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  • Tenho que fazer o dobro para ser reconhecida pela metade

    Tenho que fazer o dobro para ser reconhecida pela metade

    Tenho que fazer o
    dobro para ser
    reconhecida
    pela metade

    Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade. Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu

    Por Manuela Trindade Oiticica*

    Uma cerveja bem gelada? Aceito. Dois goles de tutela? Não, obrigada. Sim, eu sei como segura um tamborim. É, é verdade. Um surdo mal tocado pode derrubar uma roda de samba. Tô sabendo, meu amigo, eu conheço essa música, mas olha, não necessariamente eu toco pra caramba. Toco o normal de quem sabe tocar e – eu sei que isso te dói em algum lugar que você nem sabe – o que tem é que eu conheço os códigos, compartilho saberes mundanos que envolvem uma manifestação popular. Igual a você. Rua, sabe? Eu também. Parece que meu lugar prosaico te deixa mais inseguro. Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade.

    Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu. Desagradeço, que isso nunca foi um elogio. Obrigada.

    Fica tranquilo que eu aguento tocar as três horas previstas de apresentação, não se aquiete que eu seguro o andamento mais rápido e não, não vou correr na música mais lenta. Pódeixar. Agora vem uma paradinha na música, eu sei que é minha vez de fazer a virada e, veja, vou dizer algo que você não deve perceber.

    Tenho que fazer o dobro pra ser reconhecida pela metade.

    A virada do meu instrumento na hora do silêncio vai ser boa. Aliás, muito boa. Muito melhor do que precisa pra essa roda de samba improvisada em que, sejamos francos, quase ninguém sabe tocar direito – mas em que quase todo mundo tem esse direito. Quase todo mundo. Se eu fizer tá tá tá, pode soar simples demais, tadinha, tá começando. Se eu fizer prapum tatá pracará tatatá, exibida demais, pra que isso, gente?, alguém diz pra moça que o samba é arte do singelo. Tudo bem, eu já sei a medida. Mais uma vez obrigada, com licença. E não se aquiete. Tente até não me enxergar muito.

    Tem mais gente tocando. Tocando melhor, tocando pior, normal. Olha pra mim. Normal, tá vendo? Pronto. Pode parar de olhar. Uma cerveja? Aceito. Uma hora alguma coisa vai dar errado, é do jogo. A gente bebe, se empolga, e o samba é desses que desnorteia. Você vai olhar de novo. Vai olhar, porque quando der errado, sem querer querendo, você vai olhar pra mim. Será que não foi ela? Pode ter sido, pode não ter sido, mas eu sempre vou ter que responder por isso.

    É, eu entendo. É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro. Violão sete cordas, daqueles bem maestro? Cabe nela. Escuta, desiste enquanto é tempo da teoria da unha mais mole, o dedo que não alcança, a mão menor que não crava. O Romário tinha 1,68m e fez gol de cabeça nos suecos. Com licença, obrigada. Eu não quero brigar, por favor, obrigada. Saí de casa pra tocar e só. Você nem sabe quantas coisas têm que se mexer pra eu ter o direito de ficar parada.


    É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro


    Um instrumento é porque é muito grande, o outro deve ser muito pesado, aquele ali exige força. Tem uns cientificismos que só servem pra ser os primeiros aliados pras desculpas. Pros vetos. Pras opressões. Mas deixa eu te dizer, se tiver chance a gente faz tudo. Senão, vejamos. A gente já faz mesmo sem muita chance. Deixa eu te dizer. Mas tem que ser no duro, chance desde pequenas.

    A guitarrinha de plástico, o rabisco fora da folha. Poder expulsar sem dó o berro da garganta que não vem ninguém dizer que fica tão feio pra menina berrar assim. Bater de espancar a lata de leite em pó sem se ouvir por aí que a mão da gente tem que ser – precisa ser! – delicada e não pode bater forte assim, que menina agressiva, meu deus. Depois tem que poder ficar até mais tarde na rua, porque muito desse baticum vem na fresca da madrugada, você sabe. Tem perigo pra todo mundo, né?, mas uma rua escura dessas, a gente sozinha, já pensou? E tem um ócio aí pra poder namorar a música, o instrumento. Lembre só que nossa jornada é maior.

    Nossa obrigação com o trabalho, a limpeza da casa, do corpo, da mochila, da calcinha, da dobrinha do pescoço, o caderno organizado, a letra bonita, as contas em ordem, nossa roupa não pode ser todo dia a mesma. Ficar amarrotada, ter mancha de sangue, não tem charme. A raiz branca do cabelo, sobrancelha, unha, aquela mulher tem um jeito de mal cuidada, né?

    Ainda por cima ganhamos pior e nosso espaço de lazer é menos o da brejeirice e mais o do controle, tipo uma casa com quatro paredes. Reparou: nem falei dos filhos.

    Mas olha, eu aceito uma cerveja, e teria muito mais pra te falar. Até porque eu não falei nada. Só ri quando você disse que eu deixava a roda de samba mais bonita e perfumada, e cada dente que eu não mostrei no meu sorriso amarelo de quem não quer se aporrinhar era uma dessas palavras escritas acima e que, tenho a mais plena convicção, você nem desconfia que existam.

    *Manuela Oiticica ou Manu da Cuíca é escritora, compositora e percussionista. É uma das autoras do samba da Mangueira de 2019.

  • A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?

    A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?

    A esquerda deve
    investir na campanha
    do Impeachment?

    Por Chico Alencar e José Luis Fevereiro

    Com a agudização da crise econômica e institucional, a grande imprensa e setores do mundo político começam a ventilar abertamente a possibilidade de impeachment do Presidente da República.

    O impeachment – ou impedimento – entrou na cena pública brasileira pela primeira vez na Constituição de 1946, no Capítulo III, artigo 79. A lei complementar que concretiza a norma constitucional é a de número 1.079, sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 10 de abril de 1950.

    Segue em vigor. Trata-se de uma transposição do voto de desconfiança dado a um primeiro-ministro, num regime parlamentarista, para um chefe do Executivo, no regime presidencialista. Assim, o processo de impedimento sempre se situa na fronteira entre medida legal e iniciativa política. A perda de maioria congressual qualificada – no caso brasileiro – sempre coloca o mandatário dos três níveis de governo sob o risco de impedimento.

    Diante da tensa conjuntura que o país enfrenta, o Partido Socialismo e Liberdade convidou o ex-deputado federal e professor de História, Chico Alencar, e o economista e membro do Diretório Nacional do PSOL, José Luiz Fevereiro, para comentarem acerca do polêmico tema.


    Impeachment: o povo é
    quem mais ordena?

    Mais do que debater o impedimento como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o desafio urgente é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão

    Por Chico Alencar*

    Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre do mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações. A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.


    “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”

    Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brasil’, 1630

    A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.

    O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.

    E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos dos cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram as derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista – a de Dilma, em 2016.

    Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militar.

    Maioria rara

    É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar a base de sustentação no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão sub-representadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.

    Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram os mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.

    Cerco popular

    Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.

    “Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo estes é que acabam governando.

    Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.


    “Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário


    A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).

    A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria por meio de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para esse fim.

    Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão?

    Espírito de submissão

    Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ (no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.

    No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.

    Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços.

    *Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)


    Impeachment, o descarte
    dos peões?

    A vulgarização do impeachment e sua naturalização como método de apear governos eleitos serão sempre usadas impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata

    Por José Luis Fevereiro*

    A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação política de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que esse mecanismo tem servido à burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.

    A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise.

    Concertação oligárquica

    Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente, não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola, que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações dessa ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira às tentativas de derrubar Vargas, de impedir a posse de Juscelino, de bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente, o sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.

    Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez, mas, pela natureza da base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, o destino dela estava traçado.


    A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise


    No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises políticas da burguesia.

    Impeachment de Bolsonaro

    Quando escrevo este texto, em 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do ministério minam o apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.

    As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário político pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital político de peso. O sucesso dessas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que por um lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.

    Tempos acelerados

    Os tempos da política estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas confirma-se um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, bem como a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar os seguidores mais fiéis, com dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes. Nesse sentido, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.

    Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi essa mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os casos atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise política decorrente do recurso a outsiders empoderados.

    Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor, nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e, se necessário, descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.

    Novas eleições

    O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise política por parte da elite. Sempre que esta falou em pacificação da política foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou as forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.

    A vulgarização do impeachment, a naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usada impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.

    No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na política e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise política devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.

    Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo.

    *José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL

  • O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    O programa econômico de Bolsonaro e Guedes é um grande salto para a recessão

    Por Pedro Paulo Zahluth Bastos*

    Alguém se lembra da promessa dos economistas do mercado financeiro e da maioria do jornalismo econômico de que a PEC do Teto animaria a confiança empresarial e estimularia a retomada do crescimento econômico? A aversão ao Estado, aos direitos sociais, aos impostos e a salários decentes por parte de muitos empresários e da maioria dos gestores financeiros inviabiliza a admissão de que ainda dependemos do gasto público. Não há solução para a recuperação econômica sem a revogação do teto de gastos, sem distribuição de renda e direitos e sem animar a demanda e o emprego

    Não é novidade que o governo de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes quer executar um programa radical de redução de direitos sociais e trabalhistas (e quem sabe até políticos). A outra face é a busca de “economicizar” tudo. Não se quer apenas a privatização do patrimônio público como a Eletrobras, o Banco do Brasil e, talvez, a Petrobras, mas algo bem mais radical: impor critérios de rentabilidade privada e desfinanciar de recursos públicos as diferentes instituições que garantem “reprodução social” do capitalismo:

    1) A família e o trabalho na reprodução de crianças e idosos, assim como do próprio trabalhador(a), com a reforma da Previdência e a nova rodada da Reforma Trabalhista.

    2) A escola e, em particular, a universidade, com a seca de recursos, a cobrança de mensalidades e a regulamentação leniente do ensino a distância.

    3) O próprio acesso ao aparato judicial (como um custo privado, contribuindo para esvaziar formal e substantivamente a noção de justiça social), bem como o meio-ambiente, a saúde, o esporte e a produção cultural.

    A Emenda Constitucional (EC) do Teto do Gasto Público, como eu e vários economistas afirmam desde sua proposição em 2016, é o instrumento jurídico para forçar este programa. Ao colocar as diferentes demandas por recursos públicos em concorrência, ela pretende forçar novos cortes e “desconstitucionalizar” direitos. Sem a reforma da previdência, juram os economistas, não há recursos para a universidade. Logo, aconselham que se mercantilize um serviço para não mercantilizar (a curto prazo) o outro.

    A fada da confiança

    Alguém se lembra da promessa dos economistas do mercado financeiro e da imensa maioria do jornalismo econômico de que a EC do Teto animaria a confiança empresarial a ponto de estimular o investimento e a retomada do crescimento econômico?


    A confiança empresarial e do mercado financeiro subiu no impeachment de Dilma Rousseff e na aprovação da Reforma Trabalhista, depois da EC do Teto. A cada ocasião, os defensores nos diziam que o choque de confiança ia tirar a economia do fundo do poço pelos próprios cabelos. É curioso que Paulo Guedes tenha admitido que a economia está no fundo do poço. Onde foi parar o choque de confiança?


    Não foi a primeira vez: a mesma promessa surgiu quando Joaquim Levy foi nomeado no final de 2014. Como sabemos, ao invés do crescimento esperado pelo mercado em 0,8%, tivemos uma recessão de 3,8%.

    A confiança empresarial e do mercado financeiro subiu de novo no impeachment de Dilma Rousseff e na aprovação da Reforma Trabalhista, depois da EC do Teto. A cada ocasião, os defensores nos diziam que o choque de confiança ia tirar a economia do fundo do poço pelos próprios cabelos.

    É curioso que Paulo Guedes tenha admitido que a economia está no fundo do poço. Onde foi parar o choque de confiança?

    Previsões irreais

    Poucos lembram também que, no final de 2017, a previsão dos economistas do mercado financeiro era que a economia cresceria 3% em 2018. A desculpa para mais um erro de previsão foi a greve dos caminhoneiros, como se ela, em si, não fosse uma reação ao próprio programa do mercado financeiro para valorizar as ações da Petrobras com repasse automático das variações especulativas do preço internacional do petróleo.


    Poucos lembram, também, que no final de 2017 a previsão dos economistas do mercado financeiro era que a economia cresceria 3% em 2018. A desculpa para mais um erro de previsão foi a greve dos caminhoneiros, como se ela, em si, não fosse uma reação ao próprio programa do mercado financeiro para valorizar as ações da Petrobras com repasse automático das variações especulativas do preço internacional do petróleo


    No final de 2018, a previsão do mercado para o crescimento do PIB em 2019 era novamente de 3%. A bolsa bombou depois que Jair Bolsonaro chegou perto de levar a eleição no primeiro turno. Enquanto isso, a confiança do empresário industrial subiu 20% entre outubro e novembro de 2018.

    O que prometia Bolsonaro? Respeitar a EC do Teto do Gasto e até mesmo cortar o gasto público ainda mais do que a lei exige para financiar a diminuição de tributos para empresas e cidadãos de alta renda. Reduzir ainda mais direitos trabalhistas e salários com a chamada Carteira Verde-Amarela. Mudar a Previdência para, de novo, cortar o gasto público com aposentados e (quem diria?) aumentar impostos (ou melhor, a “contribuição previdenciária” dos cidadãos).

    Ao invés do milagre do crescimento, o fundo do poço parece chegar de novo. Se excluirmos a hipótese que os economistas do mercado financeiro aparentemente se equivocam de propósito, por que eles errariam sistematicamente as previsões de crescimento?

    Base teórica ortodoxa

    A explicação mais benigna para tais falhas é a pobreza da formação teórica. A maioria deles é educada em faculdades (brasileiras e estadunidenses) de base teórica neoclássica.



    A escola neoclássica se desenvolveu a partir da década de 1870 em reação ao realce conferido pela economia política clássica (Adam Smith e David Ricardo) e por Karl Marx nas classes sociais e no trabalho como fonte de valor, assim como na ênfase marxista no desequilíbrio e nas crises do capitalismo.

    A ortodoxia neoclássica parte do axioma (não-empírico) de indivíduos racionais e autointeressados que agem de acordo com preferências e dotações de recursos que precedem a interação social. Por meio da livre concorrência e mobilidade entre setores, o movimento flexível dos preços asseguraria que as interações livres entre indivíduos (e países) levariam a um equilíbrio estável e maximizador, satisfatório para todos.

    A grande anomalia empírica da escola neoclássica resulta da hipótese teórica que o capitalismo não tem problemas de demanda que evitem o pleno emprego dos recursos existentes. Diante da anomalia, a explicação neoclássica é que, se crises ocorrerem, resultariam de alguma interferência exógena no funcionamento da economia de mercado e do sistema de preços flexíveis. Ao longo da história, a culpa passou por burocratas aliados a empresários que capturam Estados mercantilistas para se proteger da livre concorrência, por sindicatos ou pelo Estado populista que cede aos clamores irresponsáveis de seus eleitores. Não por problemas de demanda.

