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  • Um negro comunista

    Um negro comunista

    Um negro comunista:
    o primeiro candidato operário
    à presidência da República

    Há quase 90 anos, o primeiro candidato comunista à presidência da República foi o operário negro Minervino de Oliveira. Filho de família muito pobre do Rio de Janeiro, esse marmorista de profissão destacou-se nas lutas populares por sua valentia, combatividade e inteligência aguda. Num país que ainda hoje conserva os preconceitos da escravidão, é vital recuperar a trajetória desse combatente exemplar

    Por Matheus Gomes – Militante do movimento negro, servidor do IBGE e mestrando em História/UFRGS

    Foi na eleição de março de 1930. Apenas quatro décadas se passaram entre a abolição formal da escravidão e a primeira candidatura presidencial de um homem de origem negra. A luta de classes também fez desse acontecimento o ponto de partida dos comunistas brasileiros em disputas presidenciais.

    Minervino de Oliveira é o nome do homem que encarnou essa responsabilidade e sabemos pouco sobre a trajetória dele. Uma breve pesquisa nos mostra que a vida de Minervino se confunde com a história do movimento operário das primeiras décadas do século XX e apresenta questões vivas sobre a relação entre o marxismo e a questão racial.

    Do sindicalismo ao comunismo,
    da marmoraria ao parlamento

    Condenado à clandestinidade a partir do estado de sítio decretado pelo governo de Arthur Bernardes (1922-26), em 1922, o Partido Comunista do Brasil (PCB) viveu um período de isolamento político permeado por intensos debates ideológicos no limiar de sua existência. Tampouco o cenário internacional ajudava, já que o ímpeto revolucionário russo esbarrava no primeiro refluxo. Entretanto, as táticas de caráter defensivo elaboradas nos dois primeiros congressos da Internacional Comunista (IC), especialmente a frente única entre comunistas e social-democratas, abriram novas possibilidades para os brasileiros.

    A consequência inicial foi a aproximação com a Confederação Sindicalista-Cooperativista Brasileira, os “sindicalistas amarelos”, que permitiram a livre propagação de opiniões dos comunistas por meio das páginas do jornal O Paiz.

    A tática possibilitou um crescimento do partido e colocou sob influência entidades como a dos trabalhadores têxteis e marmoristas (Karepovs, 2006). Desta última, destacava-se a liderança de Minervino, que adere ao partido nesse período.

    Filho da lavadeira

    Nascido no Rio de Janeiro em 1891, filho da lavadeira Augusta Laura de Oliveira e de José de Oliveira, Minervino cresceu no subúrbio em meio à organização da dinâmica social no pós-abolição. Aos dez anos, foi obrigado a iniciar a jornada no mundo do trabalho como aprendiz de tecelão. Depois, passou rapidamente a empregos no comércio, fábricas de vidro e móveis. Foi lavrador, carvoeiro e empregado da Light, até aprender, aos 14 anos, o ofício de marmorista. Ali começa a atividade sindical.

    Condenado à clandestinidade a partir do Estado de sítio decretado pelo governo de Arthur Bernardes (1922-26), o Partido Comunista do Brasil (PCB) viveu um período de isolamento político permeado por intensos debates ideológicos no limiar de sua existência

    Ao completar 20 anos, Minervino ingressa no Centro dos Operários Marmoristas e ocupa o cargo de secretário por diversas vezes, além de cumprir papel de destaque na articulação com outras categorias e participar como delegado do 3° Congresso Operário Brasileiro, em 1920. Uma intensa atuação na imprensa operária marcou a sua formação intelectual: foi redator do jornal A voz do marmorista e colaborou com A voz do trabalhador, Spartacus, A voz do povo e A Nação (Domingues, 2017).

    Nas palavras de Octávio Brandão, dirigente político e teórico do PCB, Minervino “não tinha, assim, uma cultura marxista, mas era homem de uma bravura extraordinária. (…) Há uma fotografia que saiu na Pátria, no meio do tiroteio da polícia na praça do Teatro Municipal, e Minervino apenas se encostou à porta de ferro do teatro. (…) cercado de policiais depois do tiroteio. Não correu. Uma bravura.” (Rego, 1993). Como consequência de sua liderança, foi duramente perseguido e amargou diversas passagens pelas prisões do Distrito Federal. Suas convicções e coragem o levaram a ser escolhido como candidato do Bloco Operário e Camponês (BOC) nas eleições para intendente do Distrito Federal (vereador), em outubro de 1928.

    Vereadores do barulho

    Surgido no ano anterior em meio ao impacto da Lei Celerada – que pôs fim a um breve período de legalidade do PCB -, o BOC representava a possibilidade de intervenção pública dos comunistas e a continuidade da tática de frente única, dessa vez no terreno eleitoral.

    Minervino liderou a campanha a partir de comícios em portas de fábricas e locais de trabalho, além de atividades como os “festivais”, momento de confraternização com as famílias operárias em bailes animados por grupos de música e teatro.

    Octávio Brandão concorreu pelo 1° Distrito e conseguiu se eleger, mas Minervino ficou de fora da Intendência por uma vaga, na disputa do 2° Distrito. Contudo, o destino favoreceu os comunistas: a morte acidental de um eleito abriu espaço para o marmorista e assim iniciava a trajetória dos operários no parlamento brasileiro.

    Assumir os mandatos foi uma luta árdua, já que os representantes do presidente Washington Luiz queriam impedir as posses. O historiador Dainis Karepovs (206, p. 103) nos mostra que, uma vez no Legislativo, o exercício dos mandatos foi uma ruptura com a lógica predominante de controle individual dos cargos, já que ambos colocavam em pauta demandas coletivas elaboradas pelo PCB, pelos centros políticos proletários e por comitês de categorias que compunham o BOC.

    Isso não impediu que algumas ações fossem consideradas “estreitas” e “imediatistas” pela direção do partido. Porém, a combatividade das intervenções em plenário contra o imperialismo e a ação extraparlamentar eram as marcas dos mandatos, como mostra o compromisso de Minervino com o cargo de Secretário Geral da recém fundada Confederação Geral do Trabalho, em abril de 1929. Nesse momento, a repressão já limitava a ação operária e logo os intendentes foram cassados de maneira velada pela “Indicação n° 180”, que proibia os “discursos subversivos” e impedia o registro das intervenções dos intendentes do BOC.

    Comunista para presidente!

