Tenho que fazer o dobro para ser reconhecida pela metade
Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade. Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu
Por Manuela Trindade Oiticica*
Uma cerveja bem gelada? Aceito. Dois goles de tutela? Não, obrigada. Sim, eu sei como segura um tamborim. É, é verdade. Um surdo mal tocado pode derrubar uma roda de samba. Tô sabendo, meu amigo, eu conheço essa música, mas olha, não necessariamente eu toco pra caramba. Toco o normal de quem sabe tocar e – eu sei que isso te dói em algum lugar que você nem sabe – o que tem é que eu conheço os códigos, compartilho saberes mundanos que envolvem uma manifestação popular. Igual a você. Rua, sabe? Eu também. Parece que meu lugar prosaico te deixa mais inseguro. Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade.
Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu. Desagradeço, que isso nunca foi um elogio. Obrigada.
Fica tranquilo que eu aguento tocar as três horas previstas de apresentação, não se aquiete que eu seguro o andamento mais rápido e não, não vou correr na música mais lenta. Pódeixar. Agora vem uma paradinha na música, eu sei que é minha vez de fazer a virada e, veja, vou dizer algo que você não deve perceber.
Tenho que fazer o dobro pra ser reconhecida pela metade.
A virada do meu instrumento na hora do silêncio vai ser boa. Aliás, muito boa. Muito melhor do que precisa pra essa roda de samba improvisada em que, sejamos francos, quase ninguém sabe tocar direito – mas em que quase todo mundo tem esse direito. Quase todo mundo. Se eu fizer tá tá tá, pode soar simples demais, tadinha, tá começando. Se eu fizer prapum tatá pracará tatatá, exibida demais, pra que isso, gente?, alguém diz pra moça que o samba é arte do singelo. Tudo bem, eu já sei a medida. Mais uma vez obrigada, com licença. E não se aquiete. Tente até não me enxergar muito.
Tem mais gente tocando. Tocando melhor, tocando pior, normal. Olha pra mim. Normal, tá vendo? Pronto. Pode parar de olhar. Uma cerveja? Aceito. Uma hora alguma coisa vai dar errado, é do jogo. A gente bebe, se empolga, e o samba é desses que desnorteia. Você vai olhar de novo. Vai olhar, porque quando der errado, sem querer querendo, você vai olhar pra mim. Será que não foi ela? Pode ter sido, pode não ter sido, mas eu sempre vou ter que responder por isso.
É, eu entendo. É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro. Violão sete cordas, daqueles bem maestro? Cabe nela. Escuta, desiste enquanto é tempo da teoria da unha mais mole, o dedo que não alcança, a mão menor que não crava. O Romário tinha 1,68m e fez gol de cabeça nos suecos. Com licença, obrigada. Eu não quero brigar, por favor, obrigada. Saí de casa pra tocar e só. Você nem sabe quantas coisas têm que se mexer pra eu ter o direito de ficar parada.
É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar a tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa eu mesma completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro
Um instrumento é porque é muito grande, o outro deve ser muito pesado, aquele ali exige força. Tem uns cientificismos que só servem pra ser os primeiros aliados pras desculpas. Pros vetos. Pras opressões. Mas deixa eu te dizer, se tiver chance a gente faz tudo. Senão, vejamos. A gente já faz mesmo sem muita chance. Deixa eu te dizer. Mas tem que ser no duro, chance desde pequenas.
A guitarrinha de plástico, o rabisco fora da folha. Poder expulsar sem dó o berro da garganta que não vem ninguém dizer que fica tão feio pra menina berrar assim. Bater de espancar a lata de leite em pó sem se ouvir por aí que a mão da gente tem que ser – precisa ser! – delicada e não pode bater forte assim, que menina agressiva, meu deus. Depois tem que poder ficar até mais tarde na rua, porque muito desse baticum vem na fresca da madrugada, você sabe. Tem perigo pra todo mundo, né?, mas uma rua escura dessas, a gente sozinha, já pensou? E tem um ócio aí pra poder namorar a música, o instrumento. Lembre só que nossa jornada é maior.
Nossa obrigação com o trabalho, a limpeza da casa, do corpo, da mochila, da calcinha, da dobrinha do pescoço, o caderno organizado, a letra bonita, as contas em ordem, nossa roupa não pode ser todo dia a mesma. Ficar amarrotada, ter mancha de sangue, não tem charme. A raiz branca do cabelo, sobrancelha, unha, aquela mulher tem um jeito de mal cuidada, né?
Ainda por cima ganhamos pior e nosso espaço de lazer é menos o da brejeirice e mais o do controle, tipo uma casa com quatro paredes. Reparou: nem falei dos filhos.
Mas olha, eu aceito uma cerveja, e teria muito mais pra te falar. Até porque eu não falei nada. Só ri quando você disse que eu deixava a roda de samba mais bonita e perfumada, e cada dente que eu não mostrei no meu sorriso amarelo de quem não quer se aporrinhar era uma dessas palavras escritas acima e que, tenho a mais plena convicção, você nem desconfia que existam.
*Manuela Oiticica ou Manu da Cuíca é escritora, compositora e percussionista. É uma das autoras do samba da Mangueira de 2019.
A esquerda deve investir na campanha do Impeachment?
Por Chico Alencar e José Luis Fevereiro
Com a agudização da crise econômica e institucional, a grande imprensa e setores do mundo político começam a ventilar abertamente a possibilidade de impeachment do Presidente da República.
O impeachment – ou impedimento – entrou na cena pública brasileira pela primeira vez na Constituição de 1946, no Capítulo III, artigo 79. A lei complementar que concretiza a norma constitucional é a de número 1.079, sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em 10 de abril de 1950.
Segue em vigor. Trata-se de uma transposição do voto de desconfiança dado a um primeiro-ministro, num regime parlamentarista, para um chefe do Executivo, no regime presidencialista. Assim, o processo de impedimento sempre se situa na fronteira entre medida legal e iniciativa política. A perda de maioria congressual qualificada – no caso brasileiro – sempre coloca o mandatário dos três níveis de governo sob o risco de impedimento.
Diante da tensa conjuntura que o país enfrenta, o Partido Socialismo e Liberdade convidou o ex-deputado federal e professor de História, Chico Alencar, e o economista e membro do Diretório Nacional do PSOL, José Luiz Fevereiro, para comentarem acerca do polêmico tema.
Impeachment: o povo é quem mais ordena?
Mais do que debater o impedimento como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o desafio urgente é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão
Por Chico Alencar*
Quantas vezes você já sonhou com o impeachment de Bolsonaro, mesmo estando ele no primeiro semestre do mandato presidencial? Desde o afastamento de Fernando Collor, em 1992, esse tipo de procedimento institucional entrou em nosso campo de cogitações. A palavrinha de difícil escrita e pronúncia ficou popularizada a ponto de se inventar até o verbo “impichar”.
“Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um de seu bem particular”
Frei Vicente do Salvador, ‘História do Brasil’, 1630
A expressão impeachment não existe na nossa Constituição. Mas “impedimento” tem, na Carta Magna, nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais: mediante acusação e processo, os governantes – presidentes, governadores e prefeitos – podem ser afastados de seus cargos, perdendo os mandatos.
O artigo 51 da Constituição, no seu inciso I, diz que compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente da República, o Vice e os Ministros de Estado. Cabe ao Senado processar e julgar, nos crimes de responsabilidade.
E assim já foi feito, concluída a transição (tutelada pelo alto) da ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964 para a Nova República. Os presidentes eleitos Fernando Collor e Dilma Roussef foram destituídos dos cargos. As circunstâncias e forças políticas que viabilizaram as derrubadas foram bem distintas. Pode-se dizer, grosso modo, que uma cassação teve viés progressista, a de Collor. Outra, conservador e direitista – a de Dilma, em 2016.
Portanto, o instituto do impeachment não é necessariamente negativo ou positivo, embora sempre de caráter eminentemente político. Impeachment acontece dentro das circunstâncias históricas e da correlação de forças. Abre espaço de disputa aguda, em processo de meses – diferentemente de um golpe de estado, manu militar.
Maioria rara
É fato que raramente se tem, nos parlamentos do Brasil, uma maioria sólida, que garanta as políticas de governo. É verdade que os conservadores, os neoliberais, têm mais facilidade (por terem menos escrúpulos) para montar a base de sustentação no toma lá dá cá, nos acordos fisiológicos em torno de cargos e liberação de emendas. É incontestável que as maiorias sociais estão sub-representadas nos legislativos, e não formam maiorias políticas. No Congresso Nacional, as bancadas predominantes são as da bala, dos bancos, da bíblia fundamentalista, do agronegócio, das empreiteiras, da mídia grande e das mineradoras. Do poder econômico monopolista, em síntese.
Mas governar com um programa democrático-popular que mereceu o voto da população, sem fazer concessões rebaixadas, que firam princípios, não é impossível, não dá obrigatoriamente em impeachment. Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo (1989-1992), Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2011-2014), no governo do Rio Grande do Sul, não tinham maioria nas respectivas Casas Legislativas e cumpriram os mandatos até o fim. Sim, sofreram tentativas de destituição, mas a mobilização popular foi decisiva para a continuidade de seus governos.
Cerco popular
Recordo das articulações da bancada malufista para asfixiar e derrubar Erundina. O cerco popular à Câmara de Vereadores da maior cidade do país, com 15 mil manifestantes em apoio ao seu governo, quebrou o que era dado como certo.
“Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Já se disse que quando se alia com a direita e o fisiologismo estes é que acabam governando.
Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário. Essa proposta, que existe como lei em alguns países, já foi apresentada no Congresso Nacional, mas nunca prosperou. Isso revela as limitações do nosso sistema jurídico-político, controlado pelas elites que não aceitam o empoderamento popular.
“Governabilidade” não pode ser sinônimo de concessão que descaracteriza o projeto de esquerda progressista. Sem dúvida, o melhor método para avaliar um governante eleito é o recall, o referendo revogatório, pelo qual a população como um todo é chamada a deliberar sobre a continuidade ou não de um determinado mandatário
A Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das que abriga essa possibilidade. Ela foi praticada lá em 2004, pela revogação do mandato do então presidente Hugo Chávez. Este venceu o pleito, permanecendo no governo, com mais de 58% dos votos (que, aliás, lá são voluntários).
A melhor forma para fazer uma mudança substantiva no nosso sistema político, a fim de torná-lo mais democrático, transparente e representativo, seria por meio de uma Assembleia Constituinte exclusiva e especificamente convocada para esse fim.
Mais do que debater impeachment como instrumento da soberania popular ou do controle oligárquico, o urgente desafio é popularizar o debate sobre uma mudança radical do nosso sistema político. Quem sabe a desilusão, já em curso, com o “voto de protesto” que levou ao poder a extrema direita, acelere essa questão?
Espírito de submissão
Nossa tradição cultural e política não ajuda, como lembra o jurista Fábio Konder Comparato em artigo intitulado ‘Sobre a mudança do regime político no Brasil’ (no livro A OAB e a Reforma Política Democrática, Brasília, 2014): “A estrutura de poder, própria do capitalismo escravista aqui instalado durante quase quatro séculos, marcou fundamente nossa mentalidade e nossos costumes políticos. Ela forjou, sobretudo no seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos ‘para mandados e não para mandar’, conforme a saborosa expressão camoniana – um espírito de submissão incompatível com a vivência democrática”.
No bojo dos processos de impeachment e dos chamados “crimes de responsabilidade”, que fustigam prefeitos, governadores e presidentes, está sempre presente esse ‘pão dormido’ da política nacional, a corrupção. Ela é sistêmica, larvar e mais que dos governos ou mal chamados ‘políticos’: é visceral do Estado brasileiro, enraizada em nossa cultura. Denunciá-la e combatê-la, nessa perspectiva, tem a ver com a premente ética da política, mais do que a propalada ética na política. É a ética da política que garante a qualidade das instituições republicanas na possibilitação dos interesses das maiorias, com transparência e sob controle popular. É ela, massificada como valor, que barrará tentativas manipuladas de “golpes parlamentares”, via impeachments.