    Keynes recupera Marx

    Depois da Grande Depressão da década de 1930, o ataque teórico de John Maynard Keynes recuperou aspectos da crítica de Marx aos clássicos, direcionados agora aos neoclássicos. Na caracterização de desacelerações e crises, Marx enfatizou a falta de demanda e de expectativas de lucros para animar investimentos, mesmo que tenha sido provocada pela geração de capacidade ociosa e desemprego tecnológico em razão do superinvestimento prévio. Nos esboços preparatórios do clássico Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda (1936), Keynes citou a distinção entre os circuitos do consumidor privado e do capitalista feita por Marx para enfatizar a possibilidade de crises periódicas. Essa passagem acabou omitida da versão final.


    Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas só investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa


    Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa. Se prevalecer a convenção que a capacidade ociosa não será ocupada, os empresários podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a constituição de reservas monetárias ou ativos financeiros.

    O que é racional para o indivíduo, contudo, é ruim para a classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de receitas, o que pode tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas contrações dos gastos e das receitas.

    O sistema não se regula sozinho

    O recado de Keynes é que o sistema não tem a capacidade de se autorregular. Sem que o governo diminua a poupança e incorra em déficits quando os empresários resolvem poupar coletivamente, a busca de poupança individual será frustrada pela queda da renda agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira resultariam em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis. Finalmente, políticas de renda e sociais deveriam inibir a desigualdade, tanto por motivos políticos (o medo da opção socialista) quanto econômicos: a maior propensão a consumir dos trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os investimentos.

    Ao contrário de Marx, Keynes propunha uma “socialização do investimento” dentro do capitalismo, o que se mostrou muito mais factível nas circunstâncias políticas e geopolíticas excepcionais durante a Guerra Fria do que depois.

    Desde a década de 1980, o ataque capitalista às instituições do Estado de Bem-Estar Social e do Estado Desenvolvimentista assumiu ares de um movimento social que integrou parte dos trabalhadores, particularmente das camadas médias brancas: o neoliberalismo. Em geral, como no Brasil contemporâneo, tais camadas queriam o neoliberalismo contra os mais pobres e mais negros, não contra si mesmas.

    Da frustração das promessas se buscam hoje novos líderes à direita (Trump, LePen, Alternativa para a Alemanha – AfD) e à esquerda (Sanders, Corbyn, Podemos etc), mas é cedo para dizer que o neoliberalismo global está em crise terminal.


    Não há como uma economia combalida por meia década de austeridade possa reagir positivamente a um novo choque de contração da demanda pública. Não surpreende que a confiança não tenha resistido e, em maio de 2019, já se aproximava do índice de outubro de 2018


    No plano acadêmico, as tradições neoliberais (austríacas como na Europa continental ou neoclássicas como no mundo anglo-saxão e na América Latina) serviram para legitimar o ataque contra as instituições de regulação do capitalismo construídas no pós-guerra. A revolução das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao extremo a confiança na mecânica dos mercados livres.

    Para os autores novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o pagamento futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto, cortar o gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado desde logo!

    “Austeridade expansionista”

    A crença teórica é que se o governo cortar gastos (e impuser maior “contribuição previdenciária”, como no Brasil), a contração da demanda, das vendas e do emprego provocada pelos cortes vai ser mais do que compensada pelo investimento privado animado pelo aumento da confiança empresarial. Ou seja, a austeridade seria expansionista porque o efeito positivo da confiança no investimento empresarial superaria o efeito negativo da queda da demanda pública.

    Gráfico 1 Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br)/ Confiança empresarial

    Por isso, dizem os austeros, Keynes estaria errado: ao invés de reagir a desaceleração do gasto privado com ação contracíclica que recupere a demanda, o governo deveria cortar os gastos pró-ciclicamente. Como os cortes tentam conter o déficit fiscal gerado pela desaceleração da arrecadação tributária, o choque de confiança faria os empresários criarem (com o próprio investimento) a demanda perdida que os fizera gastar menos de início.

    A doutrina da “austeridade expansionista” ativada pela “fada da confiança” já foi demolida na academia e na prática algumas vezes, inclusive no Brasil desde 2015. Aqui, contudo, a aversão ao Estado e a direitos sociais, a impostos e a salários decentes por parte de muitos empresários e da maioria dos gestores financeiros, assim como as ilusões ideológicas e até mesmo (no caso dos economistas) a pobreza da formação teórica, inviabiliza a admissão de que ainda dependemos do gasto público, da redistribuição de renda e do consumo dos trabalhadores para sair da crise.

    Índice de confiança

    Se quiserem mais um teste, o fracasso das expectativas empresariais e do mercado financeiro em mover a demanda agregada desde a eleição de Bolsonaro serve? O melhor indicador da evolução mensal da demanda agregada é o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). Ele mostra (no eixo esquerdo do gráfico a seguir) que, a partir de junho de 2018, a economia retomou a trajetória de recuperação lenta verificada até a greve dos caminhoneiros. Nada justificava o aumento da confiança empresarial (eixo direito do gráfico) verificado entre outubro e novembro de 2018, exceto os preconceitos compartilhados com Jair Bolsonaro em relação ao gasto público, aos direitos sociais e aos salários “altos”.

    Pior, a demanda agregada caiu fortemente no primeiro trimestre de 2019 enquanto a confiança empresarial e o Ibovespa batiam recordes. Em janeiro de 2019, a confiança empresarial chegou ao maior valor desde junho de 2010, ano em que a economia cresceu 7,5%. Ou seja, o choque de confiança nada fez para elevar a demanda agregada e entregar o milagre do crescimento. Pelo contrário.

    Problemas de demanda

    Tudo indica que, depois do surto exportador e da breve recomposição de estoques de bens de capital e bens de consumo verificados em 2017, nossa recuperação lenta esbarrou em problemas de demanda: 1) na grande capacidade ociosa que inibe os investimentos privados que a fada da confiança quer estimular; 2) no desemprego e na estagnação salarial que limitam o crescimento do consumo; 3) na desaceleração da economia mundial e regional que se manifestou na queda das exportações, e que pode se agravar com a guerra comercial EUA-China, as incertezas do Brexit e as fragilidades financeiras que podem ser reveladas com a própria desaceleração; e 4) na forte contração do gasto público.

    De fato, para reanimar a confiança (e contrair a demanda), o ministro Guedes cortou em março o gasto federal (cerca de 20% do PIB) em 3,2% em relação ao mesmo mês do ano anterior. No acumulado do primeiro trimestre, o corte é de 1,2%, o que subtrai o PIB em cerca de 0,24%.


    Nas ruas e no Congresso a pressão do desemprego, a baixa arrecadação tributária e a resistência a novos cortes de verbas orçamentárias podem forçar a revogação da regra de ouro da Lei de Responsabilidade Fiscal ou até mesmo da EC do Teto. Caso isso não aconteça, o governo corre o risco de sofrer um processo de impeachment


    O corte nos governos regionais foi ainda mais radical segundo o Banco Central, gerando um superávit de quase 1% do PIB (0,98%) no acumulado trimestral. Nesse caso, saímos do déficit de R$ 10,5 bilhões no último trimestre de 2018 (cerca de 0,6% do PIB trimestral) para um superávit de R$ 17 bilhões (cerca de 1% do PIB trimestral). Uma verdadeira chacina no gasto público.

