Sonia Guajajara
Baixou de vez o espírito de Domingos Jorge Velho no Palácio do Planalto: no primeiro ato à frente da presidência da República, Jair Bolsonaro publicou em edição extra do Diário Oficial, pouco depois da cerimônia de posse, a Medida Provisória (MP) 870. Entre outros tantos disparates, a MP transfere para o Ministério da Agricultura a função de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas (TIs). A atribuição cabia à Fundação Nacional do Índio (Funai), até então vinculada ao Ministério da Justiça e, hoje, sob as asas da pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Cabia àquela pasta mediar conflitos fundiários no campo, via Polícia Federal. Com essa transferência, estamos praticamente entregues à própria sorte. Não à toa, pelo menos seis terras indígenas foram invadidas desde o início do ano e várias lideranças estão ameaçadas de morte. E temos razões de sobra para acreditar que essas ações são orquestradas.
A letra da Constituição
O direito constitucional às nossas terras é garantido pelo artigo 231 da Constituição, no qual se lê: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Mais adiante, está escrito: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” e que “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Cabe agora ao nosso maior adversário de hoje zelar por ele. É a raposa tomando conta do galinheiro.
A bancada ruralista perdeu mais da metade da representação no Congresso nas últimas eleições, despencando de 245 para 117 senadores e deputados. Entretanto, a influência no Executivo, que já era enorme em governos passados, cresceu igual erva daninha como, aliás, era esperado depois da adesão entusiasmada do agronegócio à candidatura Bolsonaro.
A atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina foi presidenta da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA). Ela entregou a Bolsonaro, ainda no primeiro turno, uma carta de apoio da bancada com assinaturas de 236 políticos de 18 partidos. E não é só isso: ruralistas que não se reelegeram hoje ocupam postos estratégicos, como o ex-deputado Valdir Colatto, que agora chefia o Serviço Florestal Brasileiro (SFB). O órgão foi estranhamente transferido do Ministério do Meio Ambiente para o da Agricultura. Também ex-presidente da FPA, Colatto, quando parlamentar, contribuiu às mudanças que desfiguraram o Projeto de Lei nº 3729/2004 (PL), que trata do licenciamento ambiental, deixando-o mais flexível, à imagem e semelhança dos interesses do agronegócio e do setor de mineração.
Ministros investigados
Antes de assumir, Bolsonaro também cogitou fundir o Ministério do Meio Ambiente ao da Agricultura. Diante da gritaria geral, foi obrigado a recuar; mas colocou na pasta Ricardo Salles, indicado pelos ruralistas. O ministro nem disfarçou. Além de bloquear entidades ambientalistas no twitter, encontrou-se em janeiro com representantes da FPA. Em pauta, temas de interesse da entidade, como a votação do PL que flexibiliza o licenciamento ambiental.
Não custa lembrar também que a ministra Damares é cofundadora da ONG Atini, alvo de investigações do Ministério Público Federal (MPF) por delitos cometidos contra indígenas. A organização foi processada pela Justiça Federal de Rondônia por veicular um documentário sobre infanticídio indígena em que são mostradas imagens de crianças Karitiana, povo em que não existe tal costume. A Atini foi obrigada a tirar o vídeo do ar, a pedido do MPF do Distrito Federal. A própria Damares é acusada de sequestrar crianças indígenas. Ela já manifestou a vontade de nos evangelizar. Um começo de ano em ritmo de blitzkrieg.
Cinco séculos de resistência
Vamos completar em abril 519 anos de resistência. Nesses mais de cinco séculos, nós, indígenas, enfrentamos toda sorte de ameaças. Desde que Cabral pisou nesta terra tentam nos submeter ou nos exterminar. Sempre fomos vistos como incômodo ou mercadoria. Quando não nos caçavam, fingiam que não existíamos.
Mesmo depois da chamada Independência, continuamos invisíveis para o Estado. Fomos ignorados pelo Brasil oficial por mais de 80 anos. As Constituições de 1824 e 1889 sequer citam a nossa existência. Somente em 1910, 20 anos depois da promulgação da República, foram criados os primeiros instrumentos jurídicos e administrativos federais para regulamentar as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas. Temos experiência de sobra quando se trata de desrespeito, preconceito e injustiça.
Por isso permanecemos em estado de alerta constante. Essa perspectiva histórica nos faz enxergar Bolsonaro apenas como uma etapa de um longo processo. Só mais um passo atrás. E o fato de ele não esconder as intenções, ajudou-nos a planejar com antecedência nossa estratégia de defesa. “Se eu assumir, índio não terá mais um centímetro de terra”, disse em fevereiro passado.
O presidente passa a impressão de que foi pego de surpresa pela vitória nas urnas. Isso está estampado no jeito de governar, como se ainda estivesse em campanha ou na oposição, ou se ainda fosse apenas um parlamentar. A falta de um projeto de país consistente salta aos olhos.
Em se tratando do desenvolvimento do país, até agora só foram apresentadas políticas predatórias, aparentemente improvisadas e totalmente anacrônicas. Essas ideais e ações são extremamente prejudiciais ao meio ambiente e aos interesses dos povos da floresta, e não levam em consideração o futuro do país e do próprio planeta quando não são inconstitucionais. Isso porque as decisões parecem ter sido tomadas de forma impulsiva: os recuos, como a ideia de fundir os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, são fortes indícios. A ideia foi rechaçada pelos próprios ruralistas, que sabiam que a medida poderia gerar manifestações contrárias e até sanções econômicas mundiais.
