado não é totalmente perfeito, de forma que alguns indivíduos são submetidos a situações de carência, admitiam a ação assistencial do Estado (MARQUES, BATICHI, MENDES, 2003). Como vimos, especialmente no governo Dilma Rousseff, parte dessa concepção acabou, por linhas tortas, sendo implantada: em 2014, 56 setores de atividade estavam desonerados das cotizações calculadas sobre a folha de salários. Nenhum efeito relevante sobre o nível das exportações do país foi observado.

    Apesar da similitude, o centro da defesa pública da reforma previdenciária da equipe de Bolsonaro é outro, distanciando-se, em certa medida, daquela dos anos 1990. É o mesmo que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por 20 anos: evitar o crescimento desmesurado da despesa, fruto do envelhecimento da população e da existência de supostos privilégios. Esse é o discurso dos que advogam a necessidade premente de realizar uma alteração substantiva na Previdência Social.

    Mas estão enganados aqueles que atentam apenas para isso, muito embora seja de suma importância demonstrar que recursos haveria para financiá-la, caso fosse outro o tratamento com relação aos devedores da Previdência, fosse outra a política de renúncia fiscal, entre outros aspectos.

    É importante perguntarmos, por exemplo, qual o motivo de, em meio à manutenção do novo regime fiscal, que congelou o gasto por vinte anos, estar-se propondo a introdução de um regime de capitalização para os novos segurados? Afinal, como sabido, isso resultará na diminuição do fluxo de entrada de recursos à atual Previdência Social, seja ela da clientela que for (dos trabalhadores do mercado formal, dos servidores públicos, dos militares, etc).
    Vejamos as razões ocultas. Para isso, é importante se diferenciar o regime de capitalização do regime de repartição.

    Solidariedade e individualismo

    A Previdência Social brasileira é estruturada enquanto um regime de repartição, de maneira que os trabalhadores e servidores que hoje contribuem financiam ou pagam as aposentadorias e pensões atuais. É um regime solidário, construído com base num pacto entre as gerações. A geração que está trabalhando no mercado formal financia os trabalhadores do passado, hoje aposentados. Pode-se dizer, ainda, que há uma solidariedade vertical, pois os trabalhadores com maiores salários contribuem relativamente mais do que os de menor renda. Isso ocorre mesmo considerando-se a existência de uma alíquota máxima sujeita a teto (de R$ 5.839,45 – para janeiro de 2019).

    Isso porque, num regime de repartição, as contribuições obrigatórias pagas pelos trabalhadores e pelos empregadores são definidas como coletivas na sua natureza. Isso implica que não há correspondência direta ou imediata entre o esforço contributivo do trabalhador (o que ele paga ao longo da vida ativa) e o que ele irá receber quando, por exemplo, se aposentar. Há, portanto, uma solidariedade também entre membros de uma mesma geração.

    A proteção organizada pelo Estado, da qual o RGPS é um exemplo, constitui um sistema de solidariedade coletiva. Para os críticos desse sistema, a não correspondência perfeita entre as contribuições e o benefício é motivo suficiente para demandar a substituição por qualquer outra forma de poupança privada ou de seguro, que obedeçam às leis de mercado (MARQUES, EUZÉBY, 2005).

    No regime de capitalização, não há dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado: ele pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório

    Esse é um dos principais argumentos utilizados junto a segmentos de renda mais alta da população para justificar a adoção de um regime de capitalização. Para os defensores, é irrelevante o fato de o regime de repartição constituir também um mecanismo de distribuição de renda, mesmo que realizado entre os próprios trabalhadores do mercado formal.

    Já no regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Quanto maiores forem as contribuições associadas ao trabalhador (dele e do empregador ou somente dele, tal como no Chile) e quanto mais render as aplicações, maior será o valor disponível para financiar a renda de aposentado. O contrário, também é verdadeiro. Não há, portanto, nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade.

    Além disso, em regimes de capitalização “puros”, isto é, sem dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado, o segurado pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório. Isso porque os regimes de capitalização geralmente definem a contribuição, mas não o benefício. Sobre este, reina a incerteza. Tudo irá depender (além do montante contribuído) da rentabilidade das aplicações em um horizonte de longo prazo. Rentabilidade que é fruto de mercado extremamente volátil e especulativo.

    A instituição de um regime de capitalização pode ser combinada com a existência de uma aposentadoria de base, financiada mediante contribuições ou impostos, de modo que a renda derivada da capitalização constituiria um acréscimo ao valor de base. Não há indícios de que isso esteja sendo pensado pela equipe econômica do governo Bolsonaro. De qualquer forma, é bom lembrar que, na proposta do Banco Mundial dos anos 1990, a aposentadoria de base, de valores modestos, constituiria o primeiro pilar da proteção social por ele concebida. A renda derivada do regime de capitalização o segundo pilar e a poupança individual o terceiro pilar.

    Aumento da pobreza e do desamparo

    Hoje, em pleno século XXI, sabemos que um dos resultados das reformas previdenciárias realizadas na América Latina, (Chile, 1981; Peru, 1992; Argentina, 1994 – teve reversão para o público em 2007; Colômbia, 1993; Uruguai, 1996; Bolívia, 1998; México, 1997; El Salvador, 1998; Equador, 2001 e República Dominicana, 2003; Costa Rica, 2003, sistema misto; Nicarágua, 2004, sistema misto) foi o aumento da pobreza e do desamparo de parcela importante dos idosos desses países.

    Além de ter sido um desastre em termos sociais, principalmente levando em conta o nível de desigualdade de renda existente nos países da América Latina, é preciso lembrar que há um “custo de transição” de um regime para outro e isso também acontece no caso de ele ser misto. Parece no mínimo contraditório propor mudanças que diminuam o fluxo de ingresso de receitas, mantendo-se o gasto contínuo dos atuais aposentados e segurados, quando o governo abraça ferreamente a continuidade do teto do gasto. Quem irá pagar a conta?

    Frente a isso, cabe nos perguntarmos o que, de fato, está por trás da proposta de implantação de um regime de capitalização no Brasil?

    Individualismo e meritocracia: o “novo” princípio

    Deixemos de lado o largo interesse do setor financeiro, nacional e internacional na introdução de um regime de capitalização no Brasil. Isso é por demais evidente. O que queremos chamar atenção é para o fato de os fundamentos desse regime se coadunarem perfeitamente com os valores defendidos pelos ministros que constituem o grupo ideológico de apoio do governo Bolsonaro, a saber, os ministros da Educação, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e das Relações Exteriores. E, evidentemente, estarem de acordo com o pensamento de Olavo de Carvalho.

    A sociedade brasileira é profundamente marcada pelo seu passado escravocrata, pelo patriarcado, pelo conservadorismo e pela naturalização do convívio com elevados níveis de desigualdade em todos os planos: de renda, de patrimônio, de acesso aos bens e serviços públicos, etc.

    Ao lado disso, há uma forte aceitação do princípio da meritocracia, isto é, o entendimento de que são o esforço e dedicação de cada um que determinam sua inserção na sociedade, seja no mercado de trabalho, seja no mercado de consumo, e até mesmo na determinação das relações pessoais.

    Não foi por acaso que, medidas de “inclusão social”, especialmente desenvolvidas nos governos Lula e Dilma, tais como o Programa Bolsa Família, a política de cotas e de bolsas nas Universidades públicas, mas também a valorização do salário mínimo, receberam rejeição acentuada de setores da chamada classe média da sociedade, mas não ficou a ela restrita.

    O regime de capitalização, ao negar qualquer tipo de solidariedade – intergeracional ou entre níveis de renda do trabalho – reforça a ideia de que é o indivíduo o responsável por seu destino. Este – se estudar para se qualificar e trabalhar com afinco – terá formado, ao final da vida ativa, montante suficiente para que tenha uma renda de aposentadoria adequada. Enfim, o mérito associado ao indivíduo é que é entendido como a pedra basilar da construção da sociedade.

    Nessa perspectiva, a solidariedade, principalmente quando voltada para os setores de mais baixa renda e poucos inseridos nos mecanismos que possibilitam a adequada integração à sociedade brasileira, é vista como algo que desestimula a busca pela melhora individual, tornando-se, portanto, um peso para a sociedade.

    No lugar da solidariedade, um dos princípios do novo governo é enaltecer o individualismo e a meritocracia, reforçando um dos piores aspectos de nossa sociedade. É o vale tudo. É o cada um por si. Lutar contra isso é mais do que uma questão situada no campo previdenciário, é lutar pela construção de uma sociedade mais justa, na qual os desvalidos tenham direitos garantidos.


    Tipos de regime previdenciário

    Regime de repartição: as contribuições são recolhidas a um fundo único e esse é usado para financiar as aposentadorias e pensões. Por isso, diz-se que tem como característica principal a solidariedade entre as gerações, pois os segurados de hoje financiam os trabalhadores de ontem, que estão aposentados. As previdências públicas são, em geral, organizadas com base no regime de repartição.

    Regime de capitalização: as contribuições atinentes a um trabalhador são dirigidas a uma conta individual e os recursos capitalizados ao longo do tempo financiam a aposentadoria futura. É como se fosse uma poupança individual, mas as aplicações não são definidas pelo trabalhador e sim pela administradora que controlar a conta


    Referências: MARQUES, Rosa Maria; BATICH, Mariana; MENDES, Áquilas. Previdência Social Brasileira: um balanço da reforma FHC. São Paulo em Perspectiva, vol.17 nº1. São Paulo, Fundação Seade, Jan./Mar. 2003; MARQUES, Rosa Maria, EUZÉBY, Alain. Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão. Nova Economia, vol. 15, nº 3. Belo Horizonte, Setembro./Dezembro 2005.
  • O ABC do novo fascismo e suas perspectivas

    O ABC do novo fascismo e suas perspectivas

    O ABC do novo fascismo
    e suas perspectivas

    Texto de Luiz Arnaldo Campos*

    Bolsonaro não apresentou planos claros de governo e sequer participou de debates. Mas a trajetória e as forças políticas que congrega apontam na direção de uma gestão conservadora nos costumes, ultraliberal na economia e repressiva na política. A oposição tem como tarefa imediata a constituição de uma ampla e representativa frente democrática para se contrapor aos ataques da extrema direita

    Uma hora após o anúncio da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, no final de outubro, uma coluna de caminhões do Exército desfilou pelas ruas de Icaraí, bairro nobre de Niterói, no Rio de Janeiro. Foi aplaudida por moradores e transeuntes. Uma imagem simbólica do que pretende ser a novíssima república brasileira.

    A vitória do candidato do PSL foi o resultado inesperado de uma ação orquestrada pelo alto comando da burguesia brasileira que, depois do impeachment de Dilma ­Rousseff, aprofundou o golpe com a decretação da inelegibilidade de Lula, a prisão e a proibição de participar da campanha. A manobra que buscava simultaneamente inviabilizar a candidatura petista e eleger um candidato confiável ao mercado e às grandes corporações – Alckmin, Meireles ou Amoedo – deu com os burros n’água.

    No contexto de uma grave crise econômica política e cultural, a centro-direita derreteu e os extremos cresceram. Bolsonaro e Haddad passaram ao segundo turno, obrigando as classes dominantes a se unificarem em torno da candidatura outsider do ex-capitão do Exército. Até aí, parecia uma reprise do enfrentamento entre Lula e Collor três décadas atrás. As semelhanças não foram adiante.

    Ao contrário do simples arrivismo do caçador de marajás alagoano, Bolsonaro representa uma proposta distinta de ordenamento político, social, cultural e econômico do país. Um projeto de características fascistas, que pretende enterrar a Nova República e abrir um novo ciclo na política brasileira, hegemonizado pela extrema direita. Para quem está na outra margem do rio, entender como chegamos a isso e quais são as principais características dessa nova quimera direitista é simplesmente essencial.

    A marcha rumo a Brasília

    Para entender o fenômeno Bolsonaro é preciso considerar a grave crise econômica e social do país. É algo indispensável, mas insuficiente. No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar. O ambiente propício para soluções autoritárias foi depois cuidadosamente cevado pela campanha midiática da Operação Lava-Jato. O noticiário asfixiante, que tinha como primeiro alvo o PT, acabou por produzir a demonização de toda a atividade política, vista como inapelavelmente corrupta. Daí para o retorno dos salvadores da pátria foi apenas um passo.

    No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita, até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura e lhe permitiu uma máxima exposição, na privilegiada condição de vítima, nos principais noticiários de rádio e TV, mas, sem dúvida, o que surpreendeu o mundo foi a vitória de um candidato abertamente misógino, racista, homofóbico, defensor da ditadura militar e da tortura num país que fora governado durante 13 anos seguidos pelo PT.

