Por Sônia Guajajara
Ainda estamos em junho, mas já podemos afirmar, sem medo de errar, que 2022 entrará para a história da luta dos Povos Indígenas do Brasil como um ano de grandes avanços, ano em que nossa aliança ancestral de resistência alcançou um nível inédito de organização e de maturidade política. Nosso crescimento como movimento indígena é fruto, por um lado, do acúmulo histórico, de séculos de luta e de diálogo inter-povos para consolidar uma coalizão ampla, que desse conta de representar os interesses e necessidades dos mais de 305 Povos Indígenas do Brasil. Por outro lado, a urgência e a gravidade das situações vivenciadas por nossos parentes nas Terras Indígenas de todas as regiões do Brasil também impulsionaram as mobilizações nos últimos anos. É sobre estes fatores, que elevaram a agenda indígena a uma das principais pautas do debate nacional, e o que ainda esperamos deste ano que gostaria de dialogar neste artigo.
Um dos principais termômetros que nos mostram o avanço do movimento indígena são os resultados do Acampamento Terra Livre, que este ano voltou a se realizar presencialmente em Brasília, depois de 2 anos acontecendo online, por força da pandemia de Covid-19. Este ATL foi o maior desde 2004, quando inauguramos o Acampamento Terra Livre como principal espaço de mobilização e reivindicação dos movimentos indígenas do Brasil. Organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em parceria com suas 7 organizações regionais e dezenas de organizações indígenas de base, o Acampamento Terra Livre de 2022 reuniu mais de 8 mil indígenas ao longo dos seus 11 dias (de 04 a 14 de abril). Mais de 200 Povos, de todas as regiões do país, enviaram representantes para esta longa mobilização, que teve como mote central “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”.
Estes números refletem, como dizíamos, o avanço do movimento indígena brasileiro e também – e é nesse ponto que gostaria de me deter inicialmente – o crescimento das ameaças que temos sofrido contra nossos direitos e contra nossos territórios. Não podemos ignorar que temos vivido, nos últimos quatro anos, sob o governo do pior inimigo dos Povos Indígenas e da Mãe Natureza – Jair Bolsonaro, que vocifera discursos de ódio e intolerância contra nossas existências e impõe diariamente retrocessos e perdas de direitos que levaram séculos para serem conquistados. Essa situação nos obrigou, enquanto movimento indígena, a acelerar nossa mobilização, reforçando também nossa defesa do meio ambiente, atacado frontalmente e de todas as formas possíveis pelo Governo Bolsonaro.
A violência da retórica bolsonarista incentiva investidas diretas contra nossos territórios, convertendo-se em perseguição contra lideranças indígenas e em violências contra nossos povos. O relatório Violência no Campo 2022, da Comissão Pastoral da Terra, dá conta que os indígenas são as principais vítimas dos conflitos territoriais no Brasil hoje em dia, representando mais de 80% das áreas em situação de conflito atualmente. Existe um padrão claro nesses casos, que é a tentativa constante de nos expulsar de nossos territórios, vistos pelo poder econômico exclusivamente como fonte de exploração e lucro. Hoje, a mineração e o garimpo assumem a liderança das principais ameaças contra nossos direitos territoriais e contra nossa floresta amazônica. O desmatamento causado pela mineração na Amazônia aumentou 62% em 2021 na comparação com 2018, primeiro ano do Governo Bolsonaro. Já o garimpo se alastra como uma epidemia nas Terras Indígenas, tendo crescido 495% de 2021 a 2020, segundo a MapBiomas21, chegando a 45 mil hectares.
É por conta do desmonte das políticas e instituições indigenistas, dos inúmeros projetos anti-indígenas que tramitam no Congresso Nacional – que ameaçam, por exemplo, abrir definitivamente as terras indígenas à mineração, como é o caso do PL 191 –, das mais de mil mortes de parentes vítimas do Covid e do descaso estatal; é por conta disso tudo que nossa luta precisa ser potencializada. É pela necessidade que mais de 8 mil pessoas deixam seu território e suas famílias para percorrer milhares de quilômetros e ficar dez dias acampadas em Brasília.
