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  • A entrega da Embraer e a rota do eterno atraso

    A entrega da Embraer e a rota do eterno atraso

     A entrega da Embraer
    .e a rota do eterno atraso

    Texto de Demétrio G. C. de Toledo*

    A empresa brasileira parece seguir o destino de Ícaro, ao voar muito perto do sol. Com meio século de êxito nas modalidades de jatos regionais, aviões de treinamento e, futuramente, cargueiros aéreos, a Embraer concorre em mercados inéditos para empresas do Sul do mundo. A venda para a Boeing não se resume à mera transação comercial, mas à alienação de pesquisas de longo curso, tecnologia de ponta e conhecimento acumulado. Um governo sério trataria a questão como caso de segurança nacional.

    Na manhã do dia 5 de julho de 2018, espremida entre a celebração da independência dos EUA, na véspera, e o jogo no dia seguinte – da seleção canarinho contra a Bélgica pelas quartas de final da Copa da Rússia – embate que o Brasil acabaria perdendo por 2 a 1, foi divulgado o memorando de entendimento – em inglês, memorandum of understanding, ou MoU – entre a Boeing e a Embraer para venda da empresa brasileira à gigante estadunidense.

    O MoU adianta a intenção da Boeing de adquirir 80% da aviação comercial da Embraer por meio da formação de uma joint venture entre as empresas, com possibilidade de compra dos restantes 20% em um prazo de dez anos. A isso se soma a aquisição parcial do setor de aviação militar por meio de outra joint venture dedicada à comercialização do cargueiro militar KC-390.

    Estamos assistindo, sete décadas depois da fundação do Centro Técnico de Aeronáutica, semente do setor, e quatro anos antes de o Brasil completar dois séculos de sua independência, ao fim do capítulo aeronáutico de nossa luta por um desenvolvimento industrial tecnológico autônomo

    Estamos assistindo, sete décadas depois da fundação do Centro Técnico de Aeronáutica, semente do setor aeronáutico brasileiro, e magros quatro anos antes de o Brasil completar dois séculos de sua independência, ao fim do capítulo aeronáutico de nossa história de luta por um desenvolvimento industrial tecnológico autônomo.

    1. Autonomia tecnológica, desenvolvimento e soberania

    A tecnologia ocupa lugar central no modo de produção capitalista. Sua centralidade deriva não apenas de sua função nos processos de acumulação e extração de mais-valia, como também do fato de a tecnologia ser desigualmente distribuída entre os países. As relações de dominação e dependência entre Estados são definidas pelo acesso desigual à tecnologia, que conforma uma estrutura de centro e periferia no sistema internacional, atribuindo a alguns países o papel de produtores de bens de alta intensidade tecnológica e a outros o papel de produtores de commodities.

    Essa desigualdade, por sua vez, é mantida por meio das inúmeras formas de monopólio tecnológico que restringem o acesso da periferia às tecnologias mais avançadas ou estratégicas. Mantém-se aí uma condição de dependência tecnológica em relação aos países centrais. É por isso que o desafio central do desenvolvimento das nações da periferia do capitalismo consiste em quebrar o monopólio tecnológico dos países centrais e dominar um conjunto amplo de tecnologias. É a maneira de garantir sua autonomia tecnológica e sua soberania política.

    Foi justamente isso que o Brasil conseguiu fazer na indústria aeronáutica: quebrar o monopólio tecnológico dos países centrais. Com a compra da Embraer pela Boeing, os EUA tentam restabelecer esse monopólio. É o que está em jogo nesse momento.

    2. A entrega da Embraer: escolha entre perder ou perder?

    O setor de aviação comercial passa nesse momento por uma de suas mais profundas reestruturações desde o processo de fusões e aquisições da década de 1990. Dos anos 2000 para cá, o setor se estruturou em torno de um duplo duopólio: Boeing e Airbus, competindo nos mercados de aviões com capacidade de 150 ou mais passageiros; e Embraer e Bombardier, competindo nos mercados de aviões com capacidade de até 150 passageiros.

    O principal argumento apresentado para defender a entrega da Embraer à Boeing faz menção à recente aquisição do projeto dos jatos regionais CSeries, da canadense Bombardier, pela europeia Airbus, e o impacto que essa mudança na estrutura do setor aeronáutico mundial poderá ter sobre a competitividade e sobrevivência da brasileira a longo prazo. Segundo esse argumento, a aquisição da Bombardier – que no último quarto de século perdeu sistematicamente para a Embraer a competição no mercado de jatos regionais – pela potente Airbus acirraria de tal modo a competição com a Embraer que a inviabilizaria em alguns anos.

    A justificativa para a entrega resume-se, portanto, à seguinte disjuntiva paradoxal: perder ou perder – perder a Embraer agora ou perder a Embraer em alguns anos. Esse argumento está correto? Haveria alternativa? Claro que sim.

    A aquisição da Bombardier pela Airbus de fato muda o patamar de competição no setor de jatos regionais de médio porte. Por ora, no entanto, as principais vantagens estão com a Embraer, cuja posição em termos de qualidade de seus produtos e aceitabilidade pelo mercado é inegável. Nos termos em que o argumento foi colocado, parece que houve época em que a Embraer não enfrentou feroz e capacitada concorrência de suas competidoras e que a concorrência com a Airbus representa um desafio absolutamente inédito para a Embraer.

    A entrega de 80% do negócio de jatos regionais resultará na total desnacionalização da Embraer e no fim inglório de uma empresa cuja missão sempre foi, e precisa continuar a ser, contribuir para o desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil e de seu povo

    Se a concorrência com outras empresas altamente capacitadas não constitui novidade para a Embraer, é preciso reconhecer que a entrada em cena da Airbus or meio da compra da Bombardier não será tarefa fácil.

    A Embraer, no entanto, tem plenas condições de enfrentar e vencer essa competição por meio de alianças estratégicas com a Boeing, sem que isso implique a entrega da Embraer à Boeing. Uma das possibilidades seria estabelecer acordos em torno de projetos específicos entre as duas companhias. A Boeing também está pressionada pela aquisição da Bombardier pela Airbus – a concorrente direta – situação que daria maior poder de barganha à Embraer para negociar um contrato menos lesivo ao interesse nacional. Seriam acordos que preservassem a Embraer como empresa nacional sediada no Brasil, mantendo a ação de classe especial, a golden share, do Estado brasileiro e colocando a brasileira na posição de líder dos projetos. Caberia à Boeing participação minoritária na associação.

    A entrega de 80% do negócio de jatos regionais – com direitos de compra do restante em um prazo de dez anos – resultará na total desnacionalização da Embraer e no fim inglório de uma empresa cuja missão sempre foi, e precisa continuar a ser, contribuir para o desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil e de seu povo.

    A entrega nos termos propostos no MoU terá duas consequências graves. Em primeiro lugar, resultará na transferência, em médio prazo – dez anos -, de toda a estrutura de produção, pesquisa e desenvolvimento da Embraer para os EUA para ficar mais próxima da sede da Boeing e da cadeia aeronáutica estadunidense. Não haverá nenhum motivo para a empresa continuar no Brasil, que oferece vantagens locacionais muito pequenas comparadas aos EUA.

    Em segundo lugar, a separação do setor de aviação comercial – responsável pela maior parte do faturamento e lucro da Embraer – do setor de defesa, deve inviabilizar quase imediatamente este último. Sem os volumosos ingressos de recursos advindos do setor comercial, sem a necessidade de atualização tecnológica constante, dependendo apenas de compras governamentais e enfrentando um ambiente de competição muito forte e repleto de restrições de propriedade intelectual, a área de defesa se torna financeira, comercial e tecnologicamente inviável sem o setor de aviação comercial.

    Assim, a possibilidade de que a Boeing venha a comprar num futuro próximo a empresa de defesa, cuja inviabilidade é óbvia, é muito grande.

    3. Os múltiplos impactos da entrega da Embraer

    A venda da Embraer é, junto com a entrega do pré-sal, um dos lances mais ousados da geopolítica estadunidense em busca do objetivo de neutralizar qualquer pretensão de liderança regional do Brasil e de impedir o desenvolvimento nacional autônomo e soberano.

    A entrega da Embraer nos relega à condição de economia primário-exportadora, revertendo oitenta anos de desenvolvimento industrializante. Alinhado a isso, a Boeing reserva ao Brasil um lugar “privilegiado” na indústria aeronáutica mundial: o papel de produtor de biocombustíveis de aviação a ser fornecidos para a Boeing em futuro próximo. Sai a empresa industrial intensiva em tecnologia, volta a plantação de cana.

    O setor aeronáutico brasileiro se resume à Embraer e a umas poucas fornecedoras de produtos de baixo valor agregado e pequena intensidade tecnológica, à exceção de uma ou duas empresas. Nem por isso a Embraer deixa de ser fundamental para a combalida indústria brasileira. A necessidade de integrar a seus projetos de alta tecnologia e novos materiais, empregar processos de manufatura avançada e gerir cadeias globais de fornecedores coloca o polo de São José dos Campos em contato com o que há de mais avançado na indústria e tecnologia mundiais, com efeitos que podem se espraiar sobre outros setores industriais.

    Nenhum governo, por mais entreguista e subserviente aos interesses estrangeiros que seja, sequer proporia discutir a entrega de tão valioso patrimônio construído com o sacrifício de gerações e gerações de brasileiras e brasileiros

    A Embraer reúne, ao lado da Petrobras, o mais competente corpo de engenharia e gestão da indústria brasileira, sendo responsável pela qualificação de trabalhadores altamente especializados. Esses engenheiros contribuem para a qualificação de empresas, universidades, laboratórios e instituições de pesquisa.

    A entrega da Embraer resultará no curto prazo em corte de postos de trabalho e no médio prazo na extinção completa desses empregos. São 16 mil postos diretos e oito mil indiretos. O Brasil deveria aproveitar essa mão de obra especializada para fortalecer a empresa e expandir sua produção. Cada trabalhadora e trabalhador incorpora décadas de conhecimento tácito acumulado em várias gerações. O custo de descartar esse vasto repositório de conhecimento é proibitivo para um país com as carências do Brasil.

    Por fim, a entrega da Embraer demole um dos pilares da Estratégia Nacional de Defesa do Brasil, o fortalecimento de nossa base industrial de defesa. A separação dos setores de aviação comercial e de defesa, ao contrário de garantir a continuidade deste sob controle do Estado brasileiro, deverá inviabilizá-lo no curtíssimo prazo, forçando sua falência ou obrigando a entrega também do setor de defesa. Nesse sentido, não é exagero dizer que a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa estão sendo decididas em Washington, e não em Brasília.

    4. Fim de linha, ou nem tudo está perdido?

    A pressa da Boeing e do governo brasileiro em concluir o mais rapidamente a entrega da Embraer, deve-se ao fato de o Golpe de 2016 ter aberto uma janela de oportunidades para leiloar o país ao capital estrangeiro em geral, e ao estadunidense em particular, e submeter o Brasil aos imperativos geopolíticos dos EUA, mas isso tem data para acabar: as eleições presidenciais de 2018. Sob condições de normalidade democrática e precisando prestar contas ao povo, nenhum governo, por mais entreguista, por mais subserviente, por mais sabujamente alinhado aos interesses estrangeiros que fosse, sequer proporia discutir a entrega de tão valioso patrimônio nacional construído com o sacrifício de gerações e gerações de brasileiras e brasileiros. Eis aí mais uma razão para a esquerda vencer as eleições de 2018.

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    *Demétrio de Toledo é professor de Relações Internacionais da UFABC
  • Fake news: como enfrentar a desinformação sem cercear a liberdade de expressão

    Fake news: como enfrentar a desinformação sem cercear a liberdade de expressão

    Fake news: como enfrentar a
    desinformação sem cercear a
    liberdade de expressão

    Texto de Bia Barbosa e Jonas Valente*

    A polêmica sobre notícias falsas na rede não pode servir de álibi para grandes corporações midiáticas definirem o que pode ou não ser divulgado, dando curso a uma espécie de censura privada. Até mesmo figuras de proa do Judiciário acabam fortalecendo a ideia de que a imprensa tradicional seria uma espécie de “guardiã da verdade” em meio à multiplicação de vozes e opiniões pela internet.

    As campanhas eleitorais vêm passando por uma série de mudanças, marcadas, sobremaneira, pelo uso intenso das novas tecnologias de informação e comunicação. Plataformas digitais como facebook e aplicativos de mensagens como o whatsapp já passaram a ser um espaço privilegiado de circulação de informações e busca do eleitorado. Tal avalanche comunicacional tem gerado, por outro lado, um debate sobre quais informações são verdadeiras e como fazer para identificar cada uma delas.
    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de eleições.

    Em outubro passado, no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral-TSE criou um Conselho Consultivo para propor uma forma de fiscalizar e impedir a reprodução/compartilhamento de notícias falsas na internet. Convidou o Exército, a Agência Brasileira de Inteligência-Abin, a Polícia Federal, entre outros órgãos, para discutir regras a serem aplicadas no país. Desde então, o presidente da Corte, Luiz Fux, tem feito afirmações preocupantes, incluindo a de que o resultado de uma disputa eleitoral poderia ser anulado “se o resultado da eleição for fruto de uma fake news”. Segundo Fux, a anulação seria feita com base no Código Eleitoral, que já considera crime a divulgação de propaganda com fatos sabidamente inverídicos relacionados a partidos ou candidatos.

    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

    Mas, como comprovar que a maioria dos mais de 100 milhões de eleitores brasileiros terá tido seu voto influenciado por uma ou várias informações manipuladas? Num contexto de ruptura democrática já em curso, a declaração é preocupante, principalmente porque as fake news poderiam, nesse caso, ser usadas como pretexto por aqueles que não concordarem com um resultado das urnas.

    Ignorando a legislação

    Fux engrossa o discurso daqueles que defendem a necessidade de um novo marco legal no país para combater as chamadas notícias falsas. Qualquer lei que seja aprovada agora pelo Congresso não terá mais validade para o pleito deste ano. Mesmo assim, em junho, por ocasião de uma Comissão Geral realizada sobre o tema no Plenário na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia do DEM-RJ, propôs a criação de “conselhos de supervisão” que poderiam ordenar a remoção de determinado conteúdo da rede, de forma provisória, antes da deliberação final do Poder Judiciário. Para Maia, a medida seria necessária porque “a internet não pode ser espaço de vácuo legal, terra sem lei”.

    O presidente da Câmara ignora, assim, não apenas o Marco Civil da internet, lei aprovada em 2014 e que se tornou referência global para a regulação de direitos e deveres no mundo online, como todo o marco normativo brasileiro para crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação – e que já pode ser utilizado para o tratamento de notícias falsas que circulam na rede. Esse marco foi base, por exemplo, para a recente decisão da Justiça sobre as mentiras disseminadas nas redes sociais, após o assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e do motorista Anderson Gomes.

    Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

    Mesmo assim, o Congresso brasileiro foi tomado por dezenas de novos projetos de lei propondo enfrentar o fenômeno, baseados em dois eixos centrais: 1) a criminalização, com a criação de um novo tipo penal, da produção e compartilhamento das fake news, numa resposta punitivista ao problema; e 2) a remoção imediata, pelas plataformas, de conteúdos considerados falsos. Essa tentativa de regulamentar a retirada de conteúdos da internet, por suposta falsidade ou suposta ofensa a terceiros, vem sendo reiterada por inúmeros deputados federais, que veem aí uma oportunidade de silenciar vozes dissonantes durante a disputa eleitoral.

    Em paralelo, a imprensa tradicional brasileira tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar o histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação “de qualidade”. Essa suposta isenção ignora, inclusive, o histórico de desinformação, com notícias flagrantemente falsas, assuntos manipulados e pautas silenciadas pelos meios tradicionais do país, por decisão de grupos econômicos, políticos e/ou religiosos proprietários desses meios e/ou pressão de seus anunciantes. Trata-se de um movimento que visa manter o domínio dos grupos comerciais, que sempre se beneficiaram de uma estrutura de mercado concentrada, afetando a diversidade e pluralidade de ideias e a qualidade do debate público, sobretudo, num ano eleitoral.

    Riscos à liberdade de expressão

    A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a privacidade dos usuários de internet.

    Em primeiro lugar, é importante lembrar que o próprio conceito de fake news é questionado por diversos especialistas em todo o mundo. No relatório Uma abordagem multidimensional sobre a desinformação, lançado em março de 2018, o Grupo de Alto Nível da União Europeia sobre fake news e desinformação online aponta para uma taxonomia diversa da ideia de “notícias falsas” e defende que o debate seja feito baseado nos conceitos de “desinformação”, “informações ludibriadoras” ou “notícias fraudulentas”. Aspectos como contexto, interpretação e autoria das informações devem ser considerados na análise de qualquer conteúdo.

    Nesse sentido, um primeiro risco da regulação da questão passa por conceituar o tema. Em workshop organizado em abril pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, especialistas de diferentes setores apontaram que qualquer definição de fake news não pode ser vaga e ampla, sob o risco de cercear o debate político. A caracterização de um conteúdo como “notícia falsa” deveria, assim, requerer pontos como: a) a simulação/fabricação de um discurso/notícia factual, o que, por princípio, excluiria conteúdos opinativos dessa caracterização; b) a distorção deliberada de fatos e dados; e c) a difusão visando um dano específico, considerado o elemento da intencionalidade no processo.

    A imprensa tradicional tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar seu histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação
    “de qualidade”

    A preocupação com a conceituação é mais do que justificada, considerando que entre um conteúdo totalmente falso e um “verdadeiro” existem gradações infinitas. Se, por um lado, um fato ou dado totalmente falso pode ser facilmente identificado, por outro, todo o restante carece de uma análise mais complexa. Preocupantemente, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional trabalham com conceitos ainda mais vagos, como o de “informações prejudicialmente incompletas”.
    Um segundo aspecto central do debate é sobre a quem cabe analisar um conteúdo e caracterizá-lo como fake. Alguns países têm adotado medidas temerárias nesse sentido.

    O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes, sob a preocupação da comunidade internacional. É o caso da lei alemã, que obriga plataformas a derrubarem em 48 horas qualquer conteúdo com fortes indícios de serem “ilegais”. A norma tem sofrido tantas críticas que a gestão Merkel já considera revê-la. Na Malásia, onde a disseminação de fake news foi criminalizada, um turista dinamarquês foi preso por ter publicado em uma rede social mensagem sobre o tempo de atendimento de uma ambulância diferente do efetivamente ocorrido.

    Interesse público

    Em março de 2017, os relatores especiais para a Liberdade de Expressão de diversos organismos internacionais, como a ONU, publicaram conjuntamente um documento intitulado Declaração sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda. Entre as recomendações feitas pelos relatores está a de que restrições à liberdade de expressão devem, necessariamente, considerar o interesse público, em casos como incitação à violência ou à discriminação.

    No Brasil, o Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965/14 – estabelece que o provedor de aplicações da rede, somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de informações geradas por terceiros, se não derrubar o conteúdo após determinação da Justiça. Os casos relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade podem ser apresentadas perante os juizados especiais, Art.19, § 3.

    O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes

    O objetivo de tal dispositivo, baseado em padrões internacionais, é impedir que haja, por parte das plataformas digitais, remoções indiscriminadas de conteúdo na internet que resultem na prática de censura privada. Qualquer tentativa de regular a questão deve, portanto, passar pelo crivo judicial, que é quem tem as melhores condições para avaliar se houve danos na veiculação de determinado conteúdo. Mídias online, e não as redes sociais, devem sim, ser responsabilizadas pela veiculação de notícias comprovadamente falsas. Mas decisões tomadas a posteriori por juízes e não pelas plataformas permitem o contraditório e a ampla defesa em juízo.

    Pouca transparência

    Atualmente, plataformas como Google e Facebook já têm realizado filtros automatizados e pouco transparentes, baseados em algoritmos ou bloqueadores, para derrubar o alcance de determinados conteúdos na internet, quando não para removê-los por completo, incorrendo muitas vezes em censura privada. O Facebook, por exemplo, analisa conteúdos considerados “caça-cliques” e já removeu cerca de 600 milhões de notícias falsas no primeiro trimestre de 2018 em todo o mundo.

    Em maio, a rede social anunciou uma parceria com agências de checagem. A partir da notificação de usuários, o conteúdo é enviado para a análise das agências e, se for considerado inverídico, terá seu alcance reduzido. Menos de um mês depois, porém, a checagem da agência Lupa, parceira do Facebook, em torno da entrega de um terço do Vaticano ao ex-presidente Lula, na prisão em Curitiba, comprovou os argumentos de quem ver no mecanismo um risco para a liberdade de expressão.
    Entre declarações do Vaticano, do Partido dos Trabalhadores e do consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano, Juan Grabois, a agência carimbou uma matéria do Portal Fórum como fake, posteriormente, comprovada como verdadeira. Mas o estrago já havia sido grande. Além da redução do alcance da publicação, o Facebook notificou todos os usuários que haviam compartilhado a notícia de que ela vinha de uma página que produzia fake news.

    Nada contra, pelo contrário, à checagem de notícias. Trata-se de uma prática do bom jornalismo. Mas, transformar as agências em certificadoras definitivas de conteúdos que poderão ou não circular livremente nas redes é algo que vai na contramão da promoção de um ambiente de liberdade de expressão. Iniciativas das plataformas que absolutizam a referência desses checadores e da mídia tradicional são, portanto, bastante preocupantes, e podem reproduzir, num ambiente de monopólio na internet, a concentração que já vivenciamos nos meios tradicionais, com sérios impactos à diversidade e pluralidade.

    Controle ou censura?

    O Google, infelizmente, tem trafegado no mesmo sentido. Além de estampar um selo de checagem de fatos em notícias, informa que tem aprimorado seu algoritmo para não priorizar nas buscas conteúdos considerados enganosos. Se seguirem agindo como editoras de conteúdo, cabe perguntar se a não responsabilização judicial das plataformas por informações emitidas por terceiros deve permanecer como tal. Sobretudo, num contexto eleitoral, também cabe perguntar se o controle do fluxo de conteúdos na internet por gigantes globais do setor não ameaça a própria soberania nacional.

    A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e à privacidade dos usuários de internet

    Em terceiro lugar, criminalizar o compartilhamento de conteúdos pelo público geral configura medida totalmente desproporcional. Por maior que seja o efeito dos compartilhamentos, condenar à prisão indivíduos por, simplesmente, redistribuirem ou promoverem conteúdos dos quais não são autores ou que não modificaram não pode ser visto como uma medida eficaz para enfrentar esse problema. Na maior parte das vezes, o cidadão comum sequer tem informações ou estrutura para verificar a veracidade de um conteúdo que circula pela internet. Apontar, nessa direção, só fará os usuários digitais exercerem autocensura e deixarem de compartilhar informações na rede. Isso pode ser extremamente danoso para um processo eleitoral democrático. Democracias em todo o mundo convivem com um grau de desinformação elevado, mas não com a censura. Assim, a responsabilização de criadores e disseminadores deliberados das chamadas “notícias falsas” deve passar muito mais por medidas civis e econômicas do que criminais.

