Robério Paulino
A Nova Política Econômica (NEP) foi a orientação econômica adotada na Rússia revolucionária para tirar o país da crise após a Guerra Civil contra as tropas brancas, que se estendeu de 1918 a 1920. Inspirada por Lenin e a aplicada a partir de 1921, após a vitória do Exército Vermelho, foi um recuo por parte da direção bolchevique na política especial de “Comunismo de Guerra” como orientação econômica aplicada durante o conflito, frente ao descontentamento da população nos campos e nas cidades.
A Guerra Civil fora vencida pelo Exército Vermelho, sob o comando de Trotsky. No entanto, a vitória contra as tropas brancas, apoiadas por forças de intervenção estrangeiras de quatorze países, teve um custo altíssimo. Os bolcheviques tinham em suas mãos não só um país marginal, imensamente atrasado em termos de desenvolvimento capitalista, isolado no quadro internacional, como agora arruinado pela guerra interna.
Como uma questão de sobrevivência da Revolução, a direção bolchevique estabeleceu então um regime de controle rigoroso da produção e da distribuição, o “Comunismo de Guerra”. Toda a vida econômica teve que ser subordinada às necessidades das frentes de batalha e da alimentação das cidades. Os excedentes dos camponeses eram confiscados, por meio da política de requisições forçadas, o que os levava a comprimir mesmo aquela parcela necessária à sua sobrevivência. No começo da Guerra Civil, aterrorizados pelos brancos, os camponeses apoiaram os bolcheviques, pois a distribuição de terras por meio de uma reforma agrária havia lhes concedido uma maior democracia no campo. No entanto, a política de requisições invertia o sentido das concessões aos camponeses e gerava revolta.
Distribuição e descontentam
Ao mesmo tempo em que trouxe o apoio dos camponeses pobres à Revolução de Outubro, a reforma agrária, ao distribuir a terra, havia convertido os aliados recentes em camponeses médios, acostumados a se ligar com o mundo por meio de relações de mercado. À medida que se vislumbrava a derrota das tropas da reação, o descontentamento dos camponeses com a política de requisições do governo bolchevique foi se revelando, levando a revoltas e mesmo a atentados contra os emissários comunistas que operavam os confiscos da produção.
As cidades dependiam do fornecimento deficitário de gêneros no campo, o que havia gerado violentas revoltas e uma gravíssima crise alimentar. Nas cidades também haviam sido proibidos quaisquer empreendimentos privados, tanto na indústria quanto no comércio.
A antiga moeda, o rublo, fora abolida e adotou-se nas cidades um rigoroso sistema de racionamento universal, de “igualitarismo” sobre a penúria. As fábricas começaram a pagar parte dos salários em espécie, quase um escambo. Grande parte da população voltou aos campos como forma de sobreviver. No curto espaço de três anos, a partir de 1918, Petrogrado perdeu 57,5% da população; Moscou, 44,5% (CARR, 1974, vol.1, p.305). Inicialmente, aquele regime, de “repartição socialista”, havia parecido aos bolcheviques a materialização na Terra do igualitarismo comunista. Mas a dura realidade não correspondia aos sonhos.
O “Comunismo de Guerra” gerou desânimo, anarquia na produção, boicote, desabastecimento e forte descontentamento no campo e nas cidades. A produção nas fábricas despencara. Após o término da Guerra Civil, a Rússia tinha a economia esfacelada e grassava a fome. Houve mesmo casos de canibalismo no Volga. A “repartição socialista”, baseada na mais severa escassez e na socialização da fome, nada tinha a ver com o mundo de abundância sonhado por Marx.
A Guerra Civil fora ganha, a revolução sobrevivera, mas o “Comunismo de Guerra” como política econômica fora um desastre e o país estava à beira do abismo novamente. O resultado da guerra e daquela política havia sido uma desorganização completa da economia, especialmente a urbana.
Na primavera de 1921, a direção bolchevique teve que mudar a orientação econômica de requisições, em função da terrível crise de desabastecimento, fome nas cidades e revoltas no campo. Estava claro que aquela política não podia ser mais aplicada e era necessário voltar a incentivar a produção agrícola.
A NEP como rendição perante a realidade
A busca por alternativas para reativar a economia era o assunto mais discutido nas reuniões e congressos do Partido Comunista. Foi Lenin quem apresentou ao partido em 1921 as ideais centrais do que seria a NEP. Era na verdade um recuo frente ao descontentamento nos campos e na cidade com o “Comunismo de Guerra”, para salvar o regime soviético.
Lenin e a direção bolchevique concluem que ainda não seria possível estabelecer relações diretamente socialistas na velha Rússia atrasada e semidestruída pela guerra civil. Na verdade, o que se constatou era mais profundo: ainda não era possível prescindir do interesse individual e do mercado como elementos motores da economia. O comunismo não poderia ser alcançado imediatamente. Seria necessário voltar a recorrer temporariamente a práticas capitalistas para alcançá-lo.
Naquela discussão, enquanto Lenin acertou percebendo o perigo que rondava a revolução, propondo a NEP, Trotsky que teria o imenso mérito de ser o principal opositor e futuro revelador para o mundo do processo de burocratização na formação soviética, o caráter do stalinismo errou, ao propor como saída para aquela situação a militarização dos sindicatos e das relações econômicas (TROTSKI, 1987).
O descontentamento dos produtores
Os bolcheviques haviam cavado um fosso imenso entre eles e os milhões de pequenos produtores rurais e precisavam normalizar tais relações. Frente ao boicote generalizado dos camponeses, já não havia sequer excedentes a requisitar. Então, era necessário fazer com que eles reaparecessem, que a produção voltasse a crescer, criando estímulos para isso. Assim, a primeira medida da NEP foi restabelecer a circulação de mercadorias no campo, por meio da livre compra e venda dos produtos, em substituição às requisições, devolvendo aos camponeses o estímulo de que precisavam para voltarem a plantar e comercializar a produção.
Em resumo, essa nova política recuava com as ações centralizadoras do “Comunismo de Guerra” e permitia a volta de algumas práticas capitalistas. Operou-se uma substituição do sistema de contingenciamento pelo imposto em espécie sobre a produção dos camponeses, com estímulo às relações monetário-mercantis, despertando novamente o interesse material dos camponeses em semear.
Eles passaram a ter uma porcentagem da produção comprada pelo Estado por um preço fixo e a liberdade de comercializa o excedente no mercado. As famílias camponesas que tivessem acumulado alguns recursos financeiros estavam autorizadas também a alugar terras alheias para a produção. Não só se permitia que o camponês mais bem situado (o kulak) pudesse vender sua produção, mas inclusive ter empregados. O imenso peso social do campesinato e a ligação histórica com a propriedade individual se impuseram sobre o sonho coletivista dos líderes bolcheviques.
À volta da iniciativa privada nas cidades
Mas as medidas não se limitavam ao campo. Nas cidades, empreendimentos capitalistas foram permitidos no comércio e até em pequenas indústrias. A tão sonhada igualdade teve que ceder lugar à concorrência, como forma de elevar a produção. Para implantar a NEP e voltar a dinamizar a economia, o governo russo teve não somente que permitir a volta de práticas capitalistas, como chegou a convidar capitais estrangeiros, que financiaram a criação de empresas privadas no setor do comércio varejista. Cooperativas também poderiam atuar em todos os setores da economia. A NEP também proibiu a nacionalização imediata de indústrias nas cidades e somente após a decisão da administração central é que elas poderiam ser feitas.
A imposição da volta da circulação do dinheiro foi outro aprendizado forçado dos comunistas. Em 1917, eles ainda achavam que para se chegar à igualdade geral era preciso abolir o dinheiro. Até 1922, de fato, não houve um dinheiro oficial. Foram criados ‘vales’ não oficiais e parte da população continuava a usar clandestinamente o rublo imperial, mais valorizado. Mas o governo revolucionário foi sendo forçado a reintroduzir a moeda, sem o que não haveria comércio e reativação da economia. Outro choque de realidade, um novo aprendizado.
Em suma, os principais pilares da NEP eram permitir a livre comercialização de parte da produção camponesa, restabelecer uma liberdade limitada no comércio interno, recriar uma moeda, liberdade de diferenças de salários aos trabalhadores, autorização para o funcionamento de empresas particulares em alguns setores e permissão de entrada de alguns capitais estrangeiros para a reconstrução do país.
Mas mesmo com as mudanças, com a elevação da produção camponesa, nos anos iniciais da NEP o estado da economia seguiu caótico: crise industrial; elevado desemprego nas cidades; revalorização da antiga classe de dirigentes industriais dos tempos do czarismo, que passaram a ter poderes excepcionais nas empresas, impedindo qualquer democracia operária; inflação; oscilação caótica da moeda; etc. (CARR, 1981, p. 57). No entanto, no que se referia ao abastecimento, correspondendo às expectativas, a NEP foi relativamente bem-sucedida. De fato, possibilitou a reativação da economia com o aparecimento de excedentes comercializáveis no campo e redução das carências e da fome nas cidades. Com a liberalização, a economia soviética foi se recuperando e já em 1924 tinha voltado a crescer, permitindo inclusive a exportação de alguns excedentes agrícolas.
A continuidade sob Stalin
Para liquidar a oposição de esquerda que surgiu contra o regime burocrático e policial que ele começava a implantar, Stalin inicialmente se apoiou na ala direita do partido e deu continuidade à política da NEP, que durou até 1927 (BETTELHEIM, 1983). Para aquele setor à direita no partido, da qual Bukharin era um dos maiores expoentes, o enriquecimento de uma nova pequena burguesia agrária e de comerciantes urbanos não ameaçava os rumos da Revolução, já que o Estado mantinha o controle das grandes indústrias, do comércio exterior e da circulação da moeda. No entanto, o crescimento da força dessa pequena burguesia rural e comercial, possibilitada também pela NEP, começou a ameaçar o controle da nova burocracia partidária.
Então, a partir de 1928, Stalin começa a se livrar também da “direita” do partido, dando uma guinada de rumo, iniciando a “coletivização pelo alto” do campo, com expropriações e deslocamento compulsório e violento de camponeses de suas terras em direção a novas áreas, em geral inóspitas, quase um exílio em seu próprio país para milhões de pessoas. Ao mesmo tempo se anunciava o processo de industrialização forçada, por meio dos Planos Quinquenais (DOBB, 1972).
Esse processo de coletivização pela força e pelo terror levou a milhões de mortes no campo, um massacre, e a que a agricultura soviética experimentasse um profundo período de estagnação no início da década de 1930. Estava completado o quadro do que veio a se chamar de sistema soviético durante as próximas décadas, um regime ditatorial e burocrático de partido único, com perseguição a qualquer oposição, que nada tinha a ver com a tão sonhada democracia socialista.
Algumas lições da história
Processos como a NEP, a burocratização do sistema soviético e a transformação em um regime totalitário e violento de partido único, com perseguição e mortes de milhões de opositores, e, ao final, a implosão em 1991, já deveriam ter levado a esquerda a uma profunda reflexão sobre os erros e crimes cometidos nas tentativas de construção do socialismo no século passado, como forma de superar o desgaste, a debilidade e atual fragmentação do movimento socialista no mundo. Mas, infelizmente, isso não ocorreu até agora, com muitos partidos, movimentos e quadros de esquerda insistindo em repetir as mesmas velhas fórmulas que levaram ao profundo desgaste do socialismo ao final do século XX, do que até agora não nos recuperamos.
Os recuos da NEP, com adoção de artifícios capitalistas, derivaram de uma profunda lição da realidade aprendida por Lenin e pelos bolcheviques: as leis da economia, da sociedade e da natureza se sobrepõem aos mais belos sonhos e planos (MAZZUCCHELLI, 2009).
Ao mesmo tempo em que fazemos planos, sonhamos e queremos operar mudanças grandiosas, somos também, enquanto sociedade, fruto da evolução de um sistema econômico e social que tem leis próprias, de uma cultura formada durante séculos, que não se muda da noite para o dia. Ou seja, não se pode construir uma nova sociedade igualitária e socialista pela imposição, pelo terror, pela repressão, mas antes de tudo pelo convencimento, pela discussão e decisão democráticas, pela generosidade, pela tolerância, pelo respeito às tradições, à cultura e ao ritmo próprio de aprendizado dos povos.
A questão democrática
Em uma sociedade futura com a qual sonhamos, não se pode impor a visão de uma minoria, mesmo que nos julguemos os representantes mais genuínos dos interesses coletivos e de uma sociedade superior. A debacle final das experiências socialistas quiçá devesse nos deixar como lição que talvez fosse melhor ir mais devagar na construção do socialismo, sem impor nossa visão às amplas massas, que a esquerda considera em geral atrasadas.
Outra lição importante é que socialismo não pode ser menos democrático que as democracias capitalistas, mas pelo contrário, deve pressupor graus de democracia e liberdade muito superiores às limitadas e ocas democracias capitalistas, nas quais de fato o grande capital segue controlando as decisões centrais da economia, da sociedade e da política. Essa democracia que queremos para um futuro socialista deveria ser inclusive a que deveríamos praticar internamente aos partidos socialistas.
Os regimes totalitários de partido único identificados como socialistas no século passado aceleraram, sem dúvida, o ritmo de industrialização e de desenvolvimento humano em países que o capitalismo foi suprimido no século passado. Mas isso de forma alguma poderia justificar a adoção de regimes ditatoriais e assassinos contra toda e qualquer oposição. Se o socialismo quiser voltar a encantar a humanidade, deve fazer antes uma profunda autocrítica desses regimes totalitários de partido único identificados com o socialismo no século passado. Só voltaremos a encantar o mundo se ao mesmo tempo em que pudermos garantir aos povos igualdade e abundância material possamos assegurar que o nosso socialismo pressuporá também a mais ampla liberdade de crítica e organização política, como a mais verdadeira generosidade.