    Choque de contração

    Não há como uma economia combalida por meia década de austeridade possa reagir positivamente a um novo choque de contração da demanda pública dessa magnitude. Esse choque real é muito mais efetivo do que o choque imaginário produzido pela elevação inefável da confiança empresarial graças à retórica antiestado e antitrabalho de Bolsonaro e Guedes. Não surpreende que a confiança não tenha resistido e, em maio de 2019, já se aproximava do índice de outubro de 2018.

    O que esse salto para a estagnação ou mesmo para a recessão implica?

    Primeiro, podemos esperar que a crise política em gestação no primeiro semestre do governo Bolsonaro seja agravada por uma economia estagnada (no mínimo). Nas ruas e no Congresso Nacional, a pressão do desemprego, a baixa arrecadação tributária gerada pela economia no fundo do poço e a resistência a novos cortes de verbas orçamentárias podem forçar o relaxamento da regra de ouro no art. 167.III da Constituição Federal (a proibição de endividamento público para gastos correntes) ou até mesmo da EC do Teto. Caso isso não aconteça, o governo corre o risco de descumprir umas das leis e ficar vulnerável (legalmente) a um processo de impeachment.

    Segundo, o governo vai usar a crise orçamentária produzida pela constitucionalização da austeridade para justificar ainda mais austeridade e corte de direitos, sobretudo na Previdência Social. Contudo, novos cortes orçamentários vão reiterar o círculo vicioso da austeridade, mantendo a economia e a arrecadação tributária na lona e aumentando o cordão dos desiludidos com o governo Bolsonaro nas ruas e no Congresso.

    O improvável é que, sem que a economia mundial nos puxe pelos cabelos, a economia brasileira saia do fundo do poço levantada pela confiança empresarial ou pela euforia da Bolsa de Valores. Não há solução sem revogar a emenda constitucional da austeridade, distribuir renda e direitos, animar a demanda efetiva e o emprego.

    *Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor Associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da UNICAMP. O artigo é uma versão bem maior e modificada de texto publicado no site da Carta Capital em 23/05/2019

  • Dois barbudos  e um velho tarado

    Dois barbudos e um velho tarado

    Dois barbudos
    e um velho tarado

    Linchamento público, Google Trends e os
    novos leitores de Karl Marx, Paulo Freire
    e Olavo de Carvalho

    Por Fernando Cássio*

    O exercício especulativo que gerou este texto começou na noite do dia 4 de maio de 2019, em um evento na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco: o aniversário de 201 anos de Karl Marx – comemorado, na verdade, no dia seguinte. A editora Boitempo, organizadora da atividade, contou um número acima de duas mil pessoas na festa, ainda maior do que na comemoração dos 200 anos. Na efeméride do bicentenário, disseram-me, o bolo que sobrou serviu de lanche na editora durante alguns dias. O bolo dos 201 anos era um pouco menor. Mas sobrou gente e faltou bolo.

    Havia pessoas sentadas no chão entre as cadeiras da área externa, dentro da Fundação, na rua, por toda parte. No começo da noite, já não era possível comprar na banca da editora títulos tão específicos quanto Ideologia e propaganda na educação, trabalho de Nurit Peled-Elhanan sobre as representações da Palestina nos livros didáticos israelenses.

    Enorme público

    Alguns disseram que o enorme público do ducentésimo primeiro aniversário de Marx tinha a ver com a presença de um grupo de youtubers de esquerda: Sabrina Fernandes (Tese Onze), Larissa Coutinho (Revolushow), Humberto Matos (Saia da Matrix) e Jones Manoel. É provável que sim, mas também é verdade que a própria existência desses canais no YouTube – feitos por gente jovem e leitora de Marx – sinaliza a vitalidade das ideias do mouro. Recorro ao Google Trends para buscar indícios da vitalidade de Marx para além da observação empírica singular de uma festa de aniversário lotada. Restringindo o período de consulta a 1º de janeiro de 2016, quando a Google refinou a metodologia de contagem de buscas, vemos um padrão oscilante na Figura 1.

    Figura 1 Buscas gerais no Google por “Karl Marx”. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Os “vales” do gráfico coincidem com as férias escolares e recessos acadêmicos. Fonte: Google Trends.

    Figura 2 Buscas gerais no Google por “Paulo Freire”. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Os “vales” do gráfico coincidem com as férias escolares e recessos acadêmicos, e os “picos” coincidem com períodos de alta exposição do educador na imprensa. Fonte: Google Trends.

    Figura 3 Buscas gerais no Google por “Karl Marx” (vermelho), “Paulo Freire” (azul), “Max Weber” (verde), “Platão” (amarelo) e “Olavo de Carvalho” (roxo). Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. A partir de meados de 2018, a frequência de buscas por Freire alcança a de Marx. Fonte: Google Trends.

    Figura 4 Buscas gerais no Google pelos livros Pedagogia do oprimido (azul) e Pedagogia da autonomia (vermelho), de Paulo Freire; O imbecil coletivo (amarelo) e O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (verde), de Olavo de Carvalho; e O Capital (roxo), de Karl Marx. Brasil, 01 jan. 2016 – 19 mai. 2019. Fonte: Google Trends.

    O pico mais alto dessa série de medições se dá na semana seguinte ao bicentenário de Marx (6-12 mai. 2018), o que não significa muita coisa, já que muitos picos chegam perto de 100. No mais, observa-se um padrão de oscilação semelhante ao das buscas por termos como “Max Weber” ou “Platão”. Nos meses de dezembro-janeiro e julho – períodos de férias nas universidades e escolas – a frequência de buscas no Google diminui.

    A estatística da busca por imagens revela, além de um pico na semana do bicentenário do mouro (escala 100), outro na semana de 7-13 de outubro de 2018 (escala 93), imediatamente após o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. É provável que a fábula do “marxismo cultural”, insuflada pela malta reacionária que circunda o presidente eleito, tenha gerado nas pessoas a curiosidade de conhecer o rosto daquele barbudo alemão do século XIX com ideias tão más. De toda forma, o padrão de oscilação das buscas gerais – em fase com recessos acadêmicos e férias escolares – indica que Marx é tão lido quanto sempre foi nas salas de aula do Brasil. Ou, se não é propriamente lido, é tão buscado quanto sempre foi nos períodos letivos das escolas e universidades. Tudo leva a crer que é esse padrão de oscilação que caracteriza a estabilidade de um autor como leitura em cursos de formação e popularidade a longo prazo.

    Ideias apedrejadas

    Outro pensador cujas ideias têm sido apedrejadas em praça pública pela direita brasileira é Paulo Freire. Assim como a festa de arromba na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco me deu a impressão de que Marx está mais vivo do que nunca – ou, no mínimo, tão vivo quanto nunca – diversas situações têm me mostrado que algo semelhante deve se passar com Freire.

    Foto: Fernando Diegues

    Tanto na Universidade Federal do ABC, onde trabalho, quanto em outras instituições de ensino superior, vejo colegas incorporando ideias freireanas em trabalhos de pesquisa. Colegas que até então passavam longe dos textos e livros do educador. Disciplinas optativas sobre a obra de Freire pipocam em cursos de graduação e pós-graduação Brasil afora, bem como projetos de extensão voltados à formação continuada de professores da educação básica focalizados nas obras de Freire. Alunos da graduação têm demandado leituras do educador em disciplinas nas quais ele nunca fora lido. Também na educação básica, tenho ouvido de colegas professores que estudantes do Ensino Médio perguntam cada vez mais quem foi Paulo Freire e por que razão as ideias dele são tão perigosas.