    O centro das eleições de 1930 era a disputa em torno da ruptura do acordo entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. A crise econômica de 1929 fragilizou os lucros da burguesia cafeeira paulista, vanguarda da industrialização, obrigando o giro eleitoral pela concentração de poder. Acirrava-se a contradição entre o desenvolvimento econômico – marcado pela ampliação da industrialização, a formatação do mercado interno e a ingerência do imperialismo estadunidense -, e o processo político de consolidação da República, que oscilava entre a crescente centralização estatal promovida pelo poder executivo e a exigência de autonomia dos estados (Pedrosa, Xavier, 1987).

    Aos dez anos, Minervino foi obrigado a iniciar a jornada no mundo do trabalho como aprendiz de tecelão. Depois, passou rapidamente a empregos no comércio, fábricas de vidro e móveis. Foi lavrador, carvoeiro e empregado da Light, até aprender, aos 14 anos, o ofício de marmorista. Ali começa a atividade sindical

    Minervino e o ferroviário Gastão Valentim foram escolhidos para a difícil tarefa de representar o BOC, num clima de intensa repressão aos comunistas movida por ambas frações da elite. Devido à perseguição policial, o alistamento eleitoral prévio foi pequeno. Ocorreram poucos comícios e festivais e quase não houve distribuição de panfletos e colagem de cartazes. Apenas duas edições de A classe operária foram impressas e o trabalho de fiscalização da votação foi pífio. A prisão de Minervino no comício de lançamento da candidatura é a expressão máxima da situação.

    Apesar das vitórias conquistadas nos anos anteriores, as debilidades da jovem direção do PCB prevaleceram sobre as qualidades. A campanha foi organizada em base a uma superestimação das forças revolucionárias, inspirada pela linha do “Terceiro Período”, da IC de Josef Stalin. Durante a reunião do III Pleno do Comitê Central, em outubro de 1929, a maioria dos dirigentes avaliou a situação nacional como “objetivamente revolucionária”. Já em fevereiro, o slogan oficial era “A luta pela eleição dos candidatos proletários é a luta pela revolução!”.

    Pauta ampla

    Diversos temas compunham a plataforma programática. Questões referentes às relações de trabalho, taxação de impostos, direitos dos militares, reforma agrária e nacionalização das terras, a extensão do direito ao voto para mulheres, analfabetos, com a redução da idade mínima para 18 anos, direitos das populações indígenas e da classe média. Entretanto, para pensar a trajetória de Minervino, é fundamental refletir sobre uma ausência significativa: a questão racial.

    “Há uma fotografia que saiu na Pátria, no meio do tiroteio da polícia na praça do Teatro Municipal, e Minervino apenas se encostou à porta de ferro do teatro. (…) cercado de policiais depois do tiroteio. Não correu. Uma bravura”

    Como demonstra o Pedro Chadarevian (2012, p. 260), os debates realizados na Primeira Conferência Comunista Latino-Americana, em junho de 1929, explicitam a posição do partido. Na opinião da delegação, a situação no Brasil não era “de natureza tal como para exigir que nosso Partido organize campanhas reivindicativas para os negros, com palavras de ordem especiais. O cruzamento [racial] se faz cada dia mais intensamente, produzindo tipos cada vez mais claros já que não vêm ao país há mais de meio século imigrantes negros. (…) o Partido deve combater [o preconceito de cor] no momento em que ele apareça, mas é desnecessária uma ação permanente e sistemática, dado que muito raramente ele se manifesta.” (Sección Sudamericana de la Internacional Comunista, 1929 apud Chadarevian, 2012, p. 261).

    A intervenção demonstra certa influência da nascente ideologia da democracia racial e até mesmo das teses do branqueamento no interior do partido, o que não exclui a existência de contrapressões. Uma expressão do reconhecimento do racismo fica explícita num relato de Brandão. Ao referir-se sobre a militância negra na formação do PCB, o dirigente afirma que quando presos os negros “apanhavam por serem comunistas e apanhavam por serem negros” (1993, p.116), mesmo assim, a constatação não foi suficiente para o influente dirigente defender a luta antirracista como elemento de mobilização da revolução brasileira.

    Ainda em 1929, a compreensão do PCB sobre a questão racial foi criticada pela direção da IC (Chadarevian, 2012). De fato, a visão estava atrasada ante a elaboração internacional. Desde 1920, a questão da revolução nos países de origem ou situação colonial foi fruto de intensas discussões. Já em 1922, durante o Quarto Congresso, é aprovada a Tese Sobre a Questão Negra. A palavra de ordem da “autodeterminação negra”, com foco na realidade dos EUA, mas utilizada pelos brasileiros na questão indígena em 1930, foi elaborada pelo Sexto Congresso da IC, em 1928. Já em meio ao debate de balanço das eleições, “a classe operária” publicou, em 17 de abril de 1930, uma análise do Secretariado Político da IC sobre o Brasil, na qual a necessidade de ampliação do trabalho “sistemático e sério” entre a população negra é defendida como um caminho para o aumento da influência do partido nas massas.

    Minervino de Oliveira,
    máximo respeito!

    Minervino foi conhecido como marmorista, sindicalista, jornalista, comunista, intendente e candidato à presidência do Brasil, mas por décadas teve a identidade negra omitida. Isso se explica pela negativa do PCB em elaborar demandas específicas para o combate ao racismo, não o reconhecendo como fenômeno social intrinsecamente ligado à formação do capitalismo brasileiro, principalmente entre 1922 e 1934.

    O protesto negro compunha a rede de inquietações que desaguou nas transformações ocorridas a partir de outubro de 1930 (Fernandes, 2008). É razoável sugerir que os comunistas perderam uma oportunidade de ampliar a influência sob o povo negro no pleito de 1930. Prova dessa efervescência política é a criação da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931.

    As características da ação política da FNB não conformavam um programa de ruptura com o capitalismo, o que define a fase da estratégia assimilacionista do movimento negro, na qual os “homens de cor” relacionavam a marginalização do negro ao despreparo moral e educacional oriundo do antigo regime e exigiam as condições para sua incorporação plena no capitalismo nascente (Domingues, 2007). Visando à disputa de influência com a FNB, a primeira formulação do PCB sobre negritude defende o inverso, a política de autodeterminação, palavra de ordem que jamais encontrou eco entre negras e negros, mas marca a “virada antirracista” do partido (Graham, 2014).

    Minervino liderou a campanha a partir de comícios em portas de fábricas e locais de trabalho, além de atividades como os “festivais”, momento de confraternização com as famílias operárias em bailes animados por grupos de música e teatro

    Não se sabe o destino final de Minervino. Nesse aspecto, sua vida soma-se a tantas outras histórias negras negligenciadas, o que amplia a simbologia de recuperar a memória e dotá-la de significados e inspirações para os embates do presente. A vida de Minervino se confunde com a história do marxismo brasileiro, o que inclui contradições e ambiguidades e, exatamente por isso, pode nos inspirar a construir uma esquerda profundamente antirracista e anticapitalista para o século XXI.


