Antonio Gonçalves Filho
As políticas educacionais, nos diversos itinerários formativos, devem ter o potencial de criar condições para a emancipação de cada ser humano e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Para tanto, alguns princípios são indispensáveis para que a Educação alcance esse objetivo: deve ser pública, gratuita com financiamento público, laica, de qualidade e socialmente referenciada. Esse tem sido o “mantra” da militância do campo combativo e popular na defesa da educação.
Paulo Freire, patrono da educação no Brasil, elaborou o conceito de educação popular e pedagogia crítica que deve inspirar as nossas ações políticas para que não se perca a perspectiva de uma escola popular, inclusiva e emancipatória.
Ainda são inúmeros os desafios educacionais no Brasil. Chegaremos ao final do período estabelecido pelo Plano Nacional de Educação (PNE), 2014-2024, sem atingir as metas, mesmo que recuadas, as quais os entes federados propuseram-se a cumprir. As garantias constitucionais têm sido continuamente desvirtuadas por meio de um processo acelerado de Mer PABLO ALBARENGA / MÍDIA NINJA cantilização da educação e da transferência do fundo público para a iniciativa privada, que se evidencia mais fortemente na educação superior.
Contração e expansão
As instituições de ensino superior (IES) públicas passaram por um processo de severos ataques e “avanços” contraditórios ao longo dos últimos anos. No governo FHC foram submetidas a um sucateamento perverso, ao mesmo tempo em que as instituições privadas se expandiram exponencialmente, em muitos casos com incentivos financeiros governamentais. Ao final daquele período, a rede privada respondia por 75% das matrículas no ensino superior, contra 25% das entidades públicas.
No segundo período da era Lula, as IES públicas federais passaram por um processo de expansão significativo, por meio do programa Reuni, com ampliação do acesso e de políticas de permanência estudantil.
A expansão, entretanto, não foi capaz de promover mudanças estruturantes e ainda contribuiu para agravar a precarização do trabalho de docentes e técnicos. Ficou evidente naquele período uma contradição insuperável de um governo de conciliação de classes. Ao mesmo tempo em que se aumentava o investimento público nas IES públicas, foram ampliadas as transferências de recursos públicos para a iniciativa privada por meio de políticas como o FIES e o PROUNI. O Censo Educacional de 2016 demonstrou que, em uma década, as matrículas na rede privada expandiram-se 66,8% e a relação com a rede pública manteve-se a mesma do final da era FHC, 75% x 25%.
Em decorrência da crise estrutural do capitalismo mundial, que atingiu mais fortemente a economia brasileira, a partir de 2014, e à aprovação da Emenda Constitucional 95∕2016, logo no primeiro ano do governo Temer, foram realizados cortes profundos no orçamento federal para as IES, comprometendo sobremaneira as verbas de custeio e de capital. Obras paralisadas, fechamento de cursos, demissão de terceirizados, redução de bolsas de permanência, aumento da evasão estudantil e piora das condições de trabalho foram algumas das consequências trágicas para a educação superior. Tal política também teve reflexos danosos em IES públicas estaduais e municipais, frente à evidente quebra do pacto nanciamento público e autonomia para as instituições, tendo como parâmetro os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS), serviu de desculpa para a implantação dos ditos “novos modelos de gestão” que, nesse caso, se expressa na criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), uma instituição pública de direito privado, que fere a autonomia universitária e foi inicialmente pensada para ser uma “sociedade anônima”.
Frente ao subfinanciamento crônico da Ciência, Tecnologia e Inovação públicas, aprovou-se, em 2016, o Marco da Ciência e Tecnologia que, por meio de um amplo amparo legal, inclusive com mudanças constitucionais, aponta as parcerias público-privadas como a solução para o problema.
Com a desresponsabilização do Estado e a transferência do financiamento para a iniciativa privada, a perspectiva é que sobrevivam apenas as linhas de pesquisa capazes de garantir patentes e taxas de lucratividade do mercado. Cabe ressaltar que atualmente as instituições públicas respondem por mais de 90% do conhecimento científico produzido no Brasil.
O ensino a distância (EaD) é outro campo que vem garantindo alta lucratividade do setor privado. Cursos de graduação são oferecidos inteiramente nessa modalidade, comprometendo a qualidade do ensino. Os cursos presenciais, a partir da portaria do Ministério da Educação nº 1428 de 2018, poderão ofertar até 40% das aulas a distância.
Segundo o Censo da Educação Superior do Inep, em 2017, foram registradas nas IES 8,2 milhões de matrículas; dessas, 1,7 milhão foi em cursos EaD, sendo 1,5 milhão no ensino privado e 165,5 mil no público, um aumento de mais de 11.000% (onze mil por cento!) se comparado a 2006. Do total de matrículas EaD, 743,4 mil foram em cursos de licenciatura (que formam professores), principalmente em Pedagogia. Uma formação docente precarizada tende a contribuir para a educação de uma classe trabalhadora alienada.