    É provável que a fábula do “marxismo cultural”, insuflada pela malta reacionária que circunda o presidente eleito, tenha gerado nas pessoas a curiosidade de conhecer o rosto daquele barbudo alemão do século XIX com ideias tão más. De toda forma, o padrão de oscilação das buscas gerais no Google indica que Marx é tão lido quanto sempre foi nas salas de aula do Brasil


    As tendências de busca por “Paulo Freire” no Google também exibem um padrão de oscilação, embora menos definido que o padrão de buscas por “Karl Marx”. Os maiores picos de interesse aparecem em 1-7 mai. 2016, quando repercutiram no Brasil levantamentos que apontavam Freire como um dos pensadores mais citados no mundo; entre outubro e dezembro de 2017, quando uma militante de extrema direita conseguiu reunir 20 mil assinaturas em torno de uma proposição legislativa para revogar a outorga do título de “Patrono da Educação Brasileira” a Freire (a proposição foi rejeitada no final de 2017); nas semanas de 14-20 out. 2018 e 4-10 nov. 2018, durante o período eleitoral; e a partir de abril de 2019, com tendência ascendente no mês de maio corrente (Figura 2).


    Outro pensador cujas ideias têm sido apedrejadas em praça pública pela direita brasileira é Paulo Freire. Tanto na Universidade Federal do ABC, onde trabalho, quanto em outras instituições de ensino superior, vejo colegas incorporando ideias freireanas em trabalhos de pesquisa. Também na educação básica, tenho ouvido de colegas professores que estudantes do Ensino Médio perguntam cada vez mais quem foi Paulo Freire e por que razão as ideias dele são tão perigosas


    Nas buscas por imagens de Paulo Freire, um pico se destaca na semana de 14-20 out. 2018, indiciando o súbito aumento da vontade de ver o rosto desse outro barbudo, um brasileiro do século XX com ideias perniciosas sobre a educação e as escolas. É assim, aliás, que alguns apoiadores do movimento reacionário “Escola Sem Partido”, que prega a censura e a intimidação de professores nas escolas, definem Freire: um homem de “ideias perniciosas”.

    Pouco lido

    Embora a ultradireita diga o contrário, e embora a relevância internacional da obra de Freire seja enorme, ele é relativamente pouco lido nas universidades brasileiras, certamente menos do que Marx. De fato, apesar do padrão de buscas do Google em fase com os recessos acadêmicos, Paulo Freire sempre foi menos buscado do que Marx. Isso talvez se explique pelo maior alcance das ideias marxianas nas humanidades – história, sociologia, economia, política – do que as freireanas, provavelmente mais restritas aos estudos da educação e áreas correlatas. Estou, obviamente, chutando uma interpretação. A partir de meados de 2018, entretanto, isso parece ter começado a mudar, e o padrão de buscas de Freire e Marx começa a coincidir não apenas na forma oscilante, mas também na frequência das pesquisas (a altura dos picos, Figura 3).

    Comparemos agora os padrões de busca para Freire, Marx e um terceiro “pensador”: Olavo de Carvalho. Considerando-se apenas a popularidade instantânea dos autores (a altura dos picos no tempo recente), Carvalho é hoje mais buscado no Google Brasil do que Freire e Marx. Mas o padrão das buscas, ao contrário de Marx, Weber, Platão – e agora Freire – não oscila em fase com recessos universitários e férias escolares. Para avaliar que tipo de popularidade é essa, podemos comparar, em vez das buscas diretas pelos nomes dos autores, as buscas por seus livros mais famosos (Figura 4).

    Aqui se vê, finalmente, que as buscas no Google por Paulo Freire têm não apenas seguido o padrão oscilante que caracteriza autores cuja obra é lida regularmente (como Marx), mas que a popularidade do educador – a partir das buscas dos livros dele – está definitivamente aumentando.


    Embora a ultradireita diga o contrário, e embora a relevância internacional da obra de Freire seja enorme, ele é relativamente pouco lido nas universidades brasileiras, certamente menos do que Marx


    Os livros de Carvalho, por seu turno, suscitaram um interesse maior no segundo semestre de 2018, mas as buscas já parecem retornar à linha base, em comparação com o padrão de oscilação estável de buscas dos livros de Freire e Marx, a popularidade a longo prazo. Além do interesse recente nos escritos de Carvalho, observou-se um pico de interesse na semana de 5-11 fev. de 2017, quando se anunciou na imprensa a reedição do livro O imbecil coletivo pela editora Record. Embora o aumento da popularidade de Paulo Freire tenha sido alavancado pela mesma exposição midiática que alavancou a de Olavo de Carvalho, os efeitos disso a longo prazo parecem ser diferentes para um e outro.

    Olavo a jato

    Entre as consultas relacionadas ao termo “Olavo de Carvalho”, informa o Google Trends, estão termos como “olavo [de carvalho] terra plana”, “ministro da educação”, “brasil paralelo”, “olavo de carvalho donald trump”. Já entre as consultas relacionadas ao termo “Paulo Freire”, encontramos “paulo freire bolsonaro”, “escola sem partido”, “ideologia [de] paulo freire”. Entre os assuntos relacionados a “Paulo Freire”, estão “Escola sem Partido”, “Comunismo”, “Ideologia” e… “Olavo de Carvalho”. É sabido que tanto aqueles que atacam Paulo Freire quanto os que atacam Olavo de Carvalho estimulam o engajamento virtual e o aumento do interesse por conhecer (e eventualmente ler) ambos os autores. Porém, o efeito dessa curiosidade se manifesta de formas diferentes – pelo menos segundo o que se vê nas tendências do Google: Freire (e seus livros) exibem um padrão de buscas semelhante ao de Marx, enquanto Carvalho suscita uma explosão de buscas sazonais, mas, ao que tudo indica, evanescente.

    O que é fascismo? Essa foi a pergunta mais feita nos campos de busca do Google em 2018 no Brasil (categoria “o que é?”). Entre as buscas gerais, o assunto “copa do mundo” dominou os campos de pesquisa. Não há muito para ler sobre a metodologia de coleta e de cálculo do Google Trends, mas uma profusão de textos de vários países tenta cotejar as tendências de busca do Google com este ou aquele acontecimento, com esta ou aquela conjuntura política. Ainda que uma análise baseada nessa ferramenta seja necessariamente limitada, tenho a impressão de que ela corrobora o aumento do interesse das pessoas pela obra de Paulo Freire que tenho observado em minha vida offline.

    Adoração e achincalhe

    Os adoradores de Olavo de Carvalho são os mesmos que cotidianamente achincalham as ideias de Marx e Freire, e que apesar disso continuam atraindo leitores e formando pessoas no Brasil. Dois barbudos que já foram intelectualmente desafiados incontáveis vezes ao longo do tempo, mas que continuam tendo algo a dizer sobre o mundo.

    A primeira conclusão a que chego é que, do ponto de vista da popularidade e do engajamento, Freire está sendo mais ajudado pela direita do que Olavo de Carvalho pela esquerda, ao passo que Marx parece intocado. Enquanto Freire é cada vez mais lido (e não apenas nas instituições educacionais), Carvalho é cada vez mais tratado como um velho tarado, produtor de escatologias – inclusive por setores da direita e do reacionarismo militar. Daí advém a segunda conclusão: algumas ideias são definitivamente mais arrojadas do que outras, e não há nada que os linchadores de Paulo Freire e Karl Marx possam fazer a respeito. Além, é claro, de parar de falar mal de livros e autores que não leram. Ou de os lerem de uma vez por todas.

