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  • O ABC do novo fascismo e suas perspectivas

    O ABC do novo fascismo e suas perspectivas

    O ABC do novo fascismo
    e suas perspectivas

    Texto de Luiz Arnaldo Campos*

    Bolsonaro não apresentou planos claros de governo e sequer participou de debates. Mas a trajetória e as forças políticas que congrega apontam na direção de uma gestão conservadora nos costumes, ultraliberal na economia e repressiva na política. A oposição tem como tarefa imediata a constituição de uma ampla e representativa frente democrática para se contrapor aos ataques da extrema direita

    Uma hora após o anúncio da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, no final de outubro, uma coluna de caminhões do Exército desfilou pelas ruas de Icaraí, bairro nobre de Niterói, no Rio de Janeiro. Foi aplaudida por moradores e transeuntes. Uma imagem simbólica do que pretende ser a novíssima república brasileira.

    A vitória do candidato do PSL foi o resultado inesperado de uma ação orquestrada pelo alto comando da burguesia brasileira que, depois do impeachment de Dilma ­Rousseff, aprofundou o golpe com a decretação da inelegibilidade de Lula, a prisão e a proibição de participar da campanha. A manobra que buscava simultaneamente inviabilizar a candidatura petista e eleger um candidato confiável ao mercado e às grandes corporações – Alckmin, Meireles ou Amoedo – deu com os burros n’água.

    No contexto de uma grave crise econômica política e cultural, a centro-direita derreteu e os extremos cresceram. Bolsonaro e Haddad passaram ao segundo turno, obrigando as classes dominantes a se unificarem em torno da candidatura outsider do ex-capitão do Exército. Até aí, parecia uma reprise do enfrentamento entre Lula e Collor três décadas atrás. As semelhanças não foram adiante.

    Ao contrário do simples arrivismo do caçador de marajás alagoano, Bolsonaro representa uma proposta distinta de ordenamento político, social, cultural e econômico do país. Um projeto de características fascistas, que pretende enterrar a Nova República e abrir um novo ciclo na política brasileira, hegemonizado pela extrema direita. Para quem está na outra margem do rio, entender como chegamos a isso e quais são as principais características dessa nova quimera direitista é simplesmente essencial.

    A marcha rumo a Brasília

    Para entender o fenômeno Bolsonaro é preciso considerar a grave crise econômica e social do país. É algo indispensável, mas insuficiente. No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar. O ambiente propício para soluções autoritárias foi depois cuidadosamente cevado pela campanha midiática da Operação Lava-Jato. O noticiário asfixiante, que tinha como primeiro alvo o PT, acabou por produzir a demonização de toda a atividade política, vista como inapelavelmente corrupta. Daí para o retorno dos salvadores da pátria foi apenas um passo.

    No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita, até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura e lhe permitiu uma máxima exposição, na privilegiada condição de vítima, nos principais noticiários de rádio e TV, mas, sem dúvida, o que surpreendeu o mundo foi a vitória de um candidato abertamente misógino, racista, homofóbico, defensor da ditadura militar e da tortura num país que fora governado durante 13 anos seguidos pelo PT.

    Bolsonaro foi o postulante da antipolítica, aquele que era contra tudo que aí está. Essa pregação calou fundo numa população acossada pelo desemprego, pelos altos índices de criminalidade, pela piora das condições de vida e descrente dos partidos políticos tradicionais. Foi também o candidato que conseguiu tocar um imaginário conservador, construindo a imagem de defensor de um mundo ameaçado por negros sedentos de vingança, feministas histéricas, LGBTs descontrolados e indígenas gulosos por terra. E aí não pregou no vazio, mas no terreno semeado há anos pelas declarações da bancada ruralista, contra os movimentos dos trabalhadores rurais, dos povos indígenas e quilombolas, pelos noticiários da TV, sempre a associar a criminalidade crescente ao respeito aos Direitos Humanos, e pela pregação insistente das igrejas neopentencostais, para quem os direitos das populações LGBTs são simples artimanhas do demônio. Se não compreendermos esses elementos, não poderemos entender porque a onda de fake news teve tanta audiência. O ex-capitão lavrou no campo arado por uma crescente onda reacionária.

    Bolsonaro construiu sua persona política a partir desses elementos e o fez com maestria. Ajudado pela equivocada campanha petista, conseguiu fazer o governo Temer passar ileso e transformou o PT no único responsável pelas mazelas sofridas pelo povo. Uma vez consolidado nessa posição transformou o antipetismo em anticomunismo: os inimigos passaram a ser não somente os “petralhas” mas todos os “vermelhos”. Os movimentos sociais foram transformados em terroristas. Cuba e Venezuela passaram a ser identificados como o inferno na Terra.

    Os itens mais escatológicos dessa agenda, como a defesa da tortura e da ditadura militar, foram absorvidos como uma espécie de mal menor, um preço a ser pago em troca da ordem e da segurança, deixando a nu as terríveis consequências de sermos o único país da América do Sul que não ajustou contas publicamente com seus ditadores e torturadores. Sem nunca ter tido as entranhas aqui devassadas, as Forças Armadas conservaram um prestígio que as autorizaram a se apresentar como protagonistas no cenário político nacional.

    A cereja do coquetel ideológico foi a invocação a Deus, presente no slogan “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O tripé afirmativo da campanha de Bolsonaro foi Deus, Pátria e Família, não por acaso o lema dos integralistas brasileiros da década de 1930.

    De maneira geral, apareceram tipos distintos de votantes, em outubro. Os privilegiados, na maioria, votaram em Bolsonaro, como a única alternativa viável para o segundo turno. Um grupo menor de empresários com claras conotações fascistas, votou com ele desde o início. O ódio ao PT foi o leitmotiv da maioria dos seus eleitores. Tivemos também os fiéis das igrejas da teologia da prosperidade, sempre obedientes à indicação do pastor e também grupos de juventude da classe média, que compuseram bandas de inspiração nitidamente fascista voltados para a propaganda agressiva e a intimidação.

    O problema para o Brasil é que o projeto bolsonariano é bem mais complexo do que uma simples negação de tudo o que está aí.

    O Estado Novo de Bolsonaro

    Numa entrevista publicada pela revista argentina Ambito Financiero, um militar brasileiro de alta patente, não identificado, revelou que o projeto Bolsonaro teve início em 2012 com a aproximação de um grupo de generais com o então, capitão, tido até ali como insubordinado e refratário à hierarquia castrense. Segundo a entrevista, o novo projeto de poder está formulado em termos de uma democracia controlada, com protagonismo de patentes militares, tendo como elementos constitutivos a erradicação da esquerda, e o fim dos movimentos sociais.

    De uma forma regressiva em relação à pauta nacionalista do governo militar de Ernesto Geisel (1974-79), os atuais generais de Bolsonaro defendem o alinhamento automático às posições do imperialismo norte-americano no cenário internacional, ao mesmo tempo em que postulam uma política econômica ultraprivatista, com a liquidação do restante das estatais brasileiras. No campo da política interna já tivemos a declaração do vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, partidário de uma nova Constituição escrita por ilustrados escolhidos a dedo pelo regime.

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura

    São apenas sinais, mas indicam que Bolsonaro pretende caminhar em direção a uma nova institucionalidade, baseada na restrição das liberdades políticas e individuais, na supressão de toda oposição, particularmente a de esquerda, na submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo, na implantação de um sistema educacional lastreado em valores extremamente retrógrados, na negação dos direitos civis aos grupos historicamente discriminados e no aumento da violência contra à população pobre. Com tudo isso almeja e trabalha para criar um regime que tenha ampla base popular, no qual ele desponte se não como o Führer, pelo menos como o Mito.

    A indicação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça sinaliza que a perseguição e o encarceramento de lideranças populares, sob as mais variadas justificativas, devem continuar. No terreno da política externa, seus acenos ao Estado de Israel fazem pouco caso das relações econômicas do Brasil com os países árabes. O episódio dos Mais Médicos deixou claro que pretende levar adiante seus desvarios ideológicos sem levar em consideração o sofrimento da população. É também digno de menção o apoio a proposta do novo governador do Rio de Janeiro de assassinar supostos criminosos por atiradores de elite ou por meio de drones.