Trabalho precarizado
O trabalho docente nas IES públicas tem sido precarizado com a ampliação da carga horária em sala de aula, o achatamento salarial ao longo dos anos, uma carreira desestruturada e com regras cada vez mais produtivistas para progressão e promoção. Com a contrarreforma da Previdência de 2003, que impôs o fim da integralidade e da paridade entre ativos e aposentados no serviço público e criou as condições para a implementação do FUNPRESP, tem-se como perspectiva, principalmente para os novos docentes, uma aposentadoria submetida ao teto rebaixado do regime geral de Previdência Social, após longos anos de trabalho. O movimento docente combativo tem resistido até aqui à capitalização da aposentadoria proposta pelo FUNPRESP, que tem baixíssima adesão da categoria.
A luta de trabalhadores (as) e da juventude contra todos esses ataques tem sido cotidiana, porém sem a ascensão necessária para barrar as crescentes repressão e criminalização dos (as) militantes, incrementada pela lei antiterrorismo, promulgada em 2016, no governo Dilma. Após essa brevíssima historicidade, constata-se que são enormes os desafios para a conquista de um projeto educacional de interesse da classe trabalhadora. Entretanto, a eleição de um governo de extrema direita mudou para pior a conjuntura que já nos era desfavorável e poderá agravar ainda mais as condições de vida do povo empobrecido do campo e das cidades.
Regressão democrática
O governo Bolsonaro se estrutura num projeto econômico neoliberal e numa pauta regressiva nos costumes e repressiva no que tange às liberdades democráticas. A aprovação dessas pautas dependerá de uma base parlamentar ampla e coesa, que a despeito das trapalhadas nos dias iniciais do governo, poderá ser obtida por meio do conhecido método clientelista e patrimonialista, característico da democracia burguesa, sobretudo diante de uma composição congressual dentre as mais conservadoras da história republicana recente.
A educação é um foco prioritário desse governo, pelo potencial, quando desvirtuada, em contribuir no processo de reestruturação capitalista e também em promover mudanças culturais consideradas fundamentais pela base social conservadora que o apoia. O projeto Escola Sem Partido, que foi arquivado após uma intensa luta de entidades e movimentos ligados à educação, deverá retornar à pauta legislativa. Tal projeto, desconsiderando as reais necessidades educacionais, visa amordaçar os docentes e impor um clima beligerante no ambiente escolar para impedir a todo custo uma formação crítica e libertária.
A perspectiva, a depender da correlação de forças e da capacidade de organização e resistência da classe trabalhadora, é que retrocedamos à lógica do século XIX, com a hierarquização taylorista. Para a maioria da população será garantida uma educação instrumental, limitada a ler e realizar as operações aritméticas básicas.
A escrita poderá até ser dispensada, pois escrever pressupõe a expressão do pensamento de quem escreve, o que nessa concepção é completamente irrelevante. A uma parcela será permitida uma formação um pouco mais ampla, que seja suficiente para gerenciar os subalternizados.
A educação superior ficará reservada a uma elite econômica que deverá ter a hegemonia na produção e transmissão do conhecimento, mesmo que mínimo, pois ficará dependente cada vez mais dos países do capitalismo central.
A flexibilização das relações trabalhistas, típica da economia neoliberal, poderá ampliar a terceirização na contratação de servidores públicos, que perderiam o caráter assegurado hoje pelo Regime Jurídico Único (RJU). Surgiriam empresas prestadoras de serviços educacionais e se ampliaria a atuação de professores horistas.
As IES públicas vêm paulatinamente vendendo serviços para incrementar os orçamentos. Há amparo legal para a cobrança por cursos de pós-graduação lato sensu e o objetivo é ampliar essa prática para os cursos de mestrado e doutorado. A intenção é impor a cobrança de mensalidades também nos cursos de graduação nas IES públicas que, no cenário atual, 2∕3 dos alunos não teriam condições de pagar, e aumentar as parcerias público-privadas tanto no ensino, quanto na pesquisa e inovação, estruturando a “universidade empresa” a partir do conceito de empreendedorismo.
Privatização e mudanças no Estado
Parece-nos que o processo de privatização que se pretende inicialmente é de modo não clássico, que se dá por dentro das estruturas institucionais, mas que possa criar condições inclusive para a privatização clássica, a venda de instituições educacionais públicas para a iniciativa privada. Com a finalidade de facilitar a implantação do projeto nas IES públicas, o governo federal sinaliza com a mudança nos critérios, já tão antidemocráticos, para a escolha dos reitores, podendo transformá-los em cargos de confiança da Presidência da República,
O projeto, portanto, do atual governo federal protofascista é uma reconfiguração do Estado nacional, com o desmonte de políticas públicas como educação e seguridade social (saúde, previdência e assistência sociais), a aceleração do processo de desindustrialização, a privatização de estatais estratégicas para o desenvolvimento do país como a Petrobras, tornando o Brasil cada vez mais dependente dos países imperialistas e do capitalismo central.
Frente a tudo isso, a tarefa que está colocada para os partidos políticos de esquerda, movimentos sociais e de juventudes combativos é a construção da mais ampla unidade de ação, que seja capaz de derrotar todas as políticas que retiram direitos e criminalizam os (as) lutadores (as), e que possa contribuir no processo de reorganização da classe trabalhadora.