    *Fernando Cássio é professor de Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC. Em 2019, organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, publicado pela Boitempo.
  • “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    “O assassinato de Marielle é um crime contra a democracia, um divisor entre civilização e barbárie”, diz Marcelo Freixo

    Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL do Rio de Janeiro, vive sob proteção policial desde que presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias, na Assembleia Legislativa do Estado, há 11 anos. O relatório final pediu o indiciamento de 260 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e personagens civis. Freixo liderou ainda duas CPIs, a do tráfico de armas e a dos autos de resistência. Enfrentando uma briga que poucos encaram, Freixo tornou-se alvo visível para grupos perigosos que controlam pedaços do poder público, territórios e inúmeros serviços em bairros populares. A trajetória parlamentar desse professor de História e ativista de Direitos Humanos de 52 anos recebe um crescente reconhecimento popular. Eleito para a Assembleia Legislativa em 2006, com 13.547 votos, ele multiplicou por 13 vezes o desempenho na segunda disputa (2010), alcançando 177.253 sufrágios. Em 2014, a marca quase dobrou, chegando a 350.408 votos. Dois anos depois, Freixo chegou ao segundo turno das eleições municipais do Rio, com 1.163.662 eleitores escolhendo o nome dele (40,64% do total). Perdeu para Marcelo Crivella, numa disputa tremendamente desigual em volume de recursos. Marcelo Freixo exerce o primeiro mandato de deputado federal.

    Entrevista concedida para
    Francisvaldo Mendes e Gilberto Maringoni

    Uma pergunta ronda as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Pedro Gomes, mais de um ano depois das execuções: quem mandou matar?  A identificação dos assassinos, em março deste ano, resultou de uma investigação repleta de idas e vindas. O fuzilamento aconteceu numa cidade marcada pela atuação de milícias e grupos criminosos, até mesmo dentro do Estado, oferecendo proteção e serviços que deveriam ser públicos. Encontrar os mandantes e saber das motivações significa desvendar uma teia de claras conotações políticas. Para falar sobre o sentido dessa execução, do andamento das investigações e o que se acumulou até aqui, Socialismo e Liberdade entrevista Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL-RJ e um dos maiores especialistas em segurança pública de todo o país.


    “Quem matou Marielle é um assassino profissional e orgânico no crime. É uma pessoa conhecida por quem estuda a segurança pública, é investigado por outras mortes e era traficante de armas. Não há o menor sentido em imaginar que uma pessoa dessas resolva matar por ódio alguém que ele sequer conhecia. Ele não é um assassino vingativo e violento solto na rua; é orgânico no crime. Por isso foi contratado”


    Quem mandou matar Marielle?
    Acho que essa é a principal pergunta a ser feita agora. Depois de muito sacrifício, a polícia conseguiu descobrir quem apertou o gatilho. Não foi qualquer pessoa. O assassinato da Marielle foi um dos crimes mais bem planejados da história do Rio de Janeiro, e não estou falando de um lugar pouco violento. Temos taxas de homicídio altíssimas e com crime organizado implantado. O crime organizado no Estado se envolve com política e com domínio de território. O Rio apresenta uma circulação de armamentos sem paralelo com outros lugares, nem mesmo com São Paulo. Você imaginar que o crime da Marielle aconteceu aqui não é qualquer coisa. É sinal de que havia uma motivação política.

    Não foi um crime de ódio?
    É preciso descartar qualquer ideia que foi crime de ódio ou sentimento específico de quem atirou. Quem matou Marielle – Ronnie Lessa – é um assassino profissional e orgânico no crime. É uma pessoa conhecida por quem estuda a segurança pública, é investigado por outras mortes e era traficante de armas. A ficha inclui o fato de ser um PM reformado por um atentado que sofreu, com salário de R$ 7 mil. Morava no mesmo condomínio do Presidente da República, tinha o carro mais luxuoso da vizinhança, casa e lancha em Angra dos Reis. Está com a vida financeira bem resolvida. Ele mata há muitos anos, enriqueceu assim, mas nunca foi investigado por conta do poder político que seu grupo de matadores tem. Trata-se do chamado Escritório do Crime. O nome “Escritório” dá bem um perfil empresarial da atividade. Não há o menor sentido em imaginar que uma pessoa dessas resolva matar por ódio alguém que ele sequer conhecia. Ele não é um assassino vingativo e violento solto na rua; é orgânico no crime. Por isso foi contratado. Seja lá quem cuidou do negócio, contratou bem.

    Isso implica a existência de um mandante?
    Houve mandante e isso é o mais importante. Quem mandou matar Marielle não mandou matar por ódio à Marielle, especificamente. Pagou um profissional caro e sofisticado. Tanto é que se demorou muito a chegar ao nome dele.


    “O assassinato indica, claramente, a existência de um grupo no Rio de Janeiro capaz de matar na disputa política. Se não soubermos quem mandou matar, não saberemos a razão da morte. E esse grupo vai continuar com suas ações. A Polícia Federal me diz que os criminosos se arrependeram muito do crime contra a Marielle, pois não acreditavam que a repercussão fosse tão ampla. Caminhamos para um lugar perigoso em termos de barbárie”


    Por que demorou para descobrir o assassino, sabendo que havia uma intervenção militar no Rio?
    Há vários problemas nessa investigação. Ela foi feita pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e pela Delegacia de Homicídios. Era o setor indicado a não ser que se federalizasse a busca, o que não é uma decisão simples e corriqueira. Eu defendo que crimes de milícias sejam sempre investigados pela Polícia Federal. Trata-se de uma mudança legislativa necessária. As polícias locais não têm condições de investigar a própria polícia nesse nível de organização criminosa. A milícia tem, no comando, policiais. É um problema você imaginar que polícia vá investigar polícia.

    Mas o fato de o Exército, que é uma força federal, estar no Rio não poderia ter agilizado as investigações?
    A intervenção aconteceu, inclusive, sobre as polícias. Durante boa parte do tempo, a investigação foi comandada pelo Exército e a delegacia de homicídios estava submetida à intervenção. O Secretário de Segurança passou a ser o General Richard Nunes. Esse crime é um divisor de águas e revela muito do Rio de Janeiro. É um crime que indica, claramente, que há um grupo político no Rio de Janeiro capaz de matar na disputa política. É um crime contra a democracia! Se nós não soubermos quem mandou matar, não saberemos a razão da morte. E esse grupo vai continuar matando. A Polícia Federal me diz que os criminosos se arrependeram muito de terem matado a Marielle, pois não acreditavam que a repercussão fosse tão ampla. Caminhamos para um lugar muito perigoso em termos de barbárie, em termos de força política de extrema direita, que é capaz de tudo.


    Deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) apresenta a sua candidatura à Presidência da Câmara dos Deputados no púlpito do Plenário Ulysses Guimarães no início da noite desta sexta-feira (1).