    Em suma, tudo parece indicar que o projeto de Bolsonaro visa instituir a médio prazo um Estado fascista – um novo Estado Novo – para o qual já existe o líder, o inimigo a ser extirpado, um ideário reacionário, e a definição da violência como a terapêutica fundamental no desvio de condutas sociais. Embora existam dúvidas se o PSL tem condições para se tornar um partido de corte fascista, Bolsonaro conta inicialmente para o apoio de rua com as bases coxinhas e as bandas facistoides. Como plano geral, há o suculento cardápio econômico oferecido aos donos do dinheiro, por meio de uma ampla política de privatizações. Todos se dão por satisfeitos com as juras de amor à Constituição feita pelo novo mandatário, muito embora não ignorem que Hitler também jurou a constituição de Weimar.

    Tensões e resistências

    O terreno nevrálgico da disputa nos novos tempos será a economia. Para navegar em céu de brigadeiro, Bolsonaro vai precisar de resultados rápidos, sobretudo, na redução do desemprego, principalmente, agora, em que uma pauta tão impopular como a reforma da Previdência será deixada no seu colo.

    Enquanto o tão sonhado crescimento não vier, o novo presidente será obrigado a entregar “troféus” políticos – como as prisões de lideranças populares, de preferência acusados de crimes comuns que facilitam a desmoralização – e a manter um constante tom de confronto, guerra e prontidão.

    Por isso são plenamente possíveis uma escalada retórica contra a Venezuela e Cuba, ataques furibundos contra “privilégios” do funcionalismo público e tentativas de direcionar a pauta política para temas como a Escola Sem Partido, a liberação do uso de armas ou até mesmo drásticos cortes nas políticas de incentivos às atividades culturais.

    A esquerda e o movimento popular terão múltiplas tarefas e inúmeros desafios. Em primeiro lugar, a construção de uma frente democrática que deve ser ampla na inclusão de partidos, centrais sindicais, movimentos sociais e ao mesmo tempo possuir a capilaridade necessária para se contrapor a tempo e a hora aos ataques descentralizados e disseminados desfechados por grupos fascistas contra professores e intelectuais progressistas, ativistas de base, lideranças populares ou simples cidadãos transformados em alvo por serem negros, mulheres ou LGBTs.

    As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura

    É preciso não se esquecer de que o medo é um dos alimentos do fascismo. A defesa das lideranças sociais é ação essencial e urgente. Será vital haver discernimento político para ultrapassar cortinas de fumaça e possibilitar concentração nas batalhas em que seja possível a obtenção de vitórias que retardem ou bloqueiem o projeto fascista. Se os fascistas lograrem vitórias iniciais os dias seguintes serão mais difíceis.


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    *Luiz Arnaldo Campos é cineasta e militante do PSOL.
  • Templo, vida e voto

    Templo, vida e voto

    Templo, vida e voto

    Texto de Lamia Oualalou*

    Uma surpreendente transformação no mundo das ideias, da sociabilidade e dos credos cortou o Brasil no último meio século. O “maior país católico do mundo” está aceleradamente deixando de sê-lo. Em 1970, 92% da população se declarava adepta à religião coordenada pelo Vaticano. Em 2010, esse percentual havia caído para 64% e os indicadores apontam uma queda maior a ser aferida no Censo de 2020. Quais os impactos desse processo na vida política nacional?

    “Porque você está tão obcecada pelo papel político dos evangélicos? Será porque você nasceu num país muçulmano, que faz você ver tudo com esse prisma?”. É verdade, nasci e cresci no Marrocos antes de morar alguns anos na França e me apaixonar pelo Brasil, ao ponto de virar cidadã, dois anos atrás. Mas esta reflexão, ouvida por muitos amigos brasileiros do campo progressista me deixava pasma. Será que eles, que em teoria entendiam de política, não percebiam o que estava acontecendo no país?

