Mário Azeredo
O desprezo com a situação dos mais necessitados, com os desempregados, com os setores médios e, principalmente, o trato com a saúde da população em plena pandemia, desidratou parte da base eleitoral de Bolsonaro. A prisão de Queiroz, as investigações da CPI sobre fake News e as detenções de bolsonaristas que atacam as instituições devem chegar à família Bolsonaro e ampliar o desgaste. É por isso que os generais do governo saíram às pressas para comprar deputados do “Centrão”, tentando evitar um possível impeachment.
Se até agora a disputa de alternativas se concentrava entre os dois setores da elite brasileira, daqui para frente as ruas vão dar o tom do embate e nosso prognóstico é que Bolsonaro não deve terminar o mandato e sua tropa de fanáticos e criminosos milicianos vão acirrar os ataques. A esquerda consequente, mesmo aquela em quarentena, tem a obrigação de chamar ao enfrentamento para derrubar Bolsonaro. É com um programa com medidas anticapitalistas, sem Bolsonaro na Presidência, que o Brasil poderá enfrentar a grande depressão econômica e o dissabor das mortes pela Covid-19, fruto das criminosas políticas de governo que negam a ciência e as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Uma trajetória desastrada
Há um ano, Bolsonaro estava na ofensiva. Parte considerável dos 57 milhões que nele votou, ainda tinha muitas expectativas no novo governo. Mas, uma sucessão de fatos vem desgastando o presidente. As crises econômicas, social, ambiental e, principalmente, a sanitária se entre cruzam. Nesse último ano, vimos estarrecidos Brumadinho ser engolida pela lama da Vale do Rio Doce e o dia do fogo, que fez São Paulo anoitecer no meio da tarde. Na Amazônia a ordem foi: matem líderes indígenas e ocupem as terras.
No terreno econômico, os indicadores davam mostras de desaceleração da produção industrial e do investimento. O mesmo acontecia com os indicadores da construção civil. O emprego formal praticamente desapareceu e o Brasil vê saltar o trabalho informal para 39,5 milhões de trabalhadores, sendo 14 milhões ocupados em aplicativos.
Na arena internacional, o Brasil foi rompendo pontes, uma atrás da outra. Bolsonaro lamentou a vitória de Alberto Fernández na Argentina e disse que o povo escolheu mal o presidente. No Oriente Médio ofendeu palestinos ao anunciar a transferência da Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém e agora o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, desagrada israelenses comparando a prisão de seus apoiadores com a Noite dos Cristais. O mesmo ex-ministro criou um incidente internacional com piadas sobre os chineses, desagradando o poderoso agronegócio.
No terreno político Bolsonaro é um verdadeiro “bombeiro louco” que, à falta de água, joga gasolina ao fogo. A promessa de reduzir o número de ministérios foi pelos ares. No desespero para evitar o impeachment, ampliou para 24 os ministérios, para acomodar corruptos do Centrão, da velha política do toma lá dá cá. Chama manifestações pelo AI-5 e guerra contra o Congresso e o STF.
Economia, pandemia e milícia
No meio deste “novo normal” na política de Brasília, três fatos são centrais para seu desgaste: a crise econômica, a resposta à pandemia e a relação da família Bolsonaro com as milícias (assassinato de Marielle, laranjal, morte do miliciano Adriano e prisão de Queiroz). Afirmamos que os mais de 50 mil mortos e a brutal crise econômica estão derretendo o capital eleitoral de Bolsonaro, afastando setores importantes da burguesia tradicional e da classe média que veem na administração do ex-capitão e nas relações entre os poderes da República um verdadeiro desastre para seus negócios.
A reunião ministerial de 22 de abril último foi a gota d’água, um verdadeiro “circo dos horrores”, para uma gestão em turbulências sérias.
Em nenhum momento, os participantes trataram das dificuldades do SUS para enfrentar a pandemia e nada foi dito sobre o atraso no pagamento do auxílio emergencial. Na verdade, ficou evidente que os mercenários, encabeçados por Bolsonaro e Paulo Guedes, só trataram de expor seus projetos íntimos. Intervir na Justiça e na Polícia Federal para proteger familiares e amigos. Enquanto a mídia divulga as mortes, eles aproveitam para “passar a boiada” de destruição da legislação sobre a preservação ambiental, reservas naturais, território dos povos originários e quilombolas; venda do patrimônio público, incluindo o Banco do Brasil e prender os ministros do STF.
Uma corrente fascista minoritária
Bolsonaro é parte de um processo internacional que veio se formando na esteira da crise de 2008. Não é um fenômeno isolado. A xenofobia cresceu assustadoramente com a maior onda migratória que a Europa presenciou desde a II Guerra Mundial. Muros para conter refugiados e imigrantes, que fogem de guerras, miséria, fome e perseguições, foram levantados em diversos países. Partidos fascistas e ultranacionalistas viram seus votos aumentarem na Itália, França, Espanha, assim como, grupos neonazistas proliferam na Alemanha e em outras regiões do mundo. Governos como de Modi na Índia e de Viktor Orbán, na Hungria, são também expressões desse fenômeno de intolerância religiosa, nacionalista e com traços fascistas como Bolsonaro. Donald Trump é a expressão mais perigosa dessa vertente, porque preside os EUA, o centro do capitalismo e, consequentemente, influencia os demais países.
Esse fenômeno se expressou também na negação desses governos em seguir as orientações da OMS para conter a propagação da Covid-19. Defenderam o efeito rebanho, indo contra o que cientistas de todo mundo apontavam e que na prática se mostrou correta política do isolamento. Bolsonaro, mesmo com mais de um milhão de contaminados segue a política da “gripezinha”.
O importante para nós militantes políticos e lutadores sociais é que independentemente da manutenção ou não de Bolsonaro na presidência, o bolsonarismo é uma corrente que vai seguir atuando na política, no submundo e nas ruas. Tais movimentos respondem a uma base objetiva. Portanto, enquanto não os enfrentarmos politicamente com um programa radical contra as desigualdades e que ataque aos milionários deste país, Bolsonaro seguirá sendo porta-voz de milhões. O líder é o fruto podre de uma sociedade historicamente injusta, que jamais enfrentou o passivo de mais de 300 anos de escravidão e o fato de ser o último país em nosso continente a construir universidades, campeão em concentração de renda e de um Estado autoritário e violento, com a polícia que mais mata e que mais morre e que foi administrado, na maior parte de sua história pelas Forças Armadas ou no mínimo tutelado por elas.
O golpe aconteceu em 2016
A existência do bolsonarismo como corrente fascista no país não significa que não podemos derrotá-lo. Para alguns setores da sociedade o grande perigo que corremos é de um golpe que feche mais o regime. Para nós, o golpe já ocorreu. Pouca gente viu esse processo ou quando viu ele já estava consolidado. Pode haver mais restrições às instituições democráticas, claro que sim. No entanto, o que vemos hoje é um movimento inverso. O bloco golpista dividido, as instituições como o STF, Congresso Nacional e frente de governadores enfrentando o governo em diversas pautas democráticas e de combate à pandemia. Por outro lado, todos seguem com a agenda neoliberal de ataque aos direitos e privatizante. Por isso, o “novo” bloco formado por FHC/PSDB, Folha de São Paulo, Estadão, Luciano Huck, Governadores, Maia e STF, não tem nada de novo. Representam a velha elite brasileira que articulou o golpe e foi vítima dele também.
Como chegamos até aqui?
O bolsonarismo tem bases objetivas na realidade recente. As insuficientes respostas à crise econômica nos governos de conciliação de classes, em especial de Dilma, somadas à política de descartar o PT como gestor dela, setores do Judiciário com a Lava Jato e a grande mídia impulsionaram o impeachment e a prisão de Lula. Tudo isso com muita fake News.
Mas, o golpe só foi vitorioso porque Dilma fez escolhas erradas. Perry Anderson, em um artigo de 2016, já apontava que a presidenta, ao assumir o segundo mandato, implantou medidas de austeridade que causaram uma profunda recessão, derrubando o PIB em 3,4% ao ano entre 2015/2016. Ela optou por assumir o projeto de seu adversário derrotado nas eleições. Um verdadeiro estelionato eleitoral que cobrou seu preço. Três meses depois da posse, mais de dois milhões de pessoas estavam nas ruas pedindo o impeachment.
Esse processo foi arquitetado pelos partidos de oposição, pela mídia corporativa e por grande parte dos aliados do governo de coalizão de Dilma, inclusive o MDB do vice Michel Temer. Eles se apoiaram em setores da classe média e dos trabalhadores que viram suas expectativas de consumo e melhoria de vida serem frustradas com o governo da petista.
Temer, na transição, anunciou o Projeto “Ponte para o Futuro”, que nada mais era do que o ultraliberalismo em defesa do capital financeiro e dos grandes empresários, em detrimento dos direitos e conquistas dos trabalhadores. O plano golpista da burguesia tradicional, no entanto, deu errado. Não foi Alckmin que se beneficiou do golpe e da campanha contra o PT e a esquerda de conjunto, mas um ex-capitão com discurso fascista e defensor da ditadura militar.
Pós-pandemia promete o caos
A crise econômica não é produto da crise sanitária, como tenta passar a mídia coorporativa. A pandemia da Covid-19, acelerou todos os sintomas da “gripe” econômica anterior. Vivemos uma gigantesca crise humanitária. Ela tende a aumentar muito até que se consiga uma vacina para aplacar essa tragédia. Mas a crise econômica, que já víamos sintomas desde meados do ano passado, teve um crescimento exponencial com a pandemia. David Harvey já havia alertado de que a política dos juros infinitos levaria a uma explosão da economia.
A pandemia expôs as contradições do ultraliberalismo. Os representantes no governo diziam não ter dinheiro para investir em saúde, educação, transporte público ou no aumento do salário mínimo. Mas do nada surgiram R$ 1.2 trilhão para os bancos e mais de 50 milhões de brasileiros estão recebendo, com atraso, uma ajuda emergencial de R$ 600,00.
A promessa pós-pandemia é de milhões de desempregados, subempregados e de miseráveis no mundo. Em um país como o Brasil de economia dependente, será explosivo. Agora sabemos, dinheiro há. Por isso, organizar nossa tropa, estimular e participar das mobilizações que virão em resposta ao ataque a nossa classe será uma grande tarefa.
Quem vai pagar a conta no pós-pandemia?
Se depender dos banqueiros, dos Trump e dos Bolsonaro da vida, seremos nós, numa “superexploração” jamais vista. Com ampliação geométrica da miséria e com repressão redobrada sobre as populações pobres e periféricas. Hoje, estamos a passos largos em direção a um limite: superação do capitalismo ou o aumento da repressão sobre as populações periféricas e pobres, por parte das forças policiais, com restrições de espaços democráticos.
O assassinato de George Floyd nos EUA, assim como o de Marielle Franco se constituíram em sementes de uma rebeldia da população negra e periférica que não aguenta mais a repressão policial, os políticos corruptos que servem ao patrão, as injustiças e a falta de perspectiva num mundo formatado para uma minoria. Agora, estamos assistindo a uma onda internacional contra o racismo e em defesa da saúde pública, como foi o levante em mais de 200 cidades francesas. O Brasil é parte dessa mudança de ânimo das massas.
Nessa fase tensa da luta de classes onde a extrema direita se organiza para ocupar cada vez mais espaços de poder e legitimidade numa parte da sociedade, faz-se necessário, mais do que nunca, apresentar saídas que apontem para a superação do capitalismo.
Organizar nossa tropa: Fora Bolsonaro!
Mas nada acontecerá por fora da luta encarniçada Inter e entre classes. Portanto, não é secundário o dilema colocado a nós em plena pandemia. Sair ou não sair às ruas?
Ninguém quer sair às ruas. A maioria vai trabalhar porque precisa ou porque os patrões obrigam. Os trabalhadores da saúde, os garis, os policiais e milhares de trabalhadores envolvidos diretamente na produção só saem, diariamente, para trabalhar porque suas tarefas são consideradas serviços essenciais. O auxílio emergencial de R$ 600,00 aprovado pelo Congresso Nacional, além da demora, deixou de fora milhões de famílias por questões burocráticas que nada têm a ver com a emergência da vida das pessoas. Então, é claro que o povo pobre sairá e continuará saindo às ruas, mesmo sabendo do risco de ser infectado e de colocar a vida em risco. Outros milhões sequer têm casa ou água e sabão.
Todos saem em busca de sobrevivência, de comida para não morrer de fome. Fazem isso porque o Brasil está entre as nações com pior distribuição de renda, com um governo que nega a pandemia, se recusa a seguir as orientações da OMS e mantém o projeto ultraliberal de desmonte da saúde e educação públicas, para entregar aos tubarões do “mercado”. De nossa parte, da esquerda, de movimentos sociais e das próprias torcidas antifascistas que começaram a sair às ruas, também somos parte de um serviço essencial para combater o vírus: derrotar Bolsonaro.
Portanto, a luta de classes determina a impossibilidade de termos um isolamento social total. Inclusive os grupos bolsonaristas estão submetidos a essa lógica. Se eles não forem às ruas mostrar apoio ao presidente, se não radicalizarem a luta, tendem a ver a base eleitoral de seu chefe se esvair por completo. Nessa guerra, acreditamos que mais do que nunca temos que fortalecer o PSOL como parte fundamental da reorganização do movimento de esquerda no Brasil e de um novo bloco histórico.