    O crime organizado está dentro do Estado?
    Crime organizado está sempre dentro do Estado, como falo há muitos anos. Isso não quer dizer que seja o único crime ali existente. O tráfico de drogas, com a complexidade e com o trajeto de riqueza, é um crime organizado. O dinheiro do tráfico de drogas está no mercado imobiliário, no mercado financeiro e na bolsa de valores. Não há um mercado paralelo para o dinheiro do crime. Só há um mercado. Mas o varejo da droga, o domínio territorial e a venda têm muito pouco de crime organizado. O domínio de um território – por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro – é um poder absolutamente local em um mundo cada vez mais globalizado. A quantidade de armas não define a organização de nenhum crime. Para mim, quanto menos organizado é um crime, de mais armas ele precisa, pois você vai enfrentar apenas uma questão territorial, ou militar, e não uma questão política e financeira. Quanto menos armas você utiliza no domínio de atividades criminosas, mais organizado você é, por estar dentro de uma lógica de mercado de poder. Essa é a lógica do Gramsci quando fala em hegemonia. A relação entre convencimento e coação se dá de acordo com a possibilidade de se exercer a hegemonia. Claro. O crime verdadeiramente organizado tem braços muito profundos dentro do Estado. Não só na máquina pública, mas nos negócios. Por isso que, quando presidi a CPI das milícias, em 2008, nós criamos um conceito. As milícias tinham pouco tempo de existência, mas elegeram vereadores em 2004 e deputados em 2006, quando fui eleito. A milícia, claramente, leva-me a um conceito de “Estado leiloado”, que é o contrário de “Estado paralelo”. É muito comum, no vocabulário da criminologia, você ouvir a ideia de Estado paralelo. Acho que o Estado paralelo não existe. Só existe um Estado. O que você tem é domínio territorial armado, e isso não é Estado paralelo. Sempre lembro do seguinte: na eleição de 2006, havia uma facção no Complexo do Alemão com um grande líder preso há anos. O irmão dele foi candidato a deputado, teve seis mil votos e não foi eleito. No mesmo ano, Sérgio Cabral ganhou a eleição no primeiro turno, com 76% dos votos naquela região. Quem controlava o local era a facção ou o PMDB? Faço sempre essa pergunta para quem quer discutir crime organizado.


    “Para mim, quanto menos organizado é um crime, de mais armas ele precisa, pois você vai enfrentar apenas uma questão territorial, ou militar, e não uma questão política e financeira. Quanto menos armas você utiliza no domínio de atividades criminosas, mais organizado você é, por estar dentro de uma lógica de mercado de poder.”


    E como você classifica a milícia?
    Milícia não é Estado paralelo, é Estado leiloado. Porque esses caras dominam o território militarmente. Se tiver que matar, eles matam, e matam muito, têm grandes taxas de homicídio. Mas eles não têm a ostensividade das armas, até porque eles são, em suas cabeças, agentes públicos na área de segurança, e dominam diversas atividades econômicas desse lugar. Por que a milícia é um grande salto organizacional do crime? Porque é a primeira vez em que um grupo transforma domínio territorial em domínio eleitoral. Todo miliciano é dono de um centro social. Então, eles têm a mão do terror e a mão do favor. Aí nasce um espírito de máfia no Rio de Janeiro. E eles elegem gente e não somente deles. É uma máquina eleitoral muito forte e com muito dinheiro.

    Vamos esmiuçar mais a questão do domínio territorial. Em abril de 2019, desabou um edifício em Muzema e revelou-se que a construção era de responsabilidade das milícias. Isso representa um controle não apenas do território, mas também de todo o aparato legal de regularização do solo e da urbanização?
    Dominam tudo. Ali, por exemplo, eles têm controle de factoring, emprestam dinheiro a juros e funcionam como um banco. Além disso, formam imobiliárias, constroem prédios sem fiscalização e cobram pela segurança. Como se não bastasse, controlam todas as TVs a cabo, com sinais clandestinos, o fornecimento de gás e o transporte alternativo. Você tem ideia de quanto isso vale em dinheiro? E eles transformam todos os negócios em domínio eleitoral.

    Rio de Janeiro – Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

    Ao mesmo tempo, isso não torna as milícias populares? Não são vistos como gente eficiente para a resolução de pequenos e grandes problemas?
    Quando a gente começou a chegar às milícias em 2008, tive dificuldade em abrir a investigação. Primeiro, porque as milícias estavam presentes na Assembleia Legislativa. Havia deputados milicianos poderosos. Tive dificuldade porque, na sociedade, existia a ideia de que a milícia era um mal menor. Ela, pelo menos, expulsava o tráfico e mantinha ordem. Isso se combina com o discurso da assistência. E, claro que tem apelo popular. Eles são donos de centros sociais e fazem atendimento às pessoas. Ao mesmo tempo, tem a extorsão e a violência. Então, por exemplo, você só compra gás com eles e o gás é mais caro. Você tem que pagar a taxa de segurança, pois se não pagar, perde a sua casa. Assim, há a extorsão e a violência, mas tem a ideia de que, se fosse o tráfico, seria pior. Não existe a perspectiva de o Estado funcionar direito, por isso digo que temos um Estado leiloado. Eles se assumem como Estado, até porque são figuras da segurança pública, são agentes públicos, são funcionários públicos. É um grupo criminoso absolutamente próximo à lógica das máfias. E como a gente consegue começar a quebrar isso? Você vai mostrando o enriquecimento deles, a altíssima taxa de homicídios nas áreas, o terror, o medo e, de um tempo para cá, nas áreas de milícia, começa a ter tráfico, por causa de dinheiro. A grande eficiência da CPI das milícias foi ter mudado a opinião pública sobre as milícias.


    “As milícias continuam crescendo territorialmente e financeiramente no Rio de Janeiro porque não se mexeu em suas estruturas econômicas. Milícia é um bom negócio.”


    Essa virada aconteceu?
    Aconteceu. Hoje, ninguém defende milícia no Rio de Janeiro, tirando o Bolsonaro.

    E como eles ganharam a eleição em alguns territórios? O Witzel, por exemplo, elegeu-se auxiliado pela milícia?
    O Witzel vai a tudo quanto é lugar. Não foi só por causa de milícia, não. Nas áreas de milícias, claramente, ele tem o apoio desses grupos. Mas ele ganhou na zona sul inteira, ganhou em tudo quanto é lugar. Ele acompanha o fenômeno Bolsonaro. Mas a milícia tem perdido força eleitoral. Por exemplo, em 2006 e 2008, eles elegeram parlamentares. Em 2010, já não elegeram. Não há deputados eleitos por eles, apesar de fazerem campanha e dominarem militarmente os locais.


    “Milícias são grupos armados que dominam territórios e, ao dominar territórios, dominam atividades econômicas desses territórios. A chefia das milícias, em boa parte, é formada por agentes públicos ou ex-agentes públicos da área de segurança. São policiais militares, policiais civis, bombeiros, membros do Exército, ou PMs expulsos da corporação.”


    Eles perderam representação?
    Perderam. Para você ter uma ideia, quando eu presidi a CPI das milícias, a gente indiciou vários deputados e vereadores. Todos foram presos. Foram 260 pessoas presas diretamente, na CPI. Deputado saiu algemado, vereador saiu algemado. Os donos de milícia pararam de se candidatar e passaram a apoiar outros postulantes. Ficou perigoso para eles. Foi uma pancada grande. O relatório da CPI traz 58 propostas concretas para reduzir o poder das milícias. Sem tirar o domínio territorial, econômico e político deles, só prender não resolve. Como em qualquer máfia no mundo.

    A ascensão de Bolsonaro é um fenômeno extremamente complexo, mas representa também uma ascensão das milícias?
    Mais ou menos. As milícias continuam crescendo territorialmente e financeiramente no Rio de Janeiro porque não se mexeu na estrutura econômica deles. Milícia é um bom negócio. A expressão política da milícia, depois da CPI, cai, e agora começa a ter o risco de voltar a crescer, por causa da eleição do Bolsonaro. É o contrário.

    Como se define a milícia?
    São grupos armados que dominam territórios e, ao fazerem isso, dominam atividades econômicas desses territórios. A chefia das milícias, em boa parte, é formada por agentes públicos ou ex-agentes públicos da área de segurança. São policiais militares, policiais civis, bombeiros, membros do Exército, ou PMs expulsos da corporação. São grupos que, ao dominar as atividades econômicas, dominam as atividades sociais desses lugares, e que transformam o domínio territorial em domínio eleitoral. Isso é milícia. É muito comum o pessoal dizer que segurança privada é milícia. Não é. Nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro, o cara bota uma cancela, bota um colete e faz segurança do bairro. Isso não é milícia.