    Referências
    CHADAREVIAN, Pedro. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro (1922-1964).
    Política & Sociedade V.11 n°20, p.255-283, 2012.
    DOMINGUES, Petrônio. Minervino de Oliveira: Um negro comunista disputa a presidência do Brasil. Lua Nova, n.101, pp.13-51, 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-013051/101. (Acesso em 2/2/2019).
    Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Revista Tempo, n. 23, p. 100-122, 2007.
    FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. São Paulo, Editora Globo, 2008.
    GRAHAM, Jessica Lynn. A virada antirracista do Partido Comunista do Brasil, a Frente Negra Brasileira e a Ação Integralista Brasileira na década de 1930. In: GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio (orgs.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, p. 353-375, 2012.
    KAREPOVS, Dainis. A classe operária vai ao parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil. São Paulo, Editora Alameda, 2006.
    PEDROSA, Mário; XAVIER, Lívio. Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil. In: ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis. Na contra-corrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista, 1930-1933. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987.
    REGO, Otávio Brandão. Otávio Brandão (depoimento, 1977). Rio de Janeiro, CPDOC, 1993.
    Jornais consultados: A Classe Operária, maio de 1928 a maio de 1930
  • Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do Estado policial como política social

    Projeto Moro: a defesa do
    Estado policial como política social

    O “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro busca legitimar execuções policiais. Isso não se constitui em mero equívoco ou ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana, ainda que fora da lei. Agora se pretende transformá-la em política de Estado

    Por Luciana Boiteux – advogada, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, pesquisadora, feminista e militante dos direitos humanos

    Escrevo este texto no final de fevereiro, pouco depois de treze pessoas serem mortas por policiais militares em operação na comunidade Fallet-Fogueteiro, no centro do Rio de Janeiro. As fotos da casa onde foram executados os supostos criminosos são chocantes: mostram uma parede de ladrilhos brancos cobertos de sangue. Enquanto os moradores denunciaram o caso como chacina, afirmando que a polícia chegou atirando pelas costas, a PM alegava troca de tiros e confronto, ou seja, que teriam atirado em legítima defesa.

    Não se sabe ainda como será registrada a ocorrência. Pela repercussão pública, pode haver uma investigação mais profunda. Tradicionalmente, no Rio de Janeiro, esse tipo de ação policial é catalogada como “auto de resistência”, algo denominado nos registros oficiais como “homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial”. Trata-se de um eufemismo que define uma ação policial legitimada de antemão. Provavelmente, o destino será o arquivamento.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Segundo o Observatório da Intervenção, durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, entre fevereiro e dezembro de 2018, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados em 2017 no mesmo período.

    Atirar “na cabecinha”

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha eleitoral em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. O aliado de Jair Bolsonaro tem se deixado fotografar em visitas ao quartel do Batalhão de Operações Policiais da PM (BOPE) fazendo flexões e corridas matinais ao lado de policiais militares. Tal posição leniente com a violência policial já rendeu um aumento da série histórica de mortes violentas no Estado: só no primeiro mês do novo governo, aliados de Jair Bolsonaro, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior, dezembro de 2018. É o segundo maior número de mortes para o primeiro mês do ano desde que se iniciou a série histórica em 1998. Tais números ainda nem incluem as mortes ocorridas em fevereiro no Fallet, já mencionadas.

    Vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados no mesmo período de 2017

    A pergunta a ser feita diante dessa realidade é: como o sistema legal trata essas ocorrências e qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Formalmente, pela lei, em caso de morte violenta por causas não naturais, instaura-se um inquérito para investigação de crime de homicídio e apuração de autoria e circunstâncias. A política de garantir imunidade ao policial quando este executa quem considera “bandido” rompe com a lógica da lei e da Constituição de tutela da vida e do controle da violência. Instaura-se a legalização da barbárie, pois permite a chancela estatal de uma execução extrajudicial como estratégia de segurança pública.
    Tal lógica repressiva e autoritária se reflete, na prática, em casos que envolvem mortes causadas por policiais em serviço, quando o registro de ocorrência adota uma denominação diferenciada de “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Isso já determina um procedimento alternativo, capaz de impedir investigação e levar ao arquivamento o mais rápido possível.

    Papel do Ministério Público

    Cabe aqui destacar o papel do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. Segundo a Constituição (Art. 129, parágrafo. 4º) este é o titular da ação penal, que tem a autoridade para denunciar crimes e responsabilizar policiais por abusos e atuações fora da lei. Por outro lado, cabe aos juízes, nesse momento processual, acatar ou não o pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público, ou receber a denúncia oferecida por este, caso tenha sido constatada a ocorrência de crime.

    Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. Um resultado imediato: só no primeiro mês do novo governo, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior

    Bruno Manso e Renato Sérgio Lima, autores de Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil, comentam que “a ideologia do ‘bandido bom é bandido morto’, muitas vezes [é] reforçada pelo Ministério Público e Judiciário quando estes não condenam os padrões policiais de uso da força no Brasil como anômalos e inaceitáveis”. Se temos o Ministério Público, o Judiciário e o governador incentivando esse tipo de iniciativa, a tendência será aumentar ainda mais a prática, já naturalizada.

    Licença para matar

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários, o objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”.

    Em caso ocorrido há alguns anos, quando se investigava a morte de um conhecido traficante de nome Matemático, chamou a atenção o despacho do juiz acatando a opinião ministerial, louvando a eficácia mortífera dos heróis da polícia no confronto com “bandidos” e arquivando o caso reconhecendo a legítima defesa (a pedido do Ministério Público), diante de elementos fortemente armados que teriam resistido à ação policial. Depois se descobriu que o suspeito procurado fugia de carro e foi alvejado por meio de tiros de fuzil dados do alto de um helicóptero da polícia civil do Rio de Janeiro. A legítima defesa, nesse caso, não se sustentava em evidências, mas na afirmação dos policiais.

    Qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?

    Apesar de vendida como uma solução para a violência e a criminalidade, a lógica do enfrentamento e das execuções de suspeitos em favelas e periferias não logrou atingir os resultados esperados. Ainda segundo Manso e Lima, “as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447).”

    Não obstante, o senso comum tende a considerar que a melhor estratégia de combate à violência é a repressão policial e o enfrentamento armado em territórios periféricos e pobres, sendo essa reação legitimada por uma maioria da população que, movida pelo medo, falta de informação e alguma manipulação, apoia o mote “bandido bom é bandido morto”.