    Caminhos para enfrentar o problema

    Em sociedades democráticas, é o confronto de ideias e a existência de debates abertos e plurais que podem combater a desinformação. É por isso que, em sua declaração conjunta, os relatores da ONU e da OEA para liberdade de expressão afirmam que os Estados – incluído o poder Legislativo – têm a obrigação de promover um ambiente de comunicação livre, independente e diverso, o que inclui a promoção da diversidade nos meios de comunicação e, também, a existência de meios de comunicação pública fortes, independentes e dotados de recursos adequados.

    Já as plataformas devem ser neutras e transparentes. Essa discussão avança em todo o mundo e ganhou corpo após o escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica. Há diversos mecanismos que poderiam ser pensados para garantir transparência sobre seu funcionamento e ampliar o controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, desmontando os efeitos bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas notícias falsas. Um regramento importante seria, por exemplo, assegurar transparência sobre conteúdos pagos, obrigando as plataformas a manterem registros de anúncios e postagens impulsionados, valores, anunciantes e alcance – especialmente nas eleições, como forma de evitar o abuso do poder econômico na propaganda na Internet.

    Do ponto de vista legislativo, a única lei que pode contribuir de fato para evitar a potencialização das chamadas notícias falsas é uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. A produção e direcionamento das chamadas fake news hoje é fruto da coleta e tratamento maciços e indiscriminados de dados pessoais. Por isso, como já recomendou a Comissão Europeia, quanto maior a proteção e o controle dos usuários sobre suas informações, menor a incidência de intermediários e da dinâmica que estimula a promoção das chamadas notícias falsas, seja por motivação política por meio de conteúdos impulsionados, seja para fins de monetização por meio da busca de likes e compartilhamentos. A Câmara dos Deputados já aprovou um projeto nesse sentido, que aguarda agora votação pelo Senado (PLC 53/18).

    Debate qualificado

    Por fim, políticas públicas de educação para a mídia e a promoção de práticas de empoderamento digital são fundamentais para serem colocadas em curso, incluindo aí o fomento à produção de conteúdos positivos e contranarrativas que engajem a sociedade num debate mais qualificado.

    Por isso ONU, OEA, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa-OSCE e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos-CADHP defendem “o desenvolvimento de iniciativas participativas e transparentes para uma melhor compreensão do impacto da desinformação e da propaganda na democracia, na liberdade de expressão, no jornalismo e no espaço cívico”.
    Se o Brasil apostar nessas medidas preventivas, atacando as causas do problema, a chance que teremos de construir um ambiente de debate público menos permeável à desinformação será, sem dúvidas, muito maior, mais efetiva e mais perene.
    Senão, seguiremos enxugando gelo.

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e diretores do Intervozes. Texto elaborado a partir da contribuição apresentada pelo Intervozes à Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação com Participação Popular, da Câmara dos Deputados.
  • Eletrobras pode terminar como mais um capítulo do desmonte nacional

    Eletrobras pode terminar como mais um capítulo do desmonte nacional

    Eletrobras pode terminar como mais
    um capítulo do desmonte nacional

    Texto de Rita Casaro*

    A companhia não é apenas uma geradora de energia, mas um complexo que envolve quase um terço da eletricidade produzida no país – metade de toda a transmissão – e atende seis Estados da Federação, na área de distribuição. Podemos estar diante da desarticulação do sistema energético nacional e de uma brutal elevação de preços ao consumido

    Maior holding de energia da América Latina, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, completou 56 anos de instalação oficial no dia 11 de junho. A decisão de criar a companhia havia sido tomada em 1954 por Getúlio Vargas por meio de projeto de lei que enfrentou resistência no Congresso e levou sete anos para ser aprovado. Após a epopeia parlamentar, a Lei nº3.890-A, finalmente foi sancionada por Jânio Quadros, em 25 de abril de 1961 e lançada no ano seguinte, em cerimônia sob a vista do então presidente João Goulart.

    Maior holding de energia da América Latina, a Eletrobras foi criada por Getúlio Vargas em 1954. O projeto demorou sete anos para ser aprovado no Congresso. A lei foi sancionada por Jânio Quadros, em 1961. O início das obras se deu no ano seguinte, no governo Jango

    Essa longa história – um marco importante da engenharia nacional e da capacidade de planejamento e realização do Estado – pode ter desfecho nada glorioso sob a batuta de Michel Temer, que anunciou, em agosto do ano passado, a intenção de privatizar a companhia.

    Compasso de Espera

    Sem sucesso em aprovar a inclusão no Programa Nacional de Desestatização-PND por meio da Medida Provisória nº 814/2017, cuja validade expirou sem ter sido votada, o governo lançou mão do Projeto de Lei nº9.463/2018 que também repousa na Câmara. Com dificuldades em fazer tramitar a matéria antes das eleições previstas para outubro, os R$ 12 bilhões que o Tesouro esperava arrecadar com a venda da empresa foram excluídos do orçamento de 2018.
    A cifra é o primeiro ponto a chamar atenção no processo, tendo em vista que, segundo a própria administração federal, o total de ativos da Eletrobrás soma R$ 170,5 bilhões e o valor patrimonial atinge os R$ 46,2 bilhões. O evidente mau negócio com a entrega de patrimônio público a preço irrisório, porém, está longe de representar o maior prejuízo a ser causado pela privatização da empresa, conforme apontam especialistas do setor.

    Maior conglomerado de geração

    A companhia é hoje, segundo dados oficiais, o maior conglomerado brasileiro de geração de energia elétrica, tendo produzido 182,1 milhões de MWh em 2017. Isso corresponde a mais de um terço do consumo no país. No ano passado, a capacidade instalada da Eletrobras atingiu 48.134 MW, o que representa 31% do total no Brasil. Noventa e cinco por cento desse montante tem origem em fontes limpas, especialmente hídrica (leia quadro 1). Ainda, responde por cerca de 50% de toda a transmissão de energia elétrica, somando 65 mil quilômetros de linhas com tensão maior ou igual a 230 KV. Também atua na área de distribuição de energia atendendo 13 milhões de habitantes numa área territorial de 2,46 milhões de km², nos Estados do Acre, Eletroacre; Alagoas, Ceal; Amazonas, Amazonas Energia; Piauí, Cepisa; Rondônia, Ceron; e Roraima, Boa Vista.

    Para a Federação Nacional dos Engenheiros-FNE, se a privatização se confirmar, terá como consequência a deterioração do setor elétrico e prejudicará os interesses do país, pelo papel estratégico que a holding representa. “Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”, afirma o presidente da entidade e profissional do setor, Murilo Pinheiro.


    Distribuidoras na berlinda

    Suspenso o plano de desestatizar a Eletrobras em seu conjunto, o objetivo da direção da empresa e do governo federal é vender seis distribuidoras.
    Para tornar o produto mais interessante ao mercado, segundo consta na justificativa do projeto de lei, a Eletrobras deve assumir cerca de R$ 11 bilhões em dívidas das distribuidoras, cujo passivo chega a R$ 24,9 bilhões.

    Completa a promoção de venda a liberação do cumprimento de indicadores de qualidade no fornecimento de energia pelos futuros controladores. A denúncia foi feita ao Ministério Público Federal pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Piauí-Sintepi.


    Papel relevante

    Roberto D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético-Ilumina, também ressalta a relevância da companhia. “Só quem não conhece a história, não dá valor ao que a Eletrobras fez. Ela coordenou toda a expansão do setor. Se temos esse sistema de transmissão que une o Brasil de leste a oeste, é graças à Eletrobras”.

    Para o especialista, é preciso ter em mente que as usinas hidrelétricas “não são meras fábricas de kw/h”. “Hidrelétrica é uma entidade na integração regional. Ultimamente, assumiu função muito mercantil, mas pode ter variados usos, como piscicultura, turismo, transporte fluvial e suprimento de água em municípios”, enumera.

    O consumidor brasileiro paga a quinta tarifa mais cara do mundo. Com a privatização, esse fato se agravará. “Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta o engenheiro Fernando Pereira

    Para D’Araújo é preciso retomar a função mais abrangente da Eletrobras para que o Brasil possa acompanhar as necessidades de avanço no setor elétrico e de desenvolvimento. “Poderia ter um progresso em energia solar imenso, mas o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel está sendo fragilizado. Destruir a Eletrobras é burrice, você fica sem uma ferramenta. A companhia é o martelo. O problema é mão que o está segurando; o governo é a mão barbeira que está fazendo a Eletrobras de gato e sapato”.

    Golpes em série

    Na avaliação de D’Araújo, esse processo tem se dado desde os anos de 1990, quando da privatização do setor elétrico. À época, conta ele, “jogaram para cima da Eletrobras as distribuidoras que não interessaram ao setor privado por não terem rentabilidade maior”. Para assumir o controle de distribuidoras da região Norte e Nordeste, a empresa, relata o diretor do Ilumina, “foi obrigada a pegar um empréstimo na Reserva Global de Reversão-RGR, fundo que não tem nada a ver com financiamento para compra de ativos”.

    O segundo golpe a abalar a Eletrobras se deu no racionamento, em 2001, quando o consumo caiu 25% e depois permaneceu 15% menor que o registrado antes do período de escassez. “Quando diminuiu a demanda, quem não tinha contrato passou a gerar sem ganhar nada, vendendo energia no mercado livre por uma bagatela durante quatro anos”, recorda D’Araújo.

    Por fim, aponta, veio a Medida Provisória 579, editada em 2012 com o objetivo de baixar as tarifas de energia no País, atendendo especialmente a reivindicação da área industrial. O peso da medida foi assumido basicamente pelas usinas antigas da Eletrobras, cujo investimento já havia sido amortizado. Essas tiveram os preços de sua energia reduzidos drasticamente. Até meados de junho de 2018 estavam no patamar de R$ 40,00/MWh. No entanto, a receita da empresa corresponde a apenas um quarto desse valor, o restante sendo taxas e impostos, o que a inviabiliza financeiramente.

    Como resultado, tem-se o principal argumento para a privatização, que é a dívida de cerca de R$ 44 bilhões, de acordo com balanço do primeiro trimestre de 2018, divulgado em maio último. Também é apontada como motivo para a desestatização a desvalorização das ações da empresa, cotadas a R$ 14,72 no final de junho. Para reverter o quadro, explica o diretor do Ilumina, não há escapatória: seria necessário elevar a tarifa cobrada pelas usinas da Eletrobras.


    Um gigante que pertence aos brasileiros

    A Eletrobras controla a Amazonas GT, CGTEE, Chesf, Eletronorte, Eletronuclear, Eletrosul e Furnas. É, ainda, em nome do governo brasileiro, dona da metade do capital de Itaipu Binacional. Completam essa estrutura as seis distribuidoras na região Norte e Nordeste, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel e a Eletropar.
    A geração compreende 48 usinas hidrelétricas, 112 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 70 usinas eólicas e uma usina solar, próprias ou em parcerias, distribuídas por todo território nacional.

    Entre os empreendimentos da Eletrobras estão a parte brasileira de Itaipu, Tucuruí, Complexo Paulo Afonso, Xingó, Angra 1 e Angra 2, Serra da Mesa, Furnas, Teles Pires, Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Complexo Eólico Campos Neutrais e a usina Megawatt Solar.

    A Eletrobras é também responsável pelo programa Luz para Todos que levou energia a cerca de 15milhões de brasileiros, entre 2003 e 2013.