    Os números já estavam prefigurando uma revolução: em 1970, 92% dos brasileiros se declaravam católicos segundo o IBGE; em 2010, esses não passavam de 64,6%. Um colapso inédito no mundo inteiro, segundo os demógrafos. Embora não se saiba ainda o que vai sair do censo de 2020, pesquisas como as da Datafolha dizem que os católicos são, apenas, 56%. Quem se beneficiou dessa queda vertiginosa foram os evangélicos, que deveriam passar a barreira dos 30%.

    Nasci no Marrocos, mas antes de tudo, sou jornalista. De favelas da baixada fluminense ao Congresso Nacional. Vou a comunidades onde meus amigos especialistas em ciência política, militantes do PT ou do PSOL, talvez não visitem. Converso com pessoas que nunca encontraria na vida normal, como o Pastor Silas Malafaia, no Rio de Janeiro.

    Transformação
    demográfica

    Minhas reportagens fizeram emergir pequenos detalhes que contam a transformação de um país. O espaço urbano é literalmente tomado por igrejas de todos os tamanhos, de cinemas abandonados do centro das metrópoles até pequenos locais antes ocupados por um bar. Elas aparecem até em lugares insuspeitos, como no último andar do edifício do Bope, a tropa de elite do Rio de Janeiro. Ali, uma congregação se reúne todos os dias para rezar, e explicar que apertar o gatilho pode ser um mal necessário. Em nome de Jesus, claro.

    Se a pessoa perde emprego, os ­membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os fi­lhos não têm o que fazer, a igreja promo­ve uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mun­do comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candi­datos a cargos políticos

    Nos movimentos dos sem-teto, as vozes dos pastores são as mais ouvidas. Em Brasília, cada quarta-feira de manhã, deputados evangélicos de todos os partidos – um quinto do Congresso!- se reúne para rezar juntos e fazer avançar pautas comuns. Na rua, muitas meninas passaram a usar uma roupa mais bem comportada, a chamada moda evangélica. Nas lojas de instrumentos de música, os vendedores contam que a maioria dos clientes deles é evangélica, para ser pastor, tem que cantar e tocar direitinho.

    O carro de som que espanta já não é o do Carnaval, mas o da marcha para Jesus em centenas de cidades. Expressões como “Jesus te ama” ou “ideologia de gênero” são banalizadas, tal como os ataques aos terreiros das religiões afro-brasileiras. Num país onde a pirataria rola solta, o mercado dos discos cristãos é uma exceção: os evangélicos são os de maior procura. Para além do tradicional gospel, louva-se Jesus ao som de samba, sertanejo, rock e rap. Aliás, existe uma indústria por trás. As igrejas começam com um templo; depois, uma rádio, uma televisão, uma gravadora. Uma atividade alimenta a outra, a notoriedade da igreja aumenta. Os cantores são famosos, e viram candidatos. Não esqueçam que Marcelo Crivella foi também uma estrela do Gospel.

    Referências
    populares

    A lista dessas mudanças mais ou menos perceptíveis é longa. Eles acabam desenhando uma realidade: os pastores evangélicos conseguiram nas últimas duas décadas virar as principais referências culturais de grande parte dos pobres brasileiros.
    Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro para comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer, a igreja promove uma atividade. Para a maioria, isso afasta os jovens de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce.

    A igreja é para muitos, sobretudo as mulheres, o único lugar de lazer, onde dá para fazer amizades, cantar, rezar, se emocionar. Pouco a pouco, criou-se uma nova identidade. Além de serem brasileiros, muitos cidadãos passaram a se definir também como Cristãos. Isso vai muito mais além de uma religião. É um mundo comum que inclui rádios, TVs, redes sociais, músicas, telenovelas, valores familiares, ódios e, rapidamente, candidatos a cargos políticos.

    Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito

    Assim, as igrejas conseguiram ocupar o espaço do Estado, ausente da vida dos pobres, ou presente só de maneira violenta. Ocuparam o espaço da igreja católica, já que o Vaticano decidiu que a Teologia da Libertação era um perigoso movimento social e político. E pouco a pouco, ocuparam os dos partidos progressistas.

    Muitos desses políticos demoraram em entender a expansão das igrejas evangélicas. Alguns pelas ligações históricas entre a esquerda brasileira e a asa progressista do catolicismo. Outros por cegueira e um toque de desprezo em relação às camadas populares, que conformam a maioria dos evangélicos e aos valores deles, consideradas “caretas”.

    Quando os líderes da esquerda começaram a perceber o peso político dos evangélicos, tampouco largaram o desprezo. Em vez de falar com a base – no final das contas, são essas famílias que mais se beneficiaram das políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma – escolheram tratar com os pastores, delegando para eles a tarefa de mandar votar direito.

    Impérios religiosos,
    financeiros e midiáticos

    Podia parecer uma estratégia esperta: alguns pastores, como o Edir Macedo – dono da Igreja Universal-, já encabeçavam impérios religiosos, financeiros e midiáticos. Mas essa escolha teve uma consequência desastrosa: em vez do necessário trabalho de desconstrução dos pastores e dos interesses deles, na maioria dos casos opostos aos do povo, os partidos – o PT primeiro – acabaram dando a eles a legitimidade dos porta-vozes. É só lembrar-se da inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo, quando toda a classe política – Dilma, Temer, Alckmin – prestou-se a disputar favores do bispo Macedo.

    Não foi a única maneira de legitimar o discurso dos pastores, em especial os que pregam a Teologia da Prosperidade. Quando, em vez de fazer da conquista de direitos universais a métrica da sua política, o governo escolheu colocar a elevação do consumo a marca principal da mobilidade social e acabou falando como muitos pastores.

    Os evangélicos não são os únicos responsáveis da eleição de Jair Bolsonaro, fruto de uma “tempestade perfeita”, mas como explicou recentemente o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, “o que fez a diferença foi o peso do voto evangélico, pois a estimativa indica que Bolsonaro tem mais de 11 milhões de votos do que Haddad no eleitorado evangélico (em todas as suas múltiplas denominações)”.

    O lance, hoje, é entender como a esquerda pode voltar a conversar com esses cidadãos. Passar pela Bíblia, como tentaram nos últimos dias da campanha é provavelmente inútil – e foi, várias vezes, patético. Teria que voltar ao trabalho básico: falar do que realmente importa na vida dos brasileiros, sejam evangélicos ou não: acesso à saúde, educação, transporte decente, salários dignos, e a esperança de um futuro.


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    *Lamia Oualalou é jornalista, ex-correspondente do Le Figaro no Brasil e autora de Jésus t’aime, la déferlante évangélique, Editora Le Cerf (Paris) ainda sem edição em português
  • AQUI NÃO! A resistência nordestina à extrema direita

    AQUI NÃO! A resistência nordestina à extrema direita

    AQUI NÃO! A resistência nordestina
    à extrema direita

    Texto de Robério Paulino*

    O Nordeste derrotou Jair Bolsonaro. Em alguns estados, mais de dois terços do eleitorado rejeitou o ex-capitão. É situação contrária à da maior parte do país. Que fatores levaram a esse resultado e que impactos tiveram os investimentos públicos e os programas sociais dos governos Lula e Dilma na região?

    No processo eleitoral que deu a vitória a Jair Bolsonaro, o Nordeste apresentou resultados opostos aos do restante do país, tanto no primeiro como no segundo turno. Foi a única região onde o ex-capitão colheu ampla derrota. Ao final da disputa, muitos nordestinos se orgulhavam e compartilharam a hashtag #AquiNão. Na etapa inicial, Fernando Haddad chegou em primeiro em oito estados da região, além do Pará. Some-se a isso a dianteira de Ciro Gomes no Ceará. Esses fatores levaram a eleição para o segundo turno.