Em meio a tantas sombras, nota-se um crescimento da consciência política e um reavivamento da organização e lutas populares. Isso pode nos garantir algumas vitórias, ao menos barrando retrocessos. Há braços.
*Chico Alencar é professor de História (UFRJ), escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)
Impeachment, o descarte dos peões?
A vulgarização do impeachment e sua naturalização como método de apear governos eleitos serão sempre usadas impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata
Por José Luis Fevereiro*
A figura do impeachment, tal como inscrito na legislação brasileira, por crime de responsabilidade, submetido à interpretação política de uma maioria parlamentar qualificada, não é um mecanismo de aprimoramento democrático. Desde o impeachment de Collor, passando pelo de Dilma e agora no Rio de Janeiro o processo aberto de impedimento do prefeito Marcelo Crivella demonstram que esse mecanismo tem servido à burguesia para que esta se livre de governos que se tornaram disfuncionais aos seus interesses.
A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise.
Concertação oligárquica
Collor foi deposto com a esquerda fornecendo a mobilização nas ruas e as oligarquias concertando entre si a formação de um novo governo que viabilizasse a estabilização do regime e a vitória eleitoral em 1994. Olhando retrospectivamente, se Collor não tivesse sido derrubado, a coalizão conservadora que o elegeu em 1989 chegaria às eleições presidenciais de 1994 desmoralizada e com enormes dificuldades de apresentar um candidato competitivo contra Lula. Provavelmente, não havia para a esquerda outro caminho em 1992, a não ser a derrubada de Collor, pela pressão da base social e pelas dimensões da crise. Mas, com exceção de Brizola, que relutou em aderir ao impeachment, nenhum setor da esquerda compreendeu as implicações dessa ação. Brizola vinha dos anos 1950 e assistira às tentativas de derrubar Vargas, de impedir a posse de Juscelino, de bloquear a posse de Jango e, finalmente, ao golpe de 1964. Certamente, o sexto sentido estava ativado para a defesa de mandatos populares contra manobras que os interrompessem. Brizola vinha de longe.
Dilma foi derrubada em 2016, apesar de todas as concessões que fez, mas, pela natureza da base social, não podia entregar tudo que a burguesia queria. Com a crise e consequente perda de popularidade, o destino dela estava traçado.
A análise da luta institucional entre as forças populares e a burguesia, de 1988 para cá, mostram que é possível para a esquerda vencer eleições para o Executivo, mas que é virtualmente impossível constituir maiorias parlamentares de esquerda. É difícil até mesmo constituir bases parlamentares ideologicamente sólidas, superiores ao terço necessário à defesa dos mandatos executivos. A “governabilidade” depende da manutenção de sólido apoio popular e de acordos pragmáticos nos Legislativos, estes voláteis em cenários de crise
No Rio de Janeiro a movimentação pelo impeachment do prefeito visa arrumar a casa para a construção de uma candidatura do campo conservador em 2020, livre do ônus de defender o colapso administrativo de Crivella. Esse movimento não deve ter a colaboração da esquerda. Não nos cabe ajudar a resolver as crises políticas da burguesia.
Impeachment de Bolsonaro
Quando escrevo este texto, em 19 de maio, começa a circular pela grande imprensa e pelo Congresso a hipótese de derrubada de Bolsonaro. Algo que semanas antes entrava como mera especulação em conversas reservadas passa a ser tratado à luz do dia. Está medianamente claro que Bolsonaro é inepto para fazer avançar com consistência a agenda ultraliberal da coalizão da Casa Grande que o elegeu. O rápido desgaste do governo, o prolongamento sem fim da crise econômica e as ações grotescas da parte circense do ministério minam o apoio mesmo entre parte das classes médias conservadoras. É notória a movimentação do vice, o general Hamilton Mourão, para se colocar como capaz de retomar a agenda da burguesia sem manobras diversionistas e sem se envolver em polêmicas secundárias.
As extraordinárias manifestações de 15 de maio recolocam a esquerda no cenário político pela primeira vez em anos, com real capacidade de mobilização. As expectativas de fortes demonstrações de força são reais e estão longe das tradicionais avaliações bravateiras tão comuns em parte da esquerda. Esse é um capital político de peso. O sucesso dessas ações enfraquecerá mais ainda Bolsonaro, que por um lado busca também mobilizar os seus contra os inimigos imaginários de sempre.
Tempos acelerados
Os tempos da política estão acelerados. Fazer previsões nos últimos meses virou tarefa de enorme risco, mas confirma-se um cenário de grandes mobilizações contra a reforma da Previdência e os cortes de verba da Educação, bem como a crescente fragilidade de Bolsonaro em mobilizar os seguidores mais fiéis, com dificuldade de levar adiante o programa ultraliberal de Paulo Guedes. Nesse sentido, a burguesia avançará na tentativa de se livrar do capitão. Não será difícil encontrar as razões no laranjal da família, como o avanço das investigações contra Flavio Bolsonaro. Podem chegar até à comprovação de relações com as milícias cariocas, muito além da mera simpatia e das relações pessoais com alguns de seus membros.
Foi a aliança das mais diversas frações da burguesia que elegeu Bolsonaro, um outsider inconfiável, da mesma forma que em 1989 foi essa mesma aliança que elegeu Collor. Em ambos os casos atingido o objetivo de derrotar a esquerda, sobra para a oligarquia administrar a crise política decorrente do recurso a outsiders empoderados.
Nosso adversário não é Bolsonaro, assim como não era Collor, nem é Crivella. Nosso adversário é o projeto oligárquico excludente dirigido pela aliança das burguesias financeira e agrária que hegemonizaram as outras frações da burguesia, para quem esses atores nunca passaram de peões a serem usados e, se necessário, descartados. Não podemos nos contentar com o descarte dos peões.
Novas eleições
O acúmulo de forças que estamos obtendo nas ruas não pode servir de linha auxiliar à resolução da crise política por parte da elite. Sempre que esta falou em pacificação da política foi para reestabelecer um arranjo que reorganizou as forças e impôs a paz dos cemitérios ao andar de baixo.
A vulgarização do impeachment, a naturalização como método de apear governos eleitos será sempre usada impiedosamente contra administrações de esquerda quando as condições lhes permitirem e contra governos da direita quando estes se tornarem disfuncionais. É de luta de classes que se trata.
No cenário nacional o general Mourão se desloca. Na política e no futebol quem se desloca recebe. Nosso papel é o de negar-lhe terreno. No agravamento da crise política devemos contrapor ao impeachment a defesa de novas eleições. Nenhum acordo sem novas eleições. Nenhum voto a favor de impeachment sem novas eleições.
Hoje como ontem o impeachment será queima de arquivo.
*José Luís Fevereiro é economista e membro do Diretório Nacional do PSOL
A disputa em torno das mudanças nas regras das aposentadorias esconde uma dinâmica perversa: a Previdência deixa de ser um direito público, solidário e universal e um mecanismo de distribuição de renda. Em seu lugar, entra o regime de capitalização, uma espécie de poupança individual, sem garantia alguma de que, na velhice, o trabalhador terá o suficiente para sobreviver
Por Rosa Maria Marques
economista, professora titular da PUCSP
Trinta e um anos depois da promulgação da chamada Constituição Cidadã, que balanço podemos fazer dos direitos previdenciários da população brasileira definidos na Carta? Se o movimento democrático que encerrou o período da ditadura militar foi coroado de avanços nesse campo, estendendo benefícios aos trabalhadores rurais, adotando o piso de um salário mínimo e introduzindo cálculo do valor da aposentadoria mais favorável aos segurados, entre outros, os anos que se seguiram foram de constantes ataques à Previdência Social.
Lembremos que, mesmo antes da promulgação do texto constitucional, o então presidente, José Sarney, em mensagem televisiva “alertou” a todos que os novos direitos sociais, neles incluídos os previdenciários, iriam levar a uma situação explosiva das finanças públicas.
Duas décadas de reformas
De lá para cá, ocorreram duas reformas previdenciárias, a de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1999) e a de Lula (2003) e, como uma constante, ao longo dos 31 anos, houve vários ajustes alterando as condições de acesso e valores de benefícios.
A reforma de FHC centrou-se no Regime Geral da Previdência Social (RGPS), introduzindo um redutor do valor do benefício em função da expectativa de sobrevida do segurado no momento da aposentadoria (o chamado fator previdenciário) e a cobrança de uma contribuição sobre os benefícios (uma excrecência em termos previdenciários).
Já Lula dirigiu a reforma para os servidores públicos, implantando um teto para o valor do benefício (no lugar do valor correspondente ao salário da ativa) e introduzindo idade mínima para o requerimento da aposentadoria. Vale lembrar que os aspectos tratados na reforma de Lula foram exatamente aqueles que FHC não conseguir aprovar em 1999. Nessa última fase, contaram com o apoio do Partido dos Trabalhadores.
Esta é a primeira vez que o regime de capitalização é encampado por um presidente da República. A lógica é a mesma que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por vinte anos
Mais recentemente, em dezembro de 2016, Michel Temer encaminhou para avaliação do Congresso Nacional proposta que tentava aproximar o RGPS do regime dos servidores, bem como tratar de maneira igual os trabalhadores rurais e urbanos, os homens e as mulheres. Essa “harmonização” entre os regimes e entre as clientelas e gêneros seria feita basicamente mediante os critérios de idade e de tempo de contribuição, alterando substancialmente o valor do beneficio a ser pago. Dada a reação enfrentada junto à população em geral, aos movimentos sociais e mesmo entre os deputados, a proposta inicial foi modificada pela comissão da Câmara e acabou não sendo apresentada ao plenário.
Eis que, com a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República, novamente a reforma previdenciária está em pauta. A proposta elaborada pelo executivo foi encaminhada para a apreciação no Congresso Nacional em 20/02/2019. Além dos aspectos que são retomados e aprofundados da proposta de Temer, tal como a definição de idade, a elevação do tempo mínimo de contribuição e a redução do valor da aposentadoria, chama atenção a desindexação do piso dos benefícios ao salário mínimo e a introdução de um regime de capitalização.
Qualquer desses aspectos mereceria reflexão sobre quais seriam as consequências para os trabalhadores. Sem menosprezar os demais, vamos aqui tratar de apenas um: o regime de capitalização, dada que a adoção implica não só uma mudança qualitativa nos fundamentos da proteção social do país, como na relação do Estado com os cidadãos e as famílias, pois pensa estruturar a sociedade unicamente a partir do indivíduo.
O que está em jogo na discussão atual
Não é a primeira vez que o regime de capitalização é proposto no Brasil. É, isso sim, a primeira vez que essa proposta é claramente encampada por um presidente da República. Em meados dos anos 1990, entre as mais de vinte propostas em discussão sobre a reformulação da Previdência Social, havia aquelas considerando que a proteção social era responsabilidade individual do cidadão.
Situadas no campo neoliberal, justificavam que, somente adotando um sistema privado e de capitalização, as pessoas teriam estímulo para melhorar o rendimento e, por consequência, aumentarem a capacidade de poupança, criando as bases necessárias para a sustentação financeira do desenvolvimento do país. Para os defensores, o financiamento deveria ser unicamente sustentado pelo trabalhador/indivíduo.
No regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Não há nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade
Dessa forma, seria eliminado – no entender dessa perspectiva – o desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois os encargos sociais seriam ou eliminados no todo ou sensivelmente diminuídos, o que permitira aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, aumentando as exportações. Além disso, como reconheciam que o mercado não é totalmente perfeito, de forma que alguns indivíduos são submetidos a situações de carência, admitiam a ação assistencial do Estado (MARQUES, BATICHI, MENDES, 2003). Como vimos, especialmente no governo Dilma Rousseff, parte dessa concepção acabou, por linhas tortas, sendo implantada: em 2014, 56 setores de atividade estavam desonerados das cotizações calculadas sobre a folha de salários. Nenhum efeito relevante sobre o nível das exportações do país foi observado.