    A tarifa da privatização

    A medida certamente desagradará o consumidor cativo brasileiro que, apesar dos preços da Eletrobras, paga a quinta tarifa mais cara do mundo porque outras geradoras que compõem o setor elétrico têm preços muito mais elevados, que chegam a R$1.000/MWh. No entanto, o reajuste indicado por D’Araújo como imprescindível para sanear a empresa não se compara ao que virá por aí se ela for privatizada. “A atração de capitais privados para a venda de ações se dará justamente pela transformação dos atuais contratos de concessão de subsidiárias da Eletrobras, que estabelecem as receitas de 14 usinas hidrelétricas antigas, remuneradas pelo regime de cotas. Isso provocará aumento brutal das tarifas a serem pagas pelas distribuidoras de energia, o que, obviamente, será repassado aos consumidores finais”, aponta Murilo Pinheiro, da FNE.

    “A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional” – Murilo Pinheiro, presidente da Federação Nacional dos Engenheiros

    “É ridículo o argumento do governo. Eles dizem que para viabilizar a financeirização da Eletrobrás será feita a descotização da tarifa e, após a privatização, as usinas passarão a cobrar R$ 250/MWh. Quem acha que vai aumentar cerca de sete vezes o preço de 16% das usinas e não haverá aumento de tarifa?”, questiona D’Araújo.

    Preocupação com consumidores

    A preocupação com os consumidores também é a principal preocupação do Coletivo Nacional de Eletricitários da Federação Nacional dos Urbanitários-FNU, que deflagrou greve pelo período de 72 horas, no dia 11 de junho, em protesto à privatização. “O dano maior será a tarifa para o consumidor. Hoje, as distribuidoras compram da geradora estatal. Se privatizar, vai ser lucro sobre lucro. Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta Fernando Pereira, secretário de Energia da FNU e coordenador do CNE.

    Para D’Araújo seria perfeitamente possível recuperar a empresa mantendo-a pública, com a tarifa de R$ 120,00/MWh. “O mercado vai gostar de saber que a Eletrobras estatal terá lucratividade. Se você pegar a cotação em 2011, o valor da ação corrigido é muito maior que o pico da cotação quando se anunciou que ela seria vendida. Quando a estatal tem condições de investimento, porque tem receita, o mercado gosta, sabe que ela pagará dividendos”.
    Para o presidente da FNE, não resta dúvida quanto à premência de seguir esse caminho: “A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”.

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    *Jornalista
  • A PEC da morte, a democracia escancarada e a privatização da coisa pública

    A PEC da morte, a democracia escancarada e a privatização da coisa pública

    A PEC da morte, a democracia escancarada e a privatização da
    coisa pública

    Texto de Rosa Maria Marques*

    O congelamento por vinte anos os gastos públicos pode acarretar mudanças radicais no funcionamento da sociedade. Em lugar do interesse coletivo, teremos a defesa do interesse do capital portador de juros e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor

    Em 15 de dezembro de 2016, foi publicada no Diário Oficial a Emenda Constitucional 95/16, chamada pelos movimentos sociais de “PEC da morte” desde sua tramitação na Câmara e no Senado. Ela institui um novo regime fiscal na Constituição Brasileira, definindo que os gastos federais – excluídos os juros da dívida pública – serão congelados por vinte anos, tendo como base o efetivo gasto em 2016.

    Os valores dos orçamentos dos anos seguintes serão somente atualizados pela inflação e seus valores reais poderão, a depender dos resultados obtidos em termos de equilíbrio fiscal, ser revisados somente depois de dez anos. A justificativa tinha/tem como base o diagnóstico de que todos os males da economia brasileira se devem à suposta escalada desenfreada do gasto público e que, portanto, essa deve ter fim, pois estaria elevando o nível da dívida pública a patamares incontroláveis.

    O que há de novidade nessa proposta? Quais são suas consequências? Passados um ano de seis meses de sua aprovação, quais foram os impactos desse novo regime fiscal nas políticas públicas, especialmente nas políticas sociais?

    Medida sem paralelo

    A adoção de um teto para o gasto público não é novidade, pois já foi assumida em outros países. Contudo, ao se analisar estudo publicado pelo FMI para 89 países, verifica-se que não há paralelo à proposta aqui aprovada (BOVA et al, 2015). Em nenhum lugar o horizonte temporal é tão longo; não incluem no congelamento os gastos sociais; não deixam de fora os juros da dívida pública; e, com exceção de apenas três países pequenos – Dinamarca, Geórgia e Cingapura -, não introduzem na constituição esse dispositivo de controle do gasto público (MARQUES e ANDRADE, 2016). Contrastando com essas experiências, a EC 95/16 abrange o tempo de uma geração, não inclui as despesas com os juros da dívida pública e altera a Constituição. E, apesar de o país estar enfrentando um elevadíssimo nível de desemprego e de conviver com uma destacada desigualdade social, não houve qualquer preocupação em resguardar os programas de transferência de renda dirigidos aos segmentos mais pobres da população e o seguro desemprego.

    No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi realizado a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais. Mesmo que tivéssemos a hipótese de que o gasto atual é adequado – o que não é -, a emenda desconsidera que a população continuará a crescer e envelhecer nesses vinte anos. Isso exige ampliação dos gastos em determinadas área.

    Os detentores da dívida, bem como de outras formas assumidas pelo capital fictício, consideram que é possível manter ad eternum a alta rentabilidade de seus “ativos”, sem que tenham de se preocupar com o que ocorre com a produção, com o nível do emprego, com os salários e com os gastos sociais. Eles revelam, assim, seu total descompromisso com as necessidades da população. E a EC 95/16 implica submeter totalmente o funcionamento do Estado brasileiro aos interesses dos detentores da dívida.

    No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi feito a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais

    Estado do Capital

    O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação alguma, as instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista. Não é por acaso que, ao mesmo tempo em que o congelamento dos gastos públicos está sendo implantado, aprofunda-se a mercantilização da saúde, da educação e são propostas mudanças na previdência que irão ampliar a presença do setor privado nesse campo.

    Ao longo dos vinte anos de vigência do congelamento, certamente pouco restará da presença do Estado nessas áreas. Se a essa possibilidade somarmos a tendência de incorporar no serviço público a lógica da administração das empresas privadas, nada restará daquilo que chamamos de coisa pública. Nem na forma, nem no conteúdo. Como disse Margareth Thatcher, “o objetivo é mudar o coração e a alma”. No lugar do interesse coletivo ou do povo, atendido mediante ações e políticas que permitem sua manutenção e reprodução – emprego, salário, rendas derivadas das políticas sociais e de outras políticas públicas -, teremos a defesa do interesse dos detentores da dívida pública, isto é, do capital portador de juros, e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor para manter a ordem e a propriedade privada.


    Os impactos já sentidos na saúde

    Houve queda do nível de gasto do governo federal em 2017 depois de muita pressão dos movimentos comprometidos com o SUS, apesar de nesse ano, os 15% da Receita terem sido considerados como piso orçamentário.

    a) As despesas totais efetivamente pagas com Ações e Serviços Públicos de Saúde-ASPS pelo Ministério (resultado da soma dos restos a quitar com os pagamentos dos empenhos de 2017) foram de R$ 107,622 bilhões, enquanto o piso para o ano era de R$ 109,088 bilhões. Os valores ficaram, portanto, abaixo do piso – aplicação mínima – federal em ASPS em 2017.

    b) As transferências para os Estados, Distrito Federal e Municípios, que representam 2/3 das despesas do Ministério da Saúde, totalizaram R$ 67,9 bilhões em 2017, contra R$ 66,7 bilhões em 2016, o que representou um crescimento nominal de 1,83%, abaixo do crescimento anual do IPCA/IBGE de 2,95%, ou seja, houve uma queda real dessas transferências (FUNCIA, 2018).


    Vale lembrar que no capitalismo contemporâneo o grande capital, seja industrial ou comercial, está intimamente imbricado com o capital portador de juros e, dentro dele, o capital fictício. Por isso, denominamos o grande capital de financeirizado.

    O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação, suas instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista

    Democracia sem função

    No plano político e mais imediato, o congelamento do gasto público tem como consequência destruir qualquer sombra que ainda possa existir da democracia burguesa e da possibilidade de o executivo, eleito em eleições gerais, ter liberdade, mesmo que relativa, para implantar o programa para o qual foi eleito.

    Como é sabido, em um regime democrático burguês, o executivo é eleito pela maioria dos votos e, a partir daí, executa em teoria seu programa, o que é mediado pela representação das demais forças políticas no Congresso e pelas demandas dos setores sociais populares organizados. A concretização dessa síntese de diferentes interesses presentes na sociedade se expressa no orçamento do governo federal, pois à proposta inicial encaminhada pelo governo, somam-se emendas e supressões apresentadas pelos parlamentares. Tudo muda com a implantação do teto de gastos. É como se não houvesse importância saber quais serão o futuro presidente, deputados federais ou senadores, e qual a orientação programática que eles defendem.

    A política é excluída da esfera fiscal e o presidente da República passa a ser mero executor dos interesses cristalizados na EC 95/16. Dessa forma, perde-se o último grau de liberdade que o executivo ainda detenha neste mundo globalizado, sob a dominância do capital portador de juros. Sem real capacidade de fazer política cambial frente aos movimentos dos capitais; sem real capacidade para fazer política monetária a não ser aquela ditada pela “comunidade financeira internacional”, agora, com a EC 95/16, perde-se a possibilidade de fazer política fiscal.

    Em outras experiências internacionais, a definição de tetos de gastos passou por alguma mediação política – com horizontes mais curtos, possibilidades de revisão de metas, incorporação da dívida pública, etc. No Brasil, essa dinâmica de anulação da política fiscal aparece de forma crua. Ainda que permaneçam as pressões sobre o orçamento, os marcos da disputa são enquadrados segundo resultados estabelecidos previamente.

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    *Professora titular de economia da PUCSP e militante do PSOL
    Referências

    BOVA, Elva; et al. Fiscal Rules at a Glance. International Monetary Fund, 2015. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/FiscalRules/Fiscal%20Rules%20at%20a%20Glance%20-%20Background%20Paper.pdf Acesso em 13/11/2016.
    FUNCIA, Francisco. Transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para Estados e Municípios em 2017. Idisa, Domingueira, nº 17, junho de 2018. Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-17-junho-2018. Acesso em 10/06/2018.
    MARQUES, Rosa Maria e ANDRADE, Patrick Rodrigues. Democracia burguesa e dominância do capital portador de juros: apontamentos sobre processos em curso no Brasil. O Olho da História, nº 24, 2016. Disponível em http://oolhodahistoria.ufba.br/wp-content/uploads/2016/12/rosamaria-1.pdf. Acesso em 10/06/2018.
  • Ou eles ou nós

    Ou eles ou nós

    Ou eles ou nós

    Texto de Cláudio Katz*

    A crise argentina foi provocada pela radicalização do projeto neoliberal. Os vários desequilíbrios daí provocados geraram instabilidade, perda de confiança e fuga de capitais. Pelo lado democrático só há uma saída: manter a potência das ruas

    Sempre se soube que Maurício Macri, presidente da Argentina, governava para os ricos e que o modelo econômico acabaria numa grande crise. A primeira afirmação sempre foi evidente, dada a redistribuição regressiva dos rendimentos que ele perpetrou nos zúltimos dois anos. A segunda começou a se evidenciar com a volta das corridas cambiais.

    O modelo neoliberal – assentado em enormes desequilíbrios fiscais e em endividamento externo – está abalado. Todos imaginavam que haveria recursos até 2019, mas o “fim do filme” antecipou-se de forma imprevista. O governo maquiou essa negativa com um falso anúncio de maior financiamento local, mas os capitais especulativos captaram de imediato o significado da negativa. Emitiram ordem de retirada – uma fuga de capitais – e teve início a disparada do dólar. O financiamento foi cortado devido à desconfiança dos credores, que pressentiram a futura insolvência do devedor argentino. Por isso, as agências de “rating” baixaram o polegar, o risco no país aumentou e a imprensa especializada descreve cenários dramáticos.

