Juliano Medeiros
O ano de 2021 se inicia com o aprofundamento da crise econômica e social que o país vive nos últimos anos. A combinação entre desmonte das conquistas sociais e democráticas da Constituição Federal de 1988, política econômica recessiva e negacionismo científico fizeram do Brasil um terreno fértil para a propagação da pandemia do novo coronavírus e para a tragédia em que vivemos. Quando se iniciou o novo ano, o país contabilizava mais de 200 mil vítimas fatais. Na economia, o cenário é desolador. Segundo o Boletim Focus, o PIB brasileiro soma de todas as riquezas produzidas no país deve ter uma retração de 4,4% em 2020. O resultado dessa situação se faz sentir diretamente no mundo do trabalho. De acordo com o IBGE, o desemprego alcançou a taxa de 14,3% da população economicamente ativa entre agosto e outubro, com uma alta em relação ao trimestre anterior. A pobreza extrema, um dos indicadores mais assustadores da desigualdade social no Brasil, deve dobrar em 2021, segundo projeções feitas pelo Ibre-FGV. Isso significa que a quantidade de brasileiras e brasileiros vivendo com menos de US$ 1,90 por dia passará dos atuais 6,5% registrados em 2019 para algo na casa de 12% ao final de 2020. Só o fim do Auxílio Emergencial, decretado por Bolsonaro, empurrará 17 milhões de brasileiras e brasileiros para abaixo da linha da pobreza, agravando ainda mais a crise social.
Brasil sem Bolsonaro
Para abreviar esse sofrimento, o Brasil precisa se livrar de Jair Bolsonaro. Não se trata, portanto, apenas de viabilizar o impeachment que faria de Hamilton Mourão o novo presidente, mas de criar as condições políticas e sociais para promover uma agenda totalmente diferente da que tem sido implementada até aqui. É preciso garantir a retomada do investimento público, da geração de empregos, do financiamento adequado da saúde, a revisão das desonerações, a promoção de uma reforma tributária que desonere as trabalhadoras e trabalhadores, o fim das medidas recessivas especialmente a Emenda Constitucional 95, que congela a ampliação de gastos nas áreas sociais e a proteção das empresas públicas. Essa agenda exige um novo governo, que pode ser conquistado com eleições livres e democráticas. Para apear Bolsonaro do poder há inúmeras alternativas constitucionais. Mas para que isso ocorra, é preciso alterar a correlação de forças sociais, isto é, aumentar na sociedade a quantidade de pessoas favoráveis ao fim do governo. É uma tarefa grandiosa, que exige o envolvimento de diferentes classes, instituições e organizações políticas e sociais. Com o aprofundamento da crise, causado pelo aumento de casos do coronavírus em todo o país, e o fim do Auxílio Emergencial, decretado pelo governo Bolsonaro, a popularidade do presidente começa a dar sinais de queda. A aprovação de uso emergencial, pela Anvisa, de duas novas vacinas, é uma derrota simbólica de Bolsonaro e de sua política negacionista. São elementos que nos permitem antever uma brecha na represa do pacto entre o bolsonarismo e o mercado, por onde pode passar um amplo movimento de repúdio do governo. Esse cenário, porém, começou a ser construído bem antes. Ao contrário do que ocorreu no primeiro ano de governo, Bolsonaro perdeu o monopólio sobre o debate público durante a pandemia. Esse processo foi fundamental para que houvesse um maior equilíbrio de forças na sociedade. Apesar de recuperar popularidade a partir da aprovação do Auxílio Emergencial, em junho, Bolsonaro teve dificuldades para traduzir esse processo em apoio político. Na eleição municipal ele foi o grande derrotado e deu sinais de que teria um 2021 difícil pela frente.
A eleição municipal
Todo processo eleitoral tem uma agenda de temas. Essa agenda não é definida pelos candidatos durante a campanha, mas antes, por uma série de atores que disputam previamente os assuntos que terão centralidade na eleição. Em 2018, por exemplo, quando 57 milhões de brasileiras e brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, a campanha eleitoral tinha um temário claro: combate à corrupção e negação da política (resultado da espalhafatosa atuação da Lava Jato), valores morais (que ganharam centralidade graças à atuação decidida das igrejas neopentecostais) e segurança (como expressão da deterioração das condições de vida em todos os níveis). Parece óbvio, olhando em retrospectiva, que com uma agenda dessas o resultado só poderia ter sido a eleição de um candidato de extrema direita. Em 2020 os temas da eleição foram determinados pela trágica pandemia do novo coronavírus. Durante os meses que antecederam o processo eleitoral, o debate público foi tomado por questões como o financiamento dos serviços de saúde e assistência social; a necessidade de se combater o desemprego e a quebradeira de milhares de micros e pequenos empreendimentos; o papel dos governantes na luta para conter a propagação do vírus; a oferta de políticas de renda mínima entre outras.
Entre os partidos de esquerda, o PSOL foi o que verificou o maior crescimento proporcional. Embora ainda governe apenas cinco cidades e tenha eleito só 90 mandatos de vereador em todo o país, o PSOL ocupou lugar de destaque no debate eleitoral, não só pela importância de campanhas como as de São Paulo, com Guilherme Boulos e Erundina, ou Belém, com Edmilson Rodrigues, mas principalmente pela capacidade de combinar propostas propriamente eleitorais com a denúncia da crise que o país vive.
Preocupações populares
Segundo pesquisa Ibope realizada em outubro, a saúde foi apontada como principal preocupação dos eleitores em onze capitais. Até organizações como Banco Mundial, FMI e OCDE se manifestaram sobre a necessidade de se ampliarem os investimentos públicos e afrouxar as medidas de austeridade, com o objetivo de gerar condições para a retomada da economia global, mudando radicalmente o debate em torno da agenda econômica. Embora presentes, temas como corrupção e segurança ficaram definitivamente em segundo plano. Com isso, ao invés de definir as preferências eleitorais a partir das posições dos candidatos frente a temas morais, muitas vezes sem qualquer relação com as atribuições de um prefeito ou vereador (como aborto, descriminalização das drogas ou atuação das forças de segurança pública), parte expressiva dos eleitores colocou a política em primeiro plano: optou por candidatos que, a seu ver, apresentavam melhores condições de enfrentar a profunda crise sanitária, econômica e social que vivemos. Não por acaso, o percentual de prefeitas e prefeitos reeleitos chegou a inéditos 72%. Na dúvida, o eleitor preferiu a manutenção de nomes já conhecidos, mesmo com gestões muitas vezes mal avaliadas antes da pandemia. O resultado foi uma derrota acachapante dos candidatos identificados com o bolsonarismo. A esquerda, por sua vez, embora não tenha tido resultados que permitam descrever uma incontestável vitória, tão pouco foi derrotada. Em condições de voltar a falar dos temas que unificam as classes populares emprego, saúde, educação, transporte público, combate às desigualdades e longe da armadilha identitária, vários candidatos chegaram ao segundo turno e venceram eleições em cidades importantes, como Belém e Fortaleza. O retorno da política e do debate de projetos, em detrimento do debate sobre valores morais, faz bem para o Brasil e abre novas perspectivas. Um dos principais exemplos é a proposta de criação de uma renda cidadã municipal, ora implementada no novo governo de Belém, mas encampada por inúmeros candidatos do partido pelo país. A diversidade de nomes, rostos e trajetórias também marcou a participação do PSOL nessas eleições, com a vitória de dezenas de mulheres, negros e negras, LGBTs e ativistas sociais de diferentes frentes de luta, consolidando o partido como principal espaço de renovação da esquerda brasileira.
Ampliar as lutas em 2021
Bolsonaro foi o grande derrotado das eleições municipais de 2020. Ele começou 2021 vendo a popularidade cair após a extinção do Auxílio Emergencial. Mas o acordo com o chamado “centrão” está a pleno vapor, o que significa que o mercado ainda espera que ele seja capaz de promover as contrarreformas exigidas para destruir definitivamente as conquistas de 1988. Além disso, apesar dos constrangimentos envolvendo o Ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, os militares não deram até o momento sinais de um “desembarque” do governo da extrema direita, o que confere certa estabilidade institucional a Bolsonaro. Mesmo com essas dificuldades, a tendência é de ampliação do desgaste do governo e fortalecimento da campanha pelo #ForaBolsonaro. Enquanto não for possível convocar manifestações de rua, às forças de oposição caberá superar a divisão que se manifestou na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados divisão que expressa diferentes táticas para derrotar o bolsonarismo e apresentar uma plataforma emergencial em torno de três eixos: a) saída de Bolsonaro e Mourão; b) volta do Auxílio Emergencial e promoção de políticas de retomada econômica no médio prazo; c) garantia de vacinação de toda a população o mais rápido possível. Muitas outras lutas irão se impor a cada momento, como aconteceu na denúncia da violência policial contra negras e negros ou dos crimes ambientais do governo Bolsonaro. Elas não podem ser negligenciadas ou secundarizadas em hipótese alguma. Mas se a oposição quiser impor sua narrativa, além de alianças, deverá também saber priorizar os temas capazes de unir a maioria do povo brasileiro em favor da mudança. É possível vencer e virar, de uma vez por todas, essa página infeliz de nossa história.