    No segundo turno, com a polarização política ainda mais acentuada, enquanto Bolsonaro cresceu como o candidato do campo conservador, a vantagem de Haddad no Nordeste também se ampliou, chegando à impressionante média de 67,7%. A porcentagem representa mais do dobro dos votos dados ao candidato da direita, que ficou com apenas 30,3% na região. No Piauí, o petista alcançou 77%. Na Bahia, o maior estado da região, conquistou 72,6% dos votos válidos.

    Excetuando cinco capitais onde Bolsonaro ganhou por leve vantagem ou bairros de alta classe média, a região lhe deu um não categórico. Que razões explicam o fenômeno da resistência nordestina? É o que as linhas a seguir nos convidam a discutir. Para buscar uma explicação, é importante identificar os fatores e argumentos que deram vitória ao ex-capitão e, por exclusão, ver quais estavam presentes ou não no Nordeste e que diferenças em relação aos demais estados essa região apresentava.

    O antipetismo como
    força política

    Bolsonaro ganhou a eleições antes de tudo catalisando o ódio a Lula (que seguia latente, mas mostrou-se mais intenso do que se podia supor) e ao PT. O antipetismo vicejou, seja pela rejeição aos programas sociais de transferência de renda aos mais pobres, que desagradaram grande parte da classe média conservadora das regiões mais ricas e das capitais, seja por seu envolvimento direto com a corrupção ou alianças com setores da velha política, que jogaram setores pobres na mão da direita. Isso abriu a oportunidade para a grande ofensiva contra a esquerda que ora se observa, da qual a Lava Jato foi parte. Em segundo lugar, Bolsonaro soube explorar melhor que a esquerda o ódio aos velhos políticos, apresentando-se contra “tudo isso que está aí”, ainda que ele mesmo seja parte dessa velha política.

    O candidato fascista também utilizou melhor que a esquerda o medo da população de todas as faixas sociais contra a criminalidade crescente, prescrevendo o remédio aparentemente mais rápido contra isso – ainda que saibamos ineficaz – ou seja, mais violência policial contra o crime e a população das periferias, prometendo impunidade aos agentes do Estado. A esquerda não tem um programa contundente contra a criminalidade, parando às vezes na explicação de suas causas. O apoio das igrejas pentecostais conservadoras, que proliferam e agem nas periferias há anos, combinado com a utilização de um discurso preconceituoso contra as mudanças no terreno dos costumes e da sexualidade, que incomodam parte considerável da população pobre, foi outro fator para a vitória de Bolsonaro.

    Mentiras aos milhões

    Uma utilização mais ágil das redes sociais do que fez a esquerda e a propagação agressiva de mentiras, aos milhões – fake news -, no melhor estilo nazista, também ajudam a explicar a vitória. A exploração de discursos racistas, machistas e xenófobos não parece ser o que deu a vitória a Bolsonaro. A maioria dos eleitores parece não ter se importado com isso. Mas os resultados foram diferentes entre as regiões, como veremos. Acreditamos que o discurso neoliberal no terreno econômico tampouco teve grande importância para explicar o fenômeno Bolsonaro, que sequer tinha um programa claro nesse campo.

    No Nordeste, fatores como a rejeição aos velhos políticos, o medo da violência, o temor da população menos informada com as mudanças nos costumes, o crescimento das igrejas evangélicas, a disseminação de mentiras pelas redes sociais, estavam igualmente presentes nesta eleição. Não são tais fatores que podem explicar o resultado eleitoral distinto. Isso nos leva a buscar a avaliação da votação diferenciada no Nordeste em outros elementos.

    Investimentos públicos
    dos governos petistas

    O primeiro fator explicativo que nos parece evidente é o imenso impacto na vida econômica e social da região dos programas sociais e dos investimentos públicos, o que levou o PT continuar a ser o partido preferido na região e Lula um dirigente ainda muito admirado. Diversos programas sociais, como Luz para Todos, PROUNI, FIES, Bolsa Família e Mais Médicos tiveram imenso impacto na economia e na vida social da região, bem maior quem nas demais. A população reconhece em Lula e nos governos do PT e dos partidos aliados a autoria de tais iniciativas.