    Defesa da violência

    Nesse cenário, chama a atenção, nas eleições de 2018, não somente a ascensão de Jair Bolsonaro, cuja trajetória política é vinculada às corporações militares e às milícias formadas por policiais, que sempre teve posições de defesa de ações violentas praticadas por agentes da lei, mas também a quantidade de militares, policiais e delegados eleitos para a Câmara Federal. De 19 na legislatura anterior, há agora 28 deputados. Os pronunciamentos do presidente eleito e de boa parte do Congresso Nacional vão na linha de defesa da criação de mecanismos de “proteção” de policiais “que impeçam a punição ou responsabilização”.

    Sem dúvida, essa formulação de políticas ditas de segurança pública, deve ser situada na lógica de manutenção e reforço da dominação e controle das classes subalternas, baseadas não mais somente na criminalização da pobreza, que sempre se deu pelo investimento em encarceramento de corpos descartáveis em penitenciárias. A isso, agrega-se a adoção de políticas classistas e racistas de extermínio autorizado pelo sistema.

    A ascensão do chamado Estado Penal nos países centrais por meio de uma onda punitiva, apontada por Loic Wacquant como uma resposta ao crescimento da insegurança social e não à insegurança criminal, reverbera na América Latina e países periféricos. Aqui, nota-se uma intensidade ainda maior, que envolve a autorização para matar como método.

    Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários. O objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”

    Tudo isso para dizer que o “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro, que traz diversas propostas de alteração da lei penal com o objetivo de dar-lhe maior rigor, em especial nos casos de crimes de corrupção, segue a linha contrária em relação à responsabilização de agentes da lei por crimes violentos praticados no cumprimento da função. Esse, aliás, é o foco do ex-juiz, responsável pela condenação de Lula, que lhe valeu a indicação ao cargo de ministro da Justiça do maior adversário do ex-presidente. Enquanto, por um lado, o projeto enviado ao Congresso reduz as hipóteses de prescrição e o acesso a recursos defensivos, propõe a criminalização do caixa dois, ampliando o Estado punitivo. Há uma clara ampliação legal dos limites do uso da violência por particulares e agentes públicos, limitando a atuação formal do sistema penal para estes.

    Defesa em casos de feminicídio

    Aqui nos referimos à mudança no texto do Código Penal que trata das excludentes de ilicitude. Isso abrange estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito (Art. 23), por meio da redução e até mesmo isenção de penas nas hipóteses de abusos no direito de reagir, quando este for desproporcional, em face de perigo atual, de excesso de cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do agente decorrer de “escusável medo, surpresa e violenta emoção”, dando tratamento menos repressivos aos casos de excesso.

    Essa inovação se aplica a qualquer pessoa e poderá ser usada como defesa em casos de feminicídios, até mesmo para levar a absolvição de maridos e companheiros ciumentos, assim como a brigas de trânsito ou de torcidas e a reações desproporcionais de proprietários de terras em casos de “invasão”, que dificilmente serão punidos.

    Para isso, foi proposta a alteração da redação do § 2º. do Art. 23 que autoriza o juiz a “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso ocorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

    Especificamente, para proteger os agentes de segurança em geral e garantir-lhes ainda maior imunidade do que têm hoje, foi prevista a inclusão de dois dispositivos específicos às hipóteses de legítima defesa. A alteração se dá pela inclusão de um parágrafo ao Art. 25 do Código Penal, passando-se a considerar outras hipóteses de legítima defesa somente para agentes policiais: “Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

    O resultado da aplicação prática de tais dispositivos, caso esse projeto de lei venha a ser aprovado no Congresso, será a oficialização da imunidade já garantida aos policiais que executam pessoas em favelas e periferias, o que poderá levar ao aumento das mortes. É a lógica do medo e da sensação de insegurança que levam a população a legitimar tais execuções, incentivadas por manipulações midiáticas. Contudo, apesar de as pessoas em geral terem medo de morrer vítima de “bandidos”, é mais provável, no Brasil, uma pessoa ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante.

    Imunidade seletiva

    Trata-se da previsão legal de um tipo de “legítima defesa presumida”, que já constava anteriormente do Art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890, usada à época para beneficiar o proprietário que matava o ladrão noturno (mais classista impossível).

    Tal proposta é inconstitucional por criar uma categoria de pessoas às quais se garante imunidade por crimes de homicídio apenas por serem agentes da lei. Tal visão viola a lógica e a racionalidade, pois espera-se de policiais e agentes de segurança que sejam melhor treinados e preparados no uso de armas de fogo em situações de confronto. Nessa perspectiva, esses funcionários públicos deveriam estar sujeitos a regras mais rígidas, pois são pagos e treinados pelo Estado para proteger vidas e não para executar pessoas.

    O dispositivo que Moro pretende aprovar, além de inconstitucional, fere ainda normas internacionais de direitos humanos, como o Código das Nações Unidas de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei, adotado pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, que no Art. 3º. determina que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever”.

    Nunca é demais lembrar também que uma política governamental de execuções policiais sumárias foi considerada caso grave de violação de direitos humanos pela Corte Interamericana que condenou o Brasil, em 2017, a adotar medidas de redução da violência policial e de lesões corporais e homicídios dela decorrentes. Examinava-se o caso das chacinas da Favela Nova Brasília, ocorridas em 1994-95. Expressamente, constou da sentença que o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deve ser abolido (cf. parágrafos 333 a 335 da sentença). Ou seja, o contrário do que se propõe agora.

    Institucionalização do genocídio

    A prática institucional de legitimar execuções policiais que Sérgio Moro quer legalizar no projeto não constitui mero equívoco ou uma ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana (ainda que fora da lei). Agora se pretende transformá-la em política de Estado.

    Essa proposição concomitante à apresentação de uma reforma da Previdência não se dá por acaso e evidencia exatamente a lógica denunciada por Wacquant: do casamento de uma política social (por meio da lógica neoliberal de redução de benefícios sociais que levará ao aumento da pobreza e a piora das condições de vida de grande parte da população) com uma política penal de encarceramento e de extermínio justamente da população pobre, precarizada e que já teve reduzidos direitos trabalhistas. Agora ela poderá se tornar alvo legalizado de políticas oficiais de extermínio, o que não pode ser tolerado ou naturalizado mais do que já se verifica hoje na prática das instituições penais e policiais aqui já ilustradas.