    Uma consequência do modelo

    A fragilidade do setor externo é o ponto mais crítico do modelo atual. Ao notar a ausência futura dos dólares necessários para sustentar o endividamento, os bancos retiraram os créditos. Esses observaram a magnitude do déficit externo, que no ano passado superou os US$30 bilhões (5% do PIB). O problema central localiza-se na esfera comercial. O desequilíbrio de US$8 bilhões em 2017 marcou um recorde histórico. Ele foi gerado pelas fantasias livre-cambistas do governo, que abriu o mercado a todo o tipo de importações. Enquanto no mundo impera uma dura negociação por tarifas alfandegárias, a Argentina transformou-se num depósito de qualquer excedente. E, ainda por cima, as exportações estancaram, como resultado da valorização do peso devido ao ingresso de capitais especulativos.

    A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados a toda velocidade

    O desequilíbrio no plano financeiro é igualmente dramático. A remessa de lucros tem sido tão forte quanto a fuga de capital. Essa drenagem é coerente com a eliminação de todas as regulações da atividade financeira. Os controles bancários foram desarmados com a mesma velocidade com que se anulou a obrigação de liquidar os dólares da exportação. Nas mesmas condições se fundamenta a “bicicleta” financeira dos fundos que lucram com a rentabilidade altíssima dos títulos argentinos. As delirantes taxas de juros que asseguram o negócio destroem qualquer possibilidade de investimento produtivo. O uso inadequado das divisas inclui também o alto gasto em turismo. Essa hemorragia foi, inclusive, comemorada por vários ministros com um maravilhoso exemplo de “retorno ao mundo”.

    Terremoto econômico

    O rombo fiscal é também impressionante. Aproxima-se do percentual do PIB (6-7%) que tradicionalmente precipitou os grandes terremotos da economia. O governo destaca a envergadura desse déficit e o apresenta como obra de outrem, a ser administrado. Com gestos de compaixão, afirma ser necessário mantê-lo para financiar o “gradualismo” e evitar maiores sacrifícios à população. Mas, oculta que todos os desequilíbrios derivam do modelo em curso e não do ritmo da sua implementação. Se tivesse carregado no acelerador da engrenagem neoliberal, o desastre seria infinitamente maior.

    Quando os representantes do governo reclamam contra o costume de “gastar mais do que se recebe”, atribuem todas as desgraças ao primeiro componente. Esquecem que a receita fiscal ficou seriamente afetada pela redução dos impostos dos exportadores. Tampouco destacam que a lavagem de dinheiro não reverteu a evasão. A Argentina está em quinto lugar no mundo no ranking desse flagelo e a moda oficial de proteger ativos de empresas “off shore” ilustra quem são os promotores da fraude fiscal.

    O discurso oficial também se esquece de dizer que o pagamento de juros deteriora as contas públicas. Só no primeiro trimestre do ano, esses encargos aumentaram 107% em comparação a 2017.

    Descalabros incorrigíveis

    O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central. Este, em poucos dias, queimou vários manuais de política monetária, recorreu a todos os instrumentos conhecidos para deter a corrida e não acertou com nenhum. Apelou, inclusive, sem resultados, ao “judicializado” mercado de dólar futuro.

    A crise internacional não foi, até agora, determinante do desastre argentino. Persiste a liquidez financeira global e não se observa uma repetição do “efeito dominó” sobre as economias latino-americanas. Certamente, que o incremento das taxas de juros dos EUA altera todos os investimentos no mundo, mas esse reajustamento, de momento, tem efeitos limitados.

    Se a Argentina vive esse resfriado como se fosse uma grave pneumonia, isso se deve ao pânico que o tresloucado endividamento suscita. Nos últimos anos, o país encabeçou o tabuleiro mundial de colocação de títulos e é penalizado por esse descontrole, mas o grosso da população não é responsável por essa má gestão. O culpado é Macri e os chefes do gabinete, que engrossaram as fileiras da classe capitalista. Para ocultar esse delito, os comunicadores oficiais atribuem a todos os “argentinos” um desfalque consumado por essa minoria de privilegiados.

    Retorno ao mesmo Fundo

    Os números de maio retratam a gravidade da crise: desvalorização cambial de 20%; taxas de juro de 40% e perda de US$8 bilhões de reservas. O temor de um dramático desfecho aumenta, com alguns sintomas de transferência dessa tensão aos bancos.
    O governo zomba da população transmitindo mensagens de tranquilidade. Pretende criar a ilusão de uma simples correção da flutuação cambial, sem nenhuma consequência maior. Ainda repete que o nível de endividamento é “baixo em comparação com o PIB”, como se essas porcentagens, e não a capacidade de pagamento efetiva do devedor, determinassem a atitude dos credores. Enquanto o discurso oficial minimiza a crise, os investidores do exterior não medem palavras para dizer “fujam da Argentina” (Forbes). A tranquilidade do governo é uma estratégia tosca para evitar o despertar coletivo face à grave situação.

    O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeado pela nova alíquota do imposto sobre o lucro de aplicações em títulos, mas pela aterrorizada reação do Banco Central

    A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios papas do Fundo. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. A decisão foi tão imprevista, que anunciaram o retorno ao organismo sem dizer em que base isso se daria e sem mudar o ministro. Os representantes do governo peregrinam por Washington desconhecendo as condições dos empréstimos que mendigam. Num contexto de baixas taxas internacionais e de certa recuperação da crise de 2008, poucos países recorrem ao FMI. Os que escolhem essa saída não têm outra opção.

    AFP PHOTO / EITAN ABRAMOVICH

    FMI não mudou

    É totalmente ridículo imaginar a existência de “outro FMI”. Essa instituição é gerida pelos mesmos peritos que destroem conquistas populares, e os países amarrados a sua tirania atravessam o pior dos mundos. É o caso da Grécia, que não pode livrar-se da auditoria do Fundo. Os gregos já padeceram quatro “salvamentos” dos bancos e três agudas recessões, que fizeram a renda nacional retroceder 25%. A taxa de desemprego está em torno dessa mesma percentagem, a dívida pública elevou-se para 180% do PIB e as pensões sofreram 14 cortes.

    A Argentina depara-se com as mesmas perspectivas. O FMI será duríssimo com o país. Das três variantes creditícias que há disponíveis, apenas ofereceu a versão mais intragável. Descartou a linha flexível que Colômbia e México receberam e a modalidade de precaução utilizada por Macedónia e Marrocos. À Argentina, apenas outorgarão o conhecido stand by por um montante ainda desconhecido.

    A decisão de regressar ao FMI confirma a seriedade da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios financistas. Indica o pânico de um governo que procura impedir a corrida contra o peso a qualquer preço. O Fundo será duríssimo com o país

    Os US$30 bilhões que o governo pede superam o atribuído aos 13 países, atualmente, com planos de estabilização. A soma final chegará igualmente a conta-gotas, para evitar a rápida conversão em divisas em fuga para o exterior.
    Cada parcela utilizada desse crédito será rigorosamente auditada pelo Fundo. Essa auditoria simboliza o brutal retorno aos anos 1990. Os peritos do FMI voltarão, trimestralmente, para constatar a insatisfação e exigir mais ajustamentos.
    Não há mistério em exigências imediatas. Em dezembro passado, elaboraram um detalhado ultimato de redução da despesa social, com maior flexibilidade laboral, reforma do orçamento e demissão de funcionários públicos. A paulatina privatização do Anses – órgão responsável pela arrecadação de impostos – e o drástico corte dos orçamentos dos Estados figuram no topo de sua agenda. Nas conversações de agora, teriam acrescentado um novo perdão fiscal e, sobretudo, uma máxima desvalorização com recessão.

    Ritmo e intensidade

    O ritmo e a aplicação desse pacote dependerão da intensidade da crise. Todos os meses o Banco Central deve se defrontar com um enorme vencimento de títulos (Lebacs). O volume total desses títulos equivale ao montante das reservas e ao total do dinheiro circulante. Se a maioria dos detentores resolve liquidá-los para se refugiar no dólar, a corrida contra o peso pode se tornar incontrolável. O governo tenta administrar esse explosivo pacote oferecendo taxas de juros elevadíssimas que asfixiam o conjunto da economia. Ao propagar rendimentos superiores a 40%, pretende alongar a renovação desses papéis. Mas, com esse artifício, não consegue atenuar a desvalorização geral dos títulos públicos, gerando desvalorização de ativos de todas as instituições que entesouram esses papéis.

    Em qualquer cenário, o pacto assinado com o FMI empurra a economia para o precipício. Já se antevê o ciclo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação

    Em qualquer cenário o pacto assinado com o diabo do FMI empurra a economia argentina para o precipício. Já se antevê o círculo vicioso de ajustes que contraem a atividade produtiva, deterioram a receita fiscal, aumentam o déficit fiscal e desembocam em novos ajustes. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação.

    A antecipação desse quadro desponta no novo nível de inflação anual de 30%. Se a taxa de juro não baixar rapidamente, a recessão será inevitável. O governo cortou 30 bilhões de pesos do investimento público, mas o FMI exigirá uma paralisação total. Nos próximos meses, ninguém se recordará da ficção estatística de menor pobreza que o governo difundiu. Basta observar a pavorosa expansão da mendicidade nas ruas para observar qual é o panorama social com que o país se depara.

    AFP PHOTO / Eitan ABRAMOVICH

    Reagir a tempo

    A gestão da bomba que o governo instalou dependerá da memória e capacidade de reação popular. O repúdio total ao acordo com o FMI foi antecipado pelas pesquisas realizadas antes da negociação. Entre os 75% dos entrevistados que rechaçam o acordo, está a maioria dos votantes de Cambiemos – nome do movimento que conduziu Macri ao poder.

    AFP PHOTO / EITAN ABRAMOVICH

    O retorno ao FMI tem um significado emocional enorme. Recria todo o sucedido em 2001. Por isso já se difundem tantas analogias com o bloqueio De la Rúa, quando ele tentou refinanciar a dívida junto ao FMI, o que foi um fracasso e conduziu ao colapso de 2001. É imprescindível transformar essa bagagem em rejeição ativa, mobilização e propostas alternativas. O ponto de partida é ganhar a rua para gerar uma drástica reversão do curso atual. O clima de aceitação tácita das desregulamentações – que os grandes meios de comunicação propagam – desprotege a economia. Para evitar o agravamento da crise, há que reintroduzir todas as regulações eliminadas pelo governo. São medidas básicas face à emergência.

    O controle do câmbio é tão urgente como a proibição da livre entrada e saída dos capitais. Os depósitos dos pequenos poupadores devem ser protegidos, enquanto os grandes bancos e detentores de títulos devem suportar as perdas dos títulos desvalorizados. Há que erradicar todos os mitos sobre a adversidade de um controle cambial. Os dólares não são um bem privado de livre disponibilidade. Sem controle do entesouramento e circulação, não há forma de lidar com a fuga de capital.

    Em lugar de voltar ao FMI, é necessário investigar a dívida contraída nos últimos anos e levar ao tribunal os responsáveis por essa aventura. Luís Caputo, ministro das Finanças; Nicolás Dujovne, ministro da Fazenda; e Federico Sturzzeneger, presidente do Banco Central deveriam estar perante à justiça. Enquanto se verifica o estado real das contas públicas, há que se parar a hemorragia de divisas que o pagamento dos juros impõe. A crise atual começou com a submissão aos “fundos abutres” e não pode ser resolvida sem ajustar contas com os depredadores do tesouro nacional. A gestão estatal do sistema financeiro é uma condição para emergir da delicada situação atual.