    A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais, beneficiaram diretamente o Nordeste. Quem passa em uma pequena cidade do sertão e vê um novo campus de um IF ou de uma nova universidade federal se destacando na paisagem, com seu impacto positivo na vida de milhares de famílias e na autoestima dessas cidades e outras no seu entorno, sabe do que estamos falando. Para que se tenha uma ideia, no Rio Grande do Norte, os IF saltaram de dois campi em 2006 para 21 nos últimos 12 anos. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a eleição da senadora Fátima Bezerra, do PT, como única governadora eleita nessa nova safra em todo o Brasil.

    Numa região de economia mais frágil, o efeito multiplicador keynesiano desses investimentos parece ter sido maior que nas demais. Segundo Aninho Irachande, professor de Ciência Política da UnB, cada R$ 1,0 investido na economia regional se transforma em R$ 1,6 em circulação (Carta Capital, 01.11.2018).

    Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos

    Prefeitos e governadores, mesmo de partidos diferentes do PT, como PSB, PDT e mesmo MDB, já muito pressionados pela redução do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados, são muito conscientes disso e viram em Bolsonaro uma ameaça de redução desses programas e investimentos. Essa é a raiz de sua rejeição e do apoio a Haddad.

    A força do Bolsa Família

    O Bolsa Família, como um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, tem a maioria dos beneficiários no Norte e Nordeste e isso parece ter feito grande diferença nas eleições também. Como exemplo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, em julho de 2017, quinze estados brasileiros localizados da região receberam 66,7% do total de dinheiro gasto pelo governo federal com o programa Bolsa Família no mês. Dos R$ 2,3 bilhões transferidos naquele mês, R$ 1,5 bilhão ficou com esses estados, criando um impacto imenso na economia e na vida das cidades e das famílias e elevando os IDHs municipais, evidentemente gerando também acusações de favorecimento e ciúme de líderes de outras regiões do país. Como se pode ver no gráfico abaixo, em 11 estados, mais de um terço da população recebe o benefício. Por tudo isso, o preconceito e o ódio contra Lula e o PT, o antipetismo, que turbinaram Bolsonaro nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, não eram tão intensos no Nordeste e o grande apelo de Lula e do PT se transferiram a Haddad.

    O mito do moderno
    contra o atraso

    Com base nos resultados eleitorais, ideólogos de direita chegam a afirmar que Bolsonaro teria vencido no Brasil “moderno” e Haddad na sua parte “atrasada”. Mas a pergunta que se coloca aqui é: errou a maioria que votou em Bolsonaro nas demais regiões do país ou errou o Nordeste? É “mais moderna” a maioria das demais regiões do país que votou num candidato defensor da ditadura e mesmo de seus torturadores, que defendem a morte de opositores, que propagam o preconceito contra negros, gays, o ódio e a mentira? Um trabalhador branco do Sul que vota num candidato que promete cortar direitos sociais tem mais consciência que uma família nordestina que defende seus programas sociais? Um negro do Sudeste que votou num candidato assumidamente racista votou pela “modernidade” ou em seu algoz? Uma mulher branca do Centro-Oeste que votou num candidato claramente machista e misógino demonstra mais consciência ou mais incompreensão sobre a realidade do que uma jovem negra nordestina indignada com Bolsonaro? Por que grandes jornais mundiais, artistas globais e mesmo governantes moderados de países capitalistas afirmam que o Brasil votou por um retrocesso?

    Voto e retrocesso

    Lembremos também que mesmo nas regiões em que Bolsonaro ganhou, a parcela mais crítica e consciente da população, os professores, os jovens das escolas e universidades públicas, por exemplo, votaram contra o retrocesso que ele significa.

    Votar em defesa de programas e direitos sociais, como ocorreu no Nordeste, de forma alguma é um fator de alienação política, mas de consciência. A Europa, por exemplo, tem mais programas de transferência de renda que o Brasil e as populações defendem essas conquistas e direitos com unhas e dentes, sendo isso um distintivo de alta consciência, não de alienação. Nesse sentido, é de se esperar que o Nordeste venha a ser um grande centro de resistência no governo Bolsonaro desde já.