    1 https://ponte.org/policia-mata-13-pessoas-em-comunidade-do-rio-de-janeiro/
    2 http://observatoriodaintervencao.com.br/dados/relatorios1/; https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/policia-que-mata-policia-que-morre.ghtml
    3 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/02/22/policia-do-rio-matou-160-pessoas-em-janeiro-2-maior-patamar-para-o-mes-desde-98.htm; https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/entenda-o-plano-do-governador-do-rj-de-abater-bandidos-com-armas-pesadas.shtml
    4  MANSO, Bruno, LIMA, Renato Sérgio. “Os Desafios dos candidatos na segurança pública”. In: LIMA (Org.) Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil. São Paulo: Alameda, 2016, p. 103.
    5  http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/tj-rj-arquiva-pela-2-vez-inquerito-sobre-morte-de-traficante-matematico.html; http://www.cyberpolicia.com.br/artigos/artigos/501-uma-sentenca-para-ser-lida-a-morte-do-traficante-matematico
    6 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/numero-de-medicos-e-professores-cai-na-camara-militares-e-religiosos-sobem.shtml
    7  WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Revista EPOS; Rio de Janeiro – RJ; Vol.3, no 1, janeiro-junho de 2012.
    8 http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev18.htm
  • Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes amarelos franceses?

    Quem são os coletes
    amarelos franceses?

    Nos últimos meses de 2018, a França foi tomada por maciças mobilizações de rua sem lideranças visíveis e com uma difusa pauta de reivindicações que tem por centro a queda de impostos de combustíveis. Os protestos passaram a acontecer semanalmente. Entre os ativistas, encontra-se um amplo leque político que vai da esquerda à direita, excetuando-se apoiadores do presidente Emmanuel Macron. É algo novo no cenário francês. Mas que novidade é essa?

    Por Gil Delannoi – cientista político e sociólogo francês, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e diretor de Pesquisa da Fundação Nacional de Ciência Política

    Os “Coletes Amarelos” são um movimento de protesto popular iniciado em 17 de Novembro de 2018, na França. As manifestações se realizam sempre aos sábados e às vezes se prolongam até os domingos.

    O nome do movimento deriva dos coletes amarelos fosforecentes utilizados pelos manifestantes e que todo motorista deve possuir em seu carro, como peça de primeiros-socorros. Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, se associam em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas. As imagens circularam muito, notadamente porque essas violências ocorrem em belos bairros parisienses, como Champs Elysées, Torre Eiffel, Ópera, próximas aos ministérios e às lojas de departamentos.

    Os locais ocupados pelos Coletes Amarelos não são apenas emblemáticos bairros parisienses. São rotatórias e cruzamentos por toda a França. Os ativistas impedem a circulação de veículos, ocupando pedágios nas rodovias, muitas vezes impedindo a cobrança. A gratuidade daí decorrente provoca simpatia da maioria dos motoristas.

    Recuo governamental

    Depois dos primeiros sábados de protesto, em que se reuniram várias centenas de milhares de manifestantes, duas decisões governamentais foram tomadas: a suspensão do novo imposto sobre os combustíveis, em dezembro de 2018, e o lançamento de um “grande debate nacional” de consulta à população. Cadernos em que a população pode escrever perguntas e sugestões foram abertos nas prefeituras. Em janeiro se iniciou um longo período de discussões entre autoridades eleitas e diferentes públicos: representantes locais, militantes, cidadãos voluntários, pessoas escolhidas aleatoriamente – todos esses com os quais o presidente Macron debateu durante vários dias.

    A suspensão do imposto sobre combustíveis resultou em uma politização das reivindicações. Isso não extinguiu o movimento, mas o número de manifestações se reduziu.

    É difícil medir e qualificar um movimento que deseja continuar espontâneo e elusivo. Entre os manifestantes, a estimativa mais recente propõe três divisões: um terço mais à esquerda, um terço mais à direita, e um terço de pessoas pouco politizadas, que não votaram com frequência nas últimas décadas (os silenciosos rompem seu silêncio).

    Amplo espectro, exceto apoiadores de Macron

    O espectro político inteiro da política francesa se encontra presente entre os manifestantes – é por isso que eles insistem em suas reivindicações comuns e deixam de lado as diferenças. Todos os componentes políticos são encontrados entre os simpatizantes (segundo as pesquisas), exceto o centro e as elites pró-mundialização e pró-União Europeia. Podemos afirmar também: exceto a parte mais sólida do eleitorado de Macron.

    O caráter plural dos Coletes Amarelos se confirma quando nos voltamos para rebeliões passadas que apresentam um ou outro ponto de similitude: as revoltas camponesas durante a monarquia, os sans-culottes na Revolução Francesa, as barricadas das revoluções do século XIX, as ligas dos anos 1930, e certas manifestações estudantis de maio de 1968.

    Os protestos expressam, em geral, a imagem da população francesa: homens e mulheres de diferentes idades e em proporções equivalentes. A maioria é composta por ativistas inexperientes e pacíficos. No entanto, alguns grupos violentos, classificados como extremistas de direita ou de esquerda, associam-se em certas manifestações urbanas, provocando saques e depredações públicas

    Diz-se que a presidência francesa, de estilo muito monárquico, provocou esse tipo de movimento. É fato que Macron desempenhava seu papel de forma um tanto caricatural, fazendo, por vezes, intervenções provocativas à população que encontrava nas ruas. Comentários assim são tão inesperados no contexto francês quanto os tweets de Trump nos Estados Unidos. Isso explica que a figura presidencial tenha se tornado especialmente visada por alguns manifestantes (“Demissão do Macron”).

    O fato é que, pela legislação, o Parlamento é indispensável na França, mesmo quando se mostra um tanto dócil para um presidente apoiado por ampla maioria. Foi este, em um primeiro momento, o caso com Macron. A atual maioria parlamentar é composta por recém-chegados e inexperientes. O presidente liderou, logo após sua eleição, o enfraquecimento e quase aniquilamento dos principais partidos, o Partido Socialista (de François Hollande) e o Partido Republicano (de Nicolas Sakozy).

    Pagou-se caro por este triunfo de 2017. Hoje em dia, Macron não tem um partido bem estruturado atrás de si. Socialismo e gaullismo não existem mais da mesma fora após 1960. A centro esquerda e centro direita se unem por uma causa comum: defender a União Europeia e a adaptação da França à globalização econômica.

    Revolta contra Paris

    Duas principais novidades vão contra a tradição dos protestos e rebeliões franceses. Por um lado, a revolta não sai de Paris para se expandir em direção ao interior. Ela é feita contra Paris, suas elites e talvez até mesmo seus habitantes. Em segundo lugar, nenhum representante ou dirigente é designado ao movimento, e aqueles que tentam sê-lo são rejeitados. Os partidos existentes não recuperam mais sua legitimidade diante do movimento. Não podem mais do que, à distância, concordar ou não com determinados pontos reivindicados. O movimento é espontâneo e elusivo, o que significa, também, sem organização e sem um discurso principal.