    Apenas, assim, o custo da crise recairá sobre os seus causadores e não sobre a maioria popular. Esse caminho requer uma frontal batalha de ideias com todos os economistas da direita que se apropriaram da televisão.

    A intensidade da mobilização nas ruas definirá quem ganha o jogo. Em plena confusão popular face ao abalo financeiro, essa reação é agora limitada. Está pendente o reaparecimento da grande força conseguida nas ruas nas jornadas contra a reforma previdenciária e na campanha pela descriminalização do aborto. A rejeição do FMI ocupa agora o primeiro lugar de qualquer reivindicação.

    É urgente frear a maior agressão contra as conquistas populares dos últimos anos. O tão anunciado mega ajuste se aproxima, finalmente. Face à artilharia que o governo, o FMI e os capitalistas preparam, há que se construir as defesas populares a toda velocidade. Tal como já ocorreu no passado, de novo são eles ou nós.

    (Tradução de Rosa Maria Marques)

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    *Economista e professor da Universidade de Buenos Aires
  • A reforma tributária que o Brasil precisa

    A reforma tributária que o Brasil precisa

    A reforma tributária que o Brasil precisa

    Texto de Odilon Guedes*

    Apesar de os meios de comunicação alardearem que a carga tributária brasileira é muito alta, a afirmação representa uma meia verdade. Há muito imposto para os pobres e pouca cobrança para os ricos. Essa situação – diversa dos países europeus e mesmo dos EUA – impede o Estado brasileiro de cumprir plenamente sua função social, de aumentar e melhorar os serviços públicos e de promover a justiça social.

    Uma das propostas fundamentais a ser debatida na eleição para presidente da República é a reforma tributária. Isso, porque o Brasil possui uma das mais injustas estruturas fiscais na qual a população de baixa renda e a classe média, sobretudo, pagam mais impostos, proporcionalmente, que o 1% mais rico da população.

    Nesse contexto é importante lembrar que, segundo estudos da ONG Oxfam, seis brasileiros concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de habitantes – ou 50% – mais pobres do país.

    Estudos do IPEA já identificaram há anos essa injustiça, ao mostrar que as pessoas que ganham dois salários mínimos comprometem 53,9% da renda com pagamento de tributos e as que ganhavam mais de 30 salários, totalizam 29% na modalidade. Esse fato se dá porque a maior parte dos tributos é indireta e recai sobre o consumo, penalizando na mesma proporção quem ganha dois, trinta ou trezentos salários mínimos – uma enorme injustiça.

    O imposto nos produtos

    Exemplo disso é que ao comprar uma televisão que custa R$ 2 mil, independentemente, de quanto é o salário ou a renda, o cidadão pagará 45% desse valor em tributos indiretos que vão para os cofres públicos. Um trabalhador que ganha R$ 1 mil ao comprar essa televisão pagará R$ 900,00 de tributos, isto é, 90% de seu salário e uma pessoa que ganha R$ 50 mil e compra a mesma televisão pagará os mesmos R$ 900,00 o que significa 1,8% de seu rendimento. Essa injustiça se repete e ocorre na compra de roupas, sapatos, alimentos ou qualquer produto em nosso país.

    A reforma que interessa a esmagadora maioria do povo brasileiro precisa acabar com essas distorções e fazer justiça. Ao apontarmos para uma reforma tributária que atenda a esse objetivo, usaremos como referência a proposta que foi apresentada pelo Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, e que já tem o apoio de vinte entidades da sociedade civil dentre as quais a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a Associação de Docentes da USP e da Universidade Federal do ABC, a Intersindical e a UGT.

    Em favor da baixa renda

    Propomos a redução dos impostos indiretos, o que favorecerá, principalmente, os cidadãos de baixa renda. Isso ocorrerá porque as empresas terão reduzidos os tributos que devem pagar ao Estado o que diminuirá seus custos. Essa diminuição de custos deverá ser repassada aos preços dos produtos, aumentando indiretamente a renda dos consumidores e servirá ainda como vetor de combate à inflação. Em relação aos tributos indiretos, salientamos que tratamento especial deve ser dado a CSLL e a COFINS que foram criados para financiar o Sistema de Seguridade Social (Art. 195 da Constituição Federal – CF).

    A perda de receitas será compensada pelo aumento dos tributos diretos, principalmente, sobre o 1% mais rico da população. Essa medida é necessária por permitir a manutenção da capacidade de investimento do Estado brasileiro, principalmente nas áreas de educação e saúde. Ressalta-se que 83% dos estudantes antes de entrarem na universidade frequentam escolas públicas e cerca de 160 milhões de brasileiros não têm plano de saúde, todos dependendo da ação do Estado. Além de educação e saúde, investimentos devem ser feitos nas áreas de pesquisa/tecnologia, infraestrutura, cultura e outras. Essa proposta, além de justa, tem como referência o que ocorre nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCD, tais como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, nos quais os tributos diretos pesam mais que os indiretos.

    Propomos a redução dos impostos indiretos, o que favorecerá, principalmente, aos cidadãos de baixa renda. As empresas terão reduzidos os tributos que devem pagar ao Estado, o que diminuirá seus custos. A perda de receita será compensada pelo aumento dos tributos diretos, principalmente, sobre o 1% mais rico da população

    Imposto de Renda

    Em relação ao imposto de renda propomos a isenção para quem ganha o equivalente ao salário mínimo definido pelo DIEESE (Art. 7 item IV da CF), que em abril de 2018 era de R$ 3.696,95. A partir desse patamar, a proposta é aumentar as alíquotas em 8% até chegar ao limite de 40%. Hoje, a alíquota máxima no Brasil é de 27,5% tanto para quem ganha R$ 5 mil ou R$ 50mil.

    A mudança acarretará uma diminuição fiscal para os assalariados de menor renda e para uma parcela da classe média. A compensação virá do aumento de alíquotas sobre as rendas maiores. Nesse quadro propomos ainda a volta da cobrança sobre a distribuição de lucros e dividendos. Por incrível que pareça só o Brasil e a Estônia não têm esse tipo de tributação, extinta durante o governo FHC.

    Um exemplo de como é possível aumentar a arrecadação sobre a parcela dos mais ricos foi explicitado em artigo (FSP 16/04/2018) elaborado pelo professor da FEA/USP, Paulo Feldmann. Segundo ele, se houver um aumento da alíquota efetiva de 6% para 9% para aqueles que têm renda mensal maior que R$ 160 mil, o que abrange 60 mil contribuintes, haverá uma arrecadação de R$ 186 bilhões por ano.

    Em termos comparativos destacamos algumas alíquotas máximas em outros países: Suécia 56,5%; Inglaterra 50%; Portugal 46,5%; México 30%; Argentina 35%; e Chile 40%.

    É necessário lembrar que entre 1983 e 1985 o Brasil teve 13 alíquotas de Imposto de renda, que variavam de 0% a 60%.

    Taxação sobre Herança

    Em relação ao imposto sobre herança, lembramos que ele está definido no Art. 155 da Constituição Federal, porém é um tributo de competência estadual. Por sua vez, a resolução de número 09/92 do Senado Federal estabeleceu um teto de 8%. Hoje, no estado de São Paulo, ele é de 4%. Aqui, destacamos mais um dos absurdos que ocorrem em nosso país. Uma resolução do Senado vale mais que um artigo da Constituição, esta, por sua vez, aponta que os Estados devem definir o quanto será a alíquota desse imposto, cuja resolução limita a 8%.

    Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo

    Esse imposto deve ser progressivo, pesando menos para as menores heranças e mais para as maiores, até o limite de 30%. O imposto sobre herança deve ser federal.

    Na Inglaterra, essa modalidade tem mais de 300 anos. O conservador primeiro ministro inglês da época da II Guerra Mundial, Winston Churchill, dizia que “este imposto é muito bom para evitar ricos indolentes”.
    Alguns exemplos sobre as alíquotas desse tributo em outros países: Inglaterra 40%; França 32,5%; Japão 30% e Chile 13%.

    Imposto sobre a Propriedade

    A respeito do imposto sobre a propriedade destacamos em especial o Imposto Territorial Rural-ITR que é auto declaratório, como o imposto de renda.

    Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo. Isso significa que o agronegócio, os grandes fazendeiros não pagam praticamente nada de imposto sobre suas propriedades.

    O Estado deve fazer uma fiscalização tão rigorosa na declaração desse imposto, como é feita em relação à declaração do imposto de renda. e as alíquotas precisam ser atualizadas e recalculadas em sua progressividade.

    Imposto sobre Grandes Fortunas

    Em relação ao imposto sobre grandes fortunas destacamos o que está definido no Artigo 153 da CF: “Compete a União instituir impostos sobre grandes fortunas, que será instituído nos termos de lei complementar (Item VII)”. Essa lei complementar não foi regulamentada até hoje, 30 anos após a aprovação da Constituição.


    Propomos:

    – A regulamentação da Lei do Imposto sobre Grandes Fortunas-IGF.
    – Que a Receita Federal informe o valor do patrimônio das pessoas por faixa de renda.
    – Que as alíquotas aplicadas sejam progressivas.
    A proposta visa deslocar parcela do estoque de riqueza acumulado nas mãos do setor extremamente rico da sociedade e aumentar a capacidade de investimento do Estado, principalmente nas áreas sociais.

    Transparência das Contas Públicas

    A reforma tributária precisará ser acompanhada da total transparência das contas públicas, o que será de enorme importância para o presidente da República que tiver interesse em desenvolver a cidadania e combater a corrupção.
    Nesse sentido, além de seguir o que está definido nos Artigos 48, 48 A – itens incluídos pela Lei Complementar 131/2009 – e Artigo 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal, será fundamental implantar todas as medidas necessárias para dar transparência e ampla divulgação do orçamento público e de sua execução. Nesse documento está registrada toda a arrecadação e toda a despesa do Estado.

    Apesar de o setor agropecuário representar cerca de 10% do PIB brasileiro, a arrecadação do ITR durante todo o ano de 2017, em todo Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo

    Além de estarem nos sites do governo, os dados do orçamento precisam ser colocados de forma impressa e visível nas salas dos órgãos públicos, onde a população tem acesso. Sindicatos de trabalhadores e de empresários devem ter acesso a tais dados, bem como os movimentos sociais organizados, ONGs, Conselhos de Saúde, Educação, Transporte e outros.

    Uma reforma tributária com todas essas características possibilitará avançarmos no caminho da cidadania e da qualidade de vida em nosso país.

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    *Economista, mestre em Economia pela PUC/SP. Foi Presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, vereador e subprefeito na cidade de São Paulo. Autor do livro Orçamento Público e Cidadania (Editora Livraria da Física)
  • “O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas”, Sonia Guajajara

    “O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas”, Sonia Guajajara

    “O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas”, Sonia Guajajara

    Entrevista concedida à Gilberto Maringoni e Valério Arcary

    Sonia Guajajara é uma das mais importantes lideranças indígenas e ambientais brasileiras e compõe com Guilherme Boulos a chapa do PSOL-PCB, em aliança com movimentos sociais, para a presidência da República. Dirigente da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que congrega mais de 300 povos, origina-se dos Guajajaras/Tentehar que habitam as matas da Terra Indígena Arariboia no Maranhão. É a primeira vez na história do país que uma indígena integra uma chapa majoritária federal. É um feito carregado de significados políticos e simbólicos e sintetiza uma luta de cinco séculos contra a opressão colonial e de classe sobre nossos povos originários. Nesta entrevista, Sonia conta sua história de militância, a luta dos índios brasileiros e os projetos para governar o Brasil.