    Bolsonaro foi o postulante da antipolítica, aquele que era contra tudo que aí está. Essa pregação calou fundo numa população acossada pelo desemprego, pelos altos índices de criminalidade, pela piora das condições de vida e descrente dos partidos políticos tradicionais. Foi também o candidato que conseguiu tocar um imaginário conservador, construindo a imagem de defensor de um mundo ameaçado por negros sedentos de vingança, feministas histéricas, LGBTs descontrolados e indígenas gulosos por terra. E aí não pregou no vazio, mas no terreno semeado há anos pelas declarações da bancada ruralista, contra os movimentos dos trabalhadores rurais, dos povos indígenas e quilombolas, pelos noticiários da TV, sempre a associar a criminalidade crescente ao respeito aos Direitos Humanos, e pela pregação insistente das igrejas neopentencostais, para quem os direitos das populações LGBTs são simples artimanhas do demônio. Se não compreendermos esses elementos, não poderemos entender porque a onda de fake news teve tanta audiência. O ex-capitão lavrou no campo arado por uma crescente onda reacionária.

    Bolsonaro construiu sua persona política a partir desses elementos e o fez com maestria. Ajudado pela equivocada campanha petista, conseguiu fazer o governo Temer passar ileso e transformou o PT no único responsável pelas mazelas sofridas pelo povo. Uma vez consolidado nessa posição transformou o antipetismo em anticomunismo: os inimigos passaram a ser não somente os “petralhas” mas todos os “vermelhos”. Os movimentos sociais foram transformados em terroristas. Cuba e Venezuela passaram a ser identificados como o inferno na Terra.

    Os itens mais escatológicos dessa agenda, como a defesa da tortura e da ditadura militar, foram absorvidos como uma espécie de mal menor, um preço a ser pago em troca da ordem e da segurança, deixando a nu as terríveis consequências de sermos o único país da América do Sul que não ajustou contas publicamente com seus ditadores e torturadores. Sem nunca ter tido as entranhas aqui devassadas, as Forças Armadas conservaram um prestígio que as autorizaram a se apresentar como protagonistas no cenário político nacional.

    A cereja do coquetel ideológico foi a invocação a Deus, presente no slogan “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O tripé afirmativo da campanha de Bolsonaro foi Deus, Pátria e Família, não por acaso o lema dos integralistas brasileiros da década de 1930.

    De maneira geral, apareceram tipos distintos de votantes, em outubro. Os privilegiados, na maioria, votaram em Bolsonaro, como a única alternativa viável para o segundo turno. Um grupo menor de empresários com claras conotações fascistas, votou com ele desde o início. O ódio ao PT foi o leitmotiv da maioria dos seus eleitores. Tivemos também os fiéis das igrejas da teologia da prosperidade, sempre obedientes à indicação do pastor e também grupos de juventude da classe média, que compuseram bandas de inspiração nitidamente fascista voltados para a propaganda agressiva e a intimidação.

    O problema para o Brasil é que o projeto bolsonariano é bem mais complexo do que uma simples negação de tudo o que está aí.

    O Estado Novo de Bolsonaro

    Numa entrevista publicada pela revista argentina Ambito Financiero, um militar brasileiro de alta patente, não identificado, revelou que o projeto Bolsonaro teve início em 2012 com a aproximação de um grupo de generais com o então, capitão, tido até ali como insubordinado e refratário à hierarquia castrense. Segundo a entrevista, o novo projeto de poder está formulado em termos de uma democracia controlada, com protagonismo de patentes militares, tendo como elementos constitutivos a erradicação da esquerda, e o fim dos movimentos sociais.

    De uma forma regressiva em relação à pauta nacionalista do governo militar de Ernesto Geisel (1974-79), os atuais generais de Bolsonaro defendem o alinhamento automático às posições do imperialismo norte-americano no cenário internacional, ao mesmo tempo em que postulam uma política econômica ultraprivatista, com a liquidação do restante das estatais brasileiras. No campo da política interna já tivemos a declaração do vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, partidário de uma nova Constituição escrita por ilustrados escolhidos a dedo pelo regime.

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura

    São apenas sinais, mas indicam que Bolsonaro pretende caminhar em direção a uma nova institucionalidade, baseada na restrição das liberdades políticas e individuais, na supressão de toda oposição, particularmente a de esquerda, na submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo, na implantação de um sistema educacional lastreado em valores extremamente retrógrados, na negação dos direitos civis aos grupos historicamente discriminados e no aumento da violência contra à população pobre. Com tudo isso almeja e trabalha para criar um regime que tenha ampla base popular, no qual ele desponte se não como o Führer, pelo menos como o Mito.

    A indicação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça sinaliza que a perseguição e o encarceramento de lideranças populares, sob as mais variadas justificativas, devem continuar. No terreno da política externa, seus acenos ao Estado de Israel fazem pouco caso das relações econômicas do Brasil com os países árabes. O episódio dos Mais Médicos deixou claro que pretende levar adiante seus desvarios ideológicos sem levar em consideração o sofrimento da população. É também digno de menção o apoio a proposta do novo governador do Rio de Janeiro de assassinar supostos criminosos por atiradores de elite ou por meio de drones.

    Em suma, tudo parece indicar que o projeto de Bolsonaro visa instituir a médio prazo um Estado fascista – um novo Estado Novo – para o qual já existe o líder, o inimigo a ser extirpado, um ideário reacionário, e a definição da violência como a terapêutica fundamental no desvio de condutas sociais. Embora existam dúvidas se o PSL tem condições para se tornar um partido de corte fascista, Bolsonaro conta inicialmente para o apoio de rua com as bases coxinhas e as bandas facistoides. Como plano geral, há o suculento cardápio econômico oferecido aos donos do dinheiro, por meio de uma ampla política de privatizações. Todos se dão por satisfeitos com as juras de amor à Constituição feita pelo novo mandatário, muito embora não ignorem que Hitler também jurou a constituição de Weimar.

    Tensões e resistências

    O terreno nevrálgico da disputa nos novos tempos será a economia. Para navegar em céu de brigadeiro, Bolsonaro vai precisar de resultados rápidos, sobretudo, na redução do desemprego, principalmente, agora, em que uma pauta tão impopular como a reforma da Previdência será deixada no seu colo.

    Enquanto o tão sonhado crescimento não vier, o novo presidente será obrigado a entregar “troféus” políticos – como as prisões de lideranças populares, de preferência acusados de crimes comuns que facilitam a desmoralização – e a manter um constante tom de confronto, guerra e prontidão.

    Por isso são plenamente possíveis uma escalada retórica contra a Venezuela e Cuba, ataques furibundos contra “privilégios” do funcionalismo público e tentativas de direcionar a pauta política para temas como a Escola Sem Partido, a liberação do uso de armas ou até mesmo drásticos cortes nas políticas de incentivos às atividades culturais.

    A esquerda e o movimento popular terão múltiplas tarefas e inúmeros desafios. Em primeiro lugar, a construção de uma frente democrática que deve ser ampla na inclusão de partidos, centrais sindicais, movimentos sociais e ao mesmo tempo possuir a capilaridade necessária para se contrapor a tempo e a hora aos ataques descentralizados e disseminados desfechados por grupos fascistas contra professores e intelectuais progressistas, ativistas de base, lideranças populares ou simples cidadãos transformados em alvo por serem negros, mulheres ou LGBTs.

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura

    É preciso não se esquecer de que o medo é um dos alimentos do fascismo. A defesa das lideranças sociais é ação essencial e urgente. Será vital haver discernimento político para ultrapassar cortinas de fumaça e possibilitar concentração nas batalhas em que seja possível a obtenção de vitórias que retardem ou bloqueiem o projeto fascista. Se os fascistas lograrem vitórias iniciais os dias seguintes serão mais difíceis.


    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

    Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Luiz Arnaldo Campos é cineasta e militante do PSOL.
  • Templo, vida e voto

    Templo, vida e voto

    Templo, vida e voto

    Texto de Lamia Oualalou*

    Uma surpreendente transformação no mundo das ideias, da sociabilidade e dos credos cortou o Brasil no último meio século. O “maior país católico do mundo” está aceleradamente deixando de sê-lo. Em 1970, 92% da população se declarava adepta à religião coordenada pelo Vaticano. Em 2010, esse percentual havia caído para 64% e os indicadores apontam uma queda maior a ser aferida no Censo de 2020. Quais os impactos desse processo na vida política nacional?

    “Porque você está tão obcecada pelo papel político dos evangélicos? Será porque você nasceu num país muçulmano, que faz você ver tudo com esse prisma?”. É verdade, nasci e cresci no Marrocos antes de morar alguns anos na França e me apaixonar pelo Brasil, ao ponto de virar cidadã, dois anos atrás. Mas esta reflexão, ouvida por muitos amigos brasileiros do campo progressista me deixava pasma. Será que eles, que em teoria entendiam de política, não percebiam o que estava acontecendo no país?

    Os números já estavam prefigurando uma revolução: em 1970, 92% dos brasileiros se declaravam católicos segundo o IBGE; em 2010, esses não passavam de 64,6%. Um colapso inédito no mundo inteiro, segundo os demógrafos. Embora não se saiba ainda o que vai sair do censo de 2020, pesquisas como as da Datafolha dizem que os católicos são, apenas, 56%. Quem se beneficiou dessa queda vertiginosa foram os evangélicos, que deveriam passar a barreira dos 30%.

    Nasci no Marrocos, mas antes de tudo, sou jornalista. De favelas da baixada fluminense ao Congresso Nacional. Vou a comunidades onde meus amigos especialistas em ciência política, militantes do PT ou do PSOL, talvez não visitem. Converso com pessoas que nunca encontraria na vida normal, como o Pastor Silas Malafaia, no Rio de Janeiro.

    Transformação
    demográfica

    Minhas reportagens fizeram emergir pequenos detalhes que contam a transformação de um país. O espaço urbano é literalmente tomado por igrejas de todos os tamanhos, de cinemas abandonados do centro das metrópoles até pequenos locais antes ocupados por um bar. Elas aparecem até em lugares insuspeitos, como no último andar do edifício do Bope, a tropa de elite do Rio de Janeiro. Ali, uma congregação se reúne todos os dias para rezar, e explicar que apertar o gatilho pode ser um mal necessário. Em nome de Jesus, claro.

    Se a pessoa perde emprego, os ­membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os fi­lhos não têm o que fazer, a igreja promo­ve uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mun­do comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candi­datos a cargos políticos

    Nos movimentos dos sem-teto, as vozes dos pastores são as mais ouvidas. Em Brasília, cada quarta-feira de manhã, deputados evangélicos de todos os partidos – um quinto do Congresso!- se reúne para rezar juntos e fazer avançar pautas comuns. Na rua, muitas meninas passaram a usar uma roupa mais bem comportada, a chamada moda evangélica. Nas lojas de instrumentos de música, os vendedores contam que a maioria dos clientes deles é evangélica, para ser pastor, tem que cantar e tocar direitinho.

    O carro de som que espanta já não é o do Carnaval, mas o da marcha para Jesus em centenas de cidades. Expressões como “Jesus te ama” ou “ideologia de gênero” são banalizadas, tal como os ataques aos terreiros das religiões afro-brasileiras. Num país onde a pirataria rola solta, o mercado dos discos cristãos é uma exceção: os evangélicos são os de maior procura. Para além do tradicional gospel, louva-se Jesus ao som de samba, sertanejo, rock e rap. Aliás, existe uma indústria por trás. As igrejas começam com um templo; depois, uma rádio, uma televisão, uma gravadora. Uma atividade alimenta a outra, a notoriedade da igreja aumenta. Os cantores são famosos, e viram candidatos. Não esqueçam que Marcelo Crivella foi também uma estrela do Gospel.

    Referências
    populares

    A lista dessas mudanças mais ou menos perceptíveis é longa. Eles acabam desenhando uma realidade: os pastores evangélicos conseguiram nas últimas duas décadas virar as principais referências culturais de grande parte dos pobres brasileiros.
    Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer, a igreja promove uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce.

    A igreja é para muitos, sobretudo as mulheres, o único lugar de lazer, onde dá para fazer amizades, cantar, rezar, se emocionar. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mundo comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candidatos a cargos políticos.

    Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito

    Assim, as igrejas conseguiram ocupar o espaço do Estado, ausente da vida dos pobres, ou presente só de maneira violenta. Ocuparam o espaço da igreja católica, já que o Vaticano decidiu que a Teologia da Libertação era um perigoso movimento social e político. E pouco a pouco, ocuparam os dos partidos progressistas.

    Muitos desses políticos demoraram em entender a expansão das igrejas evangélicas. Alguns pelas ligações históricas entre a esquerda brasileira e a asa progressista do catolicismo. Outros por cegueira e um toque de desprezo em relação às camadas populares, que conformam a maioria dos evangélicos e aos valores deles, consideradas “caretas”.

    Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito.

    Impérios religiosos,
    financeiros e midiáticos

    Podia parecer uma estratégia esperta: alguns pastores, como o Edir Macedo – dono da Igreja Universal-, já encabeçavam impérios religiosos, financeiros e midiáticos. Mas essa escolha teve uma consequência desastrosa: em vez do necessário trabalho de desconstrução dos pastores e dos interesses deles, na maioria dos casos opostos aos do povo, os partidos – o PT primeiro – acabaram dando a eles a legitimidade dos porta-vozes. É só lembrar-se da inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo, quando toda a classe política – Dilma, Temer, Alckmin – prestou-se a disputar favores do bispo Macedo.

    Não foi a única maneira de legitimar o discurso dos pastores, em especial os que pregam a Teologia da Prosperidade. Quando, em vez de fazer da conquista de direitos universais a métrica da sua política, o governo escolheu colocar a elevação do consumo a marca principal da mobilidade social e acabou falando como muitos pastores.

    Os evangélicos não são os únicos responsáveis da eleição de Jair Bolsonaro, fruto de uma “tempestade perfeita”, mas como explicou recentemente o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, “o que fez a diferença foi o peso do voto evangélico, pois a estimativa indica que Bolsonaro tem mais de 11 milhões de votos do que Haddad no eleitorado evangélico (em todas as suas múltiplas denominações)”.

    O lance, hoje, é entender como a esquerda pode voltar a conversar com esses cidadãos. Passar pela Bíblia, como tentaram nos últimos dias da campanha é provavelmente inútil – e foi, várias vezes, patético. Teria que voltar ao trabalho básico: falar do que realmente importa na vida dos brasileiros, sejam evangélicos ou não: acesso à saúde, educação, transporte decente, salários dignos, e a esperança de um futuro.


    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

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    *Lamia Oualalou é jornalista, ex-correspondente do Le Figaro no Brasil e autora de Jésus t’aime, la déferlante évangélique, Editora Le Cerf (Paris) ainda sem edição em português
  • AQUI NÃO! A resistência nordestina à extrema direita

    AQUI NÃO! A resistência nordestina à extrema direita

    AQUI NÃO! A resistência nordestina
    à extrema direita

    Texto de Robério Paulino*

    O Nordeste derrotou Jair Bolsonaro. Em alguns estados, mais de dois terços do eleitorado rejeitou o ex-capitão. É situação contrária à da maior parte do país. Que fatores levaram a esse resultado e que impactos tiveram os investimentos públicos e os programas sociais dos governos Lula e Dilma na região?

    No processo eleitoral que deu a vitória a Jair Bolsonaro, o Nordeste apresentou resultados opostos aos do restante do país, tanto no primeiro como no segundo turno. Foi a única região onde o ex-capitão colheu ampla derrota. Ao final da disputa, muitos nordestinos se orgulhavam e compartilharam a hashtag #AquiNão. Na etapa inicial, Fernando Haddad chegou em primeiro em oito estados da região, além do Pará. Some-se a isso a dianteira de Ciro Gomes no Ceará. Esses fatores levaram a eleição para o segundo turno.

    No segundo turno, com a polarização política ainda mais acentuada, enquanto Bolsonaro cresceu como o candidato do campo conservador, a vantagem de Haddad no Nordeste também se ampliou, chegando à impressionante média de 67,7%. A porcentagem representa mais do dobro dos votos dados ao candidato da direita, que ficou com apenas 30,3% na região. No Piauí, o petista alcançou 77%. Na Bahia, o maior estado da região, conquistou 72,6% dos votos válidos.

    Excetuando cinco capitais onde Bolsonaro ganhou por leve vantagem ou bairros de alta classe média, a região lhe deu um não categórico. Que razões explicam o fenômeno da resistência nordestina? É o que as linhas a seguir nos convidam a discutir. Para buscar uma explicação, é importante identificar os fatores e argumentos que deram vitória ao ex-capitão e, por exclusão, ver quais estavam presentes ou não no Nordeste e que diferenças em relação aos demais estados essa região apresentava.

    O antipetismo como
    força política

    Bolsonaro ganhou a eleições antes de tudo catalisando o ódio a Lula (que seguia latente, mas mostrou-se mais intenso do que se podia supor) e ao PT. O antipetismo vicejou, seja pela rejeição aos programas sociais de transferência de renda aos mais pobres, que desagradaram grande parte da classe média conservadora das regiões mais ricas e das capitais, seja por seu envolvimento direto com a corrupção ou alianças com setores da velha política, que jogaram setores pobres na mão da direita. Isso abriu a oportunidade para a grande ofensiva contra a esquerda que ora se observa, da qual a Lava Jato foi parte. Em segundo lugar, Bolsonaro soube explorar melhor que a esquerda o ódio aos velhos políticos, apresentando-se contra “tudo isso que está aí”, ainda que ele mesmo seja parte dessa velha política.

    O candidato fascista também utilizou melhor que a esquerda o medo da população de todas as faixas sociais contra a criminalidade crescente, prescrevendo o remédio aparentemente mais rápido contra isso – ainda que saibamos ineficaz – ou seja, mais violência policial contra o crime e a população das periferias, prometendo impunidade aos agentes do Estado. A esquerda não tem um programa contundente contra a criminalidade, parando às vezes na explicação de suas causas. O apoio das igrejas pentecostais conservadoras, que proliferam e agem nas periferias há anos, combinado com a utilização de um discurso preconceituoso contra as mudanças no terreno dos costumes e da sexualidade, que incomodam parte considerável da população pobre, foi outro fator para a vitória de Bolsonaro.

    Mentiras aos milhões

    Uma utilização mais ágil das redes sociais do que fez a esquerda e a propagação agressiva de mentiras, aos milhões – fake news -, no melhor estilo nazista, também ajudam a explicar a vitória. A exploração de discursos racistas, machistas e xenófobos não parece ser o que deu a vitória a Bolsonaro. A maioria dos eleitores parece não ter se importado com isso. Mas os resultados foram diferentes entre as regiões, como veremos. Acreditamos que o discurso neoliberal no terreno econômico tampouco teve grande importância para explicar o fenômeno Bolsonaro, que sequer tinha um programa claro nesse campo.

    No Nordeste, fatores como a rejeição aos velhos políticos, o medo da violência, o temor da população menos informada com as mudanças nos costumes, o crescimento das igrejas evangélicas, a disseminação de mentiras pelas redes sociais, estavam igualmente presentes nesta eleição. Não são tais fatores que podem explicar o resultado eleitoral distinto. Isso nos leva a buscar a avaliação da votação diferenciada no Nordeste em outros elementos.

    Investimentos públicos
    dos governos petistas

    O primeiro fator explicativo que nos parece evidente é o imenso impacto na vida econômica e social da região dos programas sociais e dos investimentos públicos, o que levou o PT continuar a ser o partido preferido na região e Lula um dirigente ainda muito admirado. Diversos programas sociais, como Luz para Todos, PROUNI, FIES, Bolsa Família e Mais Médicos tiveram imenso impacto na economia e na vida social da região, bem maior quem nas demais. A população reconhece em Lula e nos governos do PT e dos partidos aliados a autoria de tais iniciativas.

    A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais, beneficiaram diretamente o Nordeste. Quem passa em uma pequena cidade do sertão e vê um novo campus de um IF ou de uma nova universidade federal se destacando na paisagem, com seu impacto positivo na vida de milhares de famílias e na autoestima dessas cidades e outras no seu entorno, sabe do que estamos falando. Para que se tenha uma ideia, no Rio Grande do Norte, os IF saltaram de dois campi em 2006 para 21 nos últimos 12 anos. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a eleição da senadora Fátima Bezerra, do PT, como única governadora eleita nessa nova safra em todo o Brasil.

    Numa região de economia mais frágil, o efeito multiplicador keynesiano desses investimentos parece ter sido maior que nas demais. Segundo Aninho Irachande, professor de Ciência Política da UnB, cada R$ 1,0 investido na economia regional se transforma em R$ 1,6 em circulação (Carta Capital, 01.11.2018).

    Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos

    Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos. Essa é a raiz de sua rejeição e do apoio a Haddad.

    A força do Bolsa Família

    O Bolsa Família, como um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, tem a maioria dos beneficiários no Norte e Nordeste e isso parece ter feito grande diferença nas eleições também. Como exemplo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, em julho de 2017, quinze estados brasileiros localizados da região receberam 66,7% do total de dinheiro gasto pelo governo federal com o programa Bolsa Família no mês. Dos R$ 2,3 bilhões transferidos naquele mês, R$ 1,5 bilhão ficou com esses estados, criando um impacto imenso na economia e na vida das cidades e das famílias e elevando os IDHs municipais, evidentemente gerando também acusações de favorecimento e ciúme de líderes de outras regiões do país. Como se pode ver no gráfico abaixo, em 11 estados, mais de um terço da população recebe o benefício. Por tudo isso, o preconceito e o ódio contra Lula e o PT, o antipetismo, que turbinaram Bolsonaro nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, não eram tão intensos no Nordeste e o grande apelo de Lula e do PT se transferiram a Haddad.

    O mito do moderno
    contra o atraso

    Com base nos resultados eleitorais, ideólogos de direita chegam a afirmar que Bolsonaro teria vencido no Brasil “moderno” e Haddad na sua parte “atrasada”. Mas a pergunta que se coloca aqui é: errou a maioria que votou em Bolsonaro nas demais regiões do país ou errou o Nordeste? É “mais moderna” a maioria das demais regiões do país que votou num candidato defensor da ditadura e mesmo de seus torturadores, que defendem a morte de opositores, que propagam o preconceito contra negros, gays, o ódio e a mentira? Um trabalhador branco do Sul que vota num candidato que promete cortar direitos sociais tem mais consciência que uma família nordestina que defende seus programas sociais? Um negro do Sudeste que votou num candidato assumidamente racista votou pela “modernidade” ou em seu algoz? Uma mulher branca do Centro-Oeste que votou num candidato claramente machista e misógino demonstra mais consciência ou mais incompreensão sobre a realidade do que uma jovem negra nordestina indignada com Bolsonaro? Por que grandes jornais mundiais, artistas globais e mesmo governantes moderados de países capitalistas afirmam que o Brasil votou por um retrocesso?

    Voto e retrocesso

    Lembremos também que mesmo nas regiões em que Bolsonaro ganhou, a parcela mais crítica e consciente da população, os professores, os jovens das escolas e universidades públicas, por exemplo, votaram contra o retrocesso que ele significa.

    Votar em defesa de programas e direitos sociais, como ocorreu no Nordeste, de forma alguma é um fator de alienação política, mas de consciência. A Europa, por exemplo, tem mais programas de transferência de renda que o Brasil e as populações defendem essas conquistas e direitos com unhas e dentes, sendo isso um distintivo de alta consciência, não de alienação. Nesse sentido, é de se esperar que o Nordeste venha a ser um grande centro de resistência no governo Bolsonaro desde já.

    A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais beneficiaram diretamente o Nordeste. A tradição de luta contra a escravidão e a se­gregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares e Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena. É, talvez, a única no país onde a popula­ção assume uma identida­de regional própria, talvez só igualada pelos gaúchos

    Muitos perguntam se esse voto decorrente dos programas sociais não seria volátil, se transferindo do PT para o novo governo, caso Bolsonaro resolva, por exemplo, ampliar tais programas e investimentos. Como hipótese, pode ocorrer, mas aí já não estaríamos tratando de Bolsonaro, mas do contrário, o que é altamente improvável. O governo, com orientação neoliberal, quase com certeza, como já começou a fazer Temer, vai reduzir a face social do Estado e o alcance desses programas, até para castigar o Nordeste.

    Racismo, xenofobia, misoginia…

    Outro fator, não menos importante, que influenciou muito o resultado no Nordeste foi a rejeição aos discursos racistas, xenófobos, misóginos, discriminatórios de Bolsonaro, inclusive contra nordestinos. Esses geraram indignação na região, especialmente entre a juventude negra, as mulheres jovens e os setores mais conscientes da população.

    O Nordeste é, por excelência, a região mais negra, indígena e mestiça do país. A tradição de luta contra a escravidão e a segregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares, Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena nos costumes, na linguagem, na culinária, na música e na cor da pele. É, talvez, a única no país onde a população assume, com orgulho, uma identidade regional própria, até como artifício de defesa contra a discriminação, talvez só igualada pelos gaúchos.