    Sua novidade pode ser explicada por fatores existentes em outros lugares que não a França: deslocalização industrial, abertura da Europa Ocidental à produção agro-alimentar do Leste Europeu, empobrecimento do campo e das pequenas cidades. O fim de serviços públicos nas áreas rurais e em pequenas cidades (hospitais, maternidades, escolas primárias, correios) afeta negativamente as coletividades, enquanto os impostos continuam a aumentar.

    A raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da popula­ção não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral

    Como consequência, surge um sentimento de injustiça em relação ao sistema tributário (combustível) que atinge os habitantes da zona rural sem afetar os da zona urbana (que, ao contrário, se beneficiam de transportes públicos subsidiados). Disso resulta uma raiva contra as elites não taxadas por seu consumo (como a que se vale indiretamente de querosene de aviões).

    Essa raiva inicial contra uma medida governamental se transformou em um sentimento de que as vozes da população não são ouvidas por dirigentes, pelos partidos e pela mídia. As reivindicações então se dividem: para alguns, deve-se aumentar os impostos sobre as fortunas; para outros, é preciso baixar os impostos em geral. Menos subsídios e mais liberdade econômica, uma simplificação administrativa, mas também a manutenção da rede de proteção social e de saúde.

    Democracia direta

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares.

    Outra prática de protesto na democracia está tomando forma nesse movimento. É talvez a novidade mais promissora e também a mais questionável. A auto-organização das manifestações começa nas redes sociais e é feita sem direção oficial nem líderes.

    A experiência comum vivida pelos participantes é o elemento principal do discurso. Evocam-se soluções políticas e procedimentos democráticos para melhorar as coisas, mas nenhum programa ou partido são tolerados, ao mesmo tempo em que se exige uma maior representatividade da população no processo político nacional. A liberdade de expressão é reivindicada quase sem limite, com eventuais riscos de deslizes individuais (manifestação de ódio contra pessoas específicas, apelo a destruições materiais, justificação de alguns bloqueios). Entretanto, isso não tem nada a ver com movimentações como greves. Trata-se de uma prática de ocupação dos lugares públicos e, para os mais combativos, de uma confrontação violenta com a polícia – esses últimos compõem uma pequena minoria sem força e de difícil mensuração no interior do movimento.

    A perda de confiança em toda forma de representação (inclusive em uma representação dos próprios Coletes Amarelos) é total mas, ao mesmo tempo, há grande esperança em uma democracia direta.

    Mal-estar generalizado

    O que dizem os comentaristas na mídia? Qualificam essas demandas com os seguintes adjetivos: “popular, democrática, populista, protecionista, nacionalista, revolucionária, reacionária, utópica, inovadora, incoerente, efeito da pobreza, ingratidão de crianças mimadas”. Tais comentários dizem mais a respeito da orientação política dos próprios comentaristas do que da natureza do movimento em si.

    Todos concordam, no entanto, a respeito da existência de uma causalidade socio-econômica comparável ao voto do Brexit, ao desindustrializado Cinturão da Ferrugem (Rust Belt) escolhendo Trump, às classes médias votando em Sanders, ou ainda ao Movimento Cinco Estrelas, na Itália.

    Encontramos nos Coletes Amarelos de uma só vez aspectos sociais-democratas e uma defesa do pequeno comércio e do pequeno empreendedor. Por fim, vislumbra-se a reivindicação por uma democracia direta, com referendos, iniciativas populares, consulta de cidadãos aleatórios, fim de privilégios às autoridades eleitas, ministros e parlamentares

    Os Coletes Amarelos não conseguem ser uma força política no âmbito da Quinta República francesa. Seu movimento só poderá desafiar o regime, derrubá-lo ou eventualmente ser canalizado pelos partidos. O beneficiário a curto prazo poderia ser o nacionalismo de Marine Le Pen. Podemos considerar também um retorno da direita ao gaullismo (menos Europa, mais protecionismo) ou a refundação de um socialismo menos livre-comércio e menos multicultural.

    O primeiro teste serão as eleições europeias de maio de 2019. Mas haverá um limite: a eleição do Parlamento Europeu não tem impacto imediato, favorecendo assim um voto de protesto da esquerda ou da direita.

    Podemos ver movimentos parecidos na Europa? Alguns indícios existem em diversos países (na Bélgica, por exemplo). Entretanto, ainda é muito cedo para dizer se são meras faíscas ou se o fogo que poderá persistir na França terminará por incendiar, também, o resto da Europa.


    1 – N.T.: Literalmente “sem calções”(vestimenta utilizada pelos nobres da época), o termo designa os revolucionários das classes populares – artesãos, trabalhadores, pequenos proprietários, etc – diretamente opostos à nobreza, à época da Revolução Francesa.

    2 – N.T.: Conjunto de ideias políticas que prezam a independência nacional francesa – seja ela política, econômica, social ou militar – em detrimento de associações internacionais (como a ONU, por exemplo) e de superpotências. O movimento é diverso e abriga posicionamentos políticos abrangendo desde a esquerda à direita. Seu nome advém do ex-presidente Charles de Gaulle (1890-1970).

    Tradução de Isadora França
  • Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência: a vez do cada um por si!

    Reforma da Previdência:
    a vez do cada um por si!

    A disputa em torno das mudanças nas regras das aposentadorias esconde uma dinâmica perversa: a Previdência deixa de ser um direito público, solidário e universal e um mecanismo de distribuição de renda. Em seu lugar, entra o regime de capitalização, uma espécie de poupança individual, sem garantia alguma de que, na velhice, o trabalhador terá o suficiente para sobreviver

    Por Rosa Maria Marques
    economista, professora titular da PUCSP

    Trinta e um anos depois da promulgação da chamada Constituição Cidadã, que balanço podemos fazer dos direitos previdenciários da população brasileira definidos na Carta? Se o movimento democrático que encerrou o período da ditadura militar foi coroado de avanços nesse campo, estendendo benefícios aos trabalhadores rurais, adotando o piso de um salário mínimo e introduzindo cálculo do valor da aposentadoria mais favorável aos segurados, entre outros, os anos que se seguiram foram de constantes ataques à Previdência Social.

    Lembremos que, mesmo antes da promulgação do texto constitucional, o então presidente, José Sarney, em mensagem televisiva “alertou” a todos que os novos direitos sociais, neles incluídos os previdenciários, iriam levar a uma situação explosiva das finanças públicas.

