Entrevista Edmilson Rodrigues
Gilberto Maringoni
Como você está vendo a situação em que nos encontramos? O neoliberalismo avançou e foi se impondo com uma ideologia ao longo de décadas, e a Constituição vem sendo remendada nesse período. Em 1995, apenas sete anos depois de promulgada, já tivemos mudanças muito significativas. Uma delas era reconhecer que uma empresa com sócio brasileiro é brasileira também. Essa pequena alteração formal, na verdade, traz uma potência de internacionalização da economia e de exportação dos lucros para as matrizes. Os países têm suas geopolíticas e as grandes corporações têm relações com interesses geopolíticos. Não é à toa que a tecnologia de 5G tem sido o principal mote de toda essa guerra comercial entre Estados Unidos e China. Mas por que tanta briga? É porque, no fundo, as grandes corporações capitalistas mantêm laços estratégicos com as estruturas dos Estados nacionais. Isso se dá de forma diversa no Brasil de hoje. Então, o que nós temos? A consolidação de uma derrota histórica, que é a perda de referência no Estado-Nação brasileiro. As referências foram perdidas em grande medida porque Bolsonaro não é um fenômeno isolado da história e nem uma invenção do presente. Ele é expressão de um projeto entreguista e antissoberano de Nação, apesar da característica tosca.
Ele é expressão de um projeto maior? Sim. Como se explica que um cara de inteligência aparentemente abaixo da média, expulso do Exército por planejar explodir bombas em instalações militares, tenha demonstrado capacidade e determinação para afrontar a ordem? O fato de expressar um projeto reacionário deu a ele a possibilidade de ganhar a confiança de generais. Isso aconteceu, em grande medida, pelo fato de o Brasil nunca ter conseguido romper com a estratégia da geopolítica estadunidense da segunda metade do século XX, responsável por implantar ditaduras na América Latina e por formar generais que comandariam os regimes sanguinários em nossa região. A Escola das Américas, centro de formação do Departamento de Estado e que ficou instalada por décadas no Panamá, continua formando os nossos generais. Até hoje, Augusto Heleno mantém relações com essa instituição da Guerra Fria. Nessa situação, temos um sujeito tosco que venceu a eleição e estabeleceu um clima em que, mesmo dizendo trabalhar contra a ordem, segue sustentado nessa ordem, exibindo 30% de apoio ao seu governo. Por que isso acontece? Repito: porque, no fundo, ele representa um projeto. Às vezes, nós abandonamos a ideia de imperialismo. Li recentemente os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli, e não tem como não ver o que se passa aqui. Quando se acha que Bolsonaro é burro e que falou algo por estupidez, sua intervenção sempre se mostra vinculada à necessidade de se criar um debate sobre algum tema que, de algum modo, dialogue com sua base e a fidelize ainda mais, transformando-a em massa de manobra. Assim, o presidente cria, num conjunto de pessoas incautas, aquilo que o Milton Santos chamava da “confusão dos espíritos”, uma dificuldade de a vítima perceber quem é o seu algoz. Ao mesmo tempo, ele desvia a atenção do que é principal.
Qual é o papel das Forças Armadas no governo? Quando um militar ocupa um cargo de ministério ou de secretário nacional em algum dos ministérios, ele deixa de ser militar. Quando assume um cargo administrativo, ele assume como civil, mesmo que use uniformes militares. Não há problema que use, mas a atividade dentro do governo é civil, com exceção dos comandantes das Forças Armadas. Um soldado ou um cabo que concorra a deputado estadual ou federal, obrigatoriamente, se tiver menos de 10 anos de carreira, perde o cargo original. Não tem como voltar. Mas há, na lei, a possibilidade de se permanecer após a ocupação do cargo. Esse general que hoje ocupa o ministério da Saúde, se for exonerado ou pedir para sair, deixa o trabalho civil e volta a ser militar.
Com tudo isso, o projeto neoliberal segue de pé? Claro. Vejamos alguns exemplos. Não há mais nenhuma distribuidora de energia pública no Brasil. Tudo foi privatizado ao longo dos anos. Agora, Paulo Guedes, por meio de meras portarias privatizou as que ainda estavam sob controle público. As subsidiárias da Petrobras estão sendo entregues. A Caixa tem outro mecanismo, que é o acesso do recurso do FGTS das grandes corporações, das construtoras e incorporadoras de imóveis, