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  • A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista – Por B. Boris Vargaftig

    A pandemia da Covid-19 e a luta socialista

    O atual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos à pesquisa, a política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais, em particular, além dos cortes de verbas do SUS. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência

    Por B. Boris Vargaftig

    Meu objetivo aqui é discutir uma estratégia sanitária em tempos de pandemia. Como as circunstâncias dificultam os procedimentos usuais, o momento é de luta pelos meios ao alcance, redes sociais, panelaços, faixas, ações de defesa da saúde e da vacinação e defesa do SUS. Não escrevo um artigo técnico, mas político, baseado na Ciência. Procuro levantar pistas para que a volta ao “normal”, o que quer que seja, se faça com avanço e não com a volta ao programa regressivo liberal em curso.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com uma espécie de maquiavelismo de extrema direita e liberalismo

    O momento é também de reflexão: o que explica o recuo da esquerda e como ultrapassá-lo? Como avançar quando a Covid-19 tiver sido contida? O programa de intervenção que a esquerda deve defender, não representa só uma lista de desejos, mas um planejamento para hoje e para o futuro.

    Quando pertinente, procuro ligar as propostas e análises a medidas anticapitalistas, seguindo o proposto por Trotsky em 1938, no livro O Programa de transição. Esse conceito pretende resolver a aparente contradição entre medidas mínimas realizáveis dentro do capitalismo, e máximas, a caminho do socialismo. Que isso é importante, basta ver os esforços dos burgueses mais lúcidos para resolverem a contradição entre tratamento científico da pandemia (vacinas, lockdown, etc) e a produtividade do trabalho, atualmente em queda brutal, o que lhes é essencial.

    Objetivos progressivos e populares

    O “programa de transição” consiste na formulação e aplicação de objetivos progressivos e populares, realizáveis sem mudança de regime. São exemplos: o aumento dos impostos para os ricos, os aumentos salariais, a cobrança das dívidas patronais ao erário e ao seguro social, ou a chamada quebra das patentes das vacinas – que não é quebra, mas negociação forçada pontual e reversível. A luta por essas medidas e a ação se dão nos limites do capitalismo, mas a extensão e perenização invadem um território não capitalista.

    Assim, o acordo que levou Tancredo e Sarney ao poder impediu que as conquistas obtidas após o fim da ditadura se projetassem em lutas anticapitalistas, como poderia ter sido. Tal progresso se dá em meio às crises contra as quais as medidas foram tomadas e se pereniza para além do imediato, fora do capitalismo, daí ser de “transição”.

    Medidas isoladas de defesa da economia e da população podem perfeitamente ser tomadas por governos burgueses, quando não há alternativa. Diante da pandemia, um governo “normal” poderia ter decidido medidas estatizantes para combatê-la e, se não tomou, foi por uma mistura de incompetência com maquiavelismo de extrema direita e liberalismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça

    Hoje, como o reconhecem 500 banqueiros, capitalistas e economistas, é absolutamente necessária a coordenação entre os setores da administração na luta contra a pandemia que ameaça a vida e o mercado, cabendo, entretanto, a pergunta: com que objetivo? O propósito é óbvio, pois assistir a municípios fecharem e em seguida abrirem, ou abrirem e em seguida fecharem, as atividades não essenciais, mostra a incapacidade de entender o que ocorre, ou pior, a impotência.

    Tomar decisões opostas, a alguns quilômetros de distância, neutraliza o impacto das medidas restritivas, destinadas a reduzir as contaminações. Nessa situação, o lockdown se tornou uma necessidade absoluta, por impedir a contaminação, sobretudo por portadores assintomáticos.

    Burguesia e controle

    O objetivo da alta burguesia não se limita ao gesto de autoproteção e de proteção de “sua” mão de obra. Não quer perder o controle da situação, ameaçada pela incompetência e aventureirismo governamentais e, mais importante, quer a todo custo manter o controle do que ocorrerá após uma incerta normalização. Os excessos de hoje, com a morte atroz de centenas de milhares de pessoas, grande parte da qual poderia ter sido salva pelas medidas antecipadas preconizadas pelos sanitaristas e mídia, podem levar, conforme as circunstâncias, a lutas sociais inesperadas, contra as quais essa mesma burguesia criou e mantém em reserva, o bolsonarismo.

    As vacinas chegam com vagar, pois os “especialistas” governamentais não tomaram as medidas para garantir a disponibilização para 211 milhões de pessoas. Agora, apesar da necessidade imperiosa, há prazos para a produção fora e no Brasil, dificuldades em negociar preços em meio a muitos “clientes”, além dos prazos para que a imunidade se estabeleça.

    A Covid-19 não afeta todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram para a extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US $3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram

    As inacreditáveis carências dos ditos “especialistas” facilitaram a política deliberada do Presidente. Este desmoralizou a Ciência com medicações extravagantes e inoperantes, pós de pirlimpimpim de Monteiro Lobato, com chistes que desrespeitam as vítimas, passeios em torno do palácio presidencial, com fanáticos despreparados e desprovidos de máscaras e de bom senso. Este governo atacou iniciativas como as do Instituto Butantã para depois tentar se apropriar do sucesso e, a despeito dos números de mortos, alardeia vantagens ao pretender ter o melhor programa antiepidemia do mundo. Note-se a inexistência de um Comitê Científico em nível federal, como o que o governo Dória instalou, a menos que se considere que bastem o Sr. Pazuello ou o sucessor Queiroga, que diz uma coisa e o contrário.

    Pandemia e guerra social

    A Covid-19 não afeta a todos igualmente, ricos e pobres – ela se insere na constante, às vezes aberta, outras vezes encoberta – guerra social. Cerca de 500 milhões de pessoas foram à extrema pobreza em todo o mundo, e os mais ricos acrescentaram US$3,9 trilhões aos seus bens. O fim da pandemia seria para a classe dominante o início de uma nova era de desigualdade e de enfrentamento de classes, tanto para os fiéis ao projeto neofascista como para os 500 “democratas” que subitamente descobriram o mal que fizeram. Querem repará-lo, contanto que as “reformas” reacionárias persistam, mesmo se embrulhadas em fantasias reformistas. Alguns oferecem serviço para tanto, referindo-se à associação entre trabalho e capital – e depois dizem que é o socialismo que é vetusto!

    Antes de detalhar as medidas que me parecem corretas e a projeção num programa de transição, notemos, como diz a revista Jacobin, que “em todo mundo, os ricos furam filas, enquanto 130 países, onde vivem 2,5 bilhões de pessoas, esperam por uma única dose”.

    Isolamento social

    Os Estados Unidos hoje são o país com a mais elevada mortalidade do continente (164,38/100.000), seguidos pelo Panamá (160,11/100.000), pelo Peru (158,94/100.000), pelo México (156,03/100.000) e pelo Brasil (136,06/100.000). A Alemanha enfrenta uma forte retomada da circulação do vírus, com 91.78 mortes/100.000 habitantes. A Suécia não havia registrado tantos óbitos desde a epidemia de fome de 1869 (a miséria após a I Guerra Mundial, explica a grande migração de suecos para a América do Norte).

    Com a população cerca de cinco vezes maior que a do Brasil, a China manteve o lockdown por mais de três meses em Wuhan e em cidades ao redor. Bloquearam as entradas da cidade e das escolas, restringiram viagens e suspenderam a circulação de automóveis e do transporte público, cancelaram eventos, interromperam o funcionamento de equipamentos públicos e de atividades não essenciais. Isso tudo acompanhado de intensa campanha de informações e recomendações de práticas de prevenção que se revelaram corretas.

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde

    Pesquisa em 375 cidades chinesas, publicada na revista Science, demonstrou que o isolamento social é essencial. Em meio à pandemia, um grande número de pessoas infectadas mostra sintomas leves ou ausentes. Ao se deslocarem, respondem majoritariamente pela transmissão do vírus Sars-Cov-2. Finalmente, países de economia ainda ao menos em parte estatizada (China, Vietnã, Cuba) enfrentaram a pandemia com medidas coercitivas ajustadas, ganhando a aposta, como Israel – embora neste caso excluindo a população palestina das medidas de defesa, um crime contra a humanidade.

    O que fazer?

    Em 1904, V. I. Lenin, advogado convertido à política revolucionária, escreveu um livro que fez história, com título inspirado por um romance de Nikolai Tchernichévski (1828-1889). É a pergunta de hoje.

    Constatemos primeiro a incompatibilidade intrínseca do atual governo que apresenta um posicionamento e uma prática sanitária consequentes. Não se trata simplesmente de um governo capitalista que se adapta ao presente, como o é o de Dória, mas de aplicar um plano colonial, fazer do país um produtor de commodities, grande fazenda colonial moderna. O regime do país não é fascista, mas o chefe e acólitos o são. Portanto, nenhuma confiança nas promessas, mesmo quando são, o que é raro, pontualmente adequadas. A relação é de força e o “Fora Bolsonaro’’ está associado às medidas sanitárias indispensáveis e de “salvação nacional”.

    Antes de listar as medidas e as consequências, alguns questionamentos: como proceder para levar adiante a luta em defesa e salvação física de todos, incluindo, evidentemente, as direções da burguesia, que nos massacrariam sem dificuldade (o têm demonstrado em todos os países do mundo), latifundiários e milicianos, supremacistas brancos assassinos de negros, além dos trabalhadores e da pequena burguesia e intelectuais que queremos como aliados? Não nos transformemos em pregadores da união nacional, mas em promotores de medidas de defesa social, que agem no sentido da defesa da vida de todos, e se posicionam num terreno de classe favorável, com continuidade na luta pelo socialismo.

    Trata-se de um programa de medidas exequíveis e indispensáveis, a serem aplicadas sob o controle das organizações dos trabalhadores, da saúde, da função pública, das organizações de bairro, LGBTQIA+, negros, intelectuais em geral. Esse controle é indispensável e garantirá a execução das medidas aprovadas democraticamente. Um exemplo: chega um lote de vacinas, a quem será destinado? A decisão técnica e demográfica não será exclusiva e secreta se estiver sob controle de usuários e trabalhadores. A presença organizada dos trabalhadores não é inédita, existiu em condições políticas mais favoráveis, mas é perfeitamente justificada dentro do marasmo atual.

    É urgente a realização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa

    Um plano consistente de vacinação não pode ser concebido exclusivamente por burocratas do Ministério da Saúde que, na maioria, mostraram uma mistura de subserviência, ignorância e desrespeito pela população que os paga. A única garantia de continuidade das medidas a serem tomadas é a vigilância e a plena participação popular, pelas organizações, notadamente de profissionais da saúde. Esse é o corolário da total desconfiança para com as decisões do presente governo e do quarto Ministro da Saúde que, aliás, é mais experimentado em gestão privada que no SUS, ou outro sistema social de referência.

    Pontos de um programa sanitário

    Os pontos que me parecem constituir o centro de um programa popular, protossocialista, factível dentro do capitalismo, e sob controle dos trabalhadores, são:

    1. A organização de um Congresso dos Trabalhadores pela Saúde, para discutir propósitos e meios, preparando-se para, o quanto antes, reunir os delegados nomeados virtualmente e aplicar as decisões. Construir imediatamente o Comitê provisório que apele pela realização desse Congresso, até decisão democrática alternativa. Esse Comitê incorporaria os ativistas nomeados pelos movimentos atuais que não perderiam a autonomia.

    2. Apelar à organização de um lockdown nacional de 15-30 dias para interromper a contaminação, com a participação dos trabalhadores da saúde e do Congresso dos Trabalhadores pela Saúde.

    3. Promover campanha pelo auxílio emergencial mensal de R$ 600,00 a todos necessitados, controle popular e dos usuários.

    4. Garantir a estabilidade no emprego enquanto durar a pandemia.

    5. Congelar preços da cesta básica e dos combustíveis.

    6. Suspender reembolso de financiamentos ou aluguéis, contas de água e de energia das famílias de baixa renda.

    7. Oferecer auxílio financeiro imediato aos pequenos negócios, por um programa de empréstimo dos bancos públicos.

    8. Defender e ampliar a autoridade e funcionamento democrático do SUS, dos servidores e dos serviços públicos.

    9. Cobrar, sob controle dos trabalhadores organizados, as dívidas patronais para com o fisco e seguridade social e encampação em caso de recusa.

    10. Coordenar, sem coibir a autonomia dos movimentos espontâneos, a solidariedade efetiva material aos trabalhadores necessitados.

    11. Propugnar um acordo com países não imperialistas, alguns aliás produtores de vacinas, como Índia e Cuba, outros de insumos (Venezuela, que envia oxigênio ao Brasil) e outros.

    12. Planejar e efetivar contatos e ações coordenadas em defesa da saúde com trabalhadores da indústria de vacinas e de medicamentos e insumos, por meio de lives e encontros presenciais ulteriores.

    13. Abolir a “Lei de Segurança Nacional”, herdada da ditadura, que é inconstitucional e só serve aos interesses do patronato e da extrema direita.
    Inúmeras organizações de luta contra a pandemia surgiram ultimamente, e são bem-vindas, como a Frente em Defesa da Saúde pela Vacina Pública. Isso é prova da crescente vitalidade das oposições e a presente proposta não tem por objetivo fazer mais uma delas, mas oferecer um formato nacional e unitário, uma coordenação interna e com organizações locais de propósitos idênticos.

    As patentes

    Entendi, ao consultar juristas, que, no caso das vacinas contra a Covid, não se trata de uma quebra, a licença compulsória, sendo reconhecida internacionalmente desde 1925. Há 20 anos, a Organização Mundial do Comércio enquadrou essa concessão na necessidade de saúde pública, entre outras condições. O problema é que países como o Brasil, podem não ter plena capacidade tecnológica para a produção imediata.

    O Instituto Butantã conseguiria produzir o IFA, talvez em um ano. A dificuldade é política. Primeiro, o Brasil deveria negociar em posição de força com as sociedades farmacêuticas concorrentes, o que é hoje mais difícil do que ontem, devido ao desgaste da imagem do país com a inacreditável política exterior em curso.

    Essa discussão, quando ocorrer, deverá incluir as organizações de usuários e trabalhadores. É necessário um acordo internacional para garantir a vacina aos países mais pobres, enquanto os países ricos pretendem prioridade. Esta e negociações associadas devem também ocorrer sob controle das organizações populares e de usuários, nesse caso, sobretudo, a participação dos trabalhadores dos países envolvidos.

    A prioridade consiste em medidas que não prejudiquem a necessidade de importarmos vacinas e implementos, medicamentos etc. O bom planejador político prevê os passos após as decisões drásticas.

    Acredito que devemos favorecer um plano estratégico de uso das tecnologias vacinais, não como reivindicação aplicável imediatamente, mas como pressão sobre preços e preparo para o futuro, uma palavra de ordem estratégica. Evidentemente, ao mesmo tempo promover e assegurar o desenvolvimento da indústria estatal, como Butantã e Fiocruz, que mostraram competência e seriedade.

    Batalhas prioritárias

    O socialismo é nosso objetivo, mas não gritamos “Socialismo já”. Não se trata de ganhar a batalha dos slogans, mas a batalha da vida e das ideias. Hoje, ao propugnarmos uma medida propagandística, o preço das vacinas subiria, elas se esgotariam rapidamente e o terreno se tornaria fértil para levantar o povo contra os “irresponsáveis” (nós e os que tiverem nos acompanhado).

    A boa pergunta é: se estivéssemos em condições de influenciar um governo de esquerda, em meio à catástrofe sanitária, será que desencadearíamos a luta pela quebra das patentes – mesmo se, até o momento, não tenha havido recusa do fornecimento de vacinas? Os exemplos não faltam: Lenin e Trotski souberam recuar diante da pressão irresistível das Potências Centrais, nas negociações de Brest-Litovsk, que permitiram a paz entre as partes, ao final da guerra de 1914-1918 e a sobrevivência da revolução.

    Financiamento à pesquisa

    Termino constatando que o eventual despreparo para uma política sanitária consistente é agravado pela extrema limitação dos créditos para a pesquisa e pela política restritiva e repressiva contra a cultura em geral, as Universidades Federais em particular. Sem cientistas e técnicos assegurados, não há ciência e técnica. Enquanto isso, os Estados Unidos se preparam a dobrar o financiamento do “National Sciences Foundation”!

    Bernardo Boris Vargaftig é médico e Doutor em Ciências pela Universidade de Paris. Foi professor do Instituto Pasteur, em Paris, e professor-titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

  • Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

    Nos últimos dias, a Nação assistiu estarrecida a uma sequência insólita de acontecimentos. Primeiro, a exposição pública, noespaço da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar responsabilidades pelas falhas no enfrentamento da pandemia, das omissões e desatinos promovidos pelo general Pazuello, quando à frente do Ministério da Saúde.

    Em segundo lugar, a participação ativa do mesmo personagem em manifestação política de apoio ao presidente da República, que desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro, na condição de um de seus oradores.

    Finalmente,a decisão inexplicável do Comando do Exército no sentido de aceitar as desculpas esfarrapadas apresentadas pelo general Pazuello para justificar seus atos e abdicar, consequentemente, da   deveria recair sobre ele.

    O conjunto da obra é de extrema gravidade, na perspectiva da defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública, objetivos que deveriam reunir todos os brasileiros,independentemente de suas preferências políticas e ideológicas.

    Ocorreu, na verdade, um ataque orquestrado pelo presidente da República à disciplina militar e, consequentemente, à democracia, que depende também, como sabemos, da separação absoluta entre poder político e poder militar. Militares são servidores públicos armados, a quem é vedada a intromissão na seara da política. Condescender com a quebra dessa regra nos conduz à anarquia, situação favorável a todo tipo de autoritarismo.

    Nesse quadro preocupante, nós, conjunto de fundações partidárias reunidas do Observatório da Democracia, nos manifestamos de público contra a quebra da disciplina militar promovida pelo presidente da República, contra a impunidade de todos os responsáveis, em favor da manutenção e fortalecimento do papel das Forças Armadas no interior dos limites definidos na Constituição de 1988.

    O presidente da República demonstrou, mais uma vez, incapacidade para exercer as tarefas inerentes a seu cargo. Cabe ao conjunto das forças democráticas persistir na política de unidade e mobilização em defesa da democracia, da liberdade e da ordem constitucional,preparando as condições para, no momento oportuno, por fim ao ciclo político atual, que ameaça a Republica e suas instituições.

    Fundação Astrojildo Pereira
    Fundação João Mangabeira
    Fundação Lauro Campos-Marielle Franco
    Fundação Leonel Brizola Alberto Pasqualini
    Fundação Maurício Grabois
    Fundação Perseu Abramo
    Fundação Rede Brasil Sustentável
    Fundação Verde Herbert Daniel
    Instituto Claudio Campos
    Instituto Teotônio Vilela

     

  • O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas – Por Cris Duarte

    O PSOL que sai das urnas

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou várias limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro, impulsionado pela mobilização popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, à defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude. E essa agenda espalhou-se pelo Brasil

    Por Cris Duarte

    Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja . Eduardo Galeano

    Caminhando no contrafluxo

    Comumente as utopias se apresentam de forma propícia em tempos de crises, propondo, naturalmente, inversão à realidade imposta, levando-nos à reflexão sobre o mundo em que vivemos e o mundo que podemos construir: paz em tempos de violências; igualdade social diante das desigualdades; defesa da vida, contrapondo a banalização da morte; educação e ciência, em contraposição ao negacionismo.

    Há consenso entre diversos intelectuais e militantes políticos que, nas últimas décadas, houve um distanciamento gradativo do ideal utópico em vários segmentos da esquerda, que perderam a própria capacidade de leitura crítica da realidade, abriram mão da independência política e embarcaram em um processo equivocado e cada vez mais distanciado das classes trabalhadoras, do povo, da sociedade e do potencial de militância latente na juventude brasileira.

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento, em grande parte, da sociedade brasileira, o PSOL se propôs, em sua trajetória, a revigorar as utopias

    O cenário de transformismo ideológico das últimas duas décadas, fez brotar o sentimento quase generalizado de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Nessa conjuntura, completamente adversa e complexa para as esquerdas, reconhecendo a força do pensamento autoritário e o enraizamento em grande parte da sociedade brasileira, o PSOL se propôs a revigorar as utopias, cumprindo a sua função de contrafluxo, de cautela em relação às certezas, de oposição à tendência de repetição e rompendo com a excessiva naturalização com a qual percebemos os acontecimentos.

    A travessia que definiu destinos

    Por mais difícil que seja, torna-se necessário narrar nosso pesadelo histórico como forma de esburacar o véu de cegueira que causou a resignação generalizada, a sensação de espanto emudecedor dos movimentos históricos de esquerda que sonhavam com mudanças estruturais e revolucionárias do país.

    Sob a sedução do “lulismo” e das consecutivas derrotas eleitorais, o Partido dos Trabalhadores inaugurou, a partir de 2002, um dos processos mais contraditórios de sua história, que brutalmente levou o partido de maior referência na esquerda mundial para longe de seus valores e das lutas populares que sempre defendeu.

    Firmou alianças trágicas com a direita tradicional, alinhando o discurso e a imagem de Lula aos valores da classe média, recebendo apoio de oligarquias do Nordeste, da parcela da elite industrial paulista e lançando ao longo da primeira campanha a “Carta ao Povo Brasileiro”, ficou selado definitivamente, o compromisso de Lula com o modelo neoliberal e o jogo do mercado financeiro nacional e internacional.

    A vitória de Lula aconteceu gerando grandes expectativas, porém, realizando concessões e recuos programáticos que deslocou a praxis petista para outro terreno logo no início do mandato. Com a decisão de colocar Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, no controle das finanças do país, a senadora Heloísa Helena, manifestou-se contra essa indicação. Posteriormente, iniciou um novo confronto ao votar contra a indicação de José Sarney para a presidência do Senado.

    Diante das contradições entre a história do partido e as promessas de campanha, as ações concretas do governo começaram a aflorar e a inquietar muitos militantes, simpatizantes e eleitores, gerando conflitos internos no PT. Eles se agravaram após a proposta nefasta da PEC de Reforma da Previdência do setor público, apresentada por Lula ao Congresso, em 2003, e que sem dúvida, seria extremamente danosa aos interesses dos trabalhadores.

    Foi uma travessia marcada por inúmeras vozes de oposição no interior do próprio PT e que reverberaram no Congresso, na CUT, entre os servidores públicos e em amplos setores da sociedade. Após uma série de confrontos, foi instalada uma comissão de ética para encaminhar o processo de expulsão por “indisciplina” da senadora Heloísa Helena (AL), e dos deputados, Joao Batista Babá (PA), Luciana Genro (RS) e João Fontes (SE), que não aceitaram tal rebaixamento político-programático em nome da governabilidade conservadora.

    Arrumando os desertos

    Impulsionados por todas as controvérsias, em dezembro de 2003, os parlamentares expulsos do PT, iniciaram um movimento nacional pela consolidação de um novo partido de esquerda, das massas, socialista e democrático. Isso significou ter capilaridade com os movimentos sociais, estar presente na luta cotidiana para ser capaz de pensar saídas efetivas para a população brasileira.

    Em janeiro de 2004 foi realizado um encontro no qual criou-se a Esquerda Socialista Democrática (ESD), movimento originário que definiu as bases de um programa provisório para a formação do novo partido. Posteriormente, deu-se a fundação do Partido Socialismo e Liberdade, PSOL, com a criação do primeiro Estatuto datado do dia 6 de junho de 2004, e assinado pela primeira presidenta do partido, a senadora Heloisa Helena.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964, que levou ao poder, pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército, que nunca fez questão de esconder seu viés ideológico bem próximo ao fascismo

    Logo, à formalização do PSOL junto ao TSE, em 2005, outro grupo de descontentes com os rumos do PT e do governo, juntou-se ao partido, entre os quais os deputados federais Ivan Valente (SP), Chico Alencar (RJ), a ex-deputada federal Maninha (DF), o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio e militantes de outras legendas, em especial do PSTU. Nesse processo, o PSOL obteve o apoio de intelectuais socialistas de renome, sociólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos.

    Em 2006 o PSOL participou pela primeira vez de eleições e conseguiu resultados positivos. A candidatura da senadora Heloísa Helena à presidência da República alcançou 6,85% do eleitorado, contabilizando 6.575.393 votos.

    Nas eleições de 2008, o PSOL manteve o aspecto da primeira eleição em relação à grande quantidade de candidaturas ao Executivo das principais localidades do país, lançando prefeitos em 22 capitais. O partido conseguiu eleger 25 vereadores em 13 estados diferentes (22 municípios), mas não elegeu prefeitos.

    Apesar de aparecer com boas perspectivas eleitorais, a ex-senadora Heloísa Helena, desistiu da candidatura à presidência no pleito de 2010, declarando apoio à candidatura de Marina Silva do PV. Dessa forma, houve grande indefinição sobre a candidatura do PSOL ao pleito do executivo federal até meados de 2010, algo que só foi revertido com o lançamento da candidatura de Plínio de Arruda Sampaio.

    Antes do final do mandato à presidência do PSOL, Heloísa Helena abandonou a direção do partido alegando incompatibilidade de dirigir a legenda sem apoio interno no Diretório Nacional.

    No pleito de 2010, o partido não conseguiu eleger nenhum candidato ao executivo. Foram eleitos dois senadores (AP e PA), três deputados federais (RJ e SP) e quatro deputados estaduais (RJ, SP e PA).

    Além do quarto lugar de Luciana Genro na disputa presidencial de 2014, em que obteve 1,6 milhão de votos, o PSOL também aumentou a bancada na Câmara dos Deputados de três para cinco deputados. O partido não elegeu ninguém para o Senado. E, nos estados, 13 deputados estaduais foram eleitos pela legenda.

    Os atentados à democracia

    No biênio 2015-2016 uma articulação orquestrada entre agentes públicos provenientes de frações do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, todas elas retroalimentadas pelos oligopólios midiáticos, mobilizaram-se e exigiram o impeachment de Dilma Rousseff (PT), presidenta reeleita em 2014. Ela foi afastada definitivamente do cargo em agosto de 2016, sendo substituída pelo vice-presidente Michel Temer (PMDB).

    O contexto era de efervescência política, desencadeando numa série de manifestações populares nas ruas no decorrer de 2015 e 2016. Nessa conjuntura, a bancada parlamentar do PSOL, mesmo sendo oposição ao governo federal tanto de Lula, quanto de Dilma, declarou-se contrário ao processo de impeachment, por este ser a concretização de um grande golpe jurídico-parlamentar.

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo. Como ele mesmo afirmou após o resultado do segundo turno em SP: “A gente apontou um futuro. É, apenas, o começo de um Brasil sem autoritarismo”

    Não foram desconsideradas nesse período, as permanentes tentativas de criminalização dos movimentos sociais e da ação e do pensamento crítico. Além disso, proliferou-se nas casas legislativas de todo o país, projetos que tentaram impedir o avanço de direitos de minorias e da liberdade de pensamento e construção do conhecimento, como a obscurantista lei elaborada pelo movimento “Escola sem partido”.

    Rastros de ódio

    Em 2018, enquanto Michel Temer implementava uma agenda de ataques aos direitos trabalhistas e decretava uma intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, o Brasil vivenciou a crescente escalada do ódio que se manifestou na execução da vereadora, negra, lésbica, com origem na favela, defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, junto ao motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A notícia reverberou no país e no mundo e ampliou o debate sobre violência política.

    Após, a caravana de Lula sofreu ataque a tiros no Paraná e múltiplos casos de violência se intensificam contra ativistas sociais, população negra e LGBT+.

    Em abril de 2018, foi decretada a prisão do ex-presidente Lula em uma escancarada perseguição judicial desencadeada pela Operação Lava Jato. O PSOL se manifestou publicamente contra a decisão do STF por considerar que a súmula 122 do STF é “flagrantemente inconstitucional” porque a carta magna prevê o início do cumprimento de penas após o trânsito em julgado.

    Com a crise econômica, social e política que atingiu diferentes estratos sociais do país, surgiu a maior onda conservadora desde 1964 que levou ao poder pelo PSL, Jair Messias Bolsonaro – deputado federal, capitão da reserva do exército que nunca fez questão de esconder o viés ideológico bem próximo ao fascismo.

    A campanha de Bolsonaro, dirigiu-se a um público previamente conhecido, basicamente de classe média, e o povo que na maioria aderiu, foi fisgado pela insatisfação com o desemprego e a violência urbana. O objetivo foi potencializar e transformar a insatisfação em ódio.

    Vimos uma campanha da extrema direita bem azeitada por uma máquina de propaganda eleitoral no WhatsApp e Facebook que difundia fake news de forma maciça contra os candidatos das chapas do PT e do PSOL.

    Chapa histórica

    Apesar das dificuldades de um cenário de fragmentação das esquerdas, tempo reduzido de propaganda eleitoral gratuita, desigualdade na distribuição do fundo especial de financiamento de campanha, o PSOL apresentou nesse pleito uma chapa histórica com o líder social do MTST, Guilherme Boulos, e Sônia Guajajara, a principal liderança indígena do país e reconhecida internacionalmente como uma ativista da pauta ambiental.

    O partido avançou significativamente com a resistência negra, feminista e LGBT, impulsionadas pelo legado de Marielle, ampliando a presença na Câmara dos Deputados em uma bancada com dez parlamentares composta por 50% de mulheres.

    Em uma eleição marcada pelo ódio, o PSOL plantou sementes de esperança para o futuro, levando pautas importantes para o debate, como a da reforma agrária, a luta por moradia, a defesa dos movimentos sociais, a defesa de pautas das mulheres, dos negros e negras e LGBT+.

    Crise e disputa

    Na resolução do Diretório Nacional do PSOL, publicada em outubro de 2019, já estava explícita a importância das próximas eleições para o partido, considerando o cenário político nacional.

    O que não se esperava era que 2020 seria o ano da mais grave crise sanitária mundial, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, causando um incalculável prejuízo humano.

    A campanha aconteceu de forma atípica, tendo que se adaptar aos protocolos de biossegurança estabelecidos pelas autoridades sanitárias, o que forçou o adiamento da votação de outubro para novembro e a mudança na legislação que impediu as coligações para as eleições proporcionais.

    Para a surpresa de muitos, 2020 foi o ano em que o PSOL ultrapassou todas as limitações e ocupou o seu espaço no mapa político brasileiro impulsionado pelo poder popular. A chapa Boulos e Erundina conseguiu o melhor resultado no PSOL desde que o partido começou a disputar eleições para a Prefeitura de São Paulo, trazendo ao debate as pautas do combate às desigualdades, a defesa do Estado como promotor do bem-estar social, do combate ao racismo, à LGBTfobia e ao patriarcado, em uma campanha muito energizada pela juventude.

    Capital político

    Guilherme Boulos saiu dessa eleição com um ganho enorme de capital político, principalmente por alavancar nas redes sociais uma campanha que foi novidade, em forma e conteúdo.
    Em Belém (PA), mesmo com a avalanche de fake news, Edmilson Rodrigues chegou ao segundo turno e conquistou a prefeitura com 51,76% dos votos.

    Em outros três municípios o PSOL também saiu vitorioso das eleições. Elegeu Salomão Gurgel em Janduís (RN), Edson Veriato em Potengi (CE), João Alfredo em Ribas do Rio Pardo (MS), e Cido Sobral em Marabá Paulista (SP).

    O PSOL vem crescendo e criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, fazendo da democracia nossa casa comum

    O compromisso histórico do PSOL com um projeto coletivo, amplo e contínuo de emancipação e transformação social segue se confirmando nas urnas a cada eleição. Agora, o partido também conta com 90 mandatos nas câmaras municipais, nas cinco regiões do país, sendo 34 deles liderados por mulheres, 43 negras e negros eleitos pelo partido, 4 mandatos de mulheres trans e outros 10 mandatos coletivos. Do total de mandatos, 53 foram eleitos em capitais ou cidades acima de 200 mil habitantes.

    Com a substituição de Edmilson Rodrigues na Câmara dos Deputados pela jovem negra Vivi Reis, a bancada do PSOL passou a ser a única do país a ter maioria feminina.
    O PSOL vem crescendo de forma orgânica e consistente, criando uma nova pedagogia de ação política à esquerda, ancorado no ideal de construção de uma nova sociedade, sem abrir mão dos valores em nome de pragmatismo, seguindo apoiado nas lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores do Brasil, dos movimentos sem-teto e dos coletivos de cultura e educação popular fazendo da democracia nossa casa comum.

    O partido tem mostrado compromisso nas discussões sobre raça, gênero, pautas LGBT e indígenas. Falar sobre tais temas é falar sobre a desigualdade, a pobreza e a violência no Brasil agravadas radicalmente pelo cenário alarmante da pandemia e do governo genocida de Jair Bolsonaro.

    *Cris Duarte é psicóloga, Diretora da revista Empodere e Dirigente do PSOL/Campo Grande.

  • Qual é o lugar do PSOL na crise nacional? . Por José Correa Leite

    Qual é o lugar do PSOL na crise nacional? . Por José Correa Leite

    Qual é o lugar do PSOL na crise nacional?

    A palavra “crise” é tão repetida que tende a se tornar banal. Ela funciona como sinônimo de retrocesso e desconstrução sistemáticos ou recorrentes. Há uma particularidade no Brasil atual. Tudo indica que rumamos para mudanças de qualidade diferente, de acúmulo explosivo de conflitos e de indeterminação. Seria um tempo que os gregos – em contraposição a chronos – chamavam de kairós. Ou seja, um tempo qualitativo, das oportunidades, no qual se pode tragar rapidamente o que foi pacientemente construído. Mas ele também abre oportunidades de novos começos

    Por José Correa Leite

    Estamos em meio à mais grave crise da história do Brasil. É possível que terminemos 2021 com 800 mil ou mesmo um milhão de mortos pela Covid-19. As estatísticas demográficas já registravam, em maio, não apenas os 400 mil mortos oficiais, porém 600 mil mortos a mais do que se esperaria sem a pandemia. A miséria cresce de maneira galopante e a fome ressurge no país. A expectativa de vida média da população já regrediu em dois anos. A floresta Amazônica está no limiar de um colapso que pode impactar toda a humanidade. Jair Bolsonaro, um extremado expoente da direita neofascista, promove a destruição da vida como política.

    O ex-capitão chegou ao Palácio do Planalto como catalisador de uma vasta coalizão de interesses, prometendo uma rota de fuga ultraliberal para uma crise nacional. Essa crítica “antissistema” da extrema direita ao globalismo cosmopolita neoliberal esteve, desde o início, animada por Trump e prosperou em sua esteira depois. Ela agora se enfraquece com a derrota diante de Joe Biden

    O quadro de decadência e crise do Brasil já vem de longe, assim como o mal-estar que ele gera, que permitiu a eleição do atual presidente. Seu marco é global: a civilização capitalista, financeirizada, produz bens supérfluos e deixa de produzir os essenciais, comprometendo os processos de reprodução social. Essa civilização agrava as desigualdades sociais – de classe, gênero, raça -, regionais e internacionais; aprofunda por toda parte o autoritarismo político; e continua a nos conduzir para uma hecatombe climática, com uma sexta extinção em massa da vida no planeta. Não parece haver dúvidas que vivemos, nos dias que correm, deslocamentos tectônicos, mudanças de alcance secular, só análogos aos que ocorreram nas grandes guerras da primeira metade do século XX. O caso do Brasil é, de qualquer forma, extremo e a luta para derrotar Bolsonaro organiza, hoje, a disputa política no país.

    Crise é um termo tão repetido que parece se tornar banal, sinônimo de retrocesso e desconstrução sistemáticos ou recorrentes. Mas tudo indica que estamos sendo conduzidos, ao menos em nosso país, a um tempo de qualidade diferente, de acúmulo explosivo de conflitos, indeterminação e escolhas, um tempo que os gregos – em contraposição a chronos – chamavam de kairós. Um tempo que, se pode tragar com rapidez o que foi pacientemente construído, também abre oportunidades de novos recomeços.

    O país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, com a abertura da economia por Collor, mantendo forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, essas camadas priorizaram suas raízes fundiárias, extrativistas, predadoras, primário-exportadoras e autoritárias, representadas pelo Centrão e defendidas em políticas executadas tanto pelos governos do PSDB como do PT

    A pergunta da qual não podemos escapar é: o que é e será do PSOL em meio a tudo isso? Criado há 15 anos como ferramenta de resistência, mas também com grandes ambições estratégicas, ele parece, hoje, deixar-se levar pelas ondas de uma grande tempestade. Tocar uma política rotineira, mesmo com as justificativas mais sensatas, é, numa situação muito extraordinária, uma insensatez.

    Decadência, crise nacional e mal-estar

    Grande parte das esquerdas críticas no Brasil compartilham de um diagnóstico: Bolsonaro e o bolsonarismo expressam determinações mais profundas dos processos em curso, nacionais e internacionais. O ex-capitão chegou ao Palácio do Planalto como catalisador de uma vasta coalizão de interesses, prometendo uma rota de fuga ultraliberal para uma crise nacional. Fez isso como parte de um projeto global – uma resposta nacionalista de setores burgueses de muitas partes à nova era de estagnação da acumulação produtiva e reorganização geopolítica do mercado mundial, cujo centro de gravidade se deslocou, depois de 2008, para o Pacífico. Essa crítica “antissistema” da extrema direita ao globalismo cosmopolita neoliberal esteve, desde o início, animada por Trump, prosperou na sua esteira depois de 2016 e, agora, enfraquece-se com a derrota frente a Biden. Foi a incapacidade de responder à pandemia que rapidamente golpeou a popularidade de Trump e acentuou as fragilidades e contradições do projeto e do bloco que o sustentava.

    Todavia, o Brasil, à diferença dos EUA, vive uma crise muito mais profunda e aguda, que se tornou patente para todos, pelo menos, desde 2013. Então, a percepção do longo processo de decadência de suas estruturas produtivas, desarticulação da capacidade de ação do Estado, escalada da precariedade e insegurança sociais, falta de sentido para a participação em projetos coletivos e crise ambiental, manifestou-se como mal-estar de amplos setores frente à ausência de perspectivas e projetos de todas as forças políticas em cena.

    O marco constitutivo dessa crise nacional é extenso. O Brasil foi capaz de transformar-se, na segunda metade do século XX, em um país urbano-industrial, com a produção manufatureira (excluindo mineração e construção civil) atingindo, em 1985, 21,6% do PIB. A indústria brasileira era então uma das mais modernas do mundo.

    Quinto país com maior território e população do mundo, o Brasil parecia estar destinado a se transformar em um grande pólo capitalista e reestruturou suas esquerdas a partir das lutas da classe operária fordista. Mas o país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, com a abertura da economia por Fernando Collor de Mello, mantendo uma forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, essas camadas priorizaram suas raízes fundiárias, extrativistas, predadoras, primário-exportadoras e autoritárias, representadas pelo Centrão e defendidas em políticas executadas tanto pelos governos do PSDB quanto do PT.

    Dessa maneira, a inserção do país na ponta da divisão internacional do trabalho refluiu e a economia se reprimarizou: em 2004 a participação da indústria era de 17,9% do PIB; e em 2015 havia caído para apenas 9% – um ônus colossal da aposta dos governos petistas no boom das commodities. O Brasil passou de sétima para a 12ª economia do mundo e voltou a ser um país agroexportador, com poucas ilhas de excelência industrial e tecnológica. Dos anos 1990 em diante, o país entregou passivamente os setores digital e farmacêutico – para mencionar só dois – para as corporações norte-americanas, em um momento em que todas as “potências intermediárias” procuravam dominar essas tecnologias. O agronegócio, a mineração e a extração petroleira se tornaram bem mais capital-intensivos, mas em uma sociedade que 85% da população é urbana e o setor de serviços somente se sofistica associado à inovação tecno-científica. Em paralelo e em decorrência dessa decadência, a estrutura social voltou a se simplificar e os horizontes de mobilidade social se fecharam.

    Essas mudanças regressivas não são somente reflexo da reorganização global do capitalismo ou da dominação imperialista (embora também o sejam), mas resultado de escolhas feitas pelos atores políticos. Elas advieram internamente, de um lado, do “presidencialismo de coalizão”, consagrado com a Constituição de 1988 e uma nova “política de governadores”.

    De outro lado, da política econômica neoliberal, mantida intacta nos oito anos de governo do PSDB sob FHC e nos quase 14 anos de governos do PT, sob Lula e Dilma: a manutenção do tripé macroeconômico neoliberal de taxa de câmbio flutuante, metas de inflação e austeridade fiscal.

    Celso Furtado falava, em 1992, da construção interrompida do Brasil. Isso não era uma fórmula retórica, mas um diagnóstico arguto do que se passava; essa construção jamais foi retomada, porque isso exigiria uma política “re-industrializante”. E todos esses governos compartilharam também do extrativismo e da predação do meio ambiente, que derivam do lugar do país na nova divisão internacional do trabalho – que hoje coloca o Brasil no epicentro da crise climática.

    O resultado da transformação da população brasileira em consumidora sem cidadania ativa foi a neoliberalização da sociedade como um todo, a “destruição das estruturas coletivas capazes de barrar a lógica do mercado puro” (a definição de Bourdieu do neoliberalismo).

    Evidentemente, os governos Temer e Bolsonaro levaram as tendências regressivas a um ponto suicidário – o que não é desprezível – mas elas já vinham sendo ativamente construídas por FHC, Lula e Dilma com a “inserção pelo consumo”. O mal-estar incontido, crescendo há duas décadas, manifestou-se em 2013, sob Dilma, quando ficou evidente que o Brasil estava “perdendo o bonde da história”. O Brasil aparece para o povo como um país sem futuro nas correntes da História que vem se impondo no século XXI.

    Essa regressão e falta de perspectiva criada pelas políticas neoliberais atingem todo o tecido social. A precarização da vida nas últimas décadas não está ligada apenas às heranças do passado (do escravismo, do autoritarismo…), nem somente às idas e vindas da formalização das relações trabalhistas – que avançou sob os governos do PT, para depois retroceder. Elas se vinculam principalmente à natureza das atividades exercidas após o esgotamento da industrialização fordista, quando a geração de empregos urbanos passou a se dar em um crescente, amorfo e pauperizado setor terciário.

    Foi a mercantilização generalizada da vida que resultou numa sociedade em desagregação, de indivíduos desamparados, “empreendedores” jogados no mercado sem freios, que se tornou neopentecostal (na sequência da destruição da Teologia da Libertação por João Paulo II), acolheu Bolsonaro e elogia o darwinismo social, porque ele expressa suas condições de vida. Bolsonaro, como outros dirigentes neofascistas, não discute políticas sociais, defende – contra o liberalismo cosmopolita – uma concepção de mundo orgânica a essa nova realidade do capitalismo ultraliberal. Nenhuma outra esteve à altura de se contrapor a ela!

    A precarização da vida nas últimas décadas não está ligada apenas às heranças do passado (do escravismo ao autoritarismo), nem somente às idas e vindas da formalização das relações trabalhistas. Elas se vinculam principalmente à natureza das atividades exercidas após o esgotamento da industrialização fordista

    A economia brasileira percorreu, nos últimos trinta anos, um caminho inverso ao que tinha seguido entre 1930 a 1990, e também ao de muitos países do Leste Asiático. A tessitura da sociedade brasileira é, hoje, quase irreconhecível em comparação a dos anos 1980, que formou a última grande geração política da esquerda no país – esta que não conseguiu apresentar uma saída do Brasil do neoliberalismo e terminou criando as condições nas quais viceja uma extrema direita reciclada. Essa é a raíz, para qualquer análise estrutural e materialista, do profundo mal-estar que acomete todas as classes populares no Brasil, que as colocam contra o que, de conjunto, percebem como sendo o “sistema” e a política nele institucionalizada. É para essa crise que a esquerda ainda precisa apresentar, ao menos, um horizonte de saída.

    Bolsonaro aprofunda a crise de perspectivas

    O governo Bolsonaro, prometendo uma saída para a crise nacional, a agudizou, acelerando o desmanche e o isolamento do país. A combinação de ultraliberalismo com neofascismo não atingiu apenas as camadas populares, mas contribuiu também para deteriorar o ambiente de negócios para o grande capital nas condições do capitalismo global. O que viceja, sob seu império, é uma lumpen-burguesia incapaz de estabelecer sua hegemonia no seio da classe dominante, mas cujos dirigentes ambicionam acaudilhar uma mobilização permanente da revolta popular.

    Na coalizão instalada no Planalto em janeiro de 2019, todo mundo vigiava todo mundo. Com a saída de Sérgio Moro do governo, em abril de 2020, foi Rodrigo Maia que passou, desde a presidência da Câmara, a cumprir o papel de limitar os danos que o presidente e seu círculo promoviam aos negócios da grande burguesia globalizada. Porém, buscando se livrar da tutela de Maia, Bolsonaro se aliou e teve que entregar grande parte do seu governo ao Centrão – vitorioso nas eleições deste ano para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

    Um mês depois, em março de 2021, o ex-presidente Lula teve as condenações contra ele retiradas pelo ministro Edson Fachin, até então um dos ativos defensores da lawfare encabeçada por Moro. A volta de Lula à cena foi uma admissão de derrota do centro neoliberal, de sua incapacidade de lidar sozinho com a extrema direita.

    A habilitação dos direitos políticos do ex-presidente pelo STF – o mesmo que chancelou sua condenação em 2018 – redefiniu o quadro político, que vem se tornando crítico para a grande burguesia. Essa iniciativa busca canalizar as energias da oposição a Bolsonaro para o processo eleitoral de 2022. O que move o andar de cima não é uma identidade com Lula, mas uma tentativa de constranger Bolsonaro, embaralhar o jogo e tentar cavar um espaço que viabilize uma candidatura da direita tradicional. É uma iniciativa para organizar o jogo político, focando também as aspirações populares para a institucionalidade eleitoral.

    A disputa de 2022

    Agora, toda a política institucional está se posicionando para a disputa eleitoral de 2022, trabalhando para “sangrar Bolsonaro”. Os cálculos pragmáticos começam a imperar entre as lideranças que se consideram com densidade eleitoral. Na esquerda, tudo parece girar ao redor da candidatura presidencial de Lula, que emerge fortalecida do reconhecimento da parcialidade de sua condenação. Mas a instabilidade vai se agudizar e não arrefecer, como já percebemos com a dinâmica da CPI no Senado sobre a Covid e o agravamento da pandemia. A própria presença de Bolsonaro na presidência é, depois da tentativa de golpe de Trump nos EUA, um convite à aventura. Dar o processo institucional por garantido é uma temeridade.

    A habilitação dos direitos políticos de Lula pelo STF redefiniu o quadro político, que vem se tornando crítico para a grande burguesia. O que move o andar de cima não é uma identidade com Lula, mas uma tentativa de constranger Bolsonaro, embaralhar o jogo e tentar cavar um espaço que viabilize uma candidatura da direita tradicional

    A pergunta-chave para decifrar o atual emaranhado político é: o Brasil poderá continuar mais 18 meses nesta situação? Em todo o continente, com os mesmos problemas da pandemia que o Brasil, a resposta está sendo a impaciência das massas que saem às ruas.


    A pandemia produz um trauma inédito em nossa história

    Sem desprezar a importância da luta pelas vacinas, essenciais para combater de forma duradoura a Covid-19, a realidade que vemos pelo mundo é que ainda não há no horizonte soluções duradouras para as atuais crises sanitárias

    Seja no dimensionamento da crise e na luta social, seja na luta contra Bolsonaro, seja na articulação institucional, o tema da pandemia é chave, condicionando os demais. E ela tem uma urgência e um impacto definidor, análogo ao de uma guerra civil de grandes dimensões pelo número de mortos.

    A doença é radicalmente agravada em nosso país pelo apartheid social e pelas desigualdades amplificadas por quarenta anos de neoliberalismo. Ela estabelece uma sinergia perversa com a crise econômica e social e com uma política deliberada de genocídio. Quantos mortos teremos em outubro de 2022 se Bolsonaro seguir no palácio do Planalto?

    Sem desprezar para nada a importância da luta pelas vacinas, essenciais para combater de forma duradoura a Covid-19, a realidade que vemos pelo mundo é que ainda não há no horizonte soluções duradouras para as atuais crises sanitárias. Elas parecem cada vez mais complexas, com variantes do vírus e escassez de imunizantes, divisões sociais deletérias e desespero dos pequenos negócios, nacionalismo de vacinas e luta pela suspensão de patentes, disputas geopolíticas e sinais de uma agressiva transição produtiva conduzida por Washington. Além disso, somam-se os problemas da novidade da doença: temos indicações que uma parcela daqueles que contraem a enfermidade ficam com sequelas significativas. A doença atinge cada vez mais jovens e reinfecções são possíveis. O caso do Chile mostra que a vacina reduz o número de mortos, mas é bem menos eficaz para barrar a transmissão do vírus.

    As esquerdas precisam romper com o senso comum (que a mídia e os governantes inoculam) de que a imunização seria o bastante para conter a pandemia e “voltar à normalidade”. O Brasil não é uma ilha (como a Inglaterra ou a Austrália), ou uma sociedade de vigilância total (como Israel ou a China).

    A pandemia é, em nosso país, radicalmente agravada pelo apartheid social e pelas desigualdades amplificadas por quarenta anos de neoliberalismo. Ela estabelece uma sinergia perversa com a crise econômica e social e com uma política deliberada de genocídio.

    Não há como o país conter as ondas de contágio que se sucederão no abre e fecha dos negócios e a sequela de mortos. Necessitaríamos uma combinação de vacinas com políticas nacionalmente articuladas de distanciamento social – que se revela impossível sob o governo Bolsonaro. A probabilidade de que a pandemia se encerre no Brasil em 2021 é zero. Quantos mortos teremos em outubro de 2022 se Bolsonaro seguir no palácio do Planalto? Quantos milhões carregarão as cicatrizes da enfermidade pelo resto de suas vidas? Por isso, também, a tática de deixar Bolsonaro “sangrar” até as eleições de 2022 é um equívoco profundo.


    O partido, um projeto rebelde e suas fragilidades

    Em 2022 o Brasil completará 200 anos de existência como Estado formalmente independente, com a construção da nação soberana ainda por ser empreendida. O lugar do PSOL na política brasileira será definido pelo que ele tiver a dizer sobre isso, pela capacidade de intervir no tempo crítico que nos toca viver

    O PSOL surgiu para acolher as esquerdas socialistas que se rebelavam contra o enquadramento do governo Lula pela ordem neoliberal. Foi um pequeno, mas importante espaço de resistência das ideias e práticas socialistas quando grande parte das esquerdas se deslocavam para um pragmático reformismo social-liberal. Isso não se passou somente com o PT e o campo democrático e popular no Brasil, mas com o progressismo latino-americano, embora a corrente bolivariana desdobrasse mais contradições com a ordem geopolítica vigente.

    O papel do PSOL ficou mais nítido no contexto global de sublevações populares contra as políticas de austeridade depois de 2011 e sua expressão nas mobilizações de 2013. O PSOL também soube se mover na conjuntura do golpe institucional de 2016, compreendendo a ameaça que se assomava para a democracia no país

    O PSOL foi, com o Bloco de Esquerda em Portugal, uma referência de partido socialista amplo e pluralista, capaz de fazer convergir o essencial do que a imprensa costuma chamar de extrema esquerda para processos sinérgicos de construção comum. E foi capaz, como o Bloco e diferente de outras experiências (como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha), de resistir à tentação de projetos reformistas de governo. Pelo menos até agora.

    O lugar do PSOL – como o partido das esquerdas rebeldes na cena brasileira – ficou mais nítido no contexto global de sublevações populares contra as políticas de austeridade depois de 2011 e a expressão aqui nas mobilizações de 2013. O partido ganhou mais sintonia com as manifestações da juventude feminista, antirracista e anti-homofóbica. O PSOL também soube se mover na conjuntura do golpe institucional de 2016, compreendendo a ameaça que se assomava para a democracia no país, por vezes com mais coerência que o próprio PT, defenestrado do governo.

    O Partido Socialismo e Liberdade se formou como uma federação de tendências, organizações e correntes – um barco capaz de dar guarida a todos os socialistas -, ao mesmo tempo em que buscava oferecer espaços de militância para ativistas não filiados a nenhuma delas. As correntes se alinhavam e realinhavam ao sabor das disputas das conjunturas. Todavia, não fomos capazes de avançar em nada na democratização da vida partidária

    O partido foi, assim, capaz de acolher deslocamentos políticos de outros partidos e, em 2018, sob o impacto do assassinato de Marielle Franco, dar um salto como espaço que acolhia lutadores sociais de várias esferas. Se com Guilherme Boulos dialogava mais fluidamente com bases sociais petistas, com Sonia Guajajara, o PSOL começava a assumir, na prática, uma crítica ecossocialista mais consistente ao desenvolvimentismo e à visão progressista da sociedade. O resultado foi o atual perfil da representação parlamentar do partido, com a eleição de 10 deputados federais e 18 estaduais, além de Edmilson Rodrigues como prefeito de Belém – mais da metade mulheres com grande número de negres e LGBTs.

    Todavia, essa trajetória se deu empiricamente, sem debater e enfrentar uma série de problemas decisivos para qualquer projeto político de caráter antissistêmico.

    Enuncio a seguir alguns deles:

    1) A clássica “questão parlamentar”, debatida desde os tempos da operária social-democracia alemã (século XIX), ganhou, por todas as partes, contornos muito mais decisivos nas últimas décadas, com o sequestro da política pelo mercado e a perda de credibilidade da representação partidária nas democracias liberais. Mas, para além disso, em uma estrutura social tão absurdamente desigual, como a brasileira, a intervenção parlamentar é completamente insuficiente como agenda de disputas. Ela precisa se vincular aos setores mais dinâmicos da luta social e política, às contradições candentes e atores decisivos da formação social brasileira, às tarefas históricas não resolvidas e aguçadas pela crise nacional.

    Nos marcos do sistema político brasileiro, em que o voto é nominal, os mandatos sempre se configuraram em elementos de esgarçamento da dinâmica autônoma dos partidos políticos. No PT, esses centros autônomos de poder já semeavam o terreno, na década de 1990, junto a executivos municipais e estaduais, de cooptação do partido pelo aparato do Estado. Mas, depois de 2013, com o reflexo de autoproteção das oligarquias abrigadas no sistema partidário e a proscrição do financiamento empresarial de campanhas, tivemos uma grande expansão do uso dos fundos públicos pelos partidos.

    Fundo partidário, fundo eleitoral, verbas para a Fundação partidária, gabinetes de liderança em cada nível, tempo de televisão e verbas, por vezes muito vultosas, de gabinete tornam qualquer partido com uma representação partidária significativa, uma máquina que busca se autorreproduzir de eleição em eleição. Completando a pressão pela institucionalização e estatização da política, acresce-se uma cláusula de barreira que pressiona pelo desempenho eleitoral crescente. Parlamentares, por vezes, projetam-se por cima do partido, particularmente quando fortalecidos em disputas majoritárias, algo em nada estranho às tradições caudilhescas da política latino-americana.

    Mas não criemos mal-entendidos: nenhuma dessas observações deve ser entendida como antiparlamentarismo; parlamentares assumem um papel central na visibilização de agendas, na iniciativa política junto ao estado, no acesso midiático, no diálogo público contemporâneo. Precisamos de um partido forte, democrático e politizado para potencializar a intervenção de nossos melhores parlamentares. Mas cada um dos problemas apontados e ainda mais todos juntos carregam questões para a atual “forma partido” que não podemos naturalizar em um projeto antissistêmico. Que isso não seja tematizada no PSOL mostra o quanto estamos navegando em piloto automático.

    2) O PSOL pactuou, em sua trajetória, sucessivas variações de um projeto antineoliberal. Das candidaturas presidenciais de Heloísa Helena, Plínio Sampaio e Luciana Genro, seguimos uma trajetória que, com idas e vindas, foi cumulativa.

    Posteriormente, adentramos às sucessivas conjunturas de aguçamento da crise nacional e aceleração brutal da história – e não só no Brasil: as corporações de plataforma ocuparam o lugar das grandes empresas fordistas; a financeirização escala; a China se candidata a hegemon do capitalismo global; a emergência climática e a perda de biodiversidade vão para o centro da agenda progressista, desigualdades de toda ordem também se aprofundam e um projeto neofascista disputa o descontentamento com o globalismo cosmopolitismo. Analiticamente, isso significa alteração na morfologia das classes, identidades sociais, relação da sociedade com o estado, relação do nacional e do global, na própria ideia de uma sociedade que “domina” a natureza.

    Por todas as partes o socialismo vem se metamorfoseando em ecossocialismo, mas o que seria uma transição ecossocial no Brasil? Como requalificar o sentido do progresso, nesta fase crítica da nossa história? No mundo em que as corporações de plataformas desqualificam o trabalho e promovem o colonialismo global de dados, como garantir renda e emprego, cooperativas e redução da jornada? Como limitar o impacto do comércio internacional sem recair nos velhos autarquismos? Como retomar o projeto do altermundialismo e estruturar hoje uma prática de solidariedade internacionalista – cada vez mais decisiva – a partir do Brasil, em uma América Latina em chamas? Já que a conflitividade social escala por todas as partes, com a luta das mulheres e das populações racializadas ocupando um lugar estratégico e galvanizado o movimento de conjunto, como impulsionar o sujeito popular interseccional? Como promover a mudança social a partir da auto-organização popular?

    Essas e outras questões análogas não serão respondidas nas disputas de encontros dominados pela “contagem de garrafas”. Exigem articulação entre teoria e prática por um partido que tenha abertura política, vida pluralista e autoridade moral junto a largos segmentos sociais. Aqui, como no ponto anterior, seguimos, por enquanto, navegando no rumo previamente estabelecido pelo piloto automático.

    3) O PSOL se formou, corretamente, como uma federação de tendências, organizações e correntes – um barco capaz de dar guarida a todos os socialistas -, ao mesmo tempo que buscava oferecer espaços de militância para filiados não alinhados a nenhuma delas. As correntes se alinhavam e realinhavam ao sabor das disputas das conjunturas. Frente a polarizações sempre existiam posições capazes de estabelecer as mediações entre os pólos e oferecer sínteses parciais. Mas, em 2016/18, com as posições táticas distintas frente ao golpe institucional e, posteriormente, com o PSOL integrando uma aliança eleitoral com outros componentes, essa dinâmica se alterou. Novos setores se integraram ao partido e crispações internas se aprofundaram, pretendendo ganhar ares estratégicos.

    Todavia, não fomos capazes de avançar em nada na democratização da vida partidária; o PSOL não é, enquanto tal, um espaço de organização para ativistas sociais que querem um espaço acolhedor de debate e organização fraternos, de alcance estratégico. O mundo digital também está transformando a maneira como se informam, agem e organizam o ativismo socialista contemporâneo, porém o partido até agora não conseguiu nem dinamizar o acesso horizontal à informação e ao debate entre os militantes nem montar uma intervenção nas redes sociais para além daquela dos mandatos e das candidaturas. O PSOL é, agora mais do que antes, um partido de correntes internas de muito peso que precisam conviver nesta difícil conjuntura crítica no Brasil.

    Mas uma estrutura de partido centrada na dinâmica das correntes e da disputa entre elas limita a capacidade de fazermos grandes debates estratégicos e construirmos coletivamente visão de médio e longo prazo. Precisamos potencializar estruturas partidárias voltadas às lutas concretas, como núcleos territoriais e ferramentas setoriais, que têm demonstrado muito mais capacidade de articulação das lutas sociais e permeabilidade a construções outras que não as de disputa de correlação de forças. Precisamos democratizar uma estrutura engessada que não pode ser naturalizada.

    A estrada adiante é árdua

    Temos diante de nós a luta crítica contra Bolsonaro, mas também o enfrentamento da pandemia, o encaminhamento de uma saída para a crise nacional e um PSOL com uma enorme importância estratégica, mas que também acumulou fragilidades críticas. “Qual é o lugar do PSOL na crise nacional?” é uma interrogação que está em aberto.

    O caminho até aquilo que muitos veem como o próximo ponto de encontro na luta de classes no Brasil, as eleições de 2022, é árduo. Não negamos a importância, mas tomá-lo como dado é temerário; para que isso acontecesse, Bolsonaro precisaria já ter sido derrotado.

    Vamos ter, em qualquer cenário, que articular a disputa social, a intervenção institucional e a busca de protagonismo de nossos porta-vozes, inclusive candidatos aos postos centrais em jogo, sob risco de desaparecermos da cena política, dominada pela polarização Bolsonaro e Lula. O PT, disputando alianças no centro e na direita, certamente não tem interesse em nos abrir a porta para um debate programático; vamos ter que arrombá-la, no diálogo com amplos setores. Temos a tarefa de conduzir nosso partido e o projeto estratégico para a conjuntura pós-2022, à quente, enfrentando nossas debilidades.

    Nenhum dos problemas reais com os quais se defrontam os militantes de uma agremiação de esquerda que se propõe a mudar a sociedade será resolvido pelos jogos de maiorias e minorias fugazes em disputas congressuais, ainda mais nas condições excepcionais da pandemia

    Pode-se argumentar: como enfrentar tais desafios em uma conjuntura tão adversa? Mas é precisamente a conjuntura adversa que nos força a enfrentarmos essas questões, como foi o caso de toda formação partidária que soube cumprir o papel que se propôs na história. A invenção, diz o ditado, surge da necessidade! O que vamos propor para aqueles que nos acompanharam na trajetória de construção do PSOL até agora? Que leiam um caderno de teses para o Congresso do partido?

    Definiu-se um processo de Congresso que, muito provavelmente, enfrentará muitas dificuldades operacionais por conta da pandemia. Estamos, no final do primeiro semestre, em um platô de dois mil mortos por dia, e em breve entraremos no inverno, desaconselhando qualquer forma de reuniões presenciais (lembremos que os países do hemisfério norte estão agora na primavera rumando para o verão…).

    O processo de vacinação no Brasil – que não resolve o problema, mas já ajuda – somente ganhará escala no final do ano, quando os países centrais terminarem a imunização. Não é o que muitos gostariam, mas é o que a realidade está nos impondo.

    De qualquer forma, nenhum dos problemas reais com os quais nos defrontamos no PSOL será resolvido pelos jogos de maiorias e minorias fugazes em disputas de Congressos, ainda mais nas condições excepcionais da pandemia.

    Em 2022 o Brasil completará 200 anos de existência como Estado formalmente independente, com a construção da nação soberana ainda por ser empreendida. O lugar do PSOL na política brasileira será definido pelo que ele tiver a dizer sobre isso, pela capacidade de intervir no tempo crítico que nos toca viver. Os desafios colocados exigem uma resposta que combine deslocamentos políticos com o debate e a pactuação interna entre correntes, blocos e campos que permitam a construção de um projeto estratégico e uma hegemonia política legítima, que ainda não existem.

    *José Correa Leite é professor universitário e ativista ambiental.

  • Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Uma pergunta para Juca Kfouri – Por que os atletas e o mundo do esporte são tão conservadores?

    Toda a lógica do esporte profissional, com patrocínios milionários, investimento em bolsas, transmissões em rede mundial, marketing associado e fortunas destinadas a quem chega ao topo da carreira reproduzem a lógica acelerada dos mercados globais. Seria uma surpresa se os agentes dessa estrutura – aí incluídos os atletas – não tivessem em mente o objetivo de se darem bem a qualquer custo

    Por Gilberto Maringoni

    “O atleta, por definição, no exercício da carreira, é um ser individualista, voltado para o próprio umbigo, para bater recordes, para ganhar o jogo no domingo, para ser campeão, para aproveitar ao máximo o tempo curto de sua trajetória, e enriquecer. Essa é a razão pela qual aqueles que são bem-sucedidos, em regra, reproduzem o discurso do poder e da elite.

    Querem carro blindado, morar em condomínios fechados e pena de morte para quem sai da linha. ‘Não me venha tomar aquilo que conquistei a tão duras penas’. Como visão de coletividade, atendem, no máximo, à família, aos amigos e a sua corriola. A sociedade que se dane.

    Isso tanto é verdade, que você conta nos dedos os esportistas, no mundo todo, que se notabilizaram por posições políticas corajosas e libertárias. É o caso do Muhammad Ali, que perdeu o cinturão dos pesos-pesados por se recusar a ir ao Vietnã; é o caso de Tommie Smith e John Carlos, americanos que fizeram a saudação Black Power no pódio dos 200 metros rasos nas Olimpíadas do México (1968), e se ferraram, perderam as medalhas e nunca mais competiram; é o caso da Democracia Corintiana, do Bom Senso Futebol Clube, do Maradona e do Sócrates, para ficarmos em alguns.

    Você conta nos dedos os esportistas, no mundo todo, que se notabilizaram por posições políticas corajosas e libertárias. É o caso do Muhammad Ali, que perdeu o cinturão dos pesos-pesados por se recusar ir ao Vietnã; é o caso de Tommie Smith e John Carlos, americanos que fizeram a saudação Black Power nas Olimpíadas do México (1968), e se ferraram; é o caso da Democracia Corintiana, do Bom Senso Futebol Clube, do Maradona e do Sócrates, para ficarmos em alguns

    Atletas dessa linhagem podem ser vistos num filme que está no YouTube, chamado ‘Os rebeldes do futebol’, cujo âncora é craque francês Éric Cantona, que ficou famoso ao dar uma voadora num torcedor fascista do Crystal Palace. O vídeo foca cinco jogadores que se notabilizaram pela atividade política. São eles Sócrates, Carlos Caszely – o chileno que se recusou a cumprimentar o Pinochet –, um africano, e dois da velha Iugoslávia que se posicionaram durante a guerra dos Bálcãs.

    Posso agregar nessa turma também o Tostão. Ele ficou conhecido como ‘antiditadura’ por dizer ser um absurdo o jogador de futebol ganhar o que ganhava, e professor ganhar tão pouco.

    Contando nos dedos de uma mão

    Um dia, telefonou-me o Daniel Cohn-Bendit, o Dany Le Rouge, do Maio de 1968 francês, dizendo que viria ao Brasil para fazer um documentário sobre a Copa do Mundo de 2014. Ele pegou uma Kombi e saiu pelas periferias, entrevistando gente. Ficou muito interessante. Ao me entrevistar, perguntou: ‘O que explica o fato de o jogador de futebol brasileiro ser tão consciente politicamente?’ Eu perguntei de onde ele havia tirado aquilo, e ele falou sobre Sócrates, Afonsinho, Reinaldo, Paulo Cézar Caju… E eu respondi: ‘Continue e você não vai encher os dedos de duas mãos’. Daniel falou do Wladimir, do Casagrande, e parou por aí. Realmente não tinha mais. E me provocou: ‘Agora me diga 10 jogadores europeus’. E eu também não sabia dizer, porque não tinha.

    Oportunismo dos clubes

    Recentemente o Boca Juniors e o River Plate se uniram num movimento de denúncia da ditadura argentina, no aniversário do golpe de 1976. Ótimo! Mas por que esse movimento atual não aconteceu, por exemplo, quando Mauricio Macri era presidente? O Macri se fez na política via Boca Juniors, e ninguém no período dele contestou os aniversários do golpe na Argentina. Ou seja, aí também há um pouco de oportunismo. Os presidentes de clubes do Brasil bajularam Lula enquanto esteve no poder. Essa é a realidade do esportista, infelizmente. Não é muito diferente.

    No caso do Brasil, há algo que não é exclusivo do esporte: a baixa consciência política do cidadão. Isso acontece até mesmo no movimento sindical. Os sindicatos de jogadores na Argentina e no Uruguai são fortíssimos, fazem greve quando os clubes cortam salários. Se um clube da segunda divisão parar de pagar, a primeira divisão para inteira. Aqui, não. E por quê? Os caras não foram à escola, não têm curso secundário completo. Isso se expressa até no entendimento do jogo. Os jogadores argentinos e uruguaios são muito mais capazes de obedecer a um esquema tático do que os brasileiros.

    Universo racista

    Lamentavelmente, a miscigenação existente no Brasil não é um fator de democratização das consciências, quando nos comparamos a outros países. Tanto é que só agora, muito recentemente, a questão do racismo começou a aparecer para jogadores e treinadores brasileiros. E o futebol é um universo particularmente racista. Basta você olhar quais são os treinadores brasileiros negros. Qual treinador negro brasileiro dirigiu a seleção? Não há um cartola negro. Como treinador, tivemos o Didi, que foi à Copa do Mundo dirigir o Peru, mas não o Brasil. Depois do Barbosa, convocado entre 1949-53, levamos anos para termos um goleiro negro na seleção brasileira. Houve o Manguinha, em 1966, que se deu mal, e depois o Dida, nos anos 1990, que foi o primeiro titular desde o Barbosa.

    A Democracia Corintiana

    Os próprios integrantes da Democracia Corintiana não gostam nem um pouco que eu diga, e eu não digo para todo mundo, mas a primeira coisa a se levar em conta, e que não diminui em nada o movimento é que ele se deu com a anuência da direção do clube – do Adilson Monteiro Alves, que depois se perdeu no governo Quércia. Hoje, o filho é presidente do Corinthians, em acordo com Andrés Sanchez. São da mesma corriola. Adilson foi o cara que chegou lá, pegou aquele grupo que estava na então série B do campeonato brasileiro a Taça de Prata, e disse: ‘Não sei como fazer, só sei que o que estamos fazendo está errado. Qual é o jeito certo?’ Começou-se uma discussão e despontaram Sócrates, Wladimir e Casagrande.

    Só agora, muito recentemente, a questão do racismo começou a aparecer para jogadores e treinadores brasileiros. E o futebol é um universo particularmente racista. Qual treinador negro brasileiro dirigiu a seleção? Não há um cartola negro. Como treinador, tivemos o Didi, que foi à Copa do Mundo dirigir o Peru, mas não o Brasil. Quase não há goleiros negros

    O Magro era um médico com um pai de esquerda, que ele viu queimando livros no dia do golpe de 1964 e ficou muito marcado com isso. O Wladimir era um negro com uma capacidade de mobilização, de persuasão e de uma simpatia contagiantes. E havia um jovem revoltado chamado Walter Casagrande Júnior. Começou assim e a torcida impulsionou muito o movimento. A torcida do Corinthians sempre agiu de forma politizada. A primeira faixa aberta em público pela Anistia foi em um jogo do Corinthians contra o Santos, no Morumbi, com Chico Malfitani e Antônio Carlos Fon. Havia um clima favorável, que animou os jogadores e a direção do clube. Mas acabou. Como?

    Sempre dou o exemplo de como uma caçada de patos mudou a História da humanidade É o que Isaac Deutscher conta em seu livro sobre Trotsky. Diz ele que Trotsky, cansado, pediu férias para Lênin e foi caçar patos em uma região da Sibéria, em 1922. Mas pegou uma pneumonia e ficou por lá, ao mesmo tempo em que Lênin sofreu o primeiro baque do derrame. Enquanto Lênin ficava no hospital e Trotsky estava se recuperando da pneumonia, Stálin, que era subalterno do Partido Comunista da URSS, articulou para ser ele o número 1.

    Ali no Corinthians, de alguma maneira, aconteceu uma coisa semelhante. A Democracia Corintiana ganhou uma eleição com sócios, mas perdeu a seguinte, com conselheiros, elegendo aquele Roberto Pásqua, uma múmia, contra o Adilson. O Corinthians tinha acabado de ser bicampeão paulista e perdido um tricampeonato para o Santos num jogo lotérico, ou seja, estava tudo bem.

    O ambiente do futebol não é apenas conservador, é profundamente reacionário, avesso a qualquer tipo de mudança. Isso tem uma influência direta do fim da Democracia Corinthiana.

    Políticas públicas para o esporte

    Os governos petistas não fizeram uma política de esporte democrática. Perderam uma oportunidade de ouro. Primeiro, porque não se olhou para o esporte como atividade num país nas condições do Brasil. Aqui, o esporte deve ser um fator de saúde pública, antes de mais nada. Segundo a OMS, a cada dólar investido em democratização ao acesso à prática esportiva, economizam-se três dólares em saúde pública. Nós tínhamos de ter investido em prática esportiva como fator de saúde. Num país com as dimensões do Brasil, com essa quantidade de jovens, você tiraria qualidade com a mão, e poderia entregar para a iniciativa privada cuidar disso.

    A função do Estado era ter posto a população brasileira para fazer esporte, e criar uma política esportiva para o Brasil. O que não ocorreu, e eu os questionei por isso. A ideia de fazer campeões é absolutamente fora de contexto num país como o Brasil, embora, evidentemente, o campeão emule a população a fazer esporte. Tem esse aspecto, mas não se pode eleger como prioridade o ‘fazer campeão’ num país com os nossos problemas. Isso acaba, inclusive, sendo injusto com os atletas de alto rendimento, pois se exigia deles aquilo que não podiam dar. E muita gente dizendo: ‘Ah, o brasileiro, na hora H, treme. Quebra a vara da Fabiana Murer…’. Mas por quê? Porque toda a expectativa de vencer todos os nossos fracassos era colocada em cima deles. E eles eram poucos.

    Revelação de craques

    Tirando o futebol, que não precisava (e hoje precisa) ter grandes estruturas, os outros esportes sempre foram de geração espontânea no Brasil. O Guga, no tênis, apareceu porque o pai dele patrocinava, o chamado paitrocínio. No atletismo aparecia mais gente, por ser um esporte que exigia menos equipamento. Tivemos os campeões de salto triplo, Adhemar Ferreira da Silva, Nelson Prudêncio, João do Pulo. Podiam perguntar o que tem no Brasil para sermos bons em salto triplo, mas é o mesmo que perguntar o que temos para sermos bons em Fórmula 1. Manoel dos Santos, recordista mundial dos 100 metros livres na Olimpíada de Roma, em 1960, também era a exceção da exceção.

    Olimpíadas e Copa no Brasil

    O saldo, para nós, não foi positivo. As Olimpíadas são um evento que um país pode fazer para fechar uma política esportiva. Na hora em que uma Nação se transforma em olímpica, competitiva, aí se faz uma Olimpíada. Esse Carlos Arthur Nuzman, para enriquecer, convenceu Lula de que o evento seria o primeiro passo para fazer do Brasil um país poliesportivo.

    Não fez e não ficou nada. Ao contrário. Hoje, o bolsa atleta virou poeira, e os equipamentos estão todos sucateados no Rio de Janeiro. O que havia de instalações anteriores no Rio foi derrubado para se fazer Olimpíada, e não se fez nada no lugar. Foi um desastre do ponto de vista de legado. A festa foi linda, isso é inegável. A cerimônia de abertura e de encerramento, a Olimpíada em si transcorreu bem, mas nada justificava que o Brasil fizesse aquilo.

    Os governos petistas não fizeram política democrática de esporte. Perderam uma oportunidade de ouro. A função do Estado era ter posto a população brasileira para fazer esporte, e criar uma política esportiva para o Brasil. O que não ocorreu, e eu os questionei por isso. A ideia de fazer campeões é absolutamente fora de contexto num país como o Brasil

    É diferente de uma Copa do Mundo. Tudo justificava que o Brasil, que tinha feito em 1950, voltasse a fazer em 2014, um país cinco vezes campeão do mundo. Mas tínhamos que ter realizado a Copa do Brasil no Brasil, não a Copa da Ásia no Brasil, ou a Copa da Alemanha no Brasil, construindo 12 estádios quando a própria FIFA pedia oito. Fizemos 12 e queríamos ter feito 16. Dona Marina Silva queria fazer um estádio em Rio Branco, no Acre! Não há o que justifique não terem usado o Morumbi para os jogos em São Paulo, em vez de construírem um estádio em Itaquera.

    Os Estados Unidos da América não construíram nenhum estádio para fazer a Copa em 1994. A França construiu dois. Aqui, fizemos 12. Aqueles que estavam prontos derrubamos para fazer outros em cima. Maracanã, Mineirão… Derrubamos a cobertura do Maracanã, tombada pelo Iphan. Fizemos uma arena na Amazônia, em Manaus. Foi um absurdo. E, ainda, estimulou-se aquela coisa do ‘padrão FIFA’. Queremos uma escola padrão FIFA, um SUS padrão FIFA. Havia ali uma semente que redundou em tudo o que a gente sabe. Lula até hoje briga comigo quando falamos disso. Ele diz que não houve um tostão de desvio…”

  • Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Nas ruas da Colômbia, América Latina enfrenta seus dilemas

    Mesmo diante de tanques e helicópteros, a mobilização popular fez o governo retroceder, derrubando o ministro da Economia. A brutalidade repressiva funcionou como gasolina no fogo do descontentamento e isolou o país internacionalmente

    Por Ana Carvalhaes e Israel Dutra

    Numa das regiões que mais contribui para a alta global do número de casos e mortes pela Covid-19, em meio ao caos sanitário, desemprego, fome e desigualdade em escalada, trabalhadoras e trabalhadores, estudantes e jovens das periferias urbanas, camponeses, ribeirinhos, povos negros e indígenas encontram formas de se levantar em defesa da vida – contra os planos de austeridade assassina de governos de direita ou centro-direita.

    Seja qual for o desfecho momentâneo da situação, o que se passa na Colômbia é simbólico dos grandes dilemas econômicos e político-sociais da macrorregião. Mergulhados em crise global imprevista, destituídos dos ganhos extraordinários do boom das commodities das primeiras décadas do século, governos neoliberais precisam, mais do que nunca, lançar mão de planos de austeridade

    Depois das explosões de Equador e Chile em 2019 – que resultou em séria derrota para a direita, nas eleições constituintes -, da resistência ao golpe no Peru em 2020, e do levante paraguaio em março passado – contra a incompetência governamental no trato com a saúde – agora, é a vez da Colômbia. Não é detalhe que entrem em movimento, de forma radicalizada, os explorados do segundo país mais populoso da América do Sul, com tradição histórica de violenta guerra civil, de governos direitistas e bastião militar dos EUA na região.

    Unidade inédita

    O “Paro Nacional” colombiano de 28-29 de abril abriu um período de protestos massivos cotidianos, numa unidade inédita de movimentos urbanos, rurais, indígenas, ambientalistas e de juventude desempregada – esta, a vanguarda dos enfrentamentos violentos que resultaram em 47 mortes (39 delas pelo famigerado Esquadrão Móvel Antidistúbios, a Esmad), quase 600 desaparecidos, 968 prisões arbitrárias e 12 denúncias de violência sexual por parte das forças de repressão (dados de 14/05/2021).


    Urnas andinas projetam sinais contraditórios

    A crise econômica global de hoje, sem precedentes, e o acirramento do embate entre EUA e China tornam impossível a repetição de um novo período mais ou menos longo de estabilidade baseado no modelo de uma época em que o mundo crescia e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem maiores tensões. Os casos do Equador, Bolívia e Chile apontam na direção de um crescente espaço social e político para a construção de alternativas anticapitalistas


    Mesmo enfrentando tanques e ataques de helicópteros, a mobilização fez o governo retroceder da reforma tributária que acabou com a paciência popular, derrubando o ministro da Economia. A brutalidade repressiva funcionou como gasolina no fogo do descontentamento, isolou o país internacionalmente (Biden e ONU pediram calma e diálogo, diante da grita contra o massacre), não impediu a continudade dos atos de rua e fechamentos de avenidas e estradas, levando à renúncia da Ministra de Relações Exteriores. Ao mesmo tempo em que incentivava a repressão mais bárbara, o governo uribista de Ivan Duque chamava uma Mesa de Diálogo com entidades coordenadoras do Paro, para simplesmente não oferecer nada em troca da suspensão dos atos. Enquanto isso, Gustavo Petro, líder da Colômbia Humana, de centro-esquerda, e principal figura da oposição, via-se alçado a favorito para as eleições de 2022 e se valia dessa condição para chamar a paz social e desestimular o enfrentamento a Duque. Nas ruas, no entanto, jovens organizados para o confronto desigual diziam que preferiam morrer de tiro lutando, do que morrer da Covid-19 e fome.

    Dilemas continentais

    Seja qual for o desfecho momentâneo da situação, o que se passa na Colômbia é simbólico dos grandes dilemas econômicos e político-sociais da macrorregião.

    Mergulhados em crise global imprevista, destituídos dos ganhos extraordinários do boom das commodities das primeiras décadas do século, governos neoliberais precisam, mais do que nunca, lançar mão de planos de austeridade – cortes de gastos sociais, aumento de impostos e preços, privatizações. Nessa toada, enfrentam-se às necessidades cada vez maiores dos povos mergulhados na pobreza e na miséria, multiplicadas graças à recessão recente. Tem toda disposição a impor seus planos à força de fuzis, bazucas, tanques e, agora, helicópteros. Mas em algum momento vem uma faísca, como o aumento de impostos de Duque (ou o aumento do bilhete do metrô de Piñeira, ou como o aumento dos combustíveis por Lenin Moreno), que detona o caldeirão da fúria popular.