    Duas décadas de reformas

    De lá para cá, ocorreram duas reformas previdenciárias, a de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1999) e a de Lula (2003) e, como uma constante, ao longo dos 31 anos, houve vários ajustes alterando as condições de acesso e valores de benefícios.
    A reforma de FHC centrou-se no Regime Geral da Previdência Social (RGPS), introduzindo um redutor do valor do benefício em função da expectativa de sobrevida do segurado no momento da aposentadoria (o chamado fator previdenciário) e a cobrança de uma contribuição sobre os benefícios (uma excrecência em termos previdenciários).

    Já Lula dirigiu a reforma para os servidores públicos, implantando um teto para o valor do benefício (no lugar do valor correspondente ao salário da ativa) e introduzindo idade mínima para o requerimento da aposentadoria. Vale lembrar que os aspectos tratados na reforma de Lula foram exatamente aqueles que FHC não conseguir aprovar em 1999. Nessa última fase, contaram com o apoio do Partido dos Trabalhadores.

    Esta é a primeira vez que o regime de capitalização é encampado por um presidente da República. A lógica é a mesma que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por vinte anos

    Mais recentemente, em dezembro de 2016, Michel Temer encaminhou para avaliação do Congresso Nacional proposta que tentava aproximar o RGPS do regime dos servidores, bem como tratar de maneira igual os trabalhadores rurais e urbanos, os homens e as mulheres. Essa “harmonização” entre os regimes e entre as clientelas e gêneros seria feita basicamente mediante os critérios de idade e de tempo de contribuição, alterando substancialmente o valor do beneficio a ser pago. Dada a reação enfrentada junto à população em geral, aos movimentos sociais e mesmo entre os deputados, a proposta inicial foi modificada pela comissão da Câmara e acabou não sendo apresentada ao plenário.

    Eis que, com a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República, novamente a reforma previdenciária está em pauta. A proposta elaborada pelo executivo foi encaminhada para a apreciação no Congresso Nacional em 20/02/2019. Além dos aspectos que são retomados e aprofundados da proposta de Temer, tal como a definição de idade, a elevação do tempo mínimo de contribuição e a redução do valor da aposentadoria, chama atenção a desindexação do piso dos benefícios ao salário mínimo e a introdução de um regime de capitalização.

    Qualquer desses aspectos mereceria reflexão sobre quais seriam as consequências para os trabalhadores. Sem menosprezar os demais, vamos aqui tratar de apenas um: o regime de capitalização, dada que a adoção implica não só uma mudança qualitativa nos fundamentos da proteção social do país, como na relação do Estado com os cidadãos e as famílias, pois pensa estruturar a sociedade unicamente a partir do indivíduo.

    O que está em jogo na discussão atual

    Não é a primeira vez que o regime de capitalização é proposto no Brasil. É, isso sim, a primeira vez que essa proposta é claramente encampada por um presidente da República. Em meados dos anos 1990, entre as mais de vinte propostas em discussão sobre a reformulação da Previdência Social, havia aquelas considerando que a proteção social era responsabilidade individual do cidadão.

    Situadas no campo neoliberal, justificavam que, somente adotando um sistema privado e de capitalização, as pessoas teriam estímulo para melhorar o rendimento e, por consequência, aumentarem a capacidade de poupança, criando as bases necessárias para a sustentação financeira do desenvolvimento do país. Para os defensores, o financiamento deveria ser unicamente sustentado pelo trabalhador/indivíduo.

    No regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Não há nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade

    Dessa forma, seria eliminado – no entender dessa perspectiva – o desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois os encargos sociais seriam ou eliminados no todo ou sensivelmente diminuídos, o que permitira aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, aumentando as exportações. Além disso, como reconheciam que o mercado não é totalmente perfeito, de forma que alguns indivíduos são submetidos a situações de carência, admitiam a ação assistencial do Estado (MARQUES, BATICHI, MENDES, 2003). Como vimos, especialmente no governo Dilma Rousseff, parte dessa concepção acabou, por linhas tortas, sendo implantada: em 2014, 56 setores de atividade estavam desonerados das cotizações calculadas sobre a folha de salários. Nenhum efeito relevante sobre o nível das exportações do país foi observado.

    Apesar da similitude, o centro da defesa pública da reforma previdenciária da equipe de Bolsonaro é outro, distanciando-se, em certa medida, daquela dos anos 1990. É o mesmo que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por 20 anos: evitar o crescimento desmesurado da despesa, fruto do envelhecimento da população e da existência de supostos privilégios. Esse é o discurso dos que advogam a necessidade premente de realizar uma alteração substantiva na Previdência Social.

    Mas estão enganados aqueles que atentam apenas para isso, muito embora seja de suma importância demonstrar que recursos haveria para financiá-la, caso fosse outro o tratamento com relação aos devedores da Previdência, fosse outra a política de renúncia fiscal, entre outros aspectos.

    É importante perguntarmos, por exemplo, qual o motivo de, em meio à manutenção do novo regime fiscal, que congelou o gasto por vinte anos, estar-se propondo a introdução de um regime de capitalização para os novos segurados? Afinal, como sabido, isso resultará na diminuição do fluxo de entrada de recursos à atual Previdência Social, seja ela da clientela que for (dos trabalhadores do mercado formal, dos servidores públicos, dos militares, etc).
    Vejamos as razões ocultas. Para isso, é importante se diferenciar o regime de capitalização do regime de repartição.

    Solidariedade e individualismo

    A Previdência Social brasileira é estruturada enquanto um regime de repartição, de maneira que os trabalhadores e servidores que hoje contribuem financiam ou pagam as aposentadorias e pensões atuais. É um regime solidário, construído com base num pacto entre as gerações. A geração que está trabalhando no mercado formal financia os trabalhadores do passado, hoje aposentados. Pode-se dizer, ainda, que há uma solidariedade vertical, pois os trabalhadores com maiores salários contribuem relativamente mais do que os de menor renda. Isso ocorre mesmo considerando-se a existência de uma alíquota máxima sujeita a teto (de R$ 5.839,45 – para janeiro de 2019).

    Isso porque, num regime de repartição, as contribuições obrigatórias pagas pelos trabalhadores e pelos empregadores são definidas como coletivas na sua natureza. Isso implica que não há correspondência direta ou imediata entre o esforço contributivo do trabalhador (o que ele paga ao longo da vida ativa) e o que ele irá receber quando, por exemplo, se aposentar. Há, portanto, uma solidariedade também entre membros de uma mesma geração.

    A proteção organizada pelo Estado, da qual o RGPS é um exemplo, constitui um sistema de solidariedade coletiva. Para os críticos desse sistema, a não correspondência perfeita entre as contribuições e o benefício é motivo suficiente para demandar a substituição por qualquer outra forma de poupança privada ou de seguro, que obedeçam às leis de mercado (MARQUES, EUZÉBY, 2005).