Apesar da similitude, o centro da defesa pública da reforma previdenciária da equipe de Bolsonaro é outro, distanciando-se, em certa medida, daquela dos anos 1990. É o mesmo que levou à implantação do teto do gasto do governo federal por 20 anos: evitar o crescimento desmesurado da despesa, fruto do envelhecimento da população e da existência de supostos privilégios. Esse é o discurso dos que advogam a necessidade premente de realizar uma alteração substantiva na Previdência Social.
Mas estão enganados aqueles que atentam apenas para isso, muito embora seja de suma importância demonstrar que recursos haveria para financiá-la, caso fosse outro o tratamento com relação aos devedores da Previdência, fosse outra a política de renúncia fiscal, entre outros aspectos.
É importante perguntarmos, por exemplo, qual o motivo de, em meio à manutenção do novo regime fiscal, que congelou o gasto por vinte anos, estar-se propondo a introdução de um regime de capitalização para os novos segurados? Afinal, como sabido, isso resultará na diminuição do fluxo de entrada de recursos à atual Previdência Social, seja ela da clientela que for (dos trabalhadores do mercado formal, dos servidores públicos, dos militares, etc).
Vejamos as razões ocultas. Para isso, é importante se diferenciar o regime de capitalização do regime de repartição.
Solidariedade e individualismo
A Previdência Social brasileira é estruturada enquanto um regime de repartição, de maneira que os trabalhadores e servidores que hoje contribuem financiam ou pagam as aposentadorias e pensões atuais. É um regime solidário, construído com base num pacto entre as gerações. A geração que está trabalhando no mercado formal financia os trabalhadores do passado, hoje aposentados. Pode-se dizer, ainda, que há uma solidariedade vertical, pois os trabalhadores com maiores salários contribuem relativamente mais do que os de menor renda. Isso ocorre mesmo considerando-se a existência de uma alíquota máxima sujeita a teto (de R$ 5.839,45 – para janeiro de 2019).
Isso porque, num regime de repartição, as contribuições obrigatórias pagas pelos trabalhadores e pelos empregadores são definidas como coletivas na sua natureza. Isso implica que não há correspondência direta ou imediata entre o esforço contributivo do trabalhador (o que ele paga ao longo da vida ativa) e o que ele irá receber quando, por exemplo, se aposentar. Há, portanto, uma solidariedade também entre membros de uma mesma geração.
A proteção organizada pelo Estado, da qual o RGPS é um exemplo, constitui um sistema de solidariedade coletiva. Para os críticos desse sistema, a não correspondência perfeita entre as contribuições e o benefício é motivo suficiente para demandar a substituição por qualquer outra forma de poupança privada ou de seguro, que obedeçam às leis de mercado (MARQUES, EUZÉBY, 2005).
No regime de capitalização, não há dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado: ele pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório
Esse é um dos principais argumentos utilizados junto a segmentos de renda mais alta da população para justificar a adoção de um regime de capitalização. Para os defensores, é irrelevante o fato de o regime de repartição constituir também um mecanismo de distribuição de renda, mesmo que realizado entre os próprios trabalhadores do mercado formal.
Já no regime de capitalização, as contribuições são depositadas em contas individuais que, ao serem aplicadas junto ao mercado financeiro, devem render juros, ou seja, são capitalizadas. No momento da aposentadoria, o valor acumulado ao longo dos anos é utilizado para prover uma renda mensal ao segurado. Quanto maiores forem as contribuições associadas ao trabalhador (dele e do empregador ou somente dele, tal como no Chile) e quanto mais render as aplicações, maior será o valor disponível para financiar a renda de aposentado. O contrário, também é verdadeiro. Não há, portanto, nesse tipo de regime, nenhum tipo de solidariedade.
Além disso, em regimes de capitalização “puros”, isto é, sem dispositivos que garantam a complementação necessária para que o segurado receba uma renda básica ou mínima, financiada pelo Estado, o segurado pode, ao fim da vida ativa, receber um valor absolutamente irrisório. Isso porque os regimes de capitalização geralmente definem a contribuição, mas não o benefício. Sobre este, reina a incerteza. Tudo irá depender (além do montante contribuído) da rentabilidade das aplicações em um horizonte de longo prazo. Rentabilidade que é fruto de mercado extremamente volátil e especulativo.
A instituição de um regime de capitalização pode ser combinada com a existência de uma aposentadoria de base, financiada mediante contribuições ou impostos, de modo que a renda derivada da capitalização constituiria um acréscimo ao valor de base. Não há indícios de que isso esteja sendo pensado pela equipe econômica do governo Bolsonaro. De qualquer forma, é bom lembrar que, na proposta do Banco Mundial dos anos 1990, a aposentadoria de base, de valores modestos, constituiria o primeiro pilar da proteção social por ele concebida. A renda derivada do regime de capitalização o segundo pilar e a poupança individual o terceiro pilar.
Aumento da pobreza e do desamparo
Hoje, em pleno século XXI, sabemos que um dos resultados das reformas previdenciárias realizadas na América Latina, (Chile, 1981; Peru, 1992; Argentina, 1994 – teve reversão para o público em 2007; Colômbia, 1993; Uruguai, 1996; Bolívia, 1998; México, 1997; El Salvador, 1998; Equador, 2001 e República Dominicana, 2003; Costa Rica, 2003, sistema misto; Nicarágua, 2004, sistema misto) foi o aumento da pobreza e do desamparo de parcela importante dos idosos desses países.
Além de ter sido um desastre em termos sociais, principalmente levando em conta o nível de desigualdade de renda existente nos países da América Latina, é preciso lembrar que há um “custo de transição” de um regime para outro e isso também acontece no caso de ele ser misto. Parece no mínimo contraditório propor mudanças que diminuam o fluxo de ingresso de receitas, mantendo-se o gasto contínuo dos atuais aposentados e segurados, quando o governo abraça ferreamente a continuidade do teto do gasto. Quem irá pagar a conta?
Frente a isso, cabe nos perguntarmos o que, de fato, está por trás da proposta de implantação de um regime de capitalização no Brasil?
Individualismo e meritocracia: o “novo” princípio
Deixemos de lado o largo interesse do setor financeiro, nacional e internacional na introdução de um regime de capitalização no Brasil. Isso é por demais evidente. O que queremos chamar atenção é para o fato de os fundamentos desse regime se coadunarem perfeitamente com os valores defendidos pelos ministros que constituem o grupo ideológico de apoio do governo Bolsonaro, a saber, os ministros da Educação, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e das Relações Exteriores. E, evidentemente, estarem de acordo com o pensamento de Olavo de Carvalho.
A sociedade brasileira é profundamente marcada pelo seu passado escravocrata, pelo patriarcado, pelo conservadorismo e pela naturalização do convívio com elevados níveis de desigualdade em todos os planos: de renda, de patrimônio, de acesso aos bens e serviços públicos, etc.
Ao lado disso, há uma forte aceitação do princípio da meritocracia, isto é, o entendimento de que são o esforço e dedicação de cada um que determinam sua inserção na sociedade, seja no mercado de trabalho, seja no mercado de consumo, e até mesmo na determinação das relações pessoais.
Não foi por acaso que, medidas de “inclusão social”, especialmente desenvolvidas nos governos Lula e Dilma, tais como o Programa Bolsa Família, a política de cotas e de bolsas nas Universidades públicas, mas também a valorização do salário mínimo, receberam rejeição acentuada de setores da chamada classe média da sociedade, mas não ficou a ela restrita.
O regime de capitalização, ao negar qualquer tipo de solidariedade – intergeracional ou entre níveis de renda do trabalho – reforça a ideia de que é o indivíduo o responsável por seu destino. Este – se estudar para se qualificar e trabalhar com afinco – terá formado, ao final da vida ativa, montante suficiente para que tenha uma renda de aposentadoria adequada. Enfim, o mérito associado ao indivíduo é que é entendido como a pedra basilar da construção da sociedade.
Nessa perspectiva, a solidariedade, principalmente quando voltada para os setores de mais baixa renda e poucos inseridos nos mecanismos que possibilitam a adequada integração à sociedade brasileira, é vista como algo que desestimula a busca pela melhora individual, tornando-se, portanto, um peso para a sociedade.
No lugar da solidariedade, um dos princípios do novo governo é enaltecer o individualismo e a meritocracia, reforçando um dos piores aspectos de nossa sociedade. É o vale tudo. É o cada um por si. Lutar contra isso é mais do que uma questão situada no campo previdenciário, é lutar pela construção de uma sociedade mais justa, na qual os desvalidos tenham direitos garantidos.
Tipos de regime previdenciário
Regime de repartição:as contribuições são recolhidas a um fundo único e esse é usado para financiar as aposentadorias e pensões. Por isso, diz-se que tem como característica principal a solidariedade entre as gerações, pois os segurados de hoje financiam os trabalhadores de ontem, que estão aposentados. As previdências públicas são, em geral, organizadas com base no regime de repartição.
Regime de capitalização:as contribuições atinentes a um trabalhador são dirigidas a uma conta individual e os recursos capitalizados ao longo do tempo financiam a aposentadoria futura. É como se fosse uma poupança individual, mas as aplicações não são definidas pelo trabalhador e sim pela administradora que controlar a conta
Referências: MARQUES, Rosa Maria; BATICH, Mariana; MENDES, Áquilas. Previdência Social Brasileira: um balanço da reforma FHC. São Paulo em Perspectiva, vol.17 nº1. São Paulo, Fundação Seade, Jan./Mar. 2003; MARQUES, Rosa Maria, EUZÉBY, Alain. Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão. Nova Economia, vol. 15, nº 3. Belo Horizonte, Setembro./Dezembro 2005.
Bolsonaro não apresentou planos claros de governo e sequer participou de debates. Mas a trajetória e as forças políticas que congrega apontam na direção de uma gestão conservadora nos costumes, ultraliberal na economia e repressiva na política. A oposição tem como tarefa imediata a constituição de uma ampla e representativa frente democrática para se contrapor aos ataques da extrema direita
Uma hora após o anúncio da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, no final de outubro, uma coluna de caminhões do Exército desfilou pelas ruas de Icaraí, bairro nobre de Niterói, no Rio de Janeiro.Foi aplaudida por moradores e transeuntes. Uma imagem simbólica do que pretende ser a novíssima república brasileira.
A vitória do candidato do PSL foi o resultado inesperado de uma ação orquestrada pelo alto comando da burguesia brasileira que, depois do impeachment de Dilma Rousseff, aprofundou o golpe com a decretação da inelegibilidade de Lula, a prisão e a proibição de participar da campanha. A manobra que buscava simultaneamente inviabilizar a candidatura petista e eleger um candidato confiável ao mercado e às grandes corporações – Alckmin, Meireles ou Amoedo – deu com os burros n’água.
No contexto de uma grave crise econômica política e cultural, a centro-direita derreteu e os extremos cresceram. Bolsonaro e Haddad passaram ao segundo turno, obrigando as classes dominantes a se unificarem em torno da candidatura outsider do ex-capitão do Exército.Até aí, parecia uma reprise do enfrentamento entre Lula e Collor três décadas atrás. As semelhanças não foram adiante.
Ao contrário do simples arrivismo do caçador de marajás alagoano, Bolsonaro representa uma proposta distinta de ordenamento político, social, cultural e econômico do país. Um projeto de características fascistas, que pretende enterrar a Nova República e abrir um novo ciclo na política brasileira, hegemonizado pela extrema direita. Para quem está na outra margem do rio, entender como chegamos a isso e quais são as principais características dessa nova quimera direitista é simplesmente essencial.