    Pela sua definição, pode-se dizer que milícia é um grupo muito mais político do que militar?
    Ele é militar e político. O domínio territorial é militar e armado, mas não é ostensivo. Por exemplo, se a polícia for fazer agora uma blitz em uma área de milícia, não vai encontrar ninguém trocando tiro com a polícia. Eles não disputam o domínio daquele território com a polícia, porque, inclusive, são policiais! Eles não vão enfrentar o Estado, eles são do Estado.


    “O Exército não ocupa área com milícia. Não se investiga ou se enfrenta militarmente a milícia. É preciso fazer um serviço de inteligência, identificar quem são as pessoas e fazer as prisões. E como você retoma uma área de milícia? Tirando da milícia o papel econômico, com o Estado assumindo suas funções. Para isso, o poder público teria de colocar posto da prefeitura, saúde preventiva, investimento, transporte público e regularizar o fornecimento de gás.”


    Por que o Estado não retoma esses lugares?
    Porque não se toma esses lugares agindo militarmente. E o Estado só sabe operar a segurança pública militarmente. Não há investimento em inteligência.

    A UPP não resolveu?
    Não. Primeiro, porque não teve UPP em área de milícia, o que já era sintomático. E por quê? Porque não interessa. Eles botaram uma UPP onde os jornalistas de O Dia foram torturados, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Muito simbólico. As UPPs são, todas, em áreas de tráfico. E todas na Zona Sul do Rio de Janeiro.

    Qual foi o papel do Exército nessas áreas?
    O Exército não ocupa área com milícia. Qual foi a grande operação do Exército contra área de milícia? Não tem. Porque não se investiga ou se enfrenta militarmente a milícia. É preciso fazer um serviço de inteligência, identificar quem são as pessoas e fazer a prisão. E como você retoma uma área de milícia? Tirando da milícia o papel econômico, com o Estado assumindo. Agora, na Muzema, cai o prédio, a sociedade está enfurecida com a milícia porque as pessoas morreram. Era hora de o Estado entrar ali e falar: “Acabou a milícia aqui”. Para isso, o poder público teria de colocar posto da prefeitura, saúde preventiva, investimento, transporte público e regularizar o fornecimento de gás.


    “A segurança não entrou no horizonte da esquerda. E aí, a direita pega a segurança como um tema dela e constrói uma narrativa sobre o medo, sobre as cidades, uma narrativa policial, quase que restringindo a segurança a um debate sobre polícia. Permitimos que essa lacuna ficasse aberta.”


    Mas, operacionalmente, para entrar com posto de saúde e escola, tem que entrar com uma cobertura militar.
    Claro. Tem que ter a Polícia Militar lá, como em qualquer lugar. Mas tem que tirar o braço econômico da milícia. Vai tirar o braço econômico da milícia? Por que não fazem isso agora?

    Qual o significado de Flávio Bolsonaro ter contratado Queiroz em seu gabinete de vereador?
    É grave. As pessoas me perguntam: “O que você acha do cara que matou a Marielle ser vizinho do Bolsonaro? Isso não é grave, não é um indício?”. Acho que a gente precisa tomar cuidado. Eu não posso garantir quem são todos os vizinhos do prédio em que moro, não sou responsável por isso. Daqui a pouco, descobrem que um grande traficante de armas reside no mesmo prédio que moro, e aí eu, que disse que o Bolsonaro tinha que explicar isso, vou ter que me explicar também. Se você me perguntar o nome e a cara dos meus vizinhos, eu não sei. Não encontro as pessoas, não sei quem são. Então, você não pode ser leviano. Mas Bolsonaro tem que responder pelo que sempre fez e disse. Ele defendeu a legalização das milícias no mesmo momento em que eu estava liderando a CPI. Quando falo “Bolsonaro”, estou falando do clã. O Bolsonaro defendeu os grupos de extermínio abertamente. Sempre defendeu os autos de resistência, ou seja, a ação letal da polícia. Sempre fez isso, sempre se aproximou ideologicamente da defesa da violência institucional. O Queiroz, um ex-braço direito do Jair, vai trabalhar com o Flávio. Trata-se de um policial militar que trabalhou em batalhões muito violentos. Ele serviu junto com o Ronnie Lessa, o matador da Marielle, com o Adriano Nóbrega, chefe do Escritório do Crime, e com o Cláudio Luiz Oliveira, o policial que está preso por ter sido mandante da morte da juíza Patrícia Acioli [assassinada em 2011, em Niterói, por sua atuação dura contra traficantes e policiais corruptos]. Há um setor de gente muito perigosa que sempre teve relações com a família, por meio do Queiroz. O Flávio, quando vereador, homenageou Adriano com uma medalha – e o Adriano hoje é um foragido – dentro da prisão, respondendo por homicídio. Até foi, posteriormente, absolvido, mas, na época, estava preso. Essas relações todas são muito graves.

    Qual a relação de grupos de extermínio com a milícia?
    São duas coisas completamente diferentes. Grupos de extermínio são históricos no Rio de Janeiro. Existiram vários, principalmente na área da baixada fluminense. São policiais, na maioria das vezes, contratados para fazer um serviço de extermínio. Então, por exemplo, comerciantes locais contratam para matar algum assaltante. A milícia é de outra natureza. A milícia não é contratada por comerciantes. Ela é dona do lugar e o comerciante paga à milícia para continuar sendo comerciante. A milícia muda a natureza da relação. Ela é muito mais sofisticada.

    A esquerda nunca conseguiu tratar corretamente a questão da segurança. Como você vê isso?
    É um erro histórico que a esquerda cometeu. Acho que, quando pensamos a Constituição de 1988, tivemos uma enorme preocupação com educação, com saúde e com terra. A segurança não entrou no horizonte da esquerda. E aí, a direita pegou a segurança como um tema dela e constrói uma narrativa sobre o medo, sobre as cidades, uma narrativa policial, quase que restringindo a segurança a um debate sobre polícia. Permitimos que essa lacuna ficasse aberta. É claro que a gente tinha que debater saúde, educação, mas a gente não atentou para a ideia de que o mundo se tornava cada vez mais urbano, e que um dos grandes desafios da vida urbana é o da segurança. E que seria necessário propor algo diferente da direita, que haveria também disputa, como há disputa na concepção de saúde, de educação, de segurança. O maior mecanismo de eleição de deputados conservadores hoje é a igreja e a segurança.

    Igreja?
    Nós também tivemos uma incapacidade religiosa muito grande, pois ficamos na teologia da libertação, e não entendemos o crescimento do mundo pentecostal e a nova formação religiosa das periferias. Demoramos muito a entender que ali há um elemento de pertencimento social muito profundo. Perdemos a sensibilidade religiosa e de segurança. É muito grave. Quando, hoje, você vê naturalizada a ideia de que Direitos Humanos é direito de bandido, temos uma sofisticação do debate. Não se permite a existência de outro elemento capaz de pensar a segurança que não a lógica militar, da polícia. Nessa matriz, só pode falar de segurança quem pega em armas. Os ataques mais violentos que sofro são nessa área. E estudo segurança há 30 anos.

    Apesar das diferenças evidentes entre religião e segurança, é possível dizer que ambas, de certa maneira, cobrem a insuficiência do Estado como ente público? Uma pela sociabilidade e acolhimento e outra pela ausência de ação do Estado?
    Claro que sim. São discursos que se aproximam, porque o mundo religioso também lhe oferta segurança. Seja a segurança espiritual, de pertencimento, afetiva, ou seja a segurança de querer um mundo mais estável, onde eu possa me sentir melhor.

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