    Quem é: Maranhense (1974), com pais analfabetos, morou até os 15 anos em sua terra indígena, no município de Amarante, próximo a Imperatriz. Cursou o ensino médio em Minas gerais, com apoio da Funai. É graduada em Letras e Enfermagem e pós-graduada em Educação pela Universidade Estadual do Maranhão-UEMA.
    História: Sua militância começou em organizações de base da Igreja católica e na Coordenação das organizações e articulações dos povos indígenas no Maranhão-Coapima. Em seguida integrou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-Coiab e chegou à coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB. Esteve à frente de movimentos pela manutenção de direitos e de preservação ambiental. Tem atuação internacional junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e já levou denúncias às Conferências Mundiais do Clima-COP de 2009 a 2017 e outros órgãos internacionais.

    FLC – Por que as pessoas devem votar no Guilherme e em você?

    Sonia GuajajaraVotam porque sofremos as mesmas opressões as quais o povo brasileiro é submetido. Uma indígena e um guerreiro da luta pela moradia expressam, em seu simbolismo, algo significativo: de um lado, uma mulher que denuncia com sua história as opressões dos modelos colonial, neocolonial e imperialista que ceifam a vida por meio da força do capitalismo. Através dos séculos essa força vem destruindo a nossa morada, a Mãe Terra. De outro lado, temos um lutador, um jovem que decidiu entregar a sua vida para superar as desigualdades e as injustiças que assistiu ao longo de sua trajetória. Essa aliança, entre o homem urbano e a mulher indígena das matas, expressa com força o novo modelo de desenvolvimento que deve imperar no Brasil. Superar o “entreguismo”, a má política e construir um novo modelo econômico contrário aos históricos modelos de sociedades industriais, consumistas e, ambientalmente, predatórios, é urgente e necessário. Dessa forma, acredito que só a nossa candidatura é capaz de apresentar uma plataforma como essa, assim como só a nossa geração é capaz de construí-la.

    “Estamos, pela primeira vez, disputando um processo eleitoral e em uma chapa presidencial. E não só uma liderança indígena, mas uma liderança indígena mulher”

    FLC – Há algum preconceito por você ser mulher ou indígena?

    Sonia GuajajaraDiretamente não, mas a gente percebe de forma indireta. Às vezes as pessoas demonstram surpresa: “nossa, uma indígena!” Porém, o que tenho ouvido mais frequentemente é o oposto: “que bom que tem uma indígena!”. Quando as pessoas me abordam é de forma positiva e acreditam que é isso mesmo, que tem de ter uma indígena ocupando esse espaço da política institucional. Estamos, pela primeira vez, disputando um processo eleitoral numa chapa presidencial formada não apenas por uma liderança indígena, mas uma liderança indígena mulher. Entretanto, nas redes sociais há uma demonstração absurda de ignorância e racismo.

    FLC – Como você chegou ao movimento indígena?

    Sonia GuajajaraSempre fui muito participante e muito atuante. Por eu ter uma curiosidade de tentar entender as coisas desde menina, as lideranças, os caciques, me chamavam para participar de reuniões. Nessa época eu já gostava muito de ler e de escrever. Eu sempre estava ali para registrar as discussões.

    FLC – Como foi a sua infância?

    Sonia GuajajaraSou do município de Amarante, onde está minha terra indígena, Arariboia. Fica perto de Imperatriz. Nasci no povoado Campo Formoso, uma pequena vila, que por ocasião da demarcação da terra indígena Arariboia ficou fora da área demarcada. Cresci entre o povoado e a aldeia e fiquei lá até os dez anos trabalhando com meu pai e minha mãe. Ele sempre trabalhou na roça e eu sempre o acompanhei plantando e colhendo arroz. Quem desejava estudar tinha de sair de lá para continuar o ginásio.

    Foto: Mídia Ninja

    FLC – Quando você se interessou pela política?

    Sonia GuajajaraAos dez anos, além de participar da vida nas aldeias, comecei a tomar parte de discussões na Igreja Católica. Ia muito ao interior, a cavalo ou a pé, falando com pessoas. Zezinho Bahiano era um grande líder na luta pela terra e pela reforma agrária e eu circulava com ele pelos interiores, articulando com pequenos produtores. Logo, fui estudar em Amarante e morei na casa de uma família, algo muito comum naquela época. A gente ficava na casa das pessoas como babá ou doméstica para estudar e ter um lugar para morar. Ninguém recebia salário, apenas casa e comida. Trabalhava o tempo todo. Hoje, sei que isso é considerado trabalho escravo, mas na época não. Aos 12 anos, eu cuidava de duas crianças e levantava muito cedo para fazer café da manhã. Foi na luta pela vida que compreendi a necessidade de superar as opressões, o machismo, as desigualdades e o preconceito. Acredito que essa longa história de opressão me deixou não apenas com uma forte consciência e desejo de lutar para superar, mas me deu dimensão do papel que eu deveria cumprir. Foi aí que percebi que minha missão não era apenas com a linhagem sanguínea, mas com o povo oprimido deste país, que tem em sua história a opressão iniciada com a morte de muitos indígenas há 518 anos.

    “Na campanha do Lula, em 1994, despertei para a formação política. Queria entender um pouco mais o funcionamento da sociedade, o sistema de opressor e oprimido, que já faziam parte de minha consciência, porém com poucos elementos para uma análise mais profunda”

    FLC – Você ficou em Amarante até que idade?

    Sonia Guajajara Saí aos 14 anos de idade. Carregava no íntimo um desejo enorme de estudar como se estivesse percebendo a necessidade de me preparar para algo maior. As meninas se casavam muito cedo e até hoje é assim. Ficar na roça como única atividade impossibilitaria minha missão e ter filho cedo também. Pensava em uma alternativa para sair. Aos 15 anos fui estudar no colégio interno Caio Martins, em Minas Gerais. A Funai fez uma parceria, achou importante mandar alguns indígenas para lá, e apontou meu nome. Cursei magistério. Fiquei lá com outro Guajajara chamado Ubiraci. Mais tarde, vários indígenas foram também. Fiquei de 1989 a 1991. Foi o início de uma nova etapa.

    FLC – E você já atuava publicamente?

    Sonia Guajajara Em 1993, eu me aproximei de Manoel da Conceição, histórico líder camponês maranhense. Minha irmã foi casada com o filho dele durante dez anos. Acompanhei todos os processos de mobilização. Na campanha do Lula, em 1994, despertei para a formação política. Ficaram mais nítidas as injustiças e as desigualdades. Queria entender um pouco mais o funcionamento da sociedade, o sistema de opressor e oprimido que já faziam parte de minha consciência, porém com poucos elementos para uma análise mais profunda. Assim, compreendi que para superar qualquer dificuldade teria que ser sem medo e com muito amor.

    Sonia em audiência pública na Câmara. Foto: Mídia Ninja

    FLC – Como você se vinculou ao movimento?

    Sonia Guajajara Em 1988, algumas lideranças indígenas lutaram para garantir nossos direitos na Constituição, mas não era ainda um movimento organizado. Naquele momento, criou-se uma articulação nacional entre o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil-Capoibe. A partir de 1989, foram formadas a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-Coiab e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE, MG e ES-Apoinme. Em 2001, passei a integrar o movimento ao participar de uma conferência nacional organizada com apoio do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, que era para avaliar e pensar estratégias, após marcha dos 500 anos que aconteceu em 2000 em Porto Seguro, na Bahia.

    FLC – Houve alguma mudança na política indigenista a partir dos governos do PT?

    Sonia Guajajara Aconteceu uma maior participação no controle social, nos conselhos e na elaboração das políticas públicas. Tivemos mais acesso às políticas universais. Contudo, não houve avanço nos processos de demarcação de terra – o essencial para nós – como era esperado. Precisamos reconhecer que foi um governo importante para ampliar o orçamento nas políticas indigenistas – coisa que não temos em tempos de golpe – percebendo os limites que o governo do Lula e da Dilma possuíam por conta da aliança estabelecida para garantir a governabilidade.

    FLC – Se não houver um governo disposto a proteger os direitos históricos dos povos indígenas da Amazônia, o que vai acontecer?

    Sonia Guajajara Não são os povos indígenas da Amazônia, são os povos indígenas do Brasil. Se não houver um governo sensível às nossas pautas, vamos fazer o que fazemos há 518 anos: lutar, lutar e lutar por nossos territórios, por nossa ancestralidade e por nossa cultura. Somos filhos e herdeiros da luta e faremos do combate a nossa trincheira para a construção da verdadeira revolução social que este país necessita.

    FLC – Qual a relação do movimento indígena com a Igreja Católica e com o Cimi?

    Sonia Guajajara Por muito tempo, o Cimi teve o papel de protagonista na luta em defesa da causa indígena. O Cimi foi fundamental – juntamente com outros parceiros – para que nos últimos anos, chegássemos a conquistar maior autonomia e protagonismo na luta para decidir, realizar ações e atividades. O Cimi desempenha muito bem o papel da denúncia nacional e internacional e tem sistematizado bem a questão da violência contra os povos indígenas. De 2005 para cá, realizamos o acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena no Brasil. Lá no início, o Cimi era o principal associado dessa mobilização. Hoje, ampliamos leque de parceiros, e agora temos inúmeras entidades que se juntaram a nós. Somos protagonistas de nossas lutas.

    “Hoje, a gente tem os dois dos maiores aquíferos de água doce do mundo, o Guarani, no sul e sudeste, e o Alter do Chão, no norte. Há um início de negociação entre o governo Temer e grandes corporações, como Coca-cola e Nestlé, que querem comprar o aquífero Guarani”

    FLC – Belo Monte é símbolo de um projeto. A ideia é a seguinte: o progresso tem um custo inexorável do ponto de vista da destruição ambiental e a recompensa do progresso vale a pena. Vou ter luz em casa, produzida por uma fonte renovável, o que embeleza a ideia de que a destruição não é relevante. Qual sua opinião?

    Sonia Guajajara Acredito que Belo Monte é símbolo de uma concepção de desenvolvimento falida. Essa ideia de combater os problemas sociais produzindo uma sociedade fincada na industrialização e na utilização desarmônica dos recursos naturais, expressa no símbolo que é Belo Monte, coloca em xeque a perpetuação de toda forma de vida. É bom sempre lembrar: o guardião da vida é a Mãe Terra. Percebamos que se esse modelo gerasse promoção das igualdades permanentes não haveria pobreza na principal cidade atingida por Belo Monte. Vejamos a falsa afirmação de que Belo Monte foi construída para fazer chegar a luz na minha casa, na sua casa. Até porque Altamira/PA é a cidade com a energia mais cara do Brasil. Eu pergunto: cadê o combate às injustiças? É preciso lembrar que Altamira é a cidade mais violenta do país – segundo o mapa da violência em 2018 – e os paraenses pagam uma das contas de luz mais altas no país. Estive lá várias vezes, desde o início da obra até o término. Vi famílias mostrando o talão da conta de luz. Ganham meio salário mínimo, em alguns casos, e não conseguem compreender o alto preço da energia, mesmo morando no mesmo município produtor daquela energia, com a usina logo ali. Dilma fez questão de inaugurar Belo Monte para ser uma marca do seu governo. Nós lutamos contra aquilo, ao mesmo tempo em que estávamos contra o impeachment. Por mais que a gente tenha diferenças conjunturais e programáticas com o seu governo, entendíamos que o impeachment era um golpe. A gente sabe o que é ser justo e não apoiamos injustiças. Isso foi muito dolorido para nós. Portanto, o símbolo da inauguração e o símbolo da obra é o sinal de que temos diferenças, e deste lado impera a compreensão de que defendemos muito mais do que iniciativas paliativas para um povo, defendemos verdadeiramente a humanidade e dos demais seres viventes.