A marcha rumo a Brasília
Para entender o fenômeno Bolsonaro é preciso considerar a grave crise econômica e social do país. É algo indispensável, mas insuficiente. No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar.O ambiente propício para soluções autoritárias foi depois cuidadosamente cevado pela campanha midiática da Operação Lava-Jato. O noticiário asfixiante, que tinha como primeiro alvo o PT, acabou por produzir a demonização de toda a atividade política, vista como inapelavelmente corrupta. Daí para o retorno dos salvadores da pátria foi apenas um passo.
No bojo das manifestações de 2013, por meio de um operativo ainda pouco conhecido, organizações de ultradireita, até então desconhecidas do grande público, como o MBL e outras, assumiram a hegemonia dos protestos que começaram a veicular palavras de ordem, nas quais o fim da corrupção era articulado com pedidos de uma intervenção militar
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura e lhe permitiu uma máxima exposição, na privilegiada condição de vítima, nos principais noticiários de rádio e TV, mas, sem dúvida, o que surpreendeu o mundo foi a vitória de um candidato abertamente misógino, racista, homofóbico, defensor da ditadura militar e da tortura num país que fora governado durante 13 anos seguidos pelo PT.
Bolsonaro foi o postulante da antipolítica, aquele que era contra tudo que aí está. Essa pregação calou fundo numa população acossada pelo desemprego, pelos altos índices de criminalidade, pela piora das condições de vida e descrente dos partidos políticos tradicionais.Foi também o candidato que conseguiu tocar um imaginário conservador, construindo a imagem de defensor de um mundo ameaçado por negros sedentos de vingança, feministas histéricas, LGBTs descontrolados e indígenas gulosos por terra. E aí não pregou no vazio, mas no terreno semeado há anos pelas declarações da bancada ruralista, contra os movimentos dos trabalhadores rurais, dos povos indígenas e quilombolas, pelos noticiários da TV, sempre a associar a criminalidade crescente ao respeito aos Direitos Humanos, e pela pregação insistente das igrejas neopentencostais, para quem os direitos das populações LGBTs são simples artimanhas do demônio. Se não compreendermos esses elementos, não poderemos entender porque a onda de fake news teve tanta audiência. O ex-capitão lavrou no campo arado por uma crescente onda reacionária.
Bolsonaro construiu sua persona política a partir desses elementos e o fez com maestria. Ajudado pela equivocada campanha petista, conseguiu fazer o governo Temer passar ileso e transformou o PT no único responsável pelas mazelas sofridas pelo povo. Uma vez consolidado nessa posição transformou o antipetismo em anticomunismo: os inimigos passaram a ser não somente os “petralhas” mas todos os “vermelhos”. Os movimentos sociais foram transformados em terroristas. Cuba e Venezuela passaram a ser identificados como o inferno na Terra.
Os itens mais escatológicos dessa agenda, como a defesa da tortura e da ditadura militar, foram absorvidos como uma espécie de mal menor, um preço a ser pago em troca da ordem e da segurança, deixando a nu as terríveis consequências de sermos o único país da América do Sul que não ajustou contas publicamente com seus ditadores e torturadores. Sem nunca ter tido as entranhas aqui devassadas, as Forças Armadas conservaram um prestígio que as autorizaram a se apresentar como protagonistas no cenário político nacional.
A cereja do coquetel ideológico foi a invocação a Deus, presente no slogan “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O tripé afirmativo da campanha de Bolsonaro foi Deus, Pátria e Família, não por acaso o lema dos integralistas brasileiros da década de 1930.
De maneira geral, apareceram tipos distintos de votantes, em outubro. Os privilegiados, na maioria, votaram em Bolsonaro, como a única alternativa viável para o segundo turno. Um grupo menor de empresários com claras conotações fascistas, votou com ele desde o início. O ódio ao PT foi o leitmotiv da maioria dos seus eleitores. Tivemos também os fiéis das igrejas da teologia da prosperidade, sempre obedientes à indicação do pastor e também grupos de juventude da classe média, que compuseram bandas de inspiração nitidamente fascista voltados para a propaganda agressiva e a intimidação.
O problema para o Brasil é que o projeto bolsonariano é bem mais complexo do que uma simples negação de tudo o que está aí.
O Estado Novo de Bolsonaro
Numa entrevista publicada pela revista argentina Ambito Financiero, um militar brasileiro de alta patente, não identificado, revelou que o projeto Bolsonaro teve início em 2012 com a aproximação de um grupo de generais com o então, capitão, tido até ali como insubordinado e refratário à hierarquia castrense. Segundo a entrevista, o novo projeto de poder está formulado em termos de uma democracia controlada, com protagonismo de patentes militares, tendo como elementos constitutivos a erradicação da esquerda, e o fim dos movimentos sociais.
De uma forma regressiva em relação à pauta nacionalista do governo militar de Ernesto Geisel (1974-79), os atuais generais de Bolsonaro defendem o alinhamento automático às posições do imperialismo norte-americano no cenário internacional, ao mesmo tempo em que postulam uma política econômica ultraprivatista, com a liquidação do restante das estatais brasileiras. No campo da política interna já tivemos a declaração do vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, partidário de uma nova Constituição escrita por ilustrados escolhidos a dedo pelo regime.
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura
São apenas sinais, mas indicam que Bolsonaro pretende caminhar em direção a uma nova institucionalidade, baseada na restrição das liberdades políticas e individuais, na supressão de toda oposição, particularmente a de esquerda, na submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo, na implantação de um sistema educacional lastreado em valores extremamente retrógrados, na negação dos direitos civis aos grupos historicamente discriminados e no aumento da violência contra à população pobre. Com tudo isso almeja e trabalha para criar um regime que tenha ampla base popular, no qual ele desponte se não como o Führer, pelo menos como o Mito.
A indicação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça sinaliza que a perseguição e o encarceramento de lideranças populares, sob as mais variadas justificativas, devem continuar. No terreno da política externa, seus acenos ao Estado de Israel fazem pouco caso das relações econômicas do Brasil com os países árabes. O episódio dos Mais Médicos deixou claro que pretende levar adiante seus desvarios ideológicos sem levar em consideração o sofrimento da população. É também digno de menção o apoio a proposta do novo governador do Rio de Janeiro de assassinar supostos criminosos por atiradores de elite ou por meio de drones.
Em suma, tudo parece indicar que o projeto de Bolsonaro visa instituir a médio prazo um Estado fascista – um novo Estado Novo – para o qual já existe o líder, o inimigo a ser extirpado, um ideário reacionário, e a definição da violência como a terapêutica fundamental no desvio de condutas sociais. Embora existam dúvidas se o PSL tem condições para se tornar um partido de corte fascista, Bolsonaro conta inicialmente para o apoio de rua com as bases coxinhas e as bandas facistoides. Como plano geral, há o suculento cardápio econômico oferecido aos donos do dinheiro, por meio de uma ampla política de privatizações. Todos se dão por satisfeitos com as juras de amor à Constituição feita pelo novo mandatário, muito embora não ignorem que Hitler também jurou a constituição de Weimar.
Tensões e resistências
O terreno nevrálgico da disputa nos novos tempos será a economia. Para navegar em céu de brigadeiro, Bolsonaro vai precisar de resultados rápidos, sobretudo, na redução do desemprego, principalmente, agora, em que uma pauta tão impopular como a reforma da Previdência será deixada no seu colo.
Enquanto o tão sonhado crescimento não vier, o novo presidente será obrigado a entregar “troféus” políticos – como as prisões de lideranças populares, de preferência acusados de crimes comuns que facilitam a desmoralização – e a manter um constante tom de confronto, guerra e prontidão.
Por isso são plenamente possíveis uma escalada retórica contra a Venezuela e Cuba, ataques furibundos contra “privilégios” do funcionalismo público e tentativas de direcionar a pauta política para temas como a Escola Sem Partido, a liberação do uso de armas ou até mesmo drásticos cortes nas políticas de incentivos às atividades culturais.
A esquerda e o movimento popular terão múltiplas tarefas e inúmeros desafios. Em primeiro lugar, a construção de uma frente democrática que deve ser ampla na inclusão de partidos, centrais sindicais, movimentos sociais e ao mesmo tempo possuir a capilaridade necessária para se contrapor a tempo e a hora aos ataques descentralizados e disseminados desfechados por grupos fascistas contra professores e intelectuais progressistas, ativistas de base, lideranças populares ou simples cidadãos transformados em alvo por serem negros, mulheres ou LGBTs.
As eleições de 2018 foram influenciadas por condições inéditas – como o tempo exíguo de campanha, o papel das redes sociais, a explosão das fake news e até mesmo a facada desferida contra Bolsonaro, que congelou ataques contra a candidatura
É preciso não se esquecer de que o medo é um dos alimentos do fascismo. A defesa das lideranças sociais é ação essencial e urgente. Será vital haver discernimento político para ultrapassar cortinas de fumaça e possibilitar concentração nas batalhas em que seja possível a obtenção de vitórias que retardem ou bloqueiem o projeto fascista. Se os fascistas lograrem vitórias iniciais os dias seguintes serão mais difíceis.
Além da revista impressa, que será entregue gratuitamente nas eventos realizados pelaFundação Lauro Campos. As matérias dessa edição também estarão disponíveis no neste site, assim como a versão digital e completa da revista para download. Boa Leitura!
Confira a 23ª edição da revista Socialismo e Liberdade:
“Só teremos avanços se enfrentarmos os privilégios”, Guilherme Boulos
Entrevista concedida à Francisvaldo Mendes e Gilberto Maringoni
Guilherme Boulos é um dos mais importantes dirigentes sociais brasileiros. Ao longo de duas décadas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), no qual milita, se firmou como resposta representativa à crônica carência de pelo menos 6,2 milhões de moradias para famílias pobres em nosso país. Nessa condição, Boulos foi escolhido pré-candidato a presidente da República pelo PSOL, em inédita aliança com movimentos sociais. Em uma tarde quente e abafada, Guilherme Boulos concedeu, no centro de São Paulo, a entrevista que se segue.
Por que motivo as pessoas devem votar em você?
Porque temos um projeto popular para tirar o país deste atoleiro e sabemos que ele só é possível com uma nova forma de fazer política. Com as maiorias sociais. Este é o sentido da nossa pré-candidatura. O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade e o tema da democracia. O Brasil permanece sendo um dos países mais desiguais do mundo. Para se ter avanços nos direitos sociais, hoje, é preciso enfrentar privilégios. É preciso questionar um sistema tributário injusto, em que os ricos praticamente não pagam impostos, pagam proporcionalmente muito menos do que os pobres e do que a própria classe média. Quem tem um carro velho paga o IPVA no começo do ano e quem tem um jatinho ou uma lancha não paga nada. Um trabalhador paga 7,5%, 15%, até 27,5% de imposto de renda, enquanto o Joesley Batista, de R$ 100 milhões que ganhou no ano passado, pagou R$ 300 mil, pois não há tributação de lucros e dividendos no Brasil. Não vai haver emprego, não vai haver saúde, não vai haver educação se não houver políticas públicas de investimento, se o Estado não recuperar a sua capacidade de investir. E o Estado só pode recuperar sua capacidade taxando quem tem muito. Em relação ao tema democrático, nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular. Democracia não pode ser só apertar um botão a cada quatro anos e não decidir mais nada. Democracia deve significar ter o povo no tabuleiro para fazer política de outro jeito. As pessoas poderem decidir sobre os assuntos fundamentais por meio de plebiscitos, de referendos.
“O Brasil vive uma crise profunda e é preciso construir saídas políticas e democráticas. É necessário colocar o dedo na ferida
de algumas questões fundamentais: o tema da desigualdade e o tema da democracia”
Você é um dirigente social de larga projeção e sai dessa condição para ser uma liderança política, com os riscos que tal condição acarreta. Como isso se deu?