    No regime de capitalização, não há dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado: ele pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório

    Esse é um dos principais argumentos utilizados junto a segmentos de renda mais alta da população para justificar a adoção de um regime de capitalização. Para os defensores, é irrelevante o fato de o regime de repartição constituir também um mecanismo de distribuição de renda, mesmo que realizado entre os próprios trabalhadores do mercado formal.

    Já no regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Quanto maiores forem as contribuições associadas ao trabalhador (dele e do empregador ou somente dele, tal como no Chile) e quanto mais render as aplicações, maior será o valor disponível para financiar a renda de aposentado. O contrário, também é verdadeiro. Não há, portanto, nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade.

    Além disso, em regimes de capitalização “puros”, isto é, sem dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado, o segurado pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório. Isso porque os regimes de capitalização geralmente definem a contribuição, mas não o benefício. Sobre este, reina a incerteza. Tudo irá depender (além do montante contribuído) da rentabilidade das aplicações em um horizonte de longo prazo. Rentabilidade que é fruto de mercado extremamente volátil e especulativo.

    A instituição de um regime de capitalização pode ser combinada com a existência de uma aposentadoria de base, financiada mediante contribuições ou impostos, de modo que a renda derivada da capitalização constituiria um acréscimo ao valor de base. Não há indícios de que isso esteja sendo pensado pela equipe econômica do governo Bolsonaro. De qualquer forma, é bom lembrar que, na proposta do Banco Mundial dos anos 1990, a aposentadoria de base, de valores modestos, constituiria o primeiro pilar da proteção social por ele concebida. A renda derivada do regime de capitalização o segundo pilar e a poupança individual o terceiro pilar.

    Aumento da pobreza e do desamparo

    Hoje, em pleno século XXI, sabemos que um dos resultados das reformas previdenciárias realizadas na América Latina, (Chile, 1981; Peru, 1992; Argentina, 1994 – teve reversão para o público em 2007; Colômbia, 1993; Uruguai, 1996; Bolívia, 1998; México, 1997; El Salvador, 1998; Equador, 2001 e República Dominicana, 2003; Costa Rica, 2003, sistema misto; Nicarágua, 2004, sistema misto) foi o aumento da pobreza e do desamparo de parcela importante dos idosos desses países.

    Além de ter sido um desastre em termos sociais, principalmente levando em conta o nível de desigualdade de renda existente nos países da América Latina, é preciso lembrar que há um “custo de transição” de um regime para outro e isso também acontece no caso de ele ser misto. Parece no mínimo contraditório propor mudanças que diminuam o fluxo de ingresso de receitas, mantendo-se o gasto contínuo dos atuais aposentados e segurados, quando o governo abraça ferreamente a continuidade do teto do gasto. Quem irá pagar a conta?

    Frente a isso, cabe nos perguntarmos o que, de fato, está por trás da proposta de implantação de um regime de capitalização no Brasil?

    Individualismo e meritocracia: o “novo” princípio

    Deixemos de lado o largo interesse do setor financeiro, nacional e internacional na introdução de um regime de capitalização no Brasil. Isso é por demais evidente. O que queremos chamar atenção é para o fato de os fundamentos desse regime se coadunarem perfeitamente com os valores defendidos pelos ministros que constituem o grupo ideológico de apoio do governo Bolsonaro, a saber, os ministros da Educação, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e das Relações Exteriores. E, evidentemente, estarem de acordo com o pensamento de Olavo de Carvalho.

    A sociedade brasileira é profundamente marcada pelo seu passado escravocrata, pelo patriarcado, pelo conservadorismo e pela naturalização do convívio com elevados níveis de desigualdade em todos os planos: de renda, de patrimônio, de acesso aos bens e serviços públicos, etc.

    Ao lado disso, há uma forte aceitação do princípio da meritocracia, isto é, o entendimento de que são o esforço e dedicação de cada um que determinam sua inserção na sociedade, seja no mercado de trabalho, seja no mercado de consumo, e até mesmo na determinação das relações pessoais.

    Não foi por acaso que, medidas de “inclusão social”, especialmente desenvolvidas nos governos Lula e Dilma, tais como o Programa Bolsa Família, a política de cotas e de bolsas nas Universidades públicas, mas também a valorização do salário mínimo, receberam rejeição acentuada de setores da chamada classe média da sociedade, mas não ficou a ela restrita.

    O regime de capitalização, ao negar qualquer tipo de solidariedade – intergeracional ou entre níveis de renda do trabalho – reforça a ideia de que é o indivíduo o responsável por seu destino. Este – se estudar para se qualificar e trabalhar com afinco – terá formado, ao final da vida ativa, montante suficiente para que tenha uma renda de aposentadoria adequada. Enfim, o mérito associado ao indivíduo é que é entendido como a pedra basilar da construção da sociedade.

    Nessa perspectiva, a solidariedade, principalmente quando voltada para os setores de mais baixa renda e poucos inseridos nos mecanismos que possibilitam a adequada integração à sociedade brasileira, é vista como algo que desestimula a busca pela melhora individual, tornando-se, portanto, um peso para a sociedade.

    No lugar da solidariedade, um dos princípios do novo governo é enaltecer o individualismo e a meritocracia, reforçando um dos piores aspectos de nossa sociedade. É o vale tudo. É o cada um por si. Lutar contra isso é mais do que uma questão situada no campo previdenciário, é lutar pela construção de uma sociedade mais justa, na qual os desvalidos tenham direitos garantidos.


    Tipos de regime previdenciário

    Regime de repartição: as contribuições são recolhidas a um fundo único e esse é usado para financiar as aposentadorias e pensões. Por isso, diz-se que tem como característica principal a solidariedade entre as gerações, pois os segurados de hoje financiam os trabalhadores de ontem, que estão aposentados. As previdências públicas são, em geral, organizadas com base no regime de repartição.

    Regime de capitalização: as contribuições atinentes a um trabalhador são dirigidas a uma conta individual e os recursos capitalizados ao longo do tempo financiam a aposentadoria futura. É como se fosse uma poupança individual, mas as aplicações não são definidas pelo trabalhador e sim pela administradora que controlar a conta


    Referências: MARQUES, Rosa Maria; BATICH, Mariana; MENDES, Áquilas. Previdência Social Brasileira: um balanço da reforma FHC. São Paulo em Perspectiva, vol.17 nº1. São Paulo, Fundação Seade, Jan./Mar. 2003; MARQUES, Rosa Maria, EUZÉBY, Alain. Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão. Nova Economia, vol. 15, nº 3. Belo Horizonte, Setembro./Dezembro 2005.