Bravata e ócio
Bolsonaro construiu sua imagem ao longo de 28 anos na Câmara Federal às custas de pouco trabalho efetivo e de muita bravata. As minorias sempre foram o alvo favorito. Poucos devem se lembrar que já no início da carreira parlamentar, ele dedicava o mandato a questionar e atacar explicitamente os direitos dos povos indígenas. Daí não ter baixado o tom do discurso.
Em 1992, logo no segundo ano na Câmara Federal, o deputado Bolsonaro, então filiado ao extinto Partido Democrata Cristão (PDC), apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 170, que visava revogar a Portaria 580. Ela havia sido assinada no ano anterior por ninguém menos do que o insuspeito Jarbas Passarinho, então ministro da Justiça do presidente Fernando Collor e ex-ministro dos governos Costa e Silva, Médici e Figueiredo e, portanto, um dos principais artífices da ditadura.
Essa portaria declarava como posse permanente do povo Yanomami as terras que ocupavam na fronteira de Roraima com o Amazonas. O território daria origem, na década seguinte, à TI Raposa do Sol. O PDL foi arquivado, mas a obsessão de Bolsonaro permaneceu. Não nos surpreendeu que ele tenha tentado investir contra aquela área antes mesmo de assumir. Em dezembro passado, ele revelou a intenção de rever a demarcação, com a justificativa de que “É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional. E, no lado do índio, dando royalties e integrando o índio à sociedade”.
A declaração, além de anacrônica, é fantasiosa. Revela falta de conhecimento da Constituição, que garante aos indígenas os mesmos direitos e deveres de qualquer cidadão brasileiro; ou seja, já podemos nos integrar “à sociedade”, basta que queiramos. E não há nenhum estudo que comprove que a Raposa Serra do Sol seja o novo Eldorado, “a área mais rica do mundo”. Fora que a Constituição de 1988 até prevê a possibilidade de existir atividade mineradora em TIs, mas só depois de regulamentação específica pelo Congresso e consulta aos povos afetados. Nada disso saiu da gaveta.
Direito de sermos consultados
O direito de sermos consultados é reiterado por tratados internacionais assinados pelo Brasil como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígena.
Mais uma vez, Bolsonaro esbarrou na Lei e em nossa resistência. O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, relator da ação que reconheceu os direitos dos indígenas sobre o território em 2009, diz que ela não pode ser revertida: “A decisão transitou em julgado. Foi uma decisão histórica. Para os índios, é direito adquirido”, disse ele ao jornal O Globo.
“Na década de 1980, garimpeiros atraídos pelo ouro, revelado pelo Projeto Radam, haviam contatado os ianomâmis. A garimpagem foi desastrosa. A caça desaparecera. Os peixes, o mercúrio os contaminaram. Morreram 22% da população indígena, a maioria de gripe e malária. O Brasil era mundialmente acusado de praticar o genocídio dos ianomâmis.
“No governo João Figueiredo (1979- 85), em 8 de janeiro de 1985, baseada em decreto de 1983, a Funai, subordinada ao ministro Mário Andreazza, criou o Parque Indígena Yanomami, com superfície de 9.419.108 hectares. Interditou-o e proibiu a presença de não-índios”, escreveu em artigo Jarbas Passarinho (Correio Braziliense, 25/3/2008”). Ele assinou Portaria 580, justificando a decisão.
Os militares não caíam de amores por nós. Tratou-se de diplomacia e estratégia. O novo governo herdou 54 terras indígenas para demarcar. São processos já concluídos, que vão de 2007 e 2018. Hoje, há 129 processos em andamento e cerca de 120 mil pessoas vivem nesses territórios. A Constituição de 1988 dava um prazo de cinco anos após a promulgação para demarcação de todas as TIs do país. Portanto, o Estado está 25 anos atrasado.
Nenhuma gota a mais
Em janeiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou a campanha “Sangue Indígena: nenhuma gota a mais”, com o objetivo de contestar a transferência do processo de demarcação para o Ministério da Agricultura. Estamos indo à luta. A Apib e associações indígenas vêm acionando a Procuradoria-Geral da República (PGR) em diversas regiões do país. O PSB levou ao STF uma ação contra a medida e a Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o governo federal no Supremo, respondeu: “É importante destacar que a estrutura fundiária do Brasil é extremamente complexa, compreendendo unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos rurais, comunidades quilombolas, áreas militares e divisões estaduais, correspondentes a, aproximadamente, 37% do território brasileiro, demarcadas sem nenhum planejamento estratégico, tendo como justificativas a pressão de diversos grupos sociais e políticos, nacionais e internacionais”.
Atrasar pode ser uma opção de estratégica. Se não houver uma pressão muito forte, Bolsonaro e os ruralistas podem se dar ao luxo de sentar nesses processos e fazerem vista grossa para as invasões e ameaças.
Nesse sentido, colocar a Funai nas mãos de Damares Alves pode significar apenas um tiro de misericórdia na instituição que, a bem da verdade, vem sendo sufocada há tempos. No fim do governo Temer, o orçamento correspondia somente a 14% do total das despesas mínimas; e em março do ano passado foram extintos de uma só vez, por decreto, 347 cargos comissionados.
Os cortes atingiram em cheio departamentos responsáveis pela análise de procedimentos de demarcação de TIs e de licenciamento ambiental. Também no ano passado, foi aprovado o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o órgão e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que prevê o indiciamento de 67 pessoas, entre servidores, antropólogos, indigenistas, procuradores da república e lideranças indígenas.
O cinquentenário, completado em 5 de dezembro de 2017, sequer foi comemorado. Isso não quer dizer, é claro, que desistimos da luta.