Eu não faço voo solo. Uma decisão como essa foi tomada junto com meus companheiros e companheiras do MTST, avaliando passo a passo o que isso significaria para o movimento e o que isso significa para o projeto de mudança em que nós acreditamos. O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla. Isso não aconteceu agora. Foi há alguns anos, quando a gente resolveu impulsionar a Frente Povo Sem Medo e se colocar na linha de frente contra o golpe, contra as reformas do Temer e em defesa dos direitos. Havia riscos. Se o movimento pensasse apenas na sua pauta corporativa, poderia ficar quietinho, conseguir umas migalhas de moradia aqui e acolá, e não entrar na batalha maior. Isso seria um erro, pois quando você se rende, fica refém do favor dos outros. Nosso movimento nunca precisou de favor, sempre lutou para ter conquistas. Em segundo lugar, não queremos olhar para trás daqui a vinte anos e ver apenas alguns conjuntos habitacionais. Achamos que a potência que o nosso movimento representa deve levar a um projeto de mudança. Depois da Frente Povo Sem Medo, nós ainda impulsionamos a plataforma Vamos, em que não era mais apenas unidade nas lutas e nas mobilizações, mas era debater um projeto de país de forma ousada, nas praças. Foram mais de 50 debates em todas as regiões do Brasil, com mais de 150 mil pessoas participando pela plataforma virtual. Estreitamos uma aliança e uma relação com o PSOL e com uma série de movimentos sociais de outros setores da sociedade, e foi daí que surgiu a proposta de uma pré-candidatura à presidência da República. O projeto que nós estamos construindo não termina em outubro deste ano.
Periferia, militância e psicanálise
Quem é
Guilherme Boulos, 35 anos, formado em Filosofia na USP, com extensão de Psicanálise na PUC e mestrado em Psiquiatria na USP.
História
“Eu comecei a militar aos 15 anos, no movimento estudantil secundarista. Muito moleque ainda fui aprendendo a me indignar. Tive uma militância partidária, na União da Juventude Comunista (UJC), e no movimento estudantil, que é aquela miríade de partidos e correntes. Uma coisa começou a me incomodar profundamente. Era ver um monte de gente falando em nome do povo, apresentando os melhores programas para o povo, apresentando as soluções para a vida do povo, mas nenhum ali se dispunha a ouvir o povo. Nenhum ali se dispunha a estar junto com o povo e a lutar junto com as pessoas. Isso fez com que eu buscasse outros caminhos. Entrei para o MTST em 2001, com 18 anos e fui morar em uma ocupação no ano seguinte. Construí a minha vida no movimento, onde me casei, tive minhas filhas e construí minhas amizades”.
Onde vive
“Moro na periferia de São Paulo. Vejo gente, especialmente nas redes sociais, questionando minha atuação no movimento sem-teto por não ter origem ali. Acho que o problema não é ter pessoas que encampem as causas populares e dediquem suas vidas a elas. O grande problema da esquerda é ter um monte de gente que não se dispõe a ir para a periferia fazer trabalho de base”.
Além da militância, o que faz
Quando eu me interessei pela psicanálise, já estava na militância. Dou aula em um curso de especialização de psicanálise e liderança, para gestores da área de saúde. Neste ano não vai ter como…
E por que o PSOL?
Nessa caminhada, fomos construindo a aproximação com o PSOL por uma série de razões. Primeiro, por uma identidade de posição na conjuntura. O partido, assim como o MTST, se colocou contra o golpe e, ao mesmo tempo, não deixou de criticar as posições que o governo Dilma tomou, em especial botando Joaquim Levy no Ministério da Fazenda e fazendo o ajuste fiscal. Depois, estivemos juntos na oposição decidida, de rua, de resistência ao governo Temer e às suas reformas. Novamente, as posições se aproximaram na defesa do direito de Lula ser candidato, sem que isso signifique adesão ao seu programa. Há, sobretudo, uma compreensão comum, que se expressou na plataforma Vamos, de ser preciso pensar um novo projeto de esquerda para o país. Um projeto que, ao mesmo tempo, seja capaz de reconhecer avanços que ocorreram nas experiências de 13 anos do governo do PT, mas que também seja igualmente capaz de apontar seus limites e fazer a crítica. Hoje não há mais espaço para um país de um ganha-ganha. Não há mais bases reais para a estratégia de conciliação. Não tem mais como fazer mais política social só com manejo orçamentário, sem enfrentar privilégio.
“Nós vivemos em um momento de muita desilusão, de muita desesperança no país. As pessoas não acreditam mais em saídas políticas. E, convenhamos, elas têm razão para estarem descrentes, pois esse sistema político não representa as maiorias. O Estado está sequestrado pelas grandes corporações, pelos bancos, pelos interesses econômicos e está fechado para a participação popular“
Como você vê o papel do Lula na conjuntura?
Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula. Aliás, diferenças que tive a oportunidade de colocar para ele em diferentes ocasiões. Não dá para aceitar que, depois de um golpe, o PT não aprenda as lições desse processo e vá fazer aliança com Renan Calheiros em Alagoas, com Eunício Oliveira no Ceará, e queira recompor um modelo de governabilidade que faliu. As críticas aos limites que tenham as experiências de 13 anos de governos do PT nós do MTST sempre fizemos. Mas, da mesma forma que é um equívoco profundo dizer que “quem critica faz o jogo da direita”, é um equívoco profundo também só ver diferença e ter a incapacidade de enxergar pontos de acordo no enfrentamento ao golpe e na defesa democrática.
Foto: Mídia Ninja
Sua relação com o Lula é mais atritada ou mais de entendimento?
Acho que de tudo que nos diferencia da direita, a generosidade e a solidariedade são as principais. Temos de saber separar diferença política e crítica de uma linha de ataque e destruição do outro. Eu tenho uma relação de respeito e admiração pelo Lula, sem que isso tenha me impedido jamais de fazer as críticas políticas a ele e demarcar as diferenças. O Lula está sofrendo um massacre, uma perseguição judicial. Eu não vou deixar em nenhum momento, mesmo com as diferenças políticas, de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida.
Uma das críticas que se faz à Dilma é que ela foi presidenta da República sem nunca ter tido um mandato eletivo. Você tem uma tremenda experiência social, mas também não passou por essa experiência. Como vê um futuro governo do PSOL?
Primeiro, se experiência na vida política partidária fosse atestado de bom governo, o Temer seria o melhor presidente da história do Brasil. Há 50 anos ele está no jogo político partidário e é um desastre nacional. Acho que, para fazer um governo como nós queremos, de transformação profunda da sociedade, ter uma experiência de 15 anos em ocupações de terra, convivendo, lutando e ouvindo as pessoas, não é menos importante do que ter uma experiência na política partidária. O campo democrático nunca teve maioria parlamentar no nosso país. As oligarquias e os interesses econômicos, com as suas bancadas, sempre controlaram o Congresso. Se a gente parte da equação de que o único jeito de sustentar um governo é se basear no Legislativo, neste modelo de governabilidade, então vamos rebaixar o programa. Eu não parto desse pressuposto. Acho que existem experiências históricas, aqui e lá fora, que nos mostram ser possível governar apoiado nas maiorias sociais.
“O contexto do golpe criou no país uma situação em que não é mais possível para um movimento social ficar só no seu quadrado. Se o MTST ficasse falando só de moradia, além de não conseguir moradia, ia ser atropelado pela luta política que se estabeleceu no país. E o movimento ousou e se desafiou a entrar em uma disputa mais ampla“
A Erundina fez isso em São Paulo.
A Erundina fez isso. Tinha minoria na Câmara e mobilizava as pessoas. As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar. Isso não significa negar o papel do Parlamento. É preciso haver diálogo com o Parlamento. O que não pode haver é a manutenção de um esquema de governabilidade baseado na chantagem, no balcão de negócios, na compra de voto por cargo do governo. Nós precisamos pensar uma forma de fazer política que não seja a mesma coisa que politicagem. Para isso, é preciso trazer o povo para o processo de decisão, criando um amplo movimento nacional para plebiscitos e referendos em relação aos temas fundamentais.
Caso ganhe as eleições, quais serão as suas primeiras iniciativas?
A primeira é propor um plebiscito que vise revogar as medidas mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95, que cortou por 20 anos o investimento público no Brasil, e a entrega do pré-sal, dentre outras. Não é possível um governo popular que tenha congelamento de investimentos sociais por 20 anos. Isso destrói a capacidade de investimento do Estado brasileiro. Porque não é possível ter um governo para as maiorias com uma legislação trabalhista em que o povo vá trabalhar por hora em trabalho intermitente, em que se destruam todos os direitos e garantias. Além disso, há duas medidas que considero especialmente importantes. Uma é propor uma reforma tributária que permita o financiamento público de um programa amplo de investimentos no Brasil. Uma reforma tributária progressiva. E este recurso de arrecadação deve ser utilizado para um amplo programa de investimentos públicos, que vai recuperar emprego, vai recuperar renda e vai permitir financiar políticas públicas de saúde, de educação, de moradia para o povo brasileiro.
Há algum setor do empresariado com o qual seja possível estabelecer alianças?
Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, distributivo, de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país.
Entrevista concedida a Francisvaldo Mendes, presidente da FLC, e Gilberto Maringoni, editor-chefe da revista Socialismo e Liberdade
Como você vai lidar com a mídia?
A primeira coisa é cumprir a Constituição. A Carta de 1988 proíbe monopólio, proíbe que políticos tenham concessões e proíbe propriedade cruzada. A Globo faz as três coisas ao mesmo tempo. E várias concessões da Globo pelos estados estão controladas por políticos. Emissora é concessão pública e assim tem de ser tratada. Nós temos que fazer uma democratização dos meios de comunicação no país para termos uma diversidade de vozes falando para o povo brasileiro. Não se trata de censurar ninguém. Além disso, é preciso ter, como a própria Constituição prevê, uma cota para empresas de comunicação públicas e comunitárias. Em relação às verbas publicitárias, elas têm que seguir esse mesmo critério democrático. Hoje é um escândalo. As verbas publicitárias reforçam uma estrutura antidemocrática. O Estado é um poderoso anunciante e tem usado esse anúncio para enriquecer e fortalecer ainda mais as grandes emissoras de plantão.
Como você analisa os episódios de junho de 2013?
Junho de 2013 foi uma panela de pressão que explodiu. Não à toa, ela se deu em torno de um tema eminentemente urbano: a crise de mobilidade. A crise urbana antecedeu, no Brasil, a crise econômica. Qual foi o modelo adotado pelo governo do PT em relação às cidades? Muito crédito, tanto crédito imobiliário individual como crédito para as grandes empresas da construção, e financiamento de grandes obras através do PAC e para o Minha Casa, Minha Vida. Foi o período em que houve mais investimento de recursos, seja pelo crédito, seja pelo investimento público direto, em políticas urbanas. No entanto, isso se deu sem nenhuma regulação pública. Você empodera grandes construtoras com crédito. Elas saem comprando terreno. O estoque de crédito imobiliário no Brasil em 2005 era de R$ 4,8 bilhões. Em 2014 era de R$ 102 bilhões! Ou seja, mais de 2.000% de acréscimo em uma década. O problema não é ter crédito, muito menos ter investimento público. O problema é que, quando não há regulação, não se utilizaram os instrumentos previstos no próprio Estatuto das Cidades. Cria-se um surto de especulação imobiliária.
Financeiriza-se o mercado imobiliário.