    Grande parte da população da região se sentiu fortemente insultada e ameaçada por tudo de retrocesso que Bolsonaro significa. Não à toa foi em Salvador, um bastião da luta negra no país, onde ocorreu a maior manifestação contra Bolsonaro nestas eleições.

    Por fim, sem negar os patentes elementos de atraso ainda a superar na região, é possível dizer que o resultado também se explica pelo Nordeste ter uma longa trajetória de luta libertária e contestatória.

    A Confederação do Equador, que propunha uma república já no início do século XIX, massacrada pelo império que atrasou o país até à virada para o século XX, se deu aqui. (A libertação dos escravos aconteceu no Ceará em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, fruto da luta negra). Canudos ocorreu aqui. O sentimento e o orgulho regionais ainda são fortes. Ao mesmo tempo em que ainda amarga a existência das velhas oligarquias, das quais lenta e felizmente começou a se livrar, o Nordeste se insurge contra o retrocesso no país. Essa veia contestatória se fará presente nos próximos anos na vanguarda da resistência ao governo Bolsonaro.

    #AquiNão.


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    *Robério Paulino é Economista e professor de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor do livro Socialismo no século XX: o que deu errado? (Editora Kelps, 2008)
  • A resistível ascensão de Messias

    A resistível ascensão de Messias

    A resistível ascensão de Messias

    Texto de José Luís Fevereiro e Gilberto Maringoni*

    Bolsonaro só venceu as eleições por encontrar terreno fértil à pregação antissistêmica nos últimos anos. Talvez tenha sido quem melhor entendeu 2013 e as possibilidades abertas pela opção recessiva de Dilma Rousseff

    As eleições de 2018 representam uma derrota estratégica para a esquerda brasileira. Não estamos diante de um quadro usual em regime democrático. O candidato eleito defendeu abertamente – em campanha – a ditadura, a tortura, a supressão de direitos, o racismo, a misoginia, a homofobia e a marginalização da população vulnerável, bem como o primado da violência como mediadora das contradições sociais. Jair Messias Bolsonaro deu expressão a forças sociais adormecidas na sociedade, criando uma perigosa associação entre ordem e eliminação física de seus adversários.

     Assim, não é possível examinar esse quadro apenas observando os últimos meses de campanha. A previsível alteração nas relações entre as classes sociais e o esgotamento de um ciclo político na história nacional demanda uma análise de espectro mais amplo, que deve retroceder, pelo menos, até o início dos governos lulistas..

    Evidentemente, o espaço deste artigo é pequeno para uma radiografia mais profunda desse quadro. Lançamos aqui alguns de seus pontos essenciais.

    Fascismo e votos

    O pleito de 2018 representa a segunda vez em que a extrema direita com tinturas fascistas se lança de forma aberta à cata de votos. A oportunidade anterior aconteceu nas eleições de 1955. A disputa foi vencida por Juscelino Kubitschek (PSD, de centro-direita), com 54,1% dos sufrágios. O líder integralista Plínio Salgado (PRP) galvanizou a extrema direita e ficou em 4º Lugar, obtendo pífios 8,28% da preferência dos votantes.

    Nunca mais um representante desse campo se apresentou de cara limpa e peito aberto ao eleitorado. Aliás, após a ditadura militar (1964-85), ser chamado de “direita” era quase um xingamento. Vale perguntar: o que aconteceu, depois de quatro vitórias seguidas de candidatos de centro-esquerda, para que o ex-capitão do Exército conquistasse a presidência da República?

    Lula Lá

    Lula foi eleito em 2002 e reeleito em 2006 com mais de 60% dos votos válidos. Ao terminar o segundo mandato, em fins de 2010, sua popularidade alcançava incríveis 87% de aprovação. O crescimento econômico expressivo foi determinante para essa aceitação que possibilitou um quadro de virtual pleno emprego a programas sociais eficientes, com destaque para o aumento real de 70% no salário mínimo e a expansão do crédito ao consumidor, além da bem-sucedida experiência do Bolsa Família. Em tempos de boom das commodities (2004-12), foi possível alargar o mercado interno, incluindo milhões de trabalhadores no circuito de consumo.

    O pleito de 2018 representa a segunda vez em que a extrema direita com tinturas fascistas se lançou de forma aberta à cata de votos. A oportunidade anterior aconteceu nas eleições de 1955. A disputa foi vencida por Juscelino Kubitschek (PSD, de centro-direita), com 54,1% dos sufrágios. O líder integralista Plínio Salgado (PRP) galvanizou a extrema direita e ficou em 4º lugar, obtendo pífios 8,28% da preferência dos votantes

    Nesse quadro, o ex-presidente conseguiu a proeza de elevar o padrão de vida dos mais pobres sem tocar em interesses das classes dominantes. Por força da prosperidade contingencial, Lula abriu mão de usar o capital político para realizar reformas estruturais no país.

     O movimento social e político que desde o início dos anos 1980 impulsionou o PT, viabilizando uma enorme corrente de opinião e anseios por transformações profundas não se materializou entre 2003/2016. Não houve ações de governo que estivessem a altura dos desafios históricos colocados, por exemplo, como a reforma agrária para democratizar a propriedade da terra e a reforma tributária para inverter os custos de sustentação do Estado, hoje, majoritariamente, a cargo dos mais pobres.. Além disso, o enfrentamento ao rentismo encastelado nas maiores taxas de juros do planeta com a perversa consequência de agravamento da distribuição de renda, mudança na legislação de meios de comunicação enfrentando os monopólios privados, e reforma política criando mecanismos de democracia direta e reduzindo peso do dinheiro nos processos eleitorais.

    Esses tópicos compunham uma agenda democratizante e desenvolvimentista e foram deixados de lado pelo PT no governo federal, em nome de um difuso realismo administrativo. O abandono ganhou letra de forma em julho de 2002, na conhecida Carta aos Brasileiros, na qual o partido se comprometeu a não tocar em nenhum ponto sensível da dominação de classes no Brasil.

    Vários dirigentes petistas alegaram à época que a implementação daquelas demandas dependeria da correlação de forças, como se essa fosse um dado estático da natureza e não uma relação variável com a ação dos agentes da disputa política.
    Derrotas também fazem parte do processo de politização da base social. Lula se caracterizou em seus governos por construir consensos sem disputa, num jogo em que aparentemente ninguém perdia, enquanto a demanda externa seguisse aquecida. A cada “consenso” maior a desmobilização da base.

    Surfando no crescimento

    Surfando um período de forte crescimento econômico, Lula distribuiu renda na base da pirâmide social sem precisar enfrentar privilégios das elites. Programas importantes foram desenvolvidos, como por exemplo, o Bolsa Família, o Luz para Todos, o programa de cisternas no semiárido, o apoio à pequena agricultura, o aumento real do salário mínimo e a expansão da rede pública de universidades. O período de forte crescimento econômico permitiu ganhos reais para setores expressivos das classes trabalhadoras, o que favoreceu o aumento do padrão de consumo. Se isso fidelizou a Lula e ao PT contingentes expressivos do eleitorado, particularmente no Nordeste, a ausência de disputa política não reforçou a consciência de classe nem educou essa base social para a necessidade da mobilização.

     A recusa petista em definir claramente interesses de classe na sociedade serviu para embaralhar parâmetros no conflito distributivo..

    A comprovação de que várias conquistas no âmbito da ascensão social não tinham causa aparente, evidenciou-se em pesquisa do Instituto Datapopular, em 2012. Os resultados foram apresentados da seguinte forma:
    “Principal responsável pela melhoria de vida (entre quem acha que a vida melhorou):

    Eu/Meu próprio esforço -> 82%
    Minha família -> 69%
    Deus -> 61%
    Oportunidades -> 55%
    O governo -> 9%
    A sorte -> 7%
    Meu patrão -> 5%

    Como as percepções não eram excludentes, as porcentagens não somam 100%.

    O fato de “o governo” – ou as políticas sociais do Estado – serem apenas o quinto item, mostra que nem Lula e nem o governo dele fizeram questão de marcar diferenças com gestões anteriores. Ao despolitizar a direção das ações do poder público sob seu comando, o petista não disputou “narrativas”.

    Explorar contradições

    Explorar as contradições no interior das classes dominantes e nas representações políticas faz parte do jogo, mas seria crucial entender que a disposição desses setores em negociar só existiria mediante tensionamentos políticos por parte da esquerda e da pressão de massa, capaz de influir na correlação de forças. A opção do PT em abandonar o confronto em favor de pactuações a frio, revelou-se catastrófica quando a segunda onda da crise chegou em 2013. Da mesma forma, a diluição das diferenças com lideranças oligárquicas nos Estados contribuiu para o desastre manifestado a partir de 2014.

    Derrotas também fazem parte do processo de politização da base social. Lula se caracterizou em seus governos por construir consensos sem disputa, num jogo em que aparentemente ninguém perdia, enquanto a demanda externa seguisse aquecida. A cada “consenso” maior a desmobilização da base

    Cada vez que Lula chamou Sarney de “companheiro”, cada vez que uma liderança petista rezou com Silas Malafaia, cada vez que Lula pediu voto para um prócer peemedebista, um tijolo no impeachment de Dilma foi empilhado. Da negativa em nomear ministros de esquerda ou progressistas para o STF nasceu a condenação a Lula na justiça. .Da capitulação do governo Dilma em levar adiante a Cartilha Contra a Homofobia nasceu o “Kit Gay”, usado nas redes de WhatsApp em 2018.. Da acomodação com as cúpulas conservadoras das igrejas evangélicas nasceu a reação às pautas libertárias. Ao invés de disputar os trabalhadores evangélicos pela base, buscou-se o apoio por cima das suas lideranças que, fortalecidas, construíram a agenda que derrotou a esquerda nas periferias das grandes cidades em 2018.

    Manifestação de junho de 2013, em Brasília

    As disputas de Junho

    O ciclo de efervescência popular de junho de 2013 mostrou o aprofundamento da impaciência de parte da juventude urbana com a insuficiência dos serviços públicos. O movimento que começou no mês de maio, reivindicando mais Estado, educação, saúde padrão FIFA, melhorias na mobilidade urbana e redução das passagens foi tratado pelo PT como orquestração inimiga. Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, epicentro inicial das ebulições, concedeu entrevista em 19 de junho daquele ano, depois de os protestos assumirem caráter nacional, negando o atendimento das reivindicações. Ao invés de atuar como bombeiro, Haddad aumentou a tensão política, levando os enfrentamentos a um impasse. Foi o toque de reunir para a direita buscar se apossar das mobilizações.

    Pautas estranhas ao movimento foram impostas por ação da mídia, como a rejeição à PEC 37. O discurso antipartido e antipolítica, espalhou-se e, quando finalmente as mobilizações murcharam, tivemos como saldo a constatação de que a extrema direita ganhara o gosto pelas ruas.

    As mobilizações de 2013 não representaram, por óbvio, uma orquestração da direita, como setores do petismo sustentam, para ocultar os erros. Também não foram um avanço dos movimentos de massas hegemonizado pela esquerda, como poderia ter sido, se a principal força tida socialmente como de esquerda, o PT, não tivesse reagido tão mal.

     A resposta do governo federal foi muito aquém do necessário. Em reunião com representantes dos manifestantes, Dilma apresentou cinco metas de melhorias dos serviços públicos em transportes, saúde, transparência e educação, mas colocou a “responsabilidade fiscal” e o controle de gastos como objetivo geral do governo, ou seja, a continuidade do ajuste fiscal, iniciado em 2011.. Diante da ebulição social, a mandatária olhou primeiro para as planilhas. Segundo o Datafolha, 57% dos brasileiros consideravam sua gestão boa ou ótima no início de junho. No final do mês, o índice desabou para 30%.

    Dilma II, o desastre

    A presidenta se reelegeu em 2014 com apertada margem: 51,64% contra 48,36% de Aécio Neves, mas a vitória eleitoral logo se transformou em profunda derrota política diante da capitulação do governo à pressão do capital financeiro. Para surpresa do eleitorado, Dilma deu um giro de 180 graus e adotou um programa recessivo, muito semelhante ao do opositor. O estelionato eleitoral que cometeu quebrou um pacto não escrito com o eleitorado. .Ao longo da campanha, ela prometeu desenvolvimento, emprego, renda e manutenção de direitos.. A opção recessiva se materializou em forte tarifaço em janeiro de 2015. Sucessivos aumentos da taxa Selic e um programa de cortes que alcançou R$ 100 bilhões, fez a gestão petista abrir caminho para o avanço da direita, praticando um verdadeiro e inexplicável haraquiri político.