    Brasília, 2017: em defesa dos direitos indígenas. Foto: Mídia Ninja

    FLC – A situação dos indígenas piorou com o golpe?

    Sonia GuajajaraSim, um retrocesso incomparável. Isso se dá a partir da total paralisação das demarcações das terras, cortes no orçamento da Funai e nas políticas indigenistas, sem mencionar a crueldade das fortes matérias aprovadas no Congresso. Por mais que tenha havido redução dessas ações nos governos Lula e Dilma, agora – no governo ilegítimo de Temer – há uma decisão política de se impedir a demarcação das terras indígenas. O atual governo está revendo processos já concluídos e entregando cargos importantes da Funai e dos órgãos de promoção das políticas indigenistas para a bancada ruralista.

    FLC – Na questão da violência, houve mudança?

    Sonia Guajajara – Continua crescente. Primeiro, porque a falta de demarcações, por si só, já gera conflito. Em diversos relatórios e pesquisas percebe-se que há um número muito maior de problemas nas terras não regularizadas. Nos locais já demarcados, os conflitos se dão por falta de uma política de proteção que favorece as invasões e exploração ilegal dos recursos naturais. Em tempos de golpe, os fazendeiros e as multinacionais se sentem muito respaldados para esse enfrentamento. E por terem força no Congresso se acham os donos de tudo e acima da lei. Eles matam sem pudor, por terem certeza da impunidade. Vejam o caso da Samarco e da Vale, que seguem totalmente impunes. Pensam que basta pagarem uma compensação ou alguma coisa ali para quem foi atingido que tudo esteja restabelecido. Não há reparo possível! Esse caso, inclusive, tem que ser considerado como crime hediondo contra a humanidade.

    Foto: Mídia Ninja

    FLC – Existe uma articulação latino-americana dos povos indígenas?

    Sonia GuajajaraTem a Coica (Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica). É como se articulam os indígenas da Amazônia Legal, com nove países. Nós temos uma relação com a Aliança Mesoamericana de Povos e Bosques – AMPB, da América Central. Para além do continente, há a Aliança dos Povos Indígenas da Indonésia – Aman, a maior organização indígena da região.

    “Caso queira entender o que foi a colonização, você vai ler os livros de história, mas não encontra a nossa história nos livros, pois o que há é a versão do invasor. Hoje, muitos indígenas estão aparecendo como grandes historiadores, recuperando a história e escrevendo”

    FLC – Quem quiser conhecer mais profundamente a causa indígena, o que deve ler ou fazer?

    Sonia GuajajaraFalando por mim, eu não li. Eu vivi. Eu vivo. Não precisei ler nada para entender essa história. Se você quer entender o que foi a colonização, você vai ler os livros de história. Mas não encontra a nossa história nos livros, pois o que há é a versão do invasor, dos algozes, não apenas dos indígenas, mas do povo brasileiro. Hoje, felizmente, muitos indígenas estão aparecendo como grandes historiadores, recuperando a história e reescrevendo a narrativa dos primeiros povos do Brasil, ou seja, a verdadeira história de nossa nação. Se você quer saber o que foi a violência contra os povos indígenas na ditadura, a Comissão da Verdade trouxe vários números, inclusive constatou que mais de 8,5 mil deles foram mortos em todas as regiões do Brasil. Há outros trabalhos, por exemplo, o Instituto Socioambiental – ISA tem várias obras importantes. A cada dois anos, eles publicam Os povos indígenas no Brasil. Ali, se informa que temos 305 povos, 274 línguas faladas, e há a estimativa da existência de cem povos isolados. O ISA tem catalogado muito bem isso. O Cimi também tem publicações importantes que tratam do relatório da violência e o Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB traz publicações em relação à gestão ambiental dos povos indígenas, os projetos de gestão territorial espalhados em várias partes do Brasil, sobretudo, na Amazônia.

    Foto: Thallita Oshiro

    FLC – Há uma enorme campanha no mundo para nos convencer de que, apesar de tudo, a vida civilizada nunca foi tão boa. Essa visão defende que o capitalismo construiu uma ordem mundial que, apesar de todas as suas limitações, é a melhor possível. Qual é a sua opinião sobre o capitalismo?

    Sonia GuajajaraMinha visão do capitalismo é a pior possível. Acredito piamente que não vai servir aos princípios de manutenção dos seres vivos. Para nós, é muito claro: o capitalismo não foi criado para se preocupar com a vida das pessoas. O capitalismo se preocupa em promover a dominação da condição de ser humano e da natureza, por meio da utilização inclemente dos recursos naturais e da privatização da vida. As pessoas passam muito mais tempo em seus trabalhos, preocupadas com boletos e contas, do que com o direito de desfrutar de cultura, da convivência com suas famílias e amigos, isto é, não têm o mínimo de direito à liberdade. Essa ideia hegemônica de civilização e desenvolvimento aprisiona a vida das pessoas, porque promove a cultura da intolerância, do individualismo, além de combater os valores de solidariedade, fraternidade, justiça, respeito e coletividade. E isso fica mais nítido quando observamos o cotidiano social nas favelas, comunidades, aldeias e até mesmo no campo. Falta tudo: educação, saúde, moradia, saneamento básico etc. Promove-se uma ideia de comportamento que privilegia um padrão de vida sustentado num consumo insustentável, injusto e desigual, beneficiando apenas uma pequena parcela e excluindo a ampla maioria. Nesse sentido, é hora de superar essa perspectiva de “vida” que o capitalismo vende como sendo o “melhor dos mundos”. Acredito que a saída para isso está nas comunidades, nas favelas, nas aldeias indígenas, nos quilombos e nos campos. Esses territórios, apesar de toda exclusão que atravessam, são cheios de amor, de solidariedade, resistência e luta. É vivendo harmonicamente com o meio ambiente, respeitando a diversidade cultural, comportamental, sexual e promovendo o amor que se combate esse mal que ceifa vidas e sonhos. O capitalismo não segue o caminho da vida: segue o caminho da exploração e do acúmulo de riqueza em uma parcela privilegiada. Para quem serve essa exploração? Certamente, não é para a maioria do povo. Assim, precisamos pensar no bem-viver como uma ferramenta para conquistar a qualidade de vida e como fiador da manutenção da vida e das futuras gerações. Quem defende o capitalismo não defende a vida, mas promove, mesmo sem intenção, o fim da existência humana e joga a humanidade no caos das incertezas, no suicídio, no crime, na pobreza, na fome e na miséria.

    “Não há como se desconectar a luta indígena da vida na cidade. É por isso que a gente defende essa grande articulação entre os povos para podermos garantir as futuras gerações”

    FLC – A maioria do povo brasileiro é formada por trabalhadores que vivem nas cidades. É possível uma aliança entre os povos indígenas e o povo pobre das cidades?

    Sonia GuajajaraAcreditamos que essa aliança é possível e necessária. Tanto nós, indígenas, quanto a maioria dos povos das cidades compartilhamos do mesmo processo de opressão. Essa é uma aliança dos oprimidos em contraposição aos opressores. A gente precisa combater esse modelo de desenvolvimento que está aí que deixa milhões sem moradia, sem o direito à terra, sem educação, sem cultura, sem saúde, sem saneamento básico, à mercê do crime e da própria sorte. Não combater é perpetuar as desigualdades e os privilégios. Esse modelo que hoje libera os territórios para as grandes plantações de monocultura está cada vez mais expulsando as pessoas de lá para vir para as cidades, um espaço urbano limitado e que não suporta concentrar o número de pessoas que já existem nesses ambientes, quanto mais suportar os que pensam em migrar devido à profunda exclusão pelo que passam.

    FLC – Você acha que a candidatura Guilherme-Sonia expressa isso?

    Sonia GuajajaraTotalmente. Acredito que a nossa chapa não só expressa essa luta, mas ela é a única possibilidade para um modelo alternativo de desenvolvimento que vê na defesa do direito à vida, em harmonia com o planeta, uma saída para as opressões que acometem o povo mais pobre deste país. Temos essa convicção e essa certeza de que temos de combater as desigualdades sociais, respeitando e garantindo o direito das pessoas a partir das suas origens. Quem é do campo tem que ter a garantia, o espaço, a oportunidade para se desenvolver lá. Não estou dizendo que as pessoas não têm que sair para estudar. Saia quem quiser, mas que tenham o direito inclusive de estudar em seu próprio ambiente, e não em uma educação que seja distinta de sua necessidade e sua realidade.

    FLC – Você é socialista?

    Sonia GuajajaraSou uma guerreira de um exército que defende a vida, a harmonia entre ser humano e natureza. Sou uma guardiã da Mãe Terra, enquanto provedora e mantenedora da vida. Se isso for ser socialista, posso afirmar que sou ecossocialista.

    “O capitalismo não foi criado para se preocupar com as pessoas. O capitalismo se preocupa com o lucro. Quando se fala em “capitalismo verde”, o que pode significar? Na minha visão, é a mercantilização. O capitalismo não segue esse caminho da vida. A gente precisa pensar no bem-viver para preservação do meio ambiente e para as pessoas”

    FLC – O que é ser uma mulher e liderança indígena ecossocialista?

    Sonia Guajajara – Posso afirmar que é ser promotora da vida e anunciadora da felicidade por meio do amor entre os seres humanos e natureza. É viver todo dia fazendo enfrentamentos e lutas por igualdade de oportunidade para mulheres e homens e, principalmente, lutar contra o capitalismo, o machismo, o sexismo, a lgbtfobia, o racismo, o colonialismo, o ódio e as opressões que estão aí querendo ditar as regras para o país e para o mundo, colocando em xeque a existência da vida. A gente precisa fazer com que as pessoas olhem e aprendam com os povos indígenas, porque a própria história mostra ser possível ter essa relação harmoniosa com o meio ambiente sem destruí-lo. A arqueologia comprova a existência da presença indígena no Brasil há 15 mil anos. A própria vegetação nativa, com a biodiversidade que tem, não é somente fruto da natureza, mas também do manejo e da gestão que os indígenas fizeram durante esses milhares de anos. Essa riqueza da biodiversidade também é a diversidade do nosso modo de vida.

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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  • Sônia Guajajara é destaque na revista Socialismo e Liberdade

    Sônia Guajajara é destaque na revista Socialismo e Liberdade

    Sônia Guajajara é destaque na revista
    Socialismo e Liberdade

    A Fundação Lauro Campos lançou a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade. Sonia Guajajara, candidata a co-presidência da República na chapa de Guilherme Boulos, é destaque na matéria de capa da revista. Em entrevista concedida a Gilberto Maringoni e Valério Arcary, Sonia fala da sua história e prega uma urgente união entre os povos do campo e da cidade para romper com o ciclo de concentração de renda e dilapidação do meio ambiente em curso no Brasil.

    A edição traz, ainda, um especial sobre Marielle Franco, vereadora do PSOL que foi brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Com textos de Talíria Petrone, Débora Camilo, entre outros, o especial examina como a execução de Marielle escancarou a violência do Estado brasileiro contra negros, pobres, mulheres, lésbicas e todos que se encontram em vulnerabilidade na sociedade.

    A revista também traz uma análise de conjuntura sobre as dificuldades e opções para derrotar a direita, escrita pelo presidente da Fundação Lauro Campos, Francisvaldo Mendes, e pelo presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros; textos sobre a tentativa de entrega da Eletrobrás e da Embraer para o capital estrangeiro, uma análise de como enfrentar as Fake News sem cercear a liberdade de expressão, entre outros temas.

    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

    Confira a 22ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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