Exato. A terra virou ativo financeiro. E aí, o que acontece na vida das pessoas? Elas foram jogadas para mais longe. O metrô chegou à periferia por conta do investimento. Excelente! Mas a periferia fugiu do metrô. Porque o cara que pagava aluguel de R$ 500 onde tinha o metrô viu que o contrato aumentou para R$ 1 mil e ele teve que ir morar em um bairro mais distante. Isso significa piorar as condições de moradia. Mais do que isso, significa você ter menos acesso a serviço público. O cara que morava na zona leste de São Paulo, em Itaquera, ele foi para Guaianazes ou Ferraz de Vasconcelos, depois do boom imobiliário. Enfim, ele foi jogado de uma maneira em que os serviços públicos que existiam em Itaquera, já muito precários, são piores ainda mais longe. Se, em Itaquera, ele demorava uma hora para chegar ao serviço, agora ele demora duas. Isso o próprio PT reconheceu nas campanhas municipais quando fez o debate: “Melhoramos da porta para dentro e precisamos melhorar da porta para fora”. Mas não ocorreu isso e as cidades viraram verdadeiros barris de pólvora. Houve uma onda de ocupações entre 2013 e 2015 nas grandes cidades. Havia um clima de insatisfação, que fez com que a pauta da mobilidade tivesse um apelo grande. Mas os motivos das mobilizações não se limitaram a isso, houve a repressão. É claro que, enquanto os atos eram apenas do MPL, não eram tão grandes. Depois, a pauta foi capturada.
“Gostem ou não do Lula, é inegável que ele é a maior liderança social do país. Eu tenho diferenças políticas com o Lula, mas não vou deixar em nenhum momento de me solidarizar a ele. Assim como não me furtei a assumir o desafio de estar à frente de uma Aliança que apresenta um projeto novo para a esquerda brasileira. É preciso ter maturidade e separar as coisas. Mover-se por ressentimento nunca ajuda na política ou na vida”
Houve uma disputa na condução daquele processo?
Não dá para se examinar junho de 2013 apenas por uma das duas lentes. Não dá pra se ver como uma conspiração golpista que articulou as pessoas para irem às ruas com o apoio dos Estados Unidos, nem ver junho de 2013 como a porta da Revolução Socialista. Minha opinião não é nem uma e nem outra. A grande questão é que o pós-junho gera duas pernas. O estouro da panela de pressão encerrou o momento do consenso e recolocou as ruas como atores políticos. Pode ter havido elementos de manipulação nas redes, como os Estados Unidos fizeram em outras partes do mundo? É evidente que pode, quando setores da direita viram que poderiam capturar aquela mobilização legítima para outras finalidades. É verdade que o caldo, em seguida, foi apropriado para a direita sair do armário e começar a defender tortura e intervenção militar. Isso deságua nas manifestações golpistas de verde e amarelo, em 2015. É igualmente verdade que esse mesmo caldo de junho, por outras vertentes, gerou as ocupações de escola dos secundaristas, gerou um crescimento de movimentos como o MTST, gerou coisas dinâmicas também no movimento social. Não é possível fazer uma leitura unilateral do que foram as mobilizações de junho de 2013.
Lançamento da candidatura na Conferência Cidadã, início de março de 2018, em São Paulo
É possível dizer que o pacto resultante da Constituição de 1988 acabou?
Acabar não acabou. Ele está ainda aí se arrastando, mas eu o vejo em uma crise profunda. É importante ressaltar que quem rompeu o pacto foi o andar de cima. Foi o discurso cínico de que a Constituição não cabe no orçamento. A Constituição é o emblema, é o símbolo do pacto que se estabeleceu na construção da Nova República. Ela foi sendo desfigurada na dimensão que tinha de Estado social – a Emenda Constitucional 95 é um golpe derradeiro nisso, assim como a reforma da previdência, que não conseguiram aprovar. O fim da CLT não remete nem ao pacto de 1988, mas ao pacto de 1943. O golpe fez, em dois anos, o Brasil andar cem anos para trás. O sentimento de crise de representação, de antipolítica, é muito forte, e acho que há uma crise de hegemonia que se expressa, inclusive, na briga entre os poderes da República. Temos um Poder Executivo sem legitimidade e um Legislativo desmoralizado. O Judiciário se aproveitou e falou: “Opa, é a minha vez”. E este foi tomando protagonismo através da Operação Lava Jato – um protagonismo político, ocupando um vácuo de poder pelo enfraquecimento dos outros dois poderes. Depois, você tem uma reação que começa a se formar. Todos eles estavam juntos no momento do golpe e a coalizão do golpe num segundo momento. Há uma reação representada, nesse momento, pelo Temer. Aqui nós estamos falando de “poder”, evidentemente, de uma maneira genérica, porque há divisões dentro dos poderes, também. Dentro do Poder Judiciário, essas divisões são manchetes todos os dias nos jornais. O sistema político perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade. Todo sistema político tem que, de algum modo, criar coesão e criar condição de ter maiorias sociais. Mesmo a ditadura militar, ilegítima politicamente, teve maiorias sociais. Ela começa a ficar mal das pernas quando perde a capacidade básica de aglutinar. Isso leva à transição. O sistema político da Nova República perdeu a capacidade básica de coesionar a sociedade brasileira. Qual é a alternativa para essa crise em que o Brasil está? Eu não vejo, no sistema político da nova República, capacidade para se reinventar dentro dos mesmos marcos.
“As pessoas mobilizadas têm condições de pressionar o Congresso a fazer aquilo que ele não faria de bom grado. Nós temos várias experiências na América Latina que mostram que, com organização da sociedade desde baixo, nós somos capazes de promover mudanças muito mais profundas do que seria apenas com o debate parlamentar”
Você acha que, nesse momento, o Exército pode assumir algum protagonismo?
São cada vez mais preocupantes as movimentações de setores do Exército, ainda que não da corporação como um todo. Uma coisa é meia-dúzia de loucos ou um general de pijama do Clube Militar falar nos jornais ou vir com uma faixa na Avenida Paulista, ou no Leblon, ou onde quer que seja, para falar de intervenção militar. Outra coisa é general quatro estrelas do alto comando flertar com isso. A intervenção no Rio de Janeiro é algo preocupante nesse sentido, por duas razões. Primeiro, porque ela mexe com a ideia, no imaginário na sociedade, de que militar resolve. Não digo que o interesse do comando do Exército seja hoje fazer uma intervenção militar e que o general Villas Bôas queira isso. Aliás, o general Villas Bôas, mesmo com declarações preocupantes que deu no último período, é uma das vozes mais lúcidas do alto comando. O entorno ali é mais complicado. O segundo motivo são declarações, que estão sendo cada vez mais naturalizadas, de que o Rio de Janeiro é um laboratório para o país. Se isso for levado a cabo, e começarmos a ter intervenção do Exército na Segurança Pública em vários estados brasileiros, onde isso vai parar? Isso afeta o movimento social, afeta a juventude pobre e negra das periferias e favelas. Os alvos são os mesmos de sempre. Soltar pitbull é fácil. Difícil é prender depois.
Foto: Mídia Ninja
O que significa ter Sonia Guajajara como vice?
É um compromisso de que nosso projeto de esquerda precisa se deparar com uma dívida histórica do Estado brasileiro para com o seu povo. É uma dívida na qual, muitas vezes, a esquerda teve dificuldades de se colocar. Ter a Sonia não apenas como vice, no sentido tradicional, mas como parceira na chapa expressa este compromisso com a questão indígena. A luta indígena é a luta de resistência mais antiga da história do Brasil. É a luta contra um genocídio, é a luta pela terra. E mais do que isso, queremos afirmar nosso compromisso com amplos setores que historicamente sofrem opressões no Brasil. É entender que ainda há no Brasil uma herança da escravidão, e que a luta contra o racismo, a luta dos negros e negras, é uma luta libertadora e tem a ver com a forma como o capitalismo se estruturou por aqui. Não é algo secundário. Hoje implica enfrentar sem rodeios o genocídio da juventude pobre e negra nas periferias, propondo um outro modelo de segurança pública, que passe pela desmilitarização da polícia. É preciso incluir também a luta feminista. Ela se expressa em agendas muito definidas, como por exemplo, o direito das mulheres de decidirem sobre o seu corpo e tratar o tema do aborto como um tema de saúde pública. E são lutas contra a desigualdade. Os negros, no Brasil, recebem metade do salário dos brancos. As mulheres ainda ganham consideravelmente menos do que os homens pela mesma função. A questão LGBT, por sua vez, tem muito a ver com os níveis de intolerância a que se chegou na sociedade. Não é admissível que o Estado ou a religião defina a forma como as pessoas vão se amar. A criminalização da homofobia e a defesa do casamento civil igualitário são pautas candentes para a esquerda. É errado ver isso como pautas identitárias simplesmente. Tocam em questões estruturais e estão diretamente relacionadas à luta por liberdades e contra a desigualdade no Brasil.
“Eu não consigo vislumbrar hoje um setor da classe dominante no país que se comprometa com um projeto profundamente democrático, profundamente distributivo de combate à desigualdade e que também crie condições para um novo modelo de desenvolvimento no país”
Esse avanço da direita acontece também em quase toda a América Latina. Como vê isso?
É evidente que há um crescimento de governos de direita na América Latina e no mundo. Há uma ofensiva conservadora. Não podemos separar isso do processo da crise econômica e das reações de cada sociedade a essa crise. A crise, por sua própria configuração, reduz as margens de conciliação, o cobertor fica mais curto e as saídas se tornam polarizadas. As alternativas de centro se enfraquecem. Estamos vendo isso no Brasil. Todo mundo quer construir um centro, reorganizar um centro. O centro implodiu. E assim foi e tem sido em parte importante do mundo. Você tem tido polarizações, o que é próprio de momentos de crise, entre alternativas de direita que surfam no discurso de xenofobia – “os inimigos dos nossos empregos são os imigrantes”. Principalmente na Europa e nos Estados Unidos, esse discurso é fortíssimo, muitas vezes com ingredientes de intolerância e com uma pauta econômica neoliberal.
“Vamos propor um plebiscito que vise revogar as medidas
mais desastrosas tomadas pelo governo Temer. E aqui
destacamos: reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95
e a entrega do pré-sal, dentre outras”
E como examina a esquerda no plano internacional?
Esse processo de polarização faz o Donald Trump ganhar nos Estados Unidos, mas gera também o fenômeno Bernie Sanders. Ele possibilita o governo de Mariano Rajoy, na Espanha, mas faz surgir o Podemos. A França foi um caso à parte, porque ali se reconstruiu alguma coisa parecida com um centro, a partir da polarização entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. A mesma dinâmica que elege o Sebastian Piñera no Chile faz com que a Frente Ampla, organizada por estudantes que ocupavam escolas e universidades, tenha 20% nas eleições presidenciais. Digamos que surge uma nova direita – com velhos métodos e a velha política econômica -, mas com um discurso diferente. Mas também nesse mesmo período há novas experiências de esquerda. Este processo está relacionado à crise de representação das democracias liberais, de baixa intensidade e à falta de horizontes produzida pela crise econômica. As pessoas estão sem perspectiva de futuro. Isso se expressa também nos altos níveis de abstenção eleitoral. Trump e Bolsonaro são personalizações da repulsa à política. Não me parece ser uma particularidade atual. A ascensão do fascismo pós-crise de 1929 se deu em clima análogo de desilusão com a política. É óbvio que precisamos combater a ascensão da direita. Mas temos de compreender também o desafio que isso coloca para o campo da esquerda. Se não dialogarmos com a insatisfação diante da política, ela vai ser canalizada toda pela direita.
Entrevista publicada originalmente na edição nº21 da Revista Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos
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Baixe e leia a revista na íntegra[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”Artigos publicados no site” border_width=”2″][vc_masonry_grid post_type=”post” max_items=”10″ item=”none” grid_id=”vc_gid:1532658891899-2cca68fb-d515-7″ taxonomies=”142″][/vc_column][/vc_row]
Marielle Franco chegou ao mundo com marcas da opressão e da violência. Era uma mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, em uma sociedade radicalmente desigual, construída sobre a escravidão do povo negro, estruturada em uma cultura machista, patriarcal e com um ódio de classe latente.
Marielle compartilha uma história de brutalidade e repressão com milhares de outras mulheres. Marielle representa também minhas demandas de negra, periférica e socialista. Para alguém assim, tudo é mais difícil: trabalhar, estudar e mesmo militar politicamente.