    A ação de Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara, boicotando o governo e aprofundando a crise era um movimento esperado; não o perceber e tentar sair do beco político concedendo às elites a adoção do programa econômico fez com que o PT perdesse o apoio da base social.

    Lula conseguiu a proeza de elevar o padrão de vida dos mais pobres sem tocar em interesse das classes dominantes. Por força da prosperidade contingencial, abriu mão de usar o capital político para realizar reformas estruturais no país

    O governo Dilma seguia a cartilha lulista: tentava conciliar interesses de classe a frio, sem disputa. Em fases de crescimento e alta popularidade, era tolerado pela burguesia, mas nunca acolhido por ela. As alianças ao centro – construídas com base no compartilhamento da gestão do Estado da forma tradicional, como se ao PT fosse concedido pela elite o privilégio do aparelhamento por ela exercido durante 500 anos – criaram uma ilusão de governabilidade e sustentabilidade do governo. Ao primeiro sintoma de fragilidade perante à base social, a aliança se desmontou e a corrupção, sistêmica ao histórico modelo de gestão do Estado brasileiro e adotado pelo PT, passou a ser usada para desmoralizar Lula, Dilma e os seus respectivos governos.

    Na avaliação geral, é preciso ressaltar que a extrema direita encontrou terreno fértil para vicejar e cresceu em situações de desesperança, desalento e aversão à política, como a história mostra.

     Lembremos que o movimento Cansei, lançado em 2006 por João Dória, Hebe Camargo, Luís D’Urso (ex-presidente da OAB-SP) e outros, reunia espectro político semelhante ao da extrema direita atual, mas não conseguiu juntar mais do que duas dezenas de pessoas em atos públicos. Mesmo assim Jair Bolsonaro jamais – em seus 28 anos de atuação parlamentar – passou de um folclórico deputado do baixo-clero..

    O terreno de lá para cá se alterou profundamente. Vale ressaltar que após a penúltima eleição presidencial, em dezembro de 2014, o desemprego era de 4%, praticamente um indicador de pleno emprego. Em março de 2016, segundo o IBGE, a taxa triplicou, chegando a 11%. Entre 2015 e 2016, o PIB caiu 7,2%, pior resultado desde 1900. A sensação de insegurança e descrédito com a política se disseminou pela base da sociedade.

    O empoderamento

    O balanço dos erros estratégicos não se resume ao PT. Toda a esquerda – PSOL incluído – capitulou frequentemente as ações de desqualificação da política e dos poderes eleitos e apoiou o empoderamento do judiciário. A agenda de esvaziamento da política vem de longe. Começou com a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000) – que retirou poderes aos governantes -, passou pela independência do Banco Central – que retirou importante instrumento de governo das mãos da Presidência da República – e chegou à famigerada Lei da Ficha Limpa (2010), apoiada por todas as bancadas da esquerda e que colocou sob tutela do judiciário a definição de quem é elegível ou não. O mais conservador dos três poderes da República, o único não eleito e composto pela meritocracia tal como a conhecemos por esses trópicos, exorbitou suas funções nos últimos anos, comprometendo as liberdades democráticas. A isso se soma uma onda reacionária no terreno dos costumes, reforçando preconceitos sobre sexualidade e convivência familiar que logo se transformaram em campanhas para calar vozes críticas, como o movimento Escola Sem Partido.

    O governo Temer e o “sistema”

    Consumado o golpe parlamentar de 2016 o governo Temer aprofundou as medidas econômicas recessivas e de desmonte do Estado, prolongando a crise. O aumento exponencial do desemprego e a perda de renda mergulharam de volta na pobreza setores que nos anos anteriores tinham experimentado algum nível de ascensão social. A rápida desmoralização do governo golpista, composto pelo rebotalho do sistema político, levou a duas tentativas congressuais de derrubar Michel Temer. Isso espraia na sociedade um forte sentimento de mudança. O judiciário, em ação concertada com o grande capital, retirou Lula da disputa e o condenou num processo totalmente desprovido de provas.

    Cada vez que Lula chamou Sarney de “companheiro”, cada vez que uma liderança petista rezou com Silas Malafaia, cada vez que Lula pediu voto para um prócer peemedebista, um tijolo no impeachment de Dilma foi empilhado. Da negativa em nomear ministros de esquerda ou progressistas para o STF nasceu a condenação a Lula na justiça. Da capitulação do governo Dilma em levar adiante a Cartilha Contra a Homofobia nasceu o “Kit Gay”, usado nas redes de WhatsApp em 2018

    Das lideranças egressas do que era socialmente percebido como o “sistema político”, Lula era o único que preservava a base de massa para ser um candidato competitivo.

    As eleições 2018

     O processo eleitoral de 2018 foi peculiar. Lula, o favorito nas pesquisas, conseguiu segurar a campanha eleitoral até meados de setembro, numa tática de alto risco buscando manter sua candidatura ao limite do possível.. Só com a derrota do último recurso jurídico, no início de setembro, o ex-presidente lançou a postulação de Fernando Haddad. Com pouco tempo de campanha pela frente, a principal força do campo progressista precisou concentrar seus esforços na transferência de votos para Haddad. Embora bem-sucedido nesse objetivo, o preço pago pela opção de manter o protagonismo com o ex-presidente foi que o candidato da extrema direita não foi combatido no primeiro turno.

    A maior proeza de Jair Bolsonaro não foi ter vencido as eleições, mas ter imposto sua agenda à disputa. Há uma pergunta essencial a ser respondida: por que – num país de 14 milhões de desempregados, com uma recessão sem sinais claros de reversão, em processo acelerado de desindustrialização e com serviços públicos rumando para o colapso – a agenda eleitoral se voltou para uma pauta claramente moralista e despolitizada?

     E mais: como alguém considerado pela direção do PT como o adversário ideal a ser batido no segundo turno teve esse poder de agenda ao longo dos últimos meses?.

    Talvez a chave da resposta esteja em como o próprio PT decidiu encarar o enfrentamento nas urnas. A principal candidatura não priorizou a luta política aberta. Condenado e encarcerado, Lula resolveu concretizar uma ideia de duvidoso efeito prático. A vertente traçada foi a de delegar tacitamente a direção de campanha aos advogados dele, que impetraram ações em cima de ações, numa comovente confiança no sistema jurídico brasileiro.

    O caminho não foi o de questionar o governo Temer e os representantes ocultos na disputa presidencial, mas o de mostrar Lula como vítima injusta de um processo fraudulento.

    O plebiscito sobre Lula

    A condição é verdadeira, mas fazer da situação do ex-presidente o centro da jornada eleitoral, ao invés dos problemas concretos vividos pela maioria dos brasileiros, foi erro sério. Em lugar de um julgamento de Temer e das reformas regressivas, Lula transformou o pleito em um plebiscito sobre si.

    A direção petista, percebendo a insuficiência dessa opção, agregou outra: a saudade dos bons tempos, quando o Brasil crescia e os salários também. O país era respeitado no mundo e o futuro parecia radioso. Parte disso é verdade.

    Saudade é um sentimento seletivo, como se sabe. Tende a ser unidimensional. Escolhemos o que lembrar e escolhemos o que esquecer. Diferentemente de olhar com criticidade o passado para entender o presente – a base do estudo da História – a saudade tem os dois pés no idealismo.

     Assim, os pilares da campanha petista até o final do primeiro turno tinha na vitimização e na idealização do passado suas linhas mestras. Ou seja, em sentimentos fora da política e do confronto..

    Uma terceira linha de conduta foi agregada a essas vertentes. Se o centro de tudo seria Lula, faltava uma peça no quebra-cabeças. O raciocínio se tornaria redondo com o mantra “Haddad no governo, Lula no poder”, um mal ajambrado slogan retirado da campanha de Héctor Cámpora (“Cámpora no governo, Perón no poder”) à presidência da Argentina, em 1973.

    Esse era o complemento para sustentar o nome de Lula como candidato até à undécima hora, transformando Fernando Haddad em mero biombo dele. Além de desqualificar o real candidato petista, a formulação o deixou na sombra até depois de iniciada a campanha. Haddad não participou de debates, sabatinas e entrevistas até o final de setembro. Isso dificultou muito a fixação do nome dele e a politização da campanha. Traçados esses vetores, uma resultante sobressai: o PT optou por despolitizar a campanha na primeira volta, deixando uma avenida aberta para que algum aventureiro aparecesse.

    Antipetismo e desencanto

    Quando Jair Bolsonaro sofreu o atentado, em 6 de setembro, a campanha mudou de rumo. Hospitalizado e com risco de morte, ele também se tornou vítima. Lula, por sua vez, perdeu a primazia dessa condição. Assim, o ex-capitão conseguiu, enfim, emplacar a agenda como central. Sem política, valendo-se de medos e preconceitos arraigados na população, Bolsonaro adicionou mais um ingrediente – o antipetismo, este evidenciado de novo tipo. Trata-se de uma repulsa popular, de viés conservador, ao partido. Ela se diferencia de uma reação de grande apelo à classe média, que via na ascensão dos pobres um problema a ser vencido.

     O novo antipetismo sensibilizou os órfãos do próprio PT, as vítimas da recessão patrocinadas por Dilma e Joaquim Levy eram os que aceleradamente perderam empregos, oportunidades e enfrentaram uma situação econômica que se degradava rapidamente.. Os que confiaram no discurso desenvolvimentista da candidata petista, frustraram-se com a mudança de rota não combinada. Esses formaram a massa de dezenas de milhões que entraram em desespero e caíram na conversa fácil da propaganda fascista e das respostas simples para problemas complexos.

    Dilma se reelegeu em 2014 com apertada margem: 51,64% contra 48,36% de Aécio Neves, mas a vitória eleitoral logo se transformou em profunda derrota política diante da capitulação do governo à pressão do capital financeiro. Para surpresa do eleitorado, Dilma deu um giro de 180 graus e adotou programa recessivo, muito semelhante ao do opositor

    Claro, houve Ciro Gomes e sua vergonhosa omissão na luta, desrespeitando até mesmo os apoiadores e correligionários. Houve também o uso criminoso do WhatsApp, que pediu exame mais detalhado, mas foi necessário fixar o foco na política. A campanha subterrânea do bolsonarismo, com a profusão de notícias falsas, encontrou terreno fertilizado também em uma intensa disputa ideológica antiesquerdista realizada desde 2013. Seria um erro grave apontar as fake news de forma isolada como responsáveis pela vitória da extrema direita. Esse é um recurso velho, usado pelo menos desde Goebbels nas campanhas do partido nazista. A novidade brasileira é que se montou um verdadeiro laboratório de como devem ser as disputas eleitorais daqui por diante: despolitização, mentiras, mensagens personalizadas e direcionadas e repetição constante em cenário social de crise.

    Bolsonaro fez essencialmente uma campanha antissistema. Foi, talvez, quem melhor entendeu as resultantes de 2013: a repulsa a “tudo isso que está aí”, a denúncia da corrupção, do Estado e dos partidos e a adesão a soluções mágicas, extrapolíticas e autoritárias.

    A resistência em tempos de Bolsonaro

    A vitória de Bolsonaro é a vitória da antipolítica e da pregação rasa antissistêmica. Em campanha, o candidato da extrema direita encontrou um terreno de desesperança e desencanto, motivado em grande parte pela opção recessiva do governo petista de 2015/2016. A essas características, a pregação fascista valeu-se do medo, da violência e da disseminação de notícias falsas e do poder de impor a agenda dele à sociedade.

    O balanço dos erros estratégicos não se resume ao PT. Toda a esquerda – PSOL incluído – capitulou frequentemente as ações de desqualificação da política e dos poderes eleitos e apoiou o empoderamento do judiciário

    A campanha deixou, porém, ativos à esquerda. Os 47 milhões de votos em Haddad mostraram que há base social para resistir. O movimento #elenão impulsionado por mulheres no país todo e a semana final do viravoto, mostraram que há militância organizada e organizável para travar a disputa. Esse será um enfrentamento de médio a longo prazo, centrado na afirmação de valores e na confrontação ideológica. Não é hora de recolher bandeiras. Mulheres não voltarão à cozinha, gays não voltarão ao armário, negros não voltarão à senzala e trabalhadores não abrirão mão dos direitos sociais.

     O caminho da resistência passou necessariamente pela formação de uma ampla frente democrática com os movimentos sociais, sindicatos, centrais e partidos progressistas em defesa de democracia e dos direitos sociais.  Passou, também, pelo fortalecimento de um polo à esquerda com as forças que se organizaram em torno da campanha de Boulos, PSOL, PCB, APIB, MTST e outros para disputar os rumos da resistência.