    A sensação, especialmente nos interiores, é que os investimentos públicos dos governos de Lula e Dilma, como a transposição das águas do São Francisco, a grande expansão dos Institutos Federais (IF) e a criação de novas universidades federais beneficiaram diretamente o Nordeste. A tradição de luta contra a escravidão e a se­gregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares e Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena. É, talvez, a única no país onde a popula­ção assume uma identida­de regional própria, talvez só igualada pelos gaúchos

    Muitos perguntam se esse voto decorrente dos programas sociais não seria volátil, se transferindo do PT para o novo governo, caso Bolsonaro resolva, por exemplo, ampliar tais programas e investimentos. Como hipótese, pode ocorrer, mas aí já não estaríamos tratando de Bolsonaro, mas do contrário, o que é altamente improvável. O governo, com orientação neoliberal, quase com certeza, como já começou a fazer Temer, vai reduzir a face social do Estado e o alcance desses programas, até para castigar o Nordeste.

    Racismo, xenofobia, misoginia…

    Outro fator, não menos importante, que influenciou muito o resultado no Nordeste foi a rejeição aos discursos racistas, xenófobos, misóginos, discriminatórios de Bolsonaro, inclusive contra nordestinos. Esses geraram indignação na região, especialmente entre a juventude negra, as mulheres jovens e os setores mais conscientes da população.

    O Nordeste é, por excelência, a região mais negra, indígena e mestiça do país. A tradição de luta contra a escravidão e a segregação tem profundas raízes na região, que abrigou o Quilombo dos Palmares, Canudos, e mantém viva a cultura negra e indígena nos costumes, na linguagem, na culinária, na música e na cor da pele. É, talvez, a única no país onde a população assume, com orgulho, uma identidade regional própria, até como artifício de defesa contra a discriminação, talvez só igualada pelos gaúchos.

    Grande parte da população da região se sentiu fortemente insultada e ameaçada por tudo de retrocesso que Bolsonaro significa. Não à toa foi em Salvador, um bastião da luta negra no país, onde ocorreu a maior manifestação contra Bolsonaro nestas eleições.

    Por fim, sem negar os patentes elementos de atraso ainda a superar na região, é possível dizer que o resultado também se explica pelo Nordeste ter uma longa trajetória de luta libertária e contestatória.

    A Confederação do Equador, que propunha uma república já no início do século XIX, massacrada pelo império que atrasou o país até à virada para o século XX, se deu aqui. (A libertação dos escravos aconteceu no Ceará em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, fruto da luta negra). Canudos ocorreu aqui. O sentimento e o orgulho regionais ainda são fortes. Ao mesmo tempo em que ainda amarga a existência das velhas oligarquias, das quais lenta e felizmente começou a se livrar, o Nordeste se insurge contra o retrocesso no país. Essa veia contestatória se fará presente nos próximos anos na vanguarda da resistência ao governo Bolsonaro.

    #AquiNão.


    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

    Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:

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    *Robério Paulino é Economista e professor de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor do livro Socialismo no século XX: o que deu errado? (Editora Kelps, 2008)
  • Nova revista da FLC explica “como chegamos a isso aí”

    Nova revista da FLC explica “como chegamos a isso aí”

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    explica “como chegamos a isso aí”

    A Fundação Lauro Campos lançou a 23 ª edição da revista Socialismo e Liberdade. Nesta edição, a revista busca traçar uma ampla e profunda reflexão sobre como chegamos até aqui, ou seja, com a vitória da extrema direita pela primeira vez na história para a presidência do Brasil. Para isso, a revista investiga o passado recente para tentar explicar o presente. O economista José Luís Fevereiro e o historiador e jornalista Gilberto Maringoni refizeram os passos dos governos petistas, desde 2013, e buscaram analisar iniciativas, amarras e compromissos com as classes dominantes, que paulatinamente lhes ceifou a iniciativa política.

    A edição traz, ainda, a disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, os 30 anos da Constituição de 1988, o saldo político do PSOL nessas eleições e muitas outras matérias.

    Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pela Fundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!

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