Marielle, foi mãe aos 19 anos, frequentou curso pré-vestibular comunitário, assim como eu e tantas e tantas. A sua não é uma história de superação individual e nem uma narrativa sobre “meritocracia”. É uma vivência de projetos coletivos de enfrentamento de desigualdades e imposições de cima.
Projetos coletivos
A violência trouxe Marielle à militância, após a morte trágica de uma amiga, vítima de bala perdida em confronto entre policiais e traficantes. E a violência tirou Marielle da militância. A execução, o crime político matou fisicamente a afrossocialista da Maré.
A luta coletiva fez a preta favelada, bolsista ProUni, se tornar socióloga, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). A mulher de pele escura foi mais longe e quebrou as estatísticas, concluindo o mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela levou a pauta da favela para os espaços privilegiados da Universidade ao defender a dissertação “UPP: a redução da favela em três letras”.
A sucessão de asperezas que assinala a vida de Marielle, somada à sua formação acadêmica, possibilitou a realização de trabalhos exemplares em organizações da sociedade civil e na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). Essas tarefas foram realizadas juntamente com o deputado estadual Marcelo Freixo, personagem de outra vivência moldada pelo enfrentamento às nossas mazelas ancestrais.
Trincheira e reconhecimento
Marielle consolidou sua trajetória pautada pelos interesses da classe trabalhadora e fez do PSOL sua trincheira. O reconhecimento veio através dos 46.502 votos recebidos em 2016 para o cargo de vereadora, a quinta maior votação da cidade do Rio de Janeiro.
No plenário da Câmara dos Vereadores, a menina da Maré fez ecoar vozes silenciadas, enfrentando uma estrutura machista, com ódio a tudo que ela representava. Como parlamentar, insistiu na criação de políticas públicas que garantissem vida digna para os historicamente marginalizados.
Marielle denunciou e combateu o modelo falido de segurança pública que vitima pobres, periféricos e agentes de segurança. É um modelo que garante a prevalência de um pequeno grupo no poder e que utilizou do arbítrio para um presidente da República ilegítimo decretar intervenção militar no estado do Rio de Janeiro.
Os que a temem
Na noite de 14 de março, quatro tiros fizeram Marielle tombar. Foram quatro projéteis disparados pela vontade de poderosos que temem tudo o que ela representa. Executaram quem ousou organizar os de baixo contra o sistema. Esses mesmos poderosos fulminaram, com três balas nas costas, Anderson Pedro Gomes, marido, pai e trabalhador que, como muitos brasileiros, lutava por uma vida melhor.
Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo
Não contentes com a eliminação física de Marielle, seus assassinos tentaram matar sua história e sua honra. Buscaram implantar o medo em todas e todos que ousam acreditar que outro mundo é possível.
O Brasil passa por um período de recrudescimento da repressão, de criminalização dos movimentos sociais, de intenso ataque a direitos historicamente conquistados e de perseguição aos que se batem por uma sociedade justa.
Os crimes cometidos durante a ditadura militar, cujos autores nunca foram punidos, revelam o triste e trágico histórico de que assassinatos de militantes de esquerda sempre foram prática comum na tentativa de conter a luta coletiva, organizada e classista.
Não foi crime comum
A morte de Marielle não foi crime comum e não entrará para a estatística das milhares de mortes brutais que ocorrem cotidianamente em nosso país. Como Helenira Resende e Alceri Maria, executadas durante os anos de chumbo, a vida de Marielle foi ceifada por ser ela de esquerda e porque lutava pelos seus iguais.
Marielle era uma mulher que tinha cor, filha, companheira, partido e lado. Tentaram calá-la em vão. Sua voz e determinação se ampliaram e ganharam mundo. Marielle não é uma. São todas e todos os inconformados que vão à ação.
O que se viu após o fuzilamento no centro do Rio foi surpreendente. Milhares de pessoas, mesmo corroídas pela dor, encontraram forças para sair às ruas, enfrentar seus executores e dizer que a luta de Marielle está maior, mais forte e mais determinada, rumo a uma sociedade livre, justa e igualitária.
A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade
A subordinação das PMs ao Exército estabelece há décadas uma tutela militar nas forças de segurança pública. Situações dessa natureza colocam a população pobre em permanente risco
Por Ivan Seixas
A intervenção militar do Rio de Janeiro, em meio ao aprofundamento do golpe de 2016, reacende o medo de termos uma nova ditadura militar. Não é para menos. A reedição de uma tragédia pode ser ainda mais grave e trágica. Se nos fiarmos na célebre frase de Marx, em O 18 brumário de Luís Bonaparte, de que a história acontece da primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, é essencial juntar esforços para que o replay não nos surpreenda.
No clima bélico criado no Rio, um general chegou a afirmar, em palestra recente na Escola Superior de Guerra, que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia”. A expressão “o que fizemos no Araguaia” pode ser sintetizada nas capturas e assassinatos de 64 participantes da Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil, no sul do Pará. Seus corpos estão desaparecidos até hoje. Ou seja, as Forças Armadas cometeram delitos previstos na Convenção de Genebra, que qualifica como crime de guerra o tratamento desumano a prisioneiros, a execução sumária depois de capturado o inimigo e a ocultação de seus restos mortais. Não se sabe se o militar quer repetir “o que fizemos no Araguaia” nos morros do Rio.
Segurança nacional
A participação das Forças Armadas na segurança pública nunca deixou de acontecer. Traçada como estratégia de segurança nacional ainda nos tempos da ditadura, essa participação integra o conceito de “manutenção da ordem pública”. Apenas esporadicamente ela aparece de forma ostensiva aos olhos do grande público. Assim se deu em grandes eventos, como a Rio 92, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A nova invasão de áreas pobres faz parte dessa métrica.
O Exército e Marinha tiveram presença marcante nas ocupações de favelas para a implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e não fizeram nada mais do que agredir direitos de moradores, os quais eram tratados, em geral, como inimigos das tropas. Foram gastos vastos recursos e o resultado foi apenas um show midiático. Depois do impacto criado pela mídia, o serviço acabou e caiu no esquecimento, a exemplo das fracassadas ações no Complexo da Maré.
Se a ocupação militar servisse para o chamado combate ao tráfico de drogas, não teríamos outra ocupação depois de quatro anos do espalhafatoso espetáculo de 2014. E as drogas não seriam apreendidas em helicópteros de senadores, em fazendas de ministros latifundiários a quilômetros dos morros cariocas ou em transportes por caminhões e navios. O grosso da droga não pertence aos moradores de favela, pertence aos proprietários de grandes apartamentos milionários. Nos morros e periferias há apenas distribuidores para a classe média. Os pobres são estigmatizados como perigosos traficantes para desviar a atenção das verdadeiras organizações criminosas, lucrativas empresas capitalistas.
É inegável que esses pequenos varejistas do tráfico usam armas de grosso calibre, assim como é inegável que latifundiários também usem armas semelhantes para eliminar camponeses em luta pelo direito à terra. E nenhuma tropa é deslocada para locais de conflito com objetivo de confiscar esses arsenais.
Máximos e mínimos
Os montantes utilizados para o espetáculo midiático são enormes e os recursos destinados a proporcionar infraestrutura para a vida dos habitantes das favelas são mínimos. Na história dos governos do Rio de Janeiro, apenas o de Leonel Brizola se destaca como aplicador de orçamentos em benefício das maiorias. Quando o antigo governador instalou elevadores e teleféricos para facilitar o acesso de moradores aos seus locais de moradia, levantou-se uma onda de protestos elitistas contra a iniciativa.
Quando o mesmo Brizola se dedicou a construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), concebidos por Darcy Ribeiro, equipados com salas de aula, bibliotecas, quadras de esporte, piscinas e toda a infraestrutura adequada à uma educação pública de qualidade, a mesma mídia se dedicou a condenar o projeto. Em resumo, a direita brasileira detesta pobres e quem promove políticas públicas democratizantes.
A ação policial, em vários países, não se dá por movimentações de tropas ou por espetáculos midiáticos. Só acontece como resultado de trabalho científico de inteligência, investigação e coleta de provas para a condenação dos acusados, tarefa da Polícia Judiciária Civil. Do contrário, vai inevitavelmente cair na agressão aos Direitos Humanos, na violação da lei e do Estado de Direito Democrático.
Forças Armadas e segurança pública
A alocação de tropas da Polícia Militar em favelas com a incumbência de investigar, reprimir e prender suspeitos, tomando o lugar da Polícia Judiciária Civil, leva à violências contra a população – sem falar em casos como o do pedreiro Amarildo Dias de Souza, preso, torturado e desaparecido até hoje – e à promiscuidade com o crime organizado. Não por acaso, no mesmo Rio de Janeiro acontece o “fenômeno” do surgimento de quadrilhas de policiais apelidadas de Milícias, que dividem espaço com as demais quadrilhas civis.
Ou se reforça o trabalho da Polícia Civil, que tem legalmente a atribuição de investigar e prender, ou as atrocidades contra a população trabalhadora, moradora dos morros cariocas, continuará acontecendo e novas “intervenções militares” continuarão a ser pedidas e executadas.
Repetindo: o Exército nacional nunca esteve alheio ou distante da atuação das Polícias Militares em qualquer estado da federação. Há uma ligação orgânica entre ambas as instituições, legalmente e não apenas como colaboração entre as forças.
Pelo decreto 88.777, de setembro de 1983, de iniciativa de João Baptista Figueiredo, último general da ditadura, as polícias militares passaram formalmente a ser vinculadas ao Exército e se integraram ao Sistema Nacional de Informações, órgão central da repressão política no país. Esse decreto nunca foi revogado por nenhum governo democrático, o que mostra o descaso com questão tão séria para a vida cotidiana da população.
Pelo artigo 3º desse dispositivo, o Ministério do Exército exercerá o controle e a coordenação das Polícias Militares, por intermédio do Estado-Maior do Exército, em todo o território nacional. E pelo Parágrafo Único, “O controle e a coordenação das Polícias Militares abrangerão os aspectos de organização e legislação, efetivos, disciplina, ensino e instrução, adestramento, material bélico de Polícia Militar”. Ou seja, as PMs são treinadas e dirigidas pelo Exército brasileiro.
Pelo artigo 5º, “As Polícias Militares, a critério dos Exércitos e Comandos Militares de Área, participarão de exercícios, manobras e outras atividades de instrução necessárias às ações específicas de defesa interna ou de defesa territorial, com efetivos que não prejudiquem sua ação policial prioritária”.
A digital do Exército Brasileiro está gravada no artigo 37, que diz:
Compete ao Estado-Maior do Exército, por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:
1) o estabelecimento de princípios, diretrizes e normas para a efetiva realização do controle e da coordenação das Polícias Militares por parte dos Exércitos, Comandos Militares de Área, Regiões Militares e demais Grandes Comandos;
2) a centralização dos assuntos da alçada do Ministério do Exército, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas;
3) a orientação, fiscalização e controle do ensino e da instrução das Polícias Militares;
4) o controle da organização, dos efetivos e de todo material citado no parágrafo único do artigo 3º deste Regulamento;
5) a colaboração nos estudos visando aos direitos, deveres, remuneração, justiça e garantias das Polícias Militares e ao estabelecimento das condições gerais de convocação e de mobilização;
6) a apreciação dos quadros de mobilização para as Polícias Militares;
7) orientar as Polícias Militares, cooperando no estabelecimento e na atualização da legislação básica relativa a essas Corporações, bem como coordenar e controlar o cumprimento dos dispositivos da legislação federal e estadual pertinentes.
Assim, a Polícia Militar de qualquer estado da federação está sujeita ao Estado Maior do Exército. Daí não ser correto dizer que a PM está fora de controle quando a corporação comete alguma atrocidade contra manifestações populares. Está sem o controle do poder civil, das entidades e órgãos dos governos, mas está sob controle e orientação do Exército brasileiro.
