Restou evidente que a pandemia veio aprofundar as mazelas das políticas econômicas neoliberais impostas à sociedade brasileira desde 2015 e que ganharam contornos profundamente dramáticos após o Golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro – dois fatos políticos marcados não só pelo arrocho na política fiscal que se seguiu como também pelas perdas históricas de direitos sociais, pelo desmonte do estado de bem-estar social, das políticas públicas e, no segundo caso, ataques à democracia e à ciência em suas manifestações políticas e sociais.
Fato é que a pandemia se abateu no Brasil em um momento de profunda vulnerabilidade socioeconômica, que deságua em um cenário de altas taxas de desemprego e precarização no mundo do trabalho; baixo grau de proteção social e subfinanciamento de serviços essenciais, como a saúde pública e a moradia.
Esse quadro atinge de maneira mais aguda as camadas mais pobres do país, os trabalhadores precarizados, e, em especial, quem está desempregado, sem esquecer os micros e pequenos empresários e setores expressivos das camadas médias da população, que tiveram representativo empobrecimento, ampliando os nossos níveis já abissais de desigualdade e miserabilidade social no país.
Diante deste cenário, é importante trazermos um retrato estatístico da crise humanitária que a população brasileira vive em termos de fome, queda na renda, desemprego e como isso nos faz chegar à questão da moradia e na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 828, ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) e conhecida como ‘ADPF do Despejo Zero’.
Insegurança alimentar
No Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, foram estimados o tamanho e a composição da insegurança alimentar no Brasil com base em dados de 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020. A pesquisa utilizou a Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar, que define a ocorrência de situação de insegurança alimentar quando a família não tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. Há três graus de insegurança alimentar:
- Insegurança alimentar leve: há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro e qualidade inadequada dos alimentos.
- Insegurança alimentar moderada: há redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos.
- Insegurança alimentar grave: há redução quantitativa severa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores. Nessa situação, a fome passa a ser a regra no domicílio.
Os principais resultados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar são os seguintes:
- ➢ Insegurança Alimentar total: do total de 211,7 milhões de pessoas no Brasil, 116,8 milhões (55,2%) conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar (leve, moderada ou grave). Apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar.
- ➢ Insegurança alimentar grave: 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave – situação de fome concreta).
- ➢ Insegurança alimentar moderada ou grave: 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente.
- ➢ Fome no campo: a insegurança alimentar grave no domicílio dobra nas áreas rurais do país, especialmente quando não há disponibilidade adequada de água para produção de alimentos.
- ➢ Reversão dos avanços no pós-austeridade: hoje temos o pior índice de insegurança alimentar desde 2004. Em 2004, o país tinha 35,2% da população em situação de insegurança alimentar, hoje tem 55,2%.
- ➢ A austeridade iniciada no final de 2014 fez o país regredir em termos de segurança alimentar. O governo Bolsonaro apresenta os índices mais elevados de insegurança alimentar da série histórica analisada. Entretanto, a fome no país vem crescendo acentuadamente desde a adoção das políticas de austeridade fiscal. A taxa de insegurança alimentar subiu de 22,9% em 2013 para 36,7% em 2018.
- ➢ Impactos regionais: em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.
- ➢ A fome tem gênero. Em 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem.
- ➢ A fome também tem cor. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.
Crescimento da desigualdade: Número de pessoas abaixo da linha da pobreza se amplia e índice de miséria apresenta piora sensível
Desigualdade de renda no mundo pós-pandemia
No cenário internacional, o relatório da FAO apontou que os 1.000 maiores bilionários do mundo tendem a recuperar as perdas da pandemia em apenas nove meses. Já os mais pobres levarão mais de uma década para voltar ao nível econômico que estavam antes da crise. O relatório revelou ainda que as mulheres foram as que mais perderam empregos durante a pandemia em todo o mundo e a população negra foi a que mais se contaminou e teve o maior índice de mortes devido à covid-19 no período.
Pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil
O número de pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil era de 10,97%, cerca de 23,1 milhões de pessoas em 2019. Com o auxílio emergencial em sua formatação original, o número chegou a cair para 9,8 milhões de pessoas. Porém, com o fim do auxílio emergencial em paralelo à fragilidade do mercado de trabalho, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza pode ser multiplicado por 3,5 vezes, atingindo 34,3 milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, o Brasil soma 42 novos bilionários na lista da revista Forbes.
Índice de miséria
O ‘índice de miséria’ é um indicador simplificado que mede a satisfação da população com o panorama econômico atual, somando o desemprego (medido pela PNAD – Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio) com a taxa de inflação (medida pelo INPC). Segundo a última atualização para o índice, setembro de 2021 foi o pior mês da série histórica disponível (23,55). Trata-se de uma piora de 50% em relação ao mês de janeiro de 2020.
A questão da moradia
Cabe apontarmos ainda como a crescente piora econômica impacta diretamente nas condições de moradia da população no país, com atenção especial para o perfil étnico-racial e de gênero dos mais afetados. Numa sociedade profundamente marcada pelo machismo estrutural, onde as obrigações da casa recaem sobre as mulheres, são elas que estão à frente das lutas por moradia. Nesse sentido, é essencial desmistificar quem são os/as sem-teto brasileiros. As famílias que estão em ocupações na luta por moradia digna são de trabalhadoras e trabalhadores: 69,3% vivem em casas alugadas e sofrem com ameaças de despejos, porque a renda do seu trabalho não é suficiente para garantir o acesso à alimentação e moradia digna – frise-se, direito previsto na Constituição Federal de 1988.
O que vemos é que as principais profissões encontradas nas ocupações são: diarista, ajudante geral, auxiliar de limpeza, garçom, motorista, auxiliar administrativo, operador de máquinas, telemarketing, pedreiro, porteiro, vendedor ambulante, cozinheiros e vigilantes, com renda de um salário mínimo a 1,5 salário mínimo. O mito do Estado grande demais é desmentido também pelos dados referentes ao perfil populacional das ocupações. Na ocupação de São Bernardo do Campo, havia 12.123 famílias, das quais 30,7% recebiam Bolsa Família, menos de 2% acessaram o FIES e o PRONATEC e apenas 25% das famílias se inscreveram em programas habitacionais, mas sem sucesso na empreitada.
As famílias que sofrem despejo no Brasil são as mesmas que nunca acessaram programas habitacionais. Poucas famílias conseguem realizar o cadastro e as que conseguem nunca são chamadas. Vimos isso de forma mais escancarada recentemente com o cadastro virtual do auxílio emergencial. Ou seja, quem está na iminência de sofrer despejo é porque não conseguiu acessar o mercado de trabalho para ter uma renda no fim do mês suficiente para pagar moradia e alimentação. É a parcela da classe trabalhadora que mora de favor ou em condições de extrema vulnerabilidade.
O aprofundamento da crise econômica acertou diretamente o acesso à moradia. O levantamento do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), mostra que o número de reintegrações de posse e remoções, na região metropolitana de São Paulo, dobrou durante a pandemia.
O número de famílias ameaçadas de despejo aumentou mais de 600% desde o início da pandemia, segundo informações da campanha ‘Despejo Zero’. Os dados de fevereiro de 2022 apontam para mais de 132 mil famílias ameaçadas de remoção durante a pandemia e mais de 27 mil removidas no mesmo período.
Nesse cenário de inexistência de políticas habitacionais e de auxílio emergencial, à parcela mais vulnerável da população brasileira cabe alertar que 106 casos de despejo foram suspensos desde o início da campanha ‘Despejo Zero’, evitando que 22.850 famílias perdessem sua moradia – isso fruto da ação conjunta de dezenas de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Brasil (MTST) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que ingressaram no Supremo Tribunal Federal com a ADPF 828.