    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

    Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL
    *Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC
  • Nova revista da FLC explica “como chegamos a isso aí”

    Nova revista da FLC explica “como chegamos a isso aí”

    Nova revista da FLC
    explica “como chegamos a isso aí”

    A Fundação Lauro Campos lançou a 23 ª edição da revista Socialismo e Liberdade. Nesta edição, a revista busca traçar uma ampla e profunda reflexão sobre como chegamos até aqui, ou seja, com a vitória da extrema direita pela primeira vez na história para a presidência do Brasil. Para isso, a revista investiga o passado recente para tentar explicar o presente. O economista José Luís Fevereiro e o historiador e jornalista Gilberto Maringoni refizeram os passos dos governos petistas, desde 2013, e buscaram analisar iniciativas, amarras e compromissos com as classes dominantes, que paulatinamente lhes ceifou a iniciativa política.

    A edição traz, ainda, a disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, os 30 anos da Constituição de 1988, o saldo político do PSOL nessas eleições e muitas outras matérias.

    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

    Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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  • A entrega da Embraer e a rota do eterno atraso

    A entrega da Embraer e a rota do eterno atraso

     A entrega da Embraer
    .e a rota do eterno atraso

    Texto de Demétrio G. C. de Toledo*

    A empresa brasileira parece seguir o destino de Ícaro, ao voar muito perto do sol. Com meio século de êxito nas modalidades de jatos regionais, aviões de treinamento e, futuramente, cargueiros aéreos, a Embraer concorre em mercados inéditos para empresas do Sul do mundo. A venda para a Boeing não se resume à mera transação comercial, mas à alienação de pesquisas de longo curso, tecnologia de ponta e conhecimento acumulado. Um governo sério trataria a questão como caso de segurança nacional.

    Na manhã do dia 5 de julho de 2018, espremida entre a celebração da independência dos EUA, na véspera, e o jogo no dia seguinte – da seleção canarinho contra a Bélgica pelas quartas de final da Copa da Rússia – embate que o Brasil acabaria perdendo por 2 a 1, foi divulgado o memorando de entendimento – em inglês, memorandum of understanding, ou MoU – entre a Boeing e a Embraer para venda da empresa brasileira à gigante estadunidense.

    O MoU adianta a intenção da Boeing de adquirir 80% da aviação comercial da Embraer por meio da formação de uma joint venture entre as empresas, com possibilidade de compra dos restantes 20% em um prazo de dez anos. A isso se soma a aquisição parcial do setor de aviação militar por meio de outra joint venture dedicada à comercialização do cargueiro militar KC-390.

    Estamos assistindo, sete décadas depois da fundação do Centro Técnico de Aeronáutica, semente do setor, e quatro anos antes de o Brasil completar dois séculos de sua independência, ao fim do capítulo aeronáutico de nossa luta por um desenvolvimento industrial tecnológico autônomo

    Estamos assistindo, sete décadas depois da fundação do Centro Técnico de Aeronáutica, semente do setor aeronáutico brasileiro, e magros quatro anos antes de o Brasil completar dois séculos de sua independência, ao fim do capítulo aeronáutico de nossa história de luta por um desenvolvimento industrial tecnológico autônomo.

    1. Autonomia tecnológica, desenvolvimento e soberania

    A tecnologia ocupa lugar central no modo de produção capitalista. Sua centralidade deriva não apenas de sua função nos processos de acumulação e extração de mais-valia, como também do fato de a tecnologia ser desigualmente distribuída entre os países. As relações de dominação e dependência entre Estados são definidas pelo acesso desigual à tecnologia, que conforma uma estrutura de centro e periferia no sistema internacional, atribuindo a alguns países o papel de produtores de bens de alta intensidade tecnológica e a outros o papel de produtores de commodities.

    Essa desigualdade, por sua vez, é mantida por meio das inúmeras formas de monopólio tecnológico que restringem o acesso da periferia às tecnologias mais avançadas ou estratégicas. Mantém-se aí uma condição de dependência tecnológica em relação aos países centrais. É por isso que o desafio central do desenvolvimento das nações da periferia do capitalismo consiste em quebrar o monopólio tecnológico dos países centrais e dominar um conjunto amplo de tecnologias. É a maneira de garantir sua autonomia tecnológica e sua soberania política.

    Foi justamente isso que o Brasil conseguiu fazer na indústria aeronáutica: quebrar o monopólio tecnológico dos países centrais. Com a compra da Embraer pela Boeing, os EUA tentam restabelecer esse monopólio. É o que está em jogo nesse momento.

    2. A entrega da Embraer: escolha entre perder ou perder?

    O setor de aviação comercial passa nesse momento por uma de suas mais profundas reestruturações desde o processo de fusões e aquisições da década de 1990. Dos anos 2000 para cá, o setor se estruturou em torno de um duplo duopólio: Boeing e Airbus, competindo nos mercados de aviões com capacidade de 150 ou mais passageiros; e Embraer e Bombardier, competindo nos mercados de aviões com capacidade de até 150 passageiros.

    O principal argumento apresentado para defender a entrega da Embraer à Boeing faz menção à recente aquisição do projeto dos jatos regionais CSeries, da canadense Bombardier, pela europeia Airbus, e o impacto que essa mudança na estrutura do setor aeronáutico mundial poderá ter sobre a competitividade e sobrevivência da brasileira a longo prazo. Segundo esse argumento, a aquisição da Bombardier – que no último quarto de século perdeu sistematicamente para a Embraer a competição no mercado de jatos regionais – pela potente Airbus acirraria de tal modo a competição com a Embraer que a inviabilizaria em alguns anos.

    A justificativa para a entrega resume-se, portanto, à seguinte disjuntiva paradoxal: perder ou perder – perder a Embraer agora ou perder a Embraer em alguns anos. Esse argumento está correto? Haveria alternativa? Claro que sim.

    A aquisição da Bombardier pela Airbus de fato muda o patamar de competição no setor de jatos regionais de médio porte. Por ora, no entanto, as principais vantagens estão com a Embraer, cuja posição em termos de qualidade de seus produtos e aceitabilidade pelo mercado é inegável. Nos termos em que o argumento foi colocado, parece que houve época em que a Embraer não enfrentou feroz e capacitada concorrência de suas competidoras e que a concorrência com a Airbus representa um desafio absolutamente inédito para a Embraer.

    A entrega de 80% do negócio de jatos regionais resultará na total desnacionalização da Embraer e no fim inglório de uma empresa cuja missão sempre foi, e precisa continuar a ser, contribuir para o desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil e de seu povo

    Se a concorrência com outras empresas altamente capacitadas não constitui novidade para a Embraer, é preciso reconhecer que a entrada em cena da Airbus or meio da compra da Bombardier não será tarefa fácil.

    A Embraer, no entanto, tem plenas condições de enfrentar e vencer essa competição por meio de alianças estratégicas com a Boeing, sem que isso implique a entrega da Embraer à Boeing. Uma das possibilidades seria estabelecer acordos em torno de projetos específicos entre as duas companhias. A Boeing também está pressionada pela aquisição da Bombardier pela Airbus – a concorrente direta – situação que daria maior poder de barganha à Embraer para negociar um contrato menos lesivo ao interesse nacional. Seriam acordos que preservassem a Embraer como empresa nacional sediada no Brasil, mantendo a ação de classe especial, a golden share, do Estado brasileiro e colocando a brasileira na posição de líder dos projetos. Caberia à Boeing participação minoritária na associação.

    A entrega de 80% do negócio de jatos regionais – com direitos de compra do restante em um prazo de dez anos – resultará na total desnacionalização da Embraer e no fim inglório de uma empresa cuja missão sempre foi, e precisa continuar a ser, contribuir para o desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil e de seu povo.

    A entrega nos termos propostos no MoU terá duas consequências graves. Em primeiro lugar, resultará na transferência, em médio prazo – dez anos -, de toda a estrutura de produção, pesquisa e desenvolvimento da Embraer para os EUA para ficar mais próxima da sede da Boeing e da cadeia aeronáutica estadunidense. Não haverá nenhum motivo para a empresa continuar no Brasil, que oferece vantagens locacionais muito pequenas comparadas aos EUA.

    Em segundo lugar, a separação do setor de aviação comercial – responsável pela maior parte do faturamento e lucro da Embraer – do setor de defesa, deve inviabilizar quase imediatamente este último. Sem os volumosos ingressos de recursos advindos do setor comercial, sem a necessidade de atualização tecnológica constante, dependendo apenas de compras governamentais e enfrentando um ambiente de competição muito forte e repleto de restrições de propriedade intelectual, a área de defesa se torna financeira, comercial e tecnologicamente inviável sem o setor de aviação comercial.

    Assim, a possibilidade de que a Boeing venha a comprar num futuro próximo a empresa de defesa, cuja inviabilidade é óbvia, é muito grande.

    3. Os múltiplos impactos da entrega da Embraer

    A venda da Embraer é, junto com a entrega do pré-sal, um dos lances mais ousados da geopolítica estadunidense em busca do objetivo de neutralizar qualquer pretensão de liderança regional do Brasil e de impedir o desenvolvimento nacional autônomo e soberano.

    A entrega da Embraer nos relega à condição de economia primário-exportadora, revertendo oitenta anos de desenvolvimento industrializante. Alinhado a isso, a Boeing reserva ao Brasil um lugar “privilegiado” na indústria aeronáutica mundial: o papel de produtor de biocombustíveis de aviação a ser fornecidos para a Boeing em futuro próximo. Sai a empresa industrial intensiva em tecnologia, volta a plantação de cana.

    O setor aeronáutico brasileiro se resume à Embraer e a umas poucas fornecedoras de produtos de baixo valor agregado e pequena intensidade tecnológica, à exceção de uma ou duas empresas. Nem por isso a Embraer deixa de ser fundamental para a combalida indústria brasileira. A necessidade de integrar a seus projetos de alta tecnologia e novos materiais, empregar processos de manufatura avançada e gerir cadeias globais de fornecedores coloca o polo de São José dos Campos em contato com o que há de mais avançado na indústria e tecnologia mundiais, com efeitos que podem se espraiar sobre outros setores industriais.

    Nenhum governo, por mais entreguista e subserviente aos interesses estrangeiros que seja, sequer proporia discutir a entrega de tão valioso patrimônio construído com o sacrifício de gerações e gerações de brasileiras e brasileiros

    A Embraer reúne, ao lado da Petrobras, o mais competente corpo de engenharia e gestão da indústria brasileira, sendo responsável pela qualificação de trabalhadores altamente especializados. Esses engenheiros contribuem para a qualificação de empresas, universidades, laboratórios e instituições de pesquisa.

    A entrega da Embraer resultará no curto prazo em corte de postos de trabalho e no médio prazo na extinção completa desses empregos. São 16 mil postos diretos e oito mil indiretos. O Brasil deveria aproveitar essa mão de obra especializada para fortalecer a empresa e expandir sua produção. Cada trabalhadora e trabalhador incorpora décadas de conhecimento tácito acumulado em várias gerações. O custo de descartar esse vasto repositório de conhecimento é proibitivo para um país com as carências do Brasil.

    Por fim, a entrega da Embraer demole um dos pilares da Estratégia Nacional de Defesa do Brasil, o fortalecimento de nossa base industrial de defesa. A separação dos setores de aviação comercial e de defesa, ao contrário de garantir a continuidade deste sob controle do Estado brasileiro, deverá inviabilizá-lo no curtíssimo prazo, forçando sua falência ou obrigando a entrega também do setor de defesa. Nesse sentido, não é exagero dizer que a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa estão sendo decididas em Washington, e não em Brasília.

    4. Fim de linha, ou nem tudo está perdido?

    A pressa da Boeing e do governo brasileiro em concluir o mais rapidamente a entrega da Embraer, deve-se ao fato de o Golpe de 2016 ter aberto uma janela de oportunidades para leiloar o país ao capital estrangeiro em geral, e ao estadunidense em particular, e submeter o Brasil aos imperativos geopolíticos dos EUA, mas isso tem data para acabar: as eleições presidenciais de 2018. Sob condições de normalidade democrática e precisando prestar contas ao povo, nenhum governo, por mais entreguista, por mais subserviente, por mais sabujamente alinhado aos interesses estrangeiros que fosse, sequer proporia discutir a entrega de tão valioso patrimônio nacional construído com o sacrifício de gerações e gerações de brasileiras e brasileiros. Eis aí mais uma razão para a esquerda vencer as eleições de 2018.