Essas necessidades reforçam nosso parentesco ancestral e nos mostram o quanto é importante estarmos juntos. E essa percepção, voltando agora ao primeiro ponto, é resultado de muita construção coletiva. Queria fazer uma comparação para mostrar o nível de complexidade que envolve nossas mobilizações indígenas no Brasil. Pensem vocês que as Nações Unidas possuem pouco menos que 200 Estados-Parte. Nós somos mais de 305 Povos Indígenas no Brasil e nos esforçamos, em nossas instâncias coletivas, especialmente na Apib, para produzir consensos. São muitas culturas, línguas e interesses diferentes e, mesmo assim, temos conseguido alcançar a unidade na luta dos Povos Indígenas do Brasil.
O Acampamento Terra Livre 2022 mostra quão exitosa tem sido essa nossa construção coletiva – e isso não só pelos números expressivos, mas também pela programação de debates. Ao longo dos 10 dias, dialogamos praticamente sobre todos os temas de políticas públicas que afetam nossos povos – de saúde a educação, da proteção à terra aos direitos políticos. Vale a pena destacar que, além da plenária de mulheres, que vêm se consolidando como protagonistas do movimento indígena em todas as regiões do Brasil, o ATL realizou a primeira plenária com indígenas LGBTQI+, o que demonstra que estamos conectados com as principais pautas de nosso tempo, compreendendo a importância de explorar a potência mobilizadora e transformadora das interseccionalidades.
O ATL assistiu ainda a um histórico discurso do pré-candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 12 de abril. Lula foi a Brasília a convite da Apib, e depois de se reunir com um comitê de lideranças indígenas, foi até o ATL, onde recebeu uma carta de apoio do movimento indígena à sua pré-candidatura, que também continha demandas para seu futuro governo. Durante seu discurso, Lula reconheceu a importância do movimento indígena para a derrota de Bolsonaro, para a retomada da democracia brasileira e para a construção de uma agenda de reconquistas para seu eventual futuro governo. Ele se comprometeu a promover um “revogaço” das medidas anti-indígenas implementadas por Bolsonaro, e a criar um Ministério dos Povos Indígenas.
Os Povos Indígenas têm incansavelmente demonstrado que estão na linha de frente da luta por democracia, justiça e paz no Brasil. Não somente para nós, mas para todas, todes e todos, pois não há paz, nem justiça, nem democracia que não seja para todos. Por isso, também comunicamos publicamente, durante o ATL 2022, nossa disposição de disputar cadeiras no Congresso Nacional e nas Casas Legislativas estaduais nestas eleições – é esse o sentido que se lê no mote deste ATL. Isso porque, se uma lei aprovada no Congresso pode derrubar ou manter em pé uma floresta inteira, é esse espaço que temos de ocupar, para impedir o avanço da agenda da morte e da destruição. Faremos frente à bancada ruralista construindo uma Bancada do Cocar. Eu inclusive me coloco nessa disputa, concorrendo a um cargo na Câmara dos Deputados pelo Estado de São Paulo.
Todas essas elaborações e percepções são fruto do nosso amadurecimento enquanto movimento. Ainda temos muito o que reconquistar, e estamos conscientes de que este ano ainda guarda muita batalha pela frente. Temos uma missão intransponível, que é impor uma derrota exuberante a Bolsonaro nas eleições presidenciais, construindo a vitória do candidato do campo progressista-popular, Lula. Nesse processo, o movimento indígena tem muito a dizer e muito a contribuir. E queremos afirmar que estamos prontos para assumir os postos e as tarefas mais elevadas de nossas instituições. Isso, deixo claro, sem arredar um centímetro de nossa luta popular, do nosso movimento, das nossas bandeiras. Continuaremos demandando a recusa do marco temporal, continuaremos bradando Demarcação Já!
Tenho certeza, pela energia que senti de meus parentes reunidos no ATL, pelo brilho nos olhos de crianças e jovens indígenas quando nos veem ocupar espaços de representatividade e visibilidade pública, que estamos fazendo história. E chegaremos tão mais longe quanto mais unidos estivermos. E tenham certeza que os Povos Indígenas do Brasil andam mais juntos e aliançados do que nunca! Essa luta é nossa!