É essa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que vem liminarmente reconhecendo a impossibilidade de se despejar essas famílias durante a pandemia. Esse é um resultado, como dito, do esforço conjunto e coordenado da campanha que coleta e dissemina informação e atua na defesa ativa em processos judiciais e administrativos envolvendo conflitos fundiários no campo e na cidade, bem como em práticas de incidência política e institucional nos órgãos públicos.
Neste sentido, a ADPF 828 teve papel fundamental para evitar despejos em escala nacional e foi uma das ferramentas que ajudou a proteger quase 23 mil famílias desde o início deste mapeamento, funcionando com um controlador social que minimiza o aprofundamento da falta de direito aos que já tem boa parte dos direitos essenciais negados pelo Estado, como vimos nos dados acima.
E agora?
De acordo com o retrato estatístico apresentado, o Brasil passa por um processo acelerado de deterioração socioeconômica. A combinação de altos níveis de desemprego com forte pressão inflacionária se manifesta em aumento da insegurança alimentar e ampliação das nossas crônicas desigualdades interseccionais. Atualmente, o desemprego atinge, aproximadamente, 14 milhões de pessoas. Se levarmos em consideração um indicador mais fiel à realidade, que é o de subutilização da força de trabalho (taxa que inclui grupos desalentados), hoje falta trabalho para mais de 31,7 milhões de pessoas. A situação é mais grave para as mulheres e para a população negra, como apontado.
Além do desemprego altíssimo, a renda da população mais pobre está sendo corroída pela elevação persistente da inflação. Os números são de fato aterrorizantes. Diante deste cenário de desemprego, inflação e fome, o governo federal vem reduzindo, sistematicamente, as políticas de transferência direta de renda, agravando deliberadamente a vulnerabilidade social dos brasileiros. O panorama, sem dúvidas, é o pior possível.
No tocante à moradia, o cenário também é desesperador. Nos últimos 2 anos, nenhum centavo do orçamento federal tem sido investido em habitação social – isso num país onde o déficit habitacional alcança 18 milhões de pessoas, um dos mais altos níveis do mundo.
Assim, nesse momento de sobreposição de crises e regressões, é nosso papel recolocar horizontes e apontar para um futuro de igualdade e de direitos. É preciso fortalecer a luta pela democracia desde as cidades: nos bairros, nas escolas, nas igrejas, cooperativas, associações, organizações da sociedade civil e também nas universidades. É preciso disseminar a informação e travar a batalha de ideias, disputando mentes e corações, resgatando a utopia das cidades como lugar do bem viver, do viver comunitário, solidário, com base no princípio de que as cidades devem servir às pessoas e não às coisas e à especulação imobiliária.
A cidade pela qual lutamos é a que todas e todos possam ser socialmente iguais, humanamente diferentes e livres de opressões, explorações e discriminações. Este horizonte de cidades é utópico, mas também realista e necessário. É urgente!
Isso só é possível através da efetivação do controle social sobre os recursos públicos, como preceitua o Estatuto da Cidade. É preciso denunciar e condenar as práticas criminosas daqueles que fazem da cidade um grande negócio; expandir e manter a oferta estatal e gratuita de bens e serviços públicos essenciais à efetivação dos direitos sociais; e retirar poder dos ‘Centrões’, que fazem ponte entre interesses privados e os Poderes Executivos, manipulando os fundos públicos.
É tempo de reconhecer e valorizar os esforços que promovem a organização e as lutas no tecido social. A saída está na permanente mobilização e ocupação das ruas. É imprescindível revalorizar o trabalho cotidiano de quem organiza e promove as lutas localizadas que dizem respeito à realidade concreta da maioria da população. São as cozinhas solidárias, as hortas comunitárias, as torcidas organizadas, os quilombos, os movimentos pulsantes do campo e da cidade que são capazes de dar voz aos invisibilizados pelo Estado e que serão o fio condutor para a construção da superação dessa crise humanitária que vivemos hoje.
Por Izadora Brito