Para tirar dúvidas quanto a esse controle e direção, basta ler o artigo 33 do decreto:
A atividade operacional policial-militar obedecerá a planejamento que vise, principalmente, à manutenção da ordem pública nas respectivas Unidades Federativas.
A intervenção do Exército não é, assim, marca apenas de um governo golpista, fraco e dependente de malabarismos para sobreviver mais alguns meses. A iniciativa existe cotidianamente há tempos.
Por outro lado, expoentes de esquerda ou da academia dão declarações indignadas contra essa atuação, mas poucos tocam na extinção dessa estrutura militarizada das Polícias. Não examinam o essencial.
Qualquer agrupamento de esquerda, que pense minimamente o país com uma perspectiva democrática e que tenha sensibilidade para os segmentos populares deveria ter em sua agenda a desativação dessa complicada relação entre Exército e Polícias Militares. Caso contrário, a intervenção seguirá acontecendo sem que a maioria perceba.
Quais os constrangimentos ao pleno funcionamento da institucionalidade democrática diante do poder desmedido dos mercados, que impõem leis, ditam regras de conduta e acabam por influenciar decisivamente a atuação dos três poderes da República?
José Luís Fevereiro
A democracia tal como o mundo ocidental a conhece desde o pós-guerra está em risco. O desenvolvimento do capitalismo sob hegemonia do capital financeiro, a globalização da produção de mercadorias e dos fluxos de capital, as novas crises de superprodução, o enorme avanço da concentração de renda a partir da apropriação concentrada dos ganhos de produtividade da inovação tecnológica, tornaram a democracia disfuncional para o Capital.
A busca insensata pela redução dos custos do trabalho usando a globalização para desconstruir direitos conquistados por décadas de luta política e sindical, o desmonte dos sistemas tributários e políticas fiscais que viabilizaram a universalização de direitos sociais nos países centrais e a busca dessa universalização em países de desenvolvimento médio como o Brasil usando como argumento a concorrência industrial asiática, o avanço das isenções tributárias para os mais ricos reduzindo a capacidade de financiamento dos estados e justificando o desmonte de seus mecanismos de seguridade social, não podem conviver com a democracia sem sustos para a elite.
Barragens de propaganda, debates de TV onde todos os debatedores defendem as mesmas teses pseudo científicas, utilização dos aparatos de formação de consensos, imposição de pautas diversionistas, nada disso tem impedido que aqui e acolá as classes trabalhadoras reajam e coloquem em risco a estabilidade de governos liberais portadores das “verdades científicas” das políticas de ajuste e corte de direitos.
Esvaziamento do Estado
Desde os anos 1990 é nítido o projeto de esvaziamento de poder das esferas eleitas do Estado. A construção de uma burocracia supranacional em Bruxelas, fora do alcance dos eleitores dos estados membros da União Europeia, a própria moeda única europeia, retirando a política monetária do controle dos governos eleitos, a defesa mundo afora da “independência” dos Bancos Centrais, subtraindo ao controle do povo e de seus representantes eleitos esse importante mecanismo de poder, faz parte da estratégia.
No Brasil, a “Lei de Responsabilidade Fiscal” e suas “cláusulas de ouro”, que limitam as possibilidades de ação de governos eleitos, o desmonte acelerado dos aparatos do Estado como o programa de privatizações dos anos 1990 e sua retomada após o golpe de 2016, buscam reduzir o poder de fogo na economia dos executivos eleitos da República. Reduzir a democracia à eleição de síndicos desprovidos de poder real é a principal iniciativa à escala global das elites.
Nessa mesma linha está a pressa com que o governo do golpe aprovou a Emenda Constitucional 95, que congela por vinte anos os gastos primários da União, tentando amarrar as próximas administrações à condição de gerenciadoras do desmonte do Estado.
Em outra linha de ação, a imposição de pautas morais e culturalistas pela via do fortalecimento do fundamentalismo religioso, buscando retirar centralidade à agenda da desigualdade, foi também largamente utilizada desde os anos 1980. Trabalhadores pobres acabam votando em candidatos por serem contrários à legalização do aborto ou ao casamento igualitário. Curiosamente são os mesmos que reduzem impostos de ricos e cortam programas sociais dos pobres. É uma cena que começa nos EUA nos anos 1970 e se generaliza pelo planeta, ganhando força no Brasil duas décadas depois, quando, por exemplo, se aprovou a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos.
Desmoralização dos poderes eleitos
Mais recentemente uma terceira linha de ação, e que por bom tempo passou despercebida para boa parte da esquerda, é a desmoralização dos dois poderes eleitos da republica, legislativos e executivos, pela disseminação da lógica da antipolítica e o fortalecimento do poder judiciário, o único dos poderes não eleito, composto pela “meritocracia” tal como a conhecemos com seu perfil de origem nas classes medias e altas e, portanto, mais confiável aos interesses da elite.
Manifestação contra a PEC que congela o orçamento por vinte anos, avenida Paulista (SP), outubro de 2016
A imposição da pauta da ética como centro do debate nacional foi o primeiro passo e com o qual a esquerda alegremente contribuiu. A defesa despolitizada da Ética na politica, como se a politica não tratasse de luta de classes foi um erro estratégico. Desde os anos 1980 que a esquerda flerta com essa agenda aproveitando-se que conjunturalmente ela atingia seus adversários diretos com mais força dado o fato da burguesia controlar a maior parte dos aparatos do estado. É obvio que a corrupção deve ser denunciada e combatida e que não cabe à esquerda defender representações políticas carcomidas pela corrupção e muito menos deixar de zelar nas suas administrações para que a lógica dos “300 picaretas”, que Lula denunciava em 1989, não as invada como terminou acontecendo com o próprio governo de Lula. Mas também está evidente que a aceitação da centralidade dessa agenda no lugar da denuncia da desigualdade termina por ser uma enorme prestação de serviços á Casa Grande.
O pacote do desmonte das prerrogativas dos poderes eleitos vem bem embrulhado. Temos a Lei de Responsabilidade Fiscal em contraposição às “irresponsabilidades”, a Lei do Teto dos Gastos em contraposição à “gastança”, a Lei da Ficha Limpa em contraposição aos detestáveis “fichas sujas”, o fim do foro privilegiado em contraposição “aos privilégios” e, no meio do caminho, a rejeição da PEC 37 que buscava restabelecer a separação de atribuições entre as policias, as procuradorias e a magistratura.
Há uma clara conexão entre essas agendas, todas elas fortemente impulsionadas pela mídia corporativa e todas elas dentro da lógica do esvaziamento dos poderes eleitos da República, os únicos que de fato estão submetidos a algum crivo popular. A estratégia é manter as formalidades da democracia eleitoral, mas cuidando de esvaziar de consequências escolhas “insensatas” por parte dos eleitores que, vez por outra, insistem em eleger candidatos “populistas”, ou seja todos aqueles que não comungam da cartilha de interesses dos mercados e das elites econômicas globais.
Redução do Estado
É neste cenário que ocorre o golpe de 2016 no Brasil. A corrupção endêmica ao sistema econômico e não apenas ao sistema politico é conhecida há décadas. Circunscrever ao Estado e aos seus agentes o problema do desvio de recursos públicos é também uma forma de luta política das elites a favor da sua agenda de redução do papel do Estado, de desmonte da seguridade e da privatização de suas empresas do setor produtivo, do setor bancário e das suas funções de garantidor de direitos sociais.
A Operação Lava Jato não desvendou nada que não fosse de amplo domínio publico há muito tempo, mas se aproveitou do enorme desgaste da presidenta Dilma Rousseff junto à sua base social e eleitoral, resultado da traição programática cometida em 2015. Ali se adotou um programa de ajuste fiscal suicida que a enfraqueceu, derrubou do poder e entronizou um governo que é a expressão pura e dura dos interesses da elite econômica globalizada. Contribuiu para a desmobilização de qualquer resistência de massa a despolitização construída deliberadamente por Lula, que nunca buscou a mobilização da sua enorme base social para pressionar por mudanças estruturais.
Tal qual em 1964, o simulacro de legalidade foi mantido, com o Congresso votando o impeachment com a mesma cara dura de 10 de abril daquele ano, ao “eleger” indiretamente Castelo Branco. O STF, como há meio século, “legalizou” a tramoia. Não faltou a cassação de direitos políticos do principal candidato às eleições presidenciais seguintes, hoje Lula, antes Juscelino Kubitschek. Lula está preso como resultado de um processo que jamais tramitaria em um sistema judiciário minimamente sério, Juscelino teve que responder a Inquéritos Policiais Militares durante a ditadura.
Tirando os tanques nas ruas e os coturnos marchando, o modelo não foi muito diferente.
Para a esquerda, é fundamental identificar corretamente a estratégia do inimigo buscando fugir do taticismo que, no mais das vezes, opera na lógica do adversário. É fundamental colocar no centro da agenda a desigualdade, a imperiosa necessidade de superação da crise, de revisão do sistema tributário grotescamente concentrador de renda, desmontar os entraves à ação dos poderes eleitos, tanto no campo da condução da economia como da restauração das suas prerrogativas plenas hoje usurpadas pelo judiciário.
Usurpação de poderes
É inacreditável a usurpação crescente de poderes do Executivo e do Legislativo, como vimos no impedimento da posse de Lula como ministro de Dilma, mas também no impedimento da posse de Cristiane Brasil como ministra de Temer. Nessa mesma linha, o ministro do STF Luiz Roberto Barroso se outorga poderes para rever o indulto de Natal, função também precípua da Presidência da Republica, e a justiça prescinde da autorização das casas legislativas para prender seus membros, como ocorreu na ALERJ.
Se era correta a atitude da esquerda em votar a favor da autorização, derrotada em plenário, não compartilho do regozijo dos que comemoraram o fato de a justiça ter renovado a prisão dos mesmos, prescindindo dessa autorização. Estrategicamente quebrar as prerrogativas dos poderes eleitos submetendo-os á tutela do Judiciário é um equivoco enorme ainda que venha embrulhado em boas causas. É certamente o caso das prisões dos deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB.
Para os de curta memória vale lembrar que o AI-5 foi editado em 1968 na sequência de uma negativa do Congresso Nacional em autorizar o processo contra o deputado Márcio Moreira Alves. A Lei da Ficha Limpa, o fim do foro determinado – mal denominado de privilegiado – e o inusitado acumulo de funções de investigação e oferecimento de denúncias pelas procuradorias, que a PEC 37 buscava impedir, são operações de esvaziamento da democracia e de submissão dos poderes que emanam do povo ao poder que emana da meritocracia.
As eleições de 2018
Teremos eleições em 2018 e o golpe não é a total reprodução de 1964, embora algumas características se repitam. A estratégia da elite golpista é a do esvaziamento das prerrogativas de quem venha a ser eleito, seja pelo desmonte do Estado, seja pelos impedimentos ao exercício da política fiscal constitucionalizados com a EC-95 do teto de gastos e seja pelas ações do Judiciário. Há também tentativas de edição de novas PECs, que buscam impedir a emissão de divida pública, seja também pela subordinação de suas ações ao judiciário que hoje se sente empoderado para sustar qualquer ação de governo que contrarie interesses.
Essa nova logica ascendente não ocorre apenas na esfera federal, mas em todas as instâncias de poder no país. Prefeitos, por exemplo, têm assistido aumentos de IPTU votados nas Câmaras de Vereadores sendo sustados na justiça. Se permitirmos que essa escalada continue, o presidente da República a ser eleito em 2018 assumirá desprovido de prerrogativas básicas de governabilidade. Um exame histórico do Brasil no campo dos direitos sociais pode mostrar que os avanços mais significativos obtidos se deram por iniciativa de poderes Executivos. Raramente isso aconteceu pelos Legislativos e nunca pelo Judiciário.
O golpe não tem uma única data marcante, ele é uma agenda politica que, passo a passo, vai esvaziando de conteúdo real o pouco de democracia que temos.
Identificar corretamente a sua estratégia é essencial para combate-lo com efetividade.