    Mobilizações contínuas

    Fúria e mobilizações, mesmo as heroicas como as levadas adiante na Colômbia, não são suficientes em si mesmas para mudar os rumos trágicos de um continente colonizado pelas finanças globais, adoecido pela Covid-19 e infiltrado pelo fenômeno global das ultradireitas pós-fascistas. Mesmo com a continuidade das lutas sociais, de agora em diante ainda mais prováveis por conta do empobrecimento provocado pela pandemia, não se fechará a contraofensiva neoliberal dos últimos anos, embora as opções direitistas estejam menos fortes que há dois, três anos e possam se debilitar ainda mais com novos embates nas ruas e urnas.

    A catástrofe pandêmica, do rio Grande à Patagônia, não tem impedido que as lutas e os embates político-ideológicos se expressem no terreno das eleições. O Chile é sem dúvida o exemplo mais avançado: o resultado da “megaeleição” de 15 de maio exibe uma derrota fragorosa da direita – que não conseguiu os dois terços de deputados constituintes necessários para vetar avanços antineoliberais -, derrotou igualmente a “esquerda comportada” da aliança Concertação (Partido Socialista e Democracia Cristã), que governou o país por 24 anos (1990-2010 e 2014-2018); alavancou forças de esquerda alternativas, como Partido Comunista e os agrupamentos do que foi a Frente Ampla. Mas, acima de tudo, representou a invasão da institucionalidade chilena pelos chamados “independentes”, entre os quais muitos de esquerda anticapitalista.

    O fenômeno do independentismo no Chile – candidatos que se alçaram por fora dos partidos, via listas de partidos de esquerda, movimentos sociais ou chapas comunitárias, e agora são constituintes, governadores, prefeitos e vereadores –, somado à grande abstenção (perto de 60%), confirma a dimensão e profundidade da crise de representatividade do sistema político chileno dos últimos 31 anos. A composição da Convenção expressa também o tamanho da vitória popular que foi a Constituinte naqueles moldes: paridade de gênero, participação garantida aos povos indígenas (17 cadeiras em 155), possibilidade de candidaturas e coalizões alheias aos partidos tradicionais. Algo que só se explica pela grandiosidade do levante antissistêmico de outubro de 2019.

    E as outras eleições na região?

    Foi no mesmo contexto de placas sociais tectônicas se mexendo no interior das sociedades, que aconteceram eleições em outros dois países andinos no início de abril. No Equador, o banqueiro Guillermo Lasso venceu no segundo turno Andrés Arauz, herdeiro de Rafael Correa (57,58% a 47,48%), numa virada de jogo em que pesaram o desgaste do correísmo, de um lado, e a crise em torno de possíveis irregularidades no primeiro turno. Naquele, em fevereiro, a ínfima diferença entre Lasso e Yakku Pérez, do Movimento Plurinacional Patchakutik, foi questionada pelos movimentos sociais, reforçando a opção dos indígenas por chamar a um voto nulo “ideológico”. O resultado é que o governo do Equador volta às mãos de um representante direto do empresariado, depois de 35 anos, com um programa frontalmente ultraneoliberal e a terrível contradição de vir a se enfrentar com um povo não derrotado e uma oposição de esquerda amplamente majoritária no Legislativo, que elegeu para presidenta uma deputada do Patchakutik.

    O resultado da “megaeleição” de 15 de maio no Chile mostra uma derrota fragorosa da direita – que não conseguiu os dois terços de deputados constituintes necessários para vetar avanços antineoliberais -, derrotou igualmente a “esquerda comportada” da aliança Concertação (Partido Socialista e Democracia Cristã), que governou o país por 24 anos

    Na Bolívia, eleições para a chefia dos departamentos de La Paz, Tarija, Chuquisaca (onde fica Sucre) e Pando representaram derrotas para o MAS. Seus candidatos perderam em todas as regiões – embora o movimento social e político de Evo Morales continue sendo a única força partidária nacional. No cômputo geral, o MAS ficou com a “gobernación” de três dos nove departamentos do país (Cochabamba, Oruro e Potosí), tal como em 2005. Perdeu em cidades importantes como La Paz (em que venceu para prefeito um ex-ministro de Añez), Cochabamba e a estratégica El Alto. Os números gerais e, em particular, o desempenho de candidatos ligados a movimentos que já foram do MAS ou arrastam bases masistas (como a ex-senadora Eva Copa, agora prefeita de El Alto, e os governadores eleitos de La Paz e Chuquisaca) aumentam a temperatura do debate interno do partido-movimento de Evo, no qual escolhas de candidatos “a dedo” pelo ex-presidente são fortemente questionadas.

    Não há “novos ciclos”, nem neoliberal, nem progressista

    A crise dos regimes democrático-burgueses latino-americanos (com variações de país a país), aprofunda-se, sem solução a vista, e permite o crescimento aqui e ali das alternativas neofascistas. Tudo indica que as próximas disputas se darão entre opções neoliberais-oligárquicas (mais ou menos debilitadas), de um lado, com herdeiros do chamado “progressismo” que governou a região durante boa parte do atual século.

    Neste momento, no entanto, mesmo com a direita derrotada na Bolívia e no Chile, não é possível dizer que se abriu nem é provável que se abra um “novo ciclo” do chamado “progressismo” – categoria sob a qual se classificaram experiências tão distintas quanto os processos da Venezuela e da Bolívia (de frontais rusgas com o imperialismo) e, de outro lado, os social-liberais da Concertação chilena, da Frente

    Ampla uruguaia e do PT no Brasil.

    O problema é que o relativo êxito daqueles governos se sustentou naquilo em que foi (e é, veja-se a situação atual da Venezuela) a estrutural limitação: nutriu-se do boom das commodities, criando modelos desenvolvimentistas extrativistas, tendentes a reforçar a natureza agrário-exportadora (portanto colonial e depredatória) das economias da região. Para isso, construíram conscientemente coalizões classistas entre forças populares e setores mais ou menos amplos das classes dominantes. Essas últimas desembarcaram desses projetos e não parecem dispostas a experimentá-los novamente. A crise econômica global de hoje, sem precedentes, e o acirramento do embate entre EUA e China tornam impossível a repetição de um novo período mais ou menos longo de estabilidade baseado no modelo de uma época em que o mundo crescia e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem maiores tensões.

    Os casos do Equador, Bolívia e Chile apontam, no entanto, na direção de um crescente espaço social e político para a construção de alternativas anticapitalistas com programas que, surgindo dos embates sociais, avancem nas respostas a desigualdades de todo tipo, ao machismo, ao racismo, à fome, aos regimes corruptos, à violência policial-militar, à destruição do meio-ambiente e ao etnocídio dos povos indígenas.

    Ana Carvalhaes é jornalista, fundadora e militante do PSOL.
    Israel Dutra é Secretário de Relações Internacionais do PSOL.

    1. Segundo o Instituto para Estudios de la Paz (Indepaz), que alerta que são números parciais.
    2.  Referência ao uribismo, espectro político de natureza populista de ultradireita e neoliberal, liderado pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, de quem Duque é herdeiro direto. Arqui-inimigo da guerrilha em seu país e denunciado por ligações com os grupos paramilitares, Uribe foi ponta de lança da campanha pelo não ao Acordo de Paz com as FARC.
    3.  No período 2014-2018, os partidos da Concertação se somaram ao Partido Comunista Chileno para conformar a coalizão Nova Maioria.
    4.  Embora tenha sido parte da Nova Maioria, que perdeu as presidenciais para a direita de Piñeira em 2018, o PC teve o acerto, durante o levante de 2019, de não aceitar assinar o pacto de transição, com que Piñeira conseguiu o levante dos movimentos em troca da convocação da Constituinte.
    5.  Há vários “campos políticos” entre os chamados independentes: 28 deputadas e deputados da Lista Apruebo Dignidad (Frente Amplio e PC), 27 da Lista del Pueblo (movimentos sociais, comunitários, em geral de esquerda anticapitalista); 11 mais para o centro-esquerda, chamados Independentes Não Neutros; e outros 10 eleitos por fora de qualquer coalizão ou “lista” – num total de 76, ou 49% da Convenção. Se somados aos 17 representantes de etnias originárias (todos os eleitos são de esquerda no sentido amplo), serão 93 votos entre 155, ou 60%. Isso sem contar os 25 eleitos pela Lista del Apruebo (PS, DC e pequenos partidos de centro-direita), identificados com os governos social-liberais da Concertación. A direita, com 37 eleitos, tem razão em temer o que vai ser a nova carta.
  • CARTA DE ALERTA À SOCIEDADE E PEDIDO DE MEDIDAS URGENTES CONTRA LICITAÇÃO DA ESPIONAGEM

    CARTA DE ALERTA À SOCIEDADE E PEDIDO DE MEDIDAS URGENTES CONTRA LICITAÇÃO DA ESPIONAGEM

    CARTA DE ALERTA À SOCIEDADE E PEDIDO DE MEDIDAS URGENTES
    CONTRA LICITAÇÃO DA ESPIONAGEM

    Tramita no Ministério da Justiça o pregão eletrônico (Nº 3/2021, PROCESSO Nº 08000.000865/2020-30) para aquisição de solução de Inteligência em Fontes abertas, Mídias Sociais, Deep e Dark Web. De acordo com a legislação brasileira, tais demandas devem ser apresentadas exclusivamente pela Polícia Judiciária, tendo como lastro inquéritos policiais e processos de investigações criminais, ou pelo Ministério Público. O Ministério da Justiça não é instituição policial, portanto não é de sua competência a aquisição dessas ferramentas.

    A referida iniciativa atenta gravemente contra o direito à privacidade e à segurança dos brasileiros, posto que ao ser genérica na descrição do que sejam mídias sociais, deep e dark web, a licitação em questão permitiria a aquisição de ferramentas como o spyware “Pegasus”, da empresa israelense NGO Group. Este tipo de empresa tenta descobrir permanentemente, inclusive pagando por descobertas de terceiros, novas falhas em sistemas operacionais como o Android ou o iOS. As informações interceptadas poderão ser ainda repassadas aos serviços secretos de Israel e dos EUA, já que as empresas possuem ligações estreitas tanto com o exército israelense como com a National Security Agency (NSA) norte-americana.

    Ao efetuar-se uma análise do resultado provisório do pregão observa-se que a empresa israelense Cognyte oferece serviços, por meio da utilização da ferramenta Orbis, de monitoramento de e-mails, WhatsApp, Telegram, Facebook, Twitter, WordPress, Linked In, entre outros; além disso há também a possibilidade de acionamento remoto de câmeras e microfones de Smartphones sem autorização do proprietário.

    Segundo o portal de notícias Uol, o filho do presidente vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) estaria por trás da iniciativa com intuito de criar uma “Abin paralela”. Integrantes de dois partidos constituintes do Observatório da Democracia, por meio de suas Fundações, Rede e Cidadania, ingressaram com pedidos para cancelar o processo licitatório ou anulá-lo.

    O senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) atuou junto ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União; e o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) ingressou com ação junto à Justiça Federal da 1ª Região.

    Diante do exposto, nós, do Observatório da Democracia, integrado por nove fundações partidárias (Fundação Lauro Campos/Marielle Franco,Psol; Fundação João Mangabeira, PSB; Fundação Leonel Brizola/ Alberto Pasqualini, PDT; Fundação Maurício Grabois, PCdoB; Fundação Perseu Abramo, PT; Fundação Ordem Social, PROS; Fundação Astrojildo Pereira, Cidadania; Fundação Rede Brasil Sustentável, Rede; e Fundação Verde Herbert Daniel, PV) estamos trabalhando em parceria com o grupo Prerrogativas (formado por juristas, advogados e professores) para o ingresso de novas medidas judiciais. Alertamos os dirigentes brasileiros e a sociedade em geral para a gravidade deste processo licitatório e a necessidade de que sejam tomadas medidas urgentes para a sua anulação.

    Leia o documento em PDF produzido pelo Observatório da Democracia

  • Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil . Por Edemilson Paraná

    Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil . Por Edemilson Paraná

    Uma nova “década perdida” (e além): crise, austeridade e o novo tempo do capitalismo no Brasil

    A segunda e mais agressiva onda neoliberal – iniciada com o forte ajuste fiscal de 2015 – exacerba tendências que se tornam estruturais em nossa economia, como baixo crescimento, baixa produtividade, desemprego elevado, precarização laboral, reprimarização e altíssima concentração de renda. A nova década perdida afigura-se como projeto permanente. Mas há chances de disputa

    Por Edemilson Paraná

    Onde estamos em 2021: dimensões da nova “década perdida” brasileira
    O capitalismo no Brasil encontra-se, como se sabe, em uma profunda – e prolongada – crise. Seus efeitos são dramáticos. A despeito dos choques e fatores conjunturais mais específicos, os últimos dez anos podem inequivocamente ser compreendidos como mais uma “década perdida” no país. Mais do que isso: os dados apontam para a pior década em 120 anos. São, nesse período, duas fortes recessões históricas, uma que vai de 2014 a 2016 e outra que começa em 2020, sem perspectiva clara de recuperação no curto prazo – já que, junto à crise econômica, temos agora uma pandemia fora de controle. Cumpre ilustrarmos exatamente do que se fala para que tenhamos a real dimensão do desastre em que nos encontramos.

    A despeito dos choques e fatores conjunturais mais específicos, os últimos dez anos podem inequivocamente ser compreendidos como mais uma “década perdida” no país. Mais do que isso: os dados apontam para a pior década em 120 anos. São, nesse período, duas fortes recessões históricas, uma que vai de 2014 a 2016 e outra que começa em 2020, sem perspectiva clara de recuperação no curto prazo – já que, junto à crise econômica, temos agora uma pandemia fora de controle

    De 2011 a 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) teve crescimento médio anual de 0,27%. Para efeitos de comparação, na “famosa” década perdida, que vai de 1981 a 1990, esse crescimento anual foi, em média, de 1,57% – quase 6 vezes maior. Ainda na mesma chave de comparação, na década perdida– de 1981 a 1990 – o PIB per capita caiu 0,4%; na “nossa” atual década perdida, de 2011 a 2020, essa queda foi 0,56%. O PIB brasileiro está atualmente (dados de 2020) 6,4% menor do que estava em 2014; e o PIB per capita, 10,8% menor. Estamos, em resumo, no agregado, mais pobres.

    Essa maior “pobreza”, no entanto, deve ser lida no sentido alargado porque, longe de ser apenas quantitativa, ela é qualitativa, já que junto à estagnação econômica ocorre uma regressão estrutural: o país se especializa, cada vez mais, como produtor de commodities, produtos primários, de baixo valor agregado e baixa intensidade em tecnologia e conhecimento; algo que tem evidentes implicações em outros campos da vida nacional. Isso porque mudança econômica, mudança social e mudança política estão todas conectadas e não podem ser pensadas separadamente. À luz dessa premissa, é que podemos, então, compreender as transformações na composição setorial da economia, na natureza do mercado de trabalho e, assim, parte significativa das tensões sociais e políticas a que isso se relaciona no último período – algo que buscarei realizar ao longo deste texto. Vejamos.

    A queda da indústria

    Para se ter uma ideia, a participação da indústria de transformação na economia, atualmente em 11,3% do PIB (dados de 2020), chegou ao menor patamar da série histórica, que começa em 1947 (à época em 19,9%, quase o dobro da participação atual). Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. A fatia do PIB relativa à indústria é, portanto, a menor desde o fim da década de 1940.
    No agregado, reflexo desta década, a produção industrial em 2020 é 12,4% menor do que em 2011. Cumpre destacar que o processo de desindustrialização prematura que vive o Brasil, desde a década de 1990 (reforçado, entre outros aspectos, por escolhas e políticas econômicas que detalharei à frente), está associado a uma expressiva deterioração da balança comercial de manufaturados, à baixa intensidade tecnológica da pauta exportadora e à baixa produtividade total da economia.