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Demétrio de Toledo é professor de Relações Internacionais da UFABC
  • Fake news: como enfrentar a desinformação sem cercear a liberdade de expressão

    Fake news: como enfrentar a desinformação sem cercear a liberdade de expressão

    Fake news: como enfrentar a
    desinformação sem cercear a
    liberdade de expressão

    Texto de Bia Barbosa e Jonas Valente*

    A polêmica sobre notícias falsas na rede não pode servir de álibi para grandes corporações midiáticas definirem o que pode ou não ser divulgado, dando curso a uma espécie de censura privada. Até mesmo figuras de proa do Judiciário acabam fortalecendo a ideia de que a imprensa tradicional seria uma espécie de “guardiã da verdade” em meio à multiplicação de vozes e opiniões pela internet.

    As campanhas eleitorais vêm passando por uma série de mudanças, marcadas, sobremaneira, pelo uso intenso das novas tecnologias de informação e comunicação. Plataformas digitais como facebook e aplicativos de mensagens como o whatsapp já passaram a ser um espaço privilegiado de circulação de informações e busca do eleitorado. Tal avalanche comunicacional tem gerado, por outro lado, um debate sobre quais informações são verdadeiras e como fazer para identificar cada uma delas.
    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de eleições.

    Em outubro passado, no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral-TSE criou um Conselho Consultivo para propor uma forma de fiscalizar e impedir a reprodução/compartilhamento de notícias falsas na internet. Convidou o Exército, a Agência Brasileira de Inteligência-Abin, a Polícia Federal, entre outros órgãos, para discutir regras a serem aplicadas no país. Desde então, o presidente da Corte, Luiz Fux, tem feito afirmações preocupantes, incluindo a de que o resultado de uma disputa eleitoral poderia ser anulado “se o resultado da eleição for fruto de uma fake news”. Segundo Fux, a anulação seria feita com base no Código Eleitoral, que já considera crime a divulgação de propaganda com fatos sabidamente inverídicos relacionados a partidos ou candidatos.

    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

    Mas, como comprovar que a maioria dos mais de 100 milhões de eleitores brasileiros terá tido seu voto influenciado por uma ou várias informações manipuladas? Num contexto de ruptura democrática já em curso, a declaração é preocupante, principalmente porque as fake news poderiam, nesse caso, ser usadas como pretexto por aqueles que não concordarem com um resultado das urnas.

    Ignorando a legislação

    Fux engrossa o discurso daqueles que defendem a necessidade de um novo marco legal no país para combater as chamadas notícias falsas. Qualquer lei que seja aprovada agora pelo Congresso não terá mais validade para o pleito deste ano. Mesmo assim, em junho, por ocasião de uma Comissão Geral realizada sobre o tema no Plenário na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia do DEM-RJ, propôs a criação de “conselhos de supervisão” que poderiam ordenar a remoção de determinado conteúdo da rede, de forma provisória, antes da deliberação final do Poder Judiciário. Para Maia, a medida seria necessária porque “a internet não pode ser espaço de vácuo legal, terra sem lei”.

    O presidente da Câmara ignora, assim, não apenas o Marco Civil da internet, lei aprovada em 2014 e que se tornou referência global para a regulação de direitos e deveres no mundo online, como todo o marco normativo brasileiro para crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação – e que já pode ser utilizado para o tratamento de notícias falsas que circulam na rede. Esse marco foi base, por exemplo, para a recente decisão da Justiça sobre as mentiras disseminadas nas redes sociais, após o assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e do motorista Anderson Gomes.

    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

    Mesmo assim, o Congresso brasileiro foi tomado por dezenas de novos projetos de lei propondo enfrentar o fenômeno, baseados em dois eixos centrais: 1) a criminalização, com a criação de um novo tipo penal, da produção e compartilhamento das fake news, numa resposta punitivista ao problema; e 2) a remoção imediata, pelas plataformas, de conteúdos considerados falsos. Essa tentativa de regulamentar a retirada de conteúdos da internet, por suposta falsidade ou suposta ofensa a terceiros, vem sendo reiterada por inúmeros deputados federais, que veem aí uma oportunidade de silenciar vozes dissonantes durante a disputa eleitoral.

    Em paralelo, a imprensa tradicional brasileira tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar o histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação “de qualidade”. Essa suposta isenção ignora, inclusive, o histórico de desinformação, com notícias flagrantemente falsas, assuntos manipulados e pautas silenciadas pelos meios tradicionais do país, por decisão de grupos econômicos, políticos e/ou religiosos proprietários desses meios e/ou pressão de seus anunciantes. Trata-se de um movimento que visa manter o domínio dos grupos comerciais, que sempre se beneficiaram de uma estrutura de mercado concentrada, afetando a diversidade e pluralidade de ideias e a qualidade do debate público, sobretudo, num ano eleitoral.

    Riscos à liberdade de expressão

    A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a privacidade dos usuários de internet.

    Em primeiro lugar, é importante lembrar que o próprio conceito de fake news é questionado por diversos especialistas em todo o mundo. No relatório Uma abordagem multidimensional sobre a desinformação, lançado em março de 2018, o Grupo de Alto Nível da União Europeia sobre fake news e desinformação online aponta para uma taxonomia diversa da ideia de “notícias falsas” e defende que o debate seja feito baseado nos conceitos de “desinformação”, “informações ludibriadoras” ou “notícias fraudulentas”. Aspectos como contexto, interpretação e autoria das informações devem ser considerados na análise de qualquer conteúdo.

    Nesse sentido, um primeiro risco da regulação da questão passa por conceituar o tema. Em workshop organizado em abril pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, especialistas de diferentes setores apontaram que qualquer definição de fake news não pode ser vaga e ampla, sob o risco de cercear o debate político. A caracterização de um conteúdo como “notícia falsa” deveria, assim, requerer pontos como: a) a simulação/fabricação de um discurso/notícia factual, o que, por princípio, excluiria conteúdos opinativos dessa caracterização; b) a distorção deliberada de fatos e dados; e c) a difusão visando um dano específico, considerado o elemento da intencionalidade no processo.

    A imprensa tradicional tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar seu histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação
    “de qualidade”

    A preocupação com a conceituação é mais do que justificada, considerando que entre um conteúdo totalmente falso e um “verdadeiro” existem gradações infinitas. Se, por um lado, um fato ou dado totalmente falso pode ser facilmente identificado, por outro, todo o restante carece de uma análise mais complexa. Preocupantemente, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional trabalham com conceitos ainda mais vagos, como o de “informações prejudicialmente incompletas”.
    Um segundo aspecto central do debate é sobre a quem cabe analisar um conteúdo e caracterizá-lo como fake. Alguns países têm adotado medidas temerárias nesse sentido.

    O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes, sob a preocupação da comunidade internacional. É o caso da lei alemã, que obriga plataformas a derrubarem em 48 horas qualquer conteúdo com fortes indícios de serem “ilegais”. A norma tem sofrido tantas críticas que a gestão Merkel já considera revê-la. Na Malásia, onde a disseminação de fake news foi criminalizada, um turista dinamarquês foi preso por ter publicado em uma rede social mensagem sobre o tempo de atendimento de uma ambulância diferente do efetivamente ocorrido.

    Interesse público

    Em março de 2017, os relatores especiais para a Liberdade de Expressão de diversos organismos internacionais, como a ONU, publicaram conjuntamente um documento intitulado Declaração sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda. Entre as recomendações feitas pelos relatores está a de que restrições à liberdade de expressão devem, necessariamente, considerar o interesse público, em casos como incitação à violência ou à discriminação.

    No Brasil, o Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965/14 – estabelece que o provedor de aplicações da rede, somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de informações geradas por terceiros, se não derrubar o conteúdo após determinação da Justiça. Os casos relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade podem ser apresentadas perante os juizados especiais, Art.19, § 3.

    O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes

    O objetivo de tal dispositivo, baseado em padrões internacionais, é impedir que haja, por parte das plataformas digitais, remoções indiscriminadas de conteúdo na internet que resultem na prática de censura privada. Qualquer tentativa de regular a questão deve, portanto, passar pelo crivo judicial, que é quem tem as melhores condições para avaliar se houve danos na veiculação de determinado conteúdo. Mídias online, e não as redes sociais, devem sim, ser responsabilizadas pela veiculação de notícias comprovadamente falsas. Mas decisões tomadas a posteriori por juízes e não pelas plataformas permitem o contraditório e a ampla defesa em juízo.

    Pouca transparência

    Atualmente, plataformas como Google e Facebook já têm realizado filtros automatizados e pouco transparentes, baseados em algoritmos ou bloqueadores, para derrubar o alcance de determinados conteúdos na internet, quando não para removê-los por completo, incorrendo muitas vezes em censura privada. O Facebook, por exemplo, analisa conteúdos considerados “caça-cliques” e já removeu cerca de 600 milhões de notícias falsas no primeiro trimestre de 2018 em todo o mundo.

    Em maio, a rede social anunciou uma parceria com agências de checagem. A partir da notificação de usuários, o conteúdo é enviado para a análise das agências e, se for considerado inverídico, terá seu alcance reduzido. Menos de um mês depois, porém, a checagem da agência Lupa, parceira do Facebook, em torno da entrega de um terço do Vaticano ao ex-presidente Lula, na prisão em Curitiba, comprovou os argumentos de quem ver no mecanismo um risco para a liberdade de expressão.
    Entre declarações do Vaticano, do Partido dos Trabalhadores e do consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano, Juan Grabois, a agência carimbou uma matéria do Portal Fórum como fake, posteriormente, comprovada como verdadeira. Mas o estrago já havia sido grande. Além da redução do alcance da publicação, o Facebook notificou todos os usuários que haviam compartilhado a notícia de que ela vinha de uma página que produzia fake news.

    Nada contra, pelo contrário, à checagem de notícias. Trata-se de uma prática do bom jornalismo. Mas, transformar as agências em certificadoras definitivas de conteúdos que poderão ou não circular livremente nas redes é algo que vai na contramão da promoção de um ambiente de liberdade de expressão. Iniciativas das plataformas que absolutizam a referência desses checadores e da mídia tradicional são, portanto, bastante preocupantes, e podem reproduzir, num ambiente de monopólio na internet, a concentração que já vivenciamos nos meios tradicionais, com sérios impactos à diversidade e pluralidade.

    Controle ou censura?

    O Google, infelizmente, tem trafegado no mesmo sentido. Além de estampar um selo de checagem de fatos em notícias, informa que tem aprimorado seu algoritmo para não priorizar nas buscas conteúdos considerados enganosos. Se seguirem agindo como editoras de conteúdo, cabe perguntar se a não responsabilização judicial das plataformas por informações emitidas por terceiros deve permanecer como tal. Sobretudo, num contexto eleitoral, também cabe perguntar se o controle do fluxo de conteúdos na internet por gigantes globais do setor não ameaça a própria soberania nacional.

    A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e à privacidade dos usuários de internet

    Em terceiro lugar, criminalizar o compartilhamento de conteúdos pelo público geral configura medida totalmente desproporcional. Por maior que seja o efeito dos compartilhamentos, condenar à prisão indivíduos por, simplesmente, redistribuirem ou promoverem conteúdos dos quais não são autores ou que não modificaram não pode ser visto como uma medida eficaz para enfrentar esse problema. Na maior parte das vezes, o cidadão comum sequer tem informações ou estrutura para verificar a veracidade de um conteúdo que circula pela internet. Apontar, nessa direção, só fará os usuários digitais exercerem autocensura e deixarem de compartilhar informações na rede. Isso pode ser extremamente danoso para um processo eleitoral democrático. Democracias em todo o mundo convivem com um grau de desinformação elevado, mas não com a censura. Assim, a responsabilização de criadores e disseminadores deliberados das chamadas “notícias falsas” deve passar muito mais por medidas civis e econômicas do que criminais.

    Caminhos para enfrentar o problema

    Em sociedades democráticas, é o confronto de ideias e a existência de debates abertos e plurais que podem combater a desinformação. É por isso que, em sua declaração conjunta, os relatores da ONU e da OEA para liberdade de expressão afirmam que os Estados – incluído o poder Legislativo – têm a obrigação de promover um ambiente de comunicação livre, independente e diverso, o que inclui a promoção da diversidade nos meios de comunicação e, também, a existência de meios de comunicação pública fortes, independentes e dotados de recursos adequados.

    Já as plataformas devem ser neutras e transparentes. Essa discussão avança em todo o mundo e ganhou corpo após o escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica. Há diversos mecanismos que poderiam ser pensados para garantir transparência sobre seu funcionamento e ampliar o controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, desmontando os efeitos bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas notícias falsas. Um regramento importante seria, por exemplo, assegurar transparência sobre conteúdos pagos, obrigando as plataformas a manterem registros de anúncios e postagens impulsionados, valores, anunciantes e alcance – especialmente nas eleições, como forma de evitar o abuso do poder econômico na propaganda na Internet.

    Do ponto de vista legislativo, a única lei que pode contribuir de fato para evitar a potencialização das chamadas notícias falsas é uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. A produção e direcionamento das chamadas fake news hoje é fruto da coleta e tratamento maciços e indiscriminados de dados pessoais. Por isso, como já recomendou a Comissão Europeia, quanto maior a proteção e o controle dos usuários sobre suas informações, menor a incidência de intermediários e da dinâmica que estimula a promoção das chamadas notícias falsas, seja por motivação política por meio de conteúdos impulsionados, seja para fins de monetização por meio da busca de likes e compartilhamentos. A Câmara dos Deputados já aprovou um projeto nesse sentido, que aguarda agora votação pelo Senado (PLC 53/18).

    Debate qualificado

    Por fim, políticas públicas de educação para a mídia e a promoção de práticas de empoderamento digital são fundamentais para serem colocadas em curso, incluindo aí o fomento à produção de conteúdos positivos e contranarrativas que engajem a sociedade num debate mais qualificado.

    Por isso ONU, OEA, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa-OSCE e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos-CADHP defendem “o desenvolvimento de iniciativas participativas e transparentes para uma melhor compreensão do impacto da desinformação e da propaganda na democracia, na liberdade de expressão, no jornalismo e no espaço cívico”.
    Se o Brasil apostar nessas medidas preventivas, atacando as causas do problema, a chance que teremos de construir um ambiente de debate público menos permeável à desinformação será, sem dúvidas, muito maior, mais efetiva e mais perene.
    Senão, seguiremos enxugando gelo.

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e diretores do Intervozes. Texto elaborado a partir da contribuição apresentada pelo Intervozes à Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação com Participação Popular, da Câmara dos Deputados.
  • Eletrobras pode terminar como mais um capítulo do desmonte nacional

    Eletrobras pode terminar como mais um capítulo do desmonte nacional

    Eletrobras pode terminar como mais
    um capítulo do desmonte nacional

    Texto de Rita Casaro*

    A companhia não é apenas uma geradora de energia, mas um complexo que envolve quase um terço da eletricidade produzida no país – metade de toda a transmissão – e atende seis Estados da Federação, na área de distribuição. Podemos estar diante da desarticulação do sistema energético nacional e de uma brutal elevação de preços ao consumido

    Maior holding de energia da América Latina, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, completou 56 anos de instalação oficial no dia 11 de junho. A decisão de criar a companhia havia sido tomada em 1954 por Getúlio Vargas por meio de projeto de lei que enfrentou resistência no Congresso e levou sete anos para ser aprovado. Após a epopeia parlamentar, a Lei nº3.890-A, finalmente foi sancionada por Jânio Quadros, em 25 de abril de 1961 e lançada no ano seguinte, em cerimônia sob a vista do então presidente João Goulart.

    Maior holding de energia da América Latina, a Eletrobras foi criada por Getúlio Vargas em 1954. O projeto demorou sete anos para ser aprovado no Congresso. A lei foi sancionada por Jânio Quadros, em 1961. O início das obras se deu no ano seguinte, no governo Jango

    Essa longa história – um marco importante da engenharia nacional e da capacidade de planejamento e realização do Estado – pode ter desfecho nada glorioso sob a batuta de Michel Temer, que anunciou, em agosto do ano passado, a intenção de privatizar a companhia.

    Compasso de Espera

    Sem sucesso em aprovar a inclusão no Programa Nacional de Desestatização-PND por meio da Medida Provisória nº 814/2017, cuja validade expirou sem ter sido votada, o governo lançou mão do Projeto de Lei nº9.463/2018 que também repousa na Câmara. Com dificuldades em fazer tramitar a matéria antes das eleições previstas para outubro, os R$ 12 bilhões que o Tesouro esperava arrecadar com a venda da empresa foram excluídos do orçamento de 2018.
    A cifra é o primeiro ponto a chamar atenção no processo, tendo em vista que, segundo a própria administração federal, o total de ativos da Eletrobrás soma R$ 170,5 bilhões e o valor patrimonial atinge os R$ 46,2 bilhões. O evidente mau negócio com a entrega de patrimônio público a preço irrisório, porém, está longe de representar o maior prejuízo a ser causado pela privatização da empresa, conforme apontam especialistas do setor.

    Maior conglomerado de geração

    A companhia é hoje, segundo dados oficiais, o maior conglomerado brasileiro de geração de energia elétrica, tendo produzido 182,1 milhões de MWh em 2017. Isso corresponde a mais de um terço do consumo no país. No ano passado, a capacidade instalada da Eletrobras atingiu 48.134 MW, o que representa 31% do total no Brasil. Noventa e cinco por cento desse montante tem origem em fontes limpas, especialmente hídrica (leia quadro 1). Ainda, responde por cerca de 50% de toda a transmissão de energia elétrica, somando 65 mil quilômetros de linhas com tensão maior ou igual a 230 KV. Também atua na área de distribuição de energia atendendo 13 milhões de habitantes numa área territorial de 2,46 milhões de km², nos Estados do Acre, Eletroacre; Alagoas, Ceal; Amazonas, Amazonas Energia; Piauí, Cepisa; Rondônia, Ceron; e Roraima, Boa Vista.

    Para a Federação Nacional dos Engenheiros-FNE, se a privatização se confirmar, terá como consequência a deterioração do setor elétrico e prejudicará os interesses do país, pelo papel estratégico que a holding representa. “Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”, afirma o presidente da entidade e profissional do setor, Murilo Pinheiro.


    Distribuidoras na berlinda

    Suspenso o plano de desestatizar a Eletrobras em seu conjunto, o objetivo da direção da empresa e do governo federal é vender seis distribuidoras.
    Para tornar o produto mais interessante ao mercado, segundo consta na justificativa do projeto de lei, a Eletrobras deve assumir cerca de R$ 11 bilhões em dívidas das distribuidoras, cujo passivo chega a R$ 24,9 bilhões.

    Completa a promoção de venda a liberação do cumprimento de indicadores de qualidade no fornecimento de energia pelos futuros controladores. A denúncia foi feita ao Ministério Público Federal pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Piauí-Sintepi.


    Papel relevante

    Roberto D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético-Ilumina, também ressalta a relevância da companhia. “Só quem não conhece a história, não dá valor ao que a Eletrobras fez. Ela coordenou toda a expansão do setor. Se temos esse sistema de transmissão que une o Brasil de leste a oeste, é graças à Eletrobras”.

    Para o especialista, é preciso ter em mente que as usinas hidrelétricas “não são meras fábricas de kw/h”. “Hidrelétrica é uma entidade na integração regional. Ultimamente, assumiu função muito mercantil, mas pode ter variados usos, como piscicultura, turismo, transporte fluvial e suprimento de água em municípios”, enumera.

    O consumidor brasileiro paga a quinta tarifa mais cara do mundo. Com a privatização, esse fato se agravará. “Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta o engenheiro Fernando Pereira

    Para D’Araújo é preciso retomar a função mais abrangente da Eletrobras para que o Brasil possa acompanhar as necessidades de avanço no setor elétrico e de desenvolvimento. “Poderia ter um progresso em energia solar imenso, mas o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel está sendo fragilizado. Destruir a Eletrobras é burrice, você fica sem uma ferramenta. A companhia é o martelo. O problema é mão que o está segurando; o governo é a mão barbeira que está fazendo a Eletrobras de gato e sapato”.

    Golpes em série

    Na avaliação de D’Araújo, esse processo tem se dado desde os anos de 1990, quando da privatização do setor elétrico. À época, conta ele, “jogaram para cima da Eletrobras as distribuidoras que não interessaram ao setor privado por não terem rentabilidade maior”. Para assumir o controle de distribuidoras da região Norte e Nordeste, a empresa, relata o diretor do Ilumina, “foi obrigada a pegar um empréstimo na Reserva Global de Reversão-RGR, fundo que não tem nada a ver com financiamento para compra de ativos”.

    O segundo golpe a abalar a Eletrobras se deu no racionamento, em 2001, quando o consumo caiu 25% e depois permaneceu 15% menor que o registrado antes do período de escassez. “Quando diminuiu a demanda, quem não tinha contrato passou a gerar sem ganhar nada, vendendo energia no mercado livre por uma bagatela durante quatro anos”, recorda D’Araújo.

    Por fim, aponta, veio a Medida Provisória 579, editada em 2012 com o objetivo de baixar as tarifas de energia no País, atendendo especialmente a reivindicação da área industrial. O peso da medida foi assumido basicamente pelas usinas antigas da Eletrobras, cujo investimento já havia sido amortizado. Essas tiveram os preços de sua energia reduzidos drasticamente. Até meados de junho de 2018 estavam no patamar de R$ 40,00/MWh. No entanto, a receita da empresa corresponde a apenas um quarto desse valor, o restante sendo taxas e impostos, o que a inviabiliza financeiramente.

    Como resultado, tem-se o principal argumento para a privatização, que é a dívida de cerca de R$ 44 bilhões, de acordo com balanço do primeiro trimestre de 2018, divulgado em maio último. Também é apontada como motivo para a desestatização a desvalorização das ações da empresa, cotadas a R$ 14,72 no final de junho. Para reverter o quadro, explica o diretor do Ilumina, não há escapatória: seria necessário elevar a tarifa cobrada pelas usinas da Eletrobras.


    Um gigante que pertence aos brasileiros

    A Eletrobras controla a Amazonas GT, CGTEE, Chesf, Eletronorte, Eletronuclear, Eletrosul e Furnas. É, ainda, em nome do governo brasileiro, dona da metade do capital de Itaipu Binacional. Completam essa estrutura as seis distribuidoras na região Norte e Nordeste, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel e a Eletropar.
    A geração compreende 48 usinas hidrelétricas, 112 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 70 usinas eólicas e uma usina solar, próprias ou em parcerias, distribuídas por todo território nacional.

    Entre os empreendimentos da Eletrobras estão a parte brasileira de Itaipu, Tucuruí, Complexo Paulo Afonso, Xingó, Angra 1 e Angra 2, Serra da Mesa, Furnas, Teles Pires, Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Complexo Eólico Campos Neutrais e a usina Megawatt Solar.

    A Eletrobras é também responsável pelo programa Luz para Todos que levou energia a cerca de 15milhões de brasileiros, entre 2003 e 2013.


    A tarifa da privatização

    A medida certamente desagradará o consumidor cativo brasileiro que, apesar dos preços da Eletrobras, paga a quinta tarifa mais cara do mundo porque outras geradoras que compõem o setor elétrico têm preços muito mais elevados, que chegam a R$1.000/MWh. No entanto, o reajuste indicado por D’Araújo como imprescindível para sanear a empresa não se compara ao que virá por aí se ela for privatizada. “A atração de capitais privados para a venda de ações se dará justamente pela transformação dos atuais contratos de concessão de subsidiárias da Eletrobras, que estabelecem as receitas de 14 usinas hidrelétricas antigas, remuneradas pelo regime de cotas. Isso provocará aumento brutal das tarifas a serem pagas pelas distribuidoras de energia, o que, obviamente, será repassado aos consumidores finais”, aponta Murilo Pinheiro, da FNE.

    “A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional” – Murilo Pinheiro, presidente da Federação Nacional dos Engenheiros

    “É ridículo o argumento do governo. Eles dizem que para viabilizar a financeirização da Eletrobrás será feita a descotização da tarifa e, após a privatização, as usinas passarão a cobrar R$ 250/MWh. Quem acha que vai aumentar cerca de sete vezes o preço de 16% das usinas e não haverá aumento de tarifa?”, questiona D’Araújo.

    Preocupação com consumidores

    A preocupação com os consumidores também é a principal preocupação do Coletivo Nacional de Eletricitários da Federação Nacional dos Urbanitários-FNU, que deflagrou greve pelo período de 72 horas, no dia 11 de junho, em protesto à privatização. “O dano maior será a tarifa para o consumidor. Hoje, as distribuidoras compram da geradora estatal. Se privatizar, vai ser lucro sobre lucro. Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta Fernando Pereira, secretário de Energia da FNU e coordenador do CNE.

    Para D’Araújo seria perfeitamente possível recuperar a empresa mantendo-a pública, com a tarifa de R$ 120,00/MWh. “O mercado vai gostar de saber que a Eletrobras estatal terá lucratividade. Se você pegar a cotação em 2011, o valor da ação corrigido é muito maior que o pico da cotação quando se anunciou que ela seria vendida. Quando a estatal tem condições de investimento, porque tem receita, o mercado gosta, sabe que ela pagará dividendos”.
    Para o presidente da FNE, não resta dúvida quanto à premência de seguir esse caminho: “A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”.

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Jornalista