    Se é da pauta exportadora de que se fala, 2019 se configurou no ano de menor participação dos bens típicos da indústria de transformação nas exportações totais do Brasil, considerando série iniciada em 1989. Pior, esta involução do ímpeto exportador se concentra em ramos de maior intensidade tecnológica. A participação dos grupos de alta e média-alta tecnologia em nossas exportações industriais regrediu de 43% em 2000 para apenas 32% em 2019, o menor patamar desde 1995. Ou seja, o pouco que nossa indústria ainda exporta está concentrado em produtos de baixa complexidade tecnológica e valor agregado.

    A participação da indústria de transformação na economia, atualmente em 11,3% do PIB (dados de 2020), chegou ao menor patamar da série histórica, que começou em 1947 (à época em 19,9%, quase o dobro da participação atual). Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. A fatia do PIB relativa à indústria é, portanto, a menor desde o fim da década de 1940

    Tomemos, para efeitos de comparação, o que ocorre, em outro setor, o agropecuário, no qual um quadro oposto parece se desenhar. A participação das commodities nas exportações totais do país dobra entre 2000 e 2020, sendo a China – que compra, sobretudo, produtos primários – nosso maior parceiro comercial. Em 2010, as commodities representavam 58,3% das exportações totais; em 2020, passaram a 70,3%. Caso o foco seja a produtividade, e considerando, novamente, o período de 2010 a 2019, enquanto a produtividade total da economia cresceu 0,45% ao ano e a da indústria de transformação apenas 0,08% (na prática, estagnação), o aumento anual de produtividade no setor agropecuário foi de 7,06%. A cereja do bolo vem com o bom momento de preços dos produtos do “Agro” no mercado internacional, que faz reforçar essas tendências.

    Tudo somado, consolida-se, no Brasil, um “outro rural”, conforme termo do sociólogo Zander Navarro. Um “Agro” marcado por avanço tecnológico, aumento de produtividade, concentração econômica e, em consequência, desemprego massivo, com migração do campo para a cidade.

    Segundo o Censo 2017, apenas 2% dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido (no censo anterior a proporção era 63%). Nas palavras de Navarro, “a antiga segmentação dual entre grandes proprietários de terra dedicados à exportação e, em outro subsetor, os médios e pequenos abastecendo o mercado interno, como prevalecia até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma passagem ainda inconclusa, mas sem retorno (…). Médios e pequenos produtores estão sendo encurralados (…)”, com o consequente aprofundamento da migração da “questão social” do campo para as cidades.

    A situação dos trabalhadores

    Entrando neste tópico, impossível não visualizar a piora contínua da situação geral das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. O cenário anterior, de geração de empregos formais de baixos salários e redução de parte da extrema pobreza no Brasil nos governos petistas, vem se revertendo fortemente desde 2014. A taxa de subtilização da força de trabalho saiu de 14,9% em 2014 para 28,7% em 2020, e se observa o crescimento da miséria: a porcentagem de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 ao mês saiu de 9,2% em 2014 para 12,8% no início de 2021. Verifica-se também alta na informalidade, com 40 milhões de brasileiros nessa condição em 2019. De um pico de 41,1 milhões de trabalhadores em novembro de 2014, o emprego formal caiu, em dezembro de 2020, para 39 milhões (queda de 5,4%).

    Responsável, em grande medida, pela produção deste quadro foram as políticas econômicas que dominaram neste período – à direita e à “esquerda” –, amplamente baseadas no dogma da “austeridade”

    Nesse quadro, em que os mercados financeiros, as instituições financeiras e as elites financeiras passam a ter peso crescente sobre as políticas econômicas e seus efeitos, os ganhos e perdas socioeconômicas são, como se sabe, distribuídos de modo desigual entre as classes e setores econômicos. Voltando à relação entre economia, política e sociedade, em geral, e à conexão entre pobreza quantitativa e qualitativa, em particular, seria ingênuo imaginar que tal estado de coisas se manteria por tanto tempo sem que alguns, mesmo que poucos, estivessem ganhando muito com ele. Para o período de 1991 a 2014, enquanto o estoque de capital fixo produtivo cresceu 64% (ou 1,64 vezes), a Selic real (em capitalização composta) cresceu 745% (ou 8,45 vezes). No mesmo período, o estoque de ativos financeiros não-monetários tem um crescimento total de 1065% ou 11,65 vezes. De 2010 a 2019, o lucro anual dos quatro maiores bancos brasileiros somados saiu de 38,91 para 81,51 bilhões de reais, crescimento nominal de 109,4 %.

    Baixo crescimento, desindustrialização, reprimarização, financeirização e concentração econômica em múltiplos setores, com aumento de desemprego, precariedade, pobreza e desigualdade. Eis o Brasil que emerge de nossa mais nova “década perdida”.

    O fracasso de programas, previsões e promessas: do tripé econômico às políticas pós-emergenciais

    Responsável, em grande medida, pela produção desse quadro foram as políticas econômicas que dominaram nesse período – à direita e à “esquerda” –, amplamente baseadas no dogma da “austeridade”. Tais políticas entregaram, sistemática e estruturalmente, como se viu, o oposto de sua triunfante promessa: o tão almejado crescimento econômico.

    O marco fundamental das políticas de austeridade foi o ano de 1999, com a adoção do tripé macroeconômico até hoje em vigor: metas para inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Em seguida, no ano 2000, veio a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse pacote supostamente “modernizador”, somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e seguidas reformas trabalhistas e previdenciárias

    Apesar dos não-insignificantes ensaios anteriores, o marco fundamental das políticas de austeridade foi o ano de 1999, com a adoção do tripé macroeconômico até hoje em vigor: metas para inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Em seguida, no ano 2000, veio a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse pacote, supostamente “modernizador”, somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e seguidas reformas trabalhistas e previdenciárias. Um “programa” e visão geral de gestão macroeconômica que, guardadas as diferenças de conjuntura, forma e retórica, foi sendo estruturalmente mantido e, no último período, rápida e brutalmente aprofundado.

    De sua parte, valendo-se das margens abertas pelo superciclo das commodities e os efeitos benéficos na economia doméstica, o “desenvolvimentismo” petista mantém esse arranjo – a despeito das tímidas medidas de distribuição de renda, das políticas de valorização do salário mínimo e de oferta de crédito popular, acompanhada de uma frágil retomada dos investimentos públicos.

    O projeto de consolidação do Brasil como um misto de plantation high tech com plataforma de valorização financeira, garantindo ganhos financeiros de curto prazo em moeda forte, mantém-se e, em alguns aspectos, aprofunda-se. Mesmo as políticas públicas implementadas neste período, cujos efeitos sociais não podem ser ignorados – apesar de, a esta altura, terem se mostrado bastante frágeis e passageiros –, são concebidas e implementadas à luz deste modelo e os imperativos, sob a direção, em suma, desta racionalidade “financeirizante”. Superávits fiscais, para citar outro aspecto significativo da cartilha, foram produzidos sistematicamente pelo menos até 2013.

    O ajuste agressivo de 2015

    Entre prévios suspiros, ensaios pontuais e descoordenados de resistência a esse arranjo, o ajuste fiscal agressivo no Brasil se tornou vitorioso definitivamente a partir de 2015 (a partir do chamado “estelionato eleitoral” de Dilma Rousseff), cristalizando-se, daí em diante, como programa hegemônico das elites econômicas e políticas no Brasil.

    Para além da desarticulação do crescente poder de investimento e ação do BNDES e de estatais como a Petrobras, esse recrudescimento, já no âmbito de um novo e mais sombrio ambiente político no país, consolidou-se com a inclusão na Constituição Federal, em 2017, do “Novo Regime Fiscal”, cujas medidas incluem o draconiano e asfixiante “teto de gastos” por 20 anos. Ação sem paralelo no mundo, que, sob a ameaça de inviabilizar o funcionamento material do Estado, demanda cotidianamente a destruição da capacidade de ação econômica e social. As escandalosas e desqualificadas declarações de achaque do atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, fina flor e representante espiritual da parte significativa da mencionada elite, servem de didática ilustração desse ponto.

    Os choques e a pandemia

    É certo que a crise da pandemia de 2020 impõe um avanço significativo do gasto público – particularmente com o limitado, ainda que comparativamente significativo, auxílio emergencial que foi concedido no país, para contrariedade do governo federal.

    O ajuste fiscal agressivo no Brasil se tornou vitorioso definitivamente a partir de 2015 (a partir do chamado “estelionato eleitoral” de Dilma Rousseff), cristalizando-se, daí em diante, como programa hegemônico das elites econômicas e políticas no Brasil. Ele se consolidou com a inclusão na constituição federal, em 2017, do draconiano e asfixiante “teto de gastos” por 20 anos

    Isso reabre, em nossas paragens, a discussão sobre assuntos como política econômica, gasto e indução do Estado, emissão de moeda; algo que se expressa nas controvérsias recentes entre economistas ortodoxos e heterodoxos, com destaque para os debates em torno da Teoria Monetária Moderna dentro e fora do Brasil.

    Desde o início, no entanto, a “frente ampla” do andar de cima, agrupada em torno da austeridade, segue firme na defesa de um aprofundamento deste programa no cenário pós-pandêmico. Quer-se, em verdade, dobrar a aposta: autonomia do Banco Central, PEC da Calamidade, PEC Emergencial, reformas tributária e administrativa, novas e mais agressivas privatizações.

    Em qualquer caso, é preciso que se diga: pintadas de vermelho ou azul, verde e amarelo, a implementação, manutenção e intensificação contínua, ao longo deste período, destas duras medidas de ajuste fiscal no Brasil revelam, nos dados acima apresentados, a verdade: resultados pífios, país estagnado e, o que contradiz de maneira ainda mais flagrante o discurso ortodoxo, dívida bruta crescente – que, de 52,29% do PIB em janeiro de 2011, chegou, em fevereiro de 2020 (no período pré-pandemia, portanto), a 75,17%.

    O novo tempo do capitalismo brasileiro e os desafios da política

    Frente a este cenário nacional catastrófico, agravado politicamente com o governo de extrema direita, o campo progressista tem ensaiado várias propostas para superação da estagnação e seus efeitos nas maiorias sociais e minorias políticas. Culpa-se, principalmente, a política econômica austera pelo buraco que estamos (o que é, como vimos, em boa medida, correto), e a partir deste diagnóstico, são propostas retomadas desenvolvimentistas diversas, a “volta do Estado”.

    Para bem enquadrar a factibilidade dessas propostas, no entanto, é preciso melhor qualificar o diagnóstico que, no caso mencionado, tende a subestimar ou simplesmente não considerar as causas e consequências sociopolíticas deste quadro econômico. Quem erra na análise, erra na ação. Assim, devemos melhor equacionar – ainda que, aqui, de passagem, dadas as restrições de escopo e formato – os limites dessa crítica em prol de uma “nova economia” pós-pandemia.

    Primeiro, porque nossos colegas (hard ou soft) desenvolvimentistas tendem a prestar menos atenção aos problemas estruturais da estagnação brasileira: inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e da produção – dependência da produção e exportação de commodities aos sabores e dissabores da demanda internacional, sobretudo chinesa; ausência crônica de investimento público e privado, produtividade estagnada e uma baixa qualificação da mão obra que – eis, novamente, a política! –apresenta-se, em certo aspecto, como funcional à reprodução da estrutura econômica e social acima delineada.

    Segundo, e talvez de modo ainda mais significativo, porque não consideram o caráter social e político – de classe – do Estado e suas funções estruturais no capitalismo.

    As elites política e econômica deste país escolheram de vez a via da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente, em que a gestão “lucrativa” da estagnação-regressão econômica e da miséria apontam como horizonte de um “novo tempo” do capitalismo no Brasil

    Apesar de não ser um mero reflexo de um dado regime de acumulação, e a despeito de gozar de maior ou menor autonomia relativa a depender do arranjo histórico-cultural, conjuntura concreta e posição geoestratégica, o Estado, no capitalismo, não é um agente à parte da sociedade, fora e impunemente acima dela, mas perpassado pelos mesmos conflitos, tensões e dinâmicas que a constitui como tal. Isso se faz especialmente compreensível na conjuntura brasileira recente, em que o dogma da austeridade continua a ser um instrumento ideológico poderoso no avançar da ofensiva política de certos setores e frações de classe, naquilo que chamei de uma “frente ampla” – a reunir bolsonaristas e antibolsonaristas – no consenso básico em torno desse programa econômico, em vias de consolidação do modelo regressivo acima delineado, no qual estes são parte diretamente interessada.

    Um novo pacto de forças?

    No encontro de economia, política e sociedade, eis o paradoxo a que nos traz mais essa “década perdida”: como causa e consequência dessas transformações, conforme pude enunciar antes, muito parece indicar que as elites política e econômica deste país escolheram de vez a via da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente, em que a gestão “lucrativa” da estagnação-regressão econômica e da miséria apontam como horizonte de um “novo tempo” do capitalismo no Brasil.

    Diante disso, a pergunta central a se fazer é: qual ou quais classes, atores e setores sociais podem, no interior desse estado de coisas, servir de base política para essa desejada “volta do Estado” no Brasil pós-pandêmico? Isso porque pouco poderão nossos importantes e necessários planos de ação econômica na resistência e desejável reversão deste cenário, senão acompanhados e sustentados por um (novo) esforço concreto de (re) organização de forças populares para tanto. Esforço que, consideradas as evidências, pede uma reflexão honesta e criativa sobre a própria crise generalizada das esquerdas e suas formas de organização no Brasil e no mundo contemporâneo.

    Edemilson Paraná é professor de Sociologia Econômica e do Trabalho do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC); e professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC e de Estudos Comparados sobre as Américas da Universidade de Brasília (UnB).

    * Os números aqui apresentados têm como fonte as seguintes bases de dados: IpeaData, IBGE, FGV/Ibre, Secex, IEDI, BCB e Economática. Evitou-se indicar individualmente em cada caso para facilitar a leitura do texto.

    1. Navarro, Zander. O Brasil rural acabou? Disponível em: https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/03/zander-navarro-o-brasil-rural-acabou.html. Acesso em: 05 mai. 2021.
    2. Paraná, Edemilson. O que está por trás da “austeridade” como política econômica. Le Monde Diplomatique Brasil, 22 nov. 2017. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-que-esta-por-tras-da-austeridade-como-politica-economica/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    3. Lavinas, Lena; Gentil, Denise L. Brasil anos 2000: a política social sob regência da financeirização. Novos Estudos. CEBRAP, v. 37, p. 191-211, 2018.
    4. Paraná, Edemilson; Mollo, Maria de Lourdes. R. (2021). Dinheiro como relação social: uma leitura do poder monetário do Estado na MMT. Economia e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 1 (71), p. 15-38, jan./abr. ISSN 1982-3533.
    5. Ver a defesa deste diagnóstico em: Paraná, Edemilson. A “frente ampla” já existe – e ela está com Bolsonaro: a economia política do impasse brasileiro. Observatório da Crise (Fundação Lauro Campos e Marielle Franco), 20 mai. 2020. Disponível em: https://www.observatoriodacrise.org/post/a-frente-ampla-j%C3%A1-existe-e-ela-est%C3%A1-com-bolsonaro-a-economia-pol%C3%ADtica-do-impasse-https://www.observatoriodacrise.org/post/a-frente-ampla-j%C3%A1-existe-e-ela-est%C3%A1-com-bolsonaro-a-economia-pol%C3%ADtica-do-impasse-brasileiro. Acesso em: 06 mai. 2021. Desdobrado e reavaliado em: Paraná. Edemilson. O crescimento da popularidade de Bolsonaro e a nova fase do impasse político brasileiro: rachaduras na “frente ampla”? Blog da Boitempo, 19 ago. 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/08/19/o-crescimento-da-popularidade-de-bolsonaro-e-a-nova-fase-do-impasse-politico-brasileiro-rachaduras-na-frente-ampla/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    6. Em janeiro de 2021, já sob efeito da pandemia, a relação dívida/PIB chega a 89,72%.
    7. Carvalho, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020.
    8. Paraná, Edemilson. Brasil 2016: preparando a (nova) gestão de uma crise permanente. Blog da Boitempo11 nov. 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/11/brasil-2016-preparando-a-nova-gestao-de-uma-crise-permanente/. Acesso em: 06 mai. 2021.
    9. Para um esforço nessa direção, ver: Paraná, Edemilson; Tupinambá, Gabriel. Arquitetura de Arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo: Autonomia Literária, no prelo.
  • Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia . Por Jesem Orellana

    Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia . Por Jesem Orellana

    A dupla tragédia sanitária e humanitária em Manaus durante a pandemia

    Do descaso generalizado ao episódio das mortes por asfixia

    Em 14 de janeiro de 2021, Manaus, maior metrópole da Amazônia, protagonizou o episódio mais dramático da pandemia, marcado pela morte de dezenas de pessoas dentro de hospitais, transformados em “câmaras de asfixia” pelo esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Um quadro que poderia ter sido evitado

    Por Jesem Orellana

    Manaus, como boa parte das metrópoles brasileiras, apresenta sérios problemas de desigualdades. A chegada da pandemia da Covid-19 encontrou uma notada precariedade da infraestrutura médico-hospitalar e de saúde, bem como corrupção no setor de saúde.

    Em 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 53%, aproximadamente, dos domicílios de Manaus, situavam-se em aglomerados subnormais (favelas, invasões, palafitas e loteamentos). A cidade também figurava na penúltima posição entre as capitais brasileiras no ranking da renda média mensal declarada (alta informalidade) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

    No final de fevereiro de 2020, em plena emergência sanitária, o único hospital de referência do Amazonas para Covid-19, o Delphina Rinaldi Abdel Aziz, em Manaus, tinha apenas 20 leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) adultos. O interior do Estado permanece sem leitos de UTI.

    A elevada desigualdade no acesso a serviços de saúde é inegável na capital amazonense. Há baixa efetividade de vigilância epidemiológica e laboratorial, incluindo respostas oportunas e rápidas diante de emergências em contexto pandêmico.

    Manaus, mesmo recebendo o maior volume de estrangeiros de toda a Amazônia, só começou a fazer o monitoramento remoto de passageiros que desembarcavam no aeroporto internacional Eduardo Gomes a partir de 26 de março de 2020. Ademais, inexistia testagem em massa em março/abril e pouca capacidade instalada para vigilância genômica. No ano seguinte, o Amazonas, seguiu sem fazer testagem em massa e com irrisória vigilância genômica do novo coronavírus.

    A escalada das mortes

    Em 27 de março de 2020, foi notificada a primeira morte pela doença em Manaus. Duas semanas depois, a rede médico-assistencial entrou no primeiro colapso, junto à rede funerária, evidenciando descontrolada transmissão comunitária. Câmaras frigoríficas foram instaladas na parte externa dos principais hospitais da cidade, para empilhar o crescente número de corpos, dentro e fora dos hospitais. Além disso, Manaus protagonizou enterros coletivos que chocaram a humanidade.

    Em 27 de março de 2020, foi notificada a primeira morte em Manaus. Duas semanas depois, a rede médico-assistencial entrou no primeiro colapso, junto à rede funerária, evidenciando descontrolada transmissão comunitária. Câmaras frigoríficas foram instaladas na parte externa dos principais hospitais da cidade para empilhar o crescente número de corpos

    A partir de junho de 2020, Manaus, apresentou desaceleração na epidemia, motivo suficiente para que o então ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, minimizasse a situação ao dizer que “o estado do Amazonas é completamente diferente da curva da região Norte e do Brasil. Uma curva muito mais clara, onde o pico já passou e o número tende a normalidade no final da curva”.

    Interessante frisar que em 18 de setembro, o governador do Amazonas promoveu um evento para cerca de mil pessoas, com a presença do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do senador Flávio Bolsonaro. Era uma mensagem clara à sociedade de que eventos dessa natureza não só eram permitidos, mas incentivados, justamente por quem deveria coibi-los. Como se não bastasse, no fim daquele mês, o governo estadual autorizou o retorno ao ensino presencial de quase 111 mil alunos de escolas públicas de ensino fundamental.

    A descrença em relação ao avanço da epidemia no Amazonas era nítida. Não por acaso, em agosto, o Estado realizou o menor número de exames RT-PCR (padrão-ouro para o diagnóstico da Covid-19), da série histórica, conforme se observa na Figura 1. No mês seguinte, mesmo diante do discreto aumento de exames em relação aos meses de julho e agosto, a positividade de amostras (número de exames com confirmação para a presença do novo coronavírus) alcançou 29,2% (IC95%: 27,9-30,6). Em janeiro de 2021, chegou-se ao crítico percentual de 53,5% (IC95%: 52,9-54,0). Era o segundo e mais violento pico de contágio e mortalidade da Covid-19, em plena segunda onda.

    Alertas científicos

    Os perigos da segunda onda foram alertados em revistas científicas de renome internacional e na imprensa, especialmente a partir de agosto de 2020.. Trata-se do momento em que se observaram três fenômenos epidêmicos importantes no risco de morte por Covid-19, segundo a data dos primeiros sintomas, para a população com 20 anos ou mais.

    O primeiro havia sido o registro do menor nível no risco de morte por Covid-19 da primeira onda, no período de 21 de junho a 11 de julho de 2020 (semanas epidemiológicas 26 a 28), com 5,7 mortes (IC95%: 4,6-7,0) para cada 100 mil habitantes.

    Em 18 de setembro, o governador do Amazonas promoveu um evento para cerca de mil pessoas, com a presença do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do senador Flávio Bolsonaro. Era uma mensagem clara à sociedade de que eventos dessa natureza não só eram permitidos, mas incentivados, justamente por quem deveria coibi-los

    O segundo foi a estabilização em patamares levemente mais altos nos períodos seguintes, quais sejam: entre 12 de julho e 1º de agosto de 2020 (semanas epidemiológicas 29 a 31), com 6,6 mortes (IC95%: 5,4-8,1) para cada 100 mil habitantes; bem como de 02 a 22 de agosto (semanas epidemiológicas 32 a 34), com 6,7 mortes (IC95%: 5,5-8,2) para cada 100 mil habitantes.

    Figura 1. Descrição do número mensal de exames RT-PCR para Covid-19, março de 2020 a março de 2021, Amazonas, Brasil

    Figura 2. Descrição do risco de mortalidade por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas e grupos de semanas epidemiológicas (semana 11 de 2020, até a semana 11 de 2021), Manaus, Amazonas, Brasil.

    O terceiro e mais importante, já na segunda onda, foi a significativa e sustentada reversão na tendência de queda na mortalidade por Covid-19, a partir do período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), com 8,4 mortes (IC95%: 7,1-10,1) para cada 100 mil habitantes.

    Tentativa de lockdown

    No período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), o então prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, inspirado em recomendações de cientistas, propôs um lockdown para conter o avanço da epidemia. A proposta foi quase que imediatamente classificada como “absurda” pelo presidente Jair Bolsonaro e descartada pelo governador Wilson Lima.

    O erro de avaliação dos governos federal e estadual, bem como a falsa promessa de imunidade de rebanho pela via natural, parece ter sepultado a resposta sanitária que poderia ter limitado a evolução da segunda onda e, quem sabe, a forte e rápida disseminação da variante de preocupação P.1 (B.1.1.28) ou até mesmo a sua emergência/surgimento.

    Como consequência da má gestão da epidemia e da baixa adesão da população às medidas de controle, no período de 13 de setembro a 3 de outubro (semanas epidemiológicas 38 a 40), ficou configurado o primeiro pico de mortes da segunda onda, com risco de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0) para cada 100 mil habitantes (Figura 2).
    Cabe salientar, que mesmo diante do sustentado e significativo agravamento da epidemia em Manaus, o governo estadual seguia negando a segunda onda. Ademais, de forma furtiva, a partir de setembro, passou a aumentar o número de leitos clínicos e de UTI, sob o improcedente pretexto de preparação para o período sazonal das síndromes gripais, o qual, historicamente, só passa a ser relevante em termos de mortalidade, entre fevereiro e abril.

    Ironicamente, mesmo novembro sendo mês de eleições municipais, quando mais de um milhão de manauaras foram às urnas no primeiro e no segundo turnos, em plena segunda onda e no momento em que a variante P.1 pode ter começado a circular, o Amazonas fez o menor número mensal de exames RT-PCR da epidemia. Foram menos de 3,6 mil diagnósticos para, aproximadamente, 4,3 milhões de habitantes. Semanas depois esse total passou para 4.933 (provavelmente influenciado pelo lançamento de resultados de amostras de novembro, avaliadas a partir de dezembro de 2020), como apresentado na Figura 1.

    Testagem negada

    Em novembro de 2020, a senhora Noeme Tobias de Souza, Procuradora de Justiça do Amazonas, em parecer alheio à realidade da epidemia, indeferiu o pedido de tutela de urgência impetrado pela Defensoria Pública do Estado (Processo n.º 0657137-02.2020.8.04.0001), em que requeria, acertadamente, a ampliação da testagem para o novo Coronavírus no Amazonas.

    O erro de avaliação dos governos federal e estadual, bem como a falsa promessa de imunidade de rebanho pela via natural, parece ter sepultado a resposta sanitária que poderia ter limitado a evolução da segunda onda

    Em linha com a suposta eficiência da testagem, em 2 de dezembro, o então ministro Pazuello defendeu que ela estava sendo feita de forma adequada no país, em contexto de queda na demanda desses recursos nos estados devido a “fase de desaceleração das infecções”. Na mesma ocasião, o então Ministro, assim como o presidente Jair Bolsonaro, criticou o lockdown, dizendo que havia sido implementado sem preparo e “na base do medo”, como se algum dia ele houvesse, de fato, aplicado algo assim no país.

    Mesmo depois de inúmeros alertas sobre a gravidade da segunda onda em Manaus, a tragédia sanitária começou a ficar escancarada em dezembro de 2020. Entre 10 de dezembro e 31 de janeiro, o número de leitos clínicos passou de 324 para 1.954, um aumento de 500%. Já o de leitos de UTI passou de 193 para 691. Apesar dos repetidos apelos e proposições de lockdown, Manaus jamais o implementou.

    Também merece destaque o fato de que a confirmação da circulação da variante emergente P.1 do vírus no Brasil só foi possível na segunda semana de janeiro. Ou seja, aproximadamente, 45 dias após o provável início da circulação no Amazonas e do colapso da rede médico-hospitalar de Manaus.

    A detecção só ocorreu graças ao assertivo e preciso monitoramento de rotina das autoridades aeroportuárias do Japão, junto a turistas que haviam visitado o Amazonas em dezembro de 2020. Esse, sem dúvida, é mais um elemento que confirma a ineficaz e inoportuna vigilância laboratorial e genômica no Brasil, ao longo da pandemia da Covid-19.

    Morte sem ar

    Em 14 de janeiro de 2021, Manaus, maior metrópole da Amazônia, protagonizou o episódio mais dramático da pandemia, marcado pela morte de dezenas de pessoas dentro de hospitais, transformados em “câmaras de asfixia”, pelo esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Como consequência, além de outros fatores, somente naquele mês foram confirmados 3.148 óbitos por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas. Era um número 23,7% maior que o total de mortes pela doença (2.545) durante a primeira onda (entre fevereiro e julho de 2020).

    Dias depois, dezenas de pacientes internados em municípios do interior também morreram por asfixia, devido ao esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal.

    Diante da trágica situação, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso a fatores como umidade e falta de tratamento precoce, mais uma vez negando os fatos e a Ciência.

    Embora o governo federal tivesse alegado desconhecimento da previsível falta de oxigênio em Manaus, é preciso lembrar que em 7 de janeiro, o governador Wilson Lima esteve reunido com o ministro da Saúde em Brasília para abordar a urgente necessidade de instalar mais 60 leitos de UTI. Ademais, em 11 de janeiro, o ministro Pazuello esteve na capital amazonense para acompanhar a crítica situação sanitária e humanitária, retornando a Brasília um dia antes do fatídico 14 de janeiro.

    Saliente-se que o governo estadual, na presença de técnicos do ministério da Saúde, imediatamente após aquela data, apresentou gráficos detalhando o consumo de oxigênio medicinal ao longo da epidemia.

    Portanto, como a evolução do consumo de oxigênio é obrigatoriamente acompanhada pelo número de internações hospitalares, não parece plausível alegar desconhecimento da iminência de tamanha tragédia. Some-se a isso o fato de as autoridades sanitárias virem acompanhando a explosão da demanda por leitos desde o final de dezembro de 2020.

    Disseminação de variantes

    No esteio da sequência de erros cometidos pelos diferentes níveis da gestão em saúde e diante do colapso da rede médico-hospitalar e das centenas de mortes sem assistência médico-hospitalar, os governos federal e estadual reuniram esforços para enviar, aproximadamente, 600 pacientes de Covid-19 para metrópoles de outras regiões do país. Essas pessoas viajaram acompanhadas por familiares em contexto de maciça circulação da variante P.1 do vírus, a qual viria a se disseminar de forma inédita pelo país semanas depois.

    O fato é que em abril de 2021, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia e chegou a responder por cerca de 1 em cada 4 óbitos por Covid-19 no planeta. Além disso, das mais de 423 mil notificações de mortes por Covid-19 no Brasil, desde março de 2020, um pouco mais da metade ocorreu nos primeiros quatro meses de 2021. Nessa ocasião, a transmissão comunitária atingiu os maiores níveis, em cenário de amplo relaxamento das medidas sanitárias e da forte circulação de variantes.

    Em abril de 2021, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia e chegou a responder por cerca de 1 em cada 4 óbitos por Covid-19 no planeta. Ademais, das 400 mil notificações de mortes no Brasil, desde março de 2020, a metade ocorreu nos primeiros quatro meses de 2021

    Essa tragédia evitável, além de ter resultado na perda de milhares de vidas (direta e indiretamente) e no vultuoso desperdício de recursos públicos, em tempos de crítico subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), deixou a marca mais imediata não apenas nas vítimas diretas que sobreviveram à Covid-19. Ela lega traumas psicológicos e um vasto leque de sequelas físicas e acarretará efeitos residuais de médio e longo prazo. Entre esses estão a redução da expectativa de vida da população ou o aumento das desigualdades, devido a piora de indicadores sociais.

    Aumento de casos fatais

    Por último, o governo do Amazonas, afinado com o ministério da Saúde, flexibilizou, em 22 de fevereiro, de forma precoce, as medidas restritivas à circulação de pessoas.

    Esse momento, coincidiu com o período de 07 de fevereiro a 27 de fevereiro de 2021 (semanas epidemiológicas 06 a 08), quando o risco de morte era de 30,6 (IC95%: 27,9-33,5) para cada 100 mil habitantes ou 316% (IC95%: 237-413) maior do que no período da flexibilização pós pico da primeira onda, ocasião em que o risco de morte foi de 7,4 (IC95%: 6,1-8,9) para cada 100 mil habitantes.

    No último grupo de semanas avaliado, o qual inclui o período de 28 de fevereiro a 9 de março de 2021 (semanas epidemiológicas 09 a 11), o risco de morte foi de 15,3 (IC95%: 13,4-17,5) para cada 100 mil habitantes, um valor ainda alto. Mas, em contexto de lento processo de vacinação, de circulação de variantes de preocupação e com parte da rede médico-hospitalar das principais cidades do Brasil, saturada ou em colapso.

    A onda pode piorar

    A desaceleração da queda no risco de morte, em pleno processo de vacinação, pode ser um indicativo de estabilização da segunda onda em nível de risco elevado e semelhante ao do primeiro pico da segunda onda, entre 13 de setembro e 3 de outubro de 2020 (semanas epidemiológicas 38 a 40), quando o risco de morte foi de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0). Esse padrão epidêmico pode ser um prenúncio da retomada ou do recrudescimento da segunda onda em Manaus, reforçando a ímpar negligência sanitária e humanitária na capital mundial da Covid-19.

    Não há dúvidas de que o papel das políticas voltadas à mitigação da epidemia precisa ser considerado para minimizar o impacto de novos ciclos de infecções, adoecimentos e mortes evitáveis por Covid-19 no Brasil, especialmente em regiões com baixa capacidade de resposta a emergências sanitárias e forte desigualdade socioeconômica como a capital amazonense. A cidade é dupla e gravemente afetada pela disseminação descontrolada do novo coronavírus.

    Finalmente, a dupla tragédia sanitária e humanitária de Manaus não foi ao acaso, mas consequência da pior de todas as variantes, a má gestão da epidemia. Por isso, os órgãos de controle e a justiça precisam agir e responsabilizar os culpados sob a pena de deixarmos a sensação de impunidade ser solidificada no imaginário e no cotidiano do brasileiro.

    Jesem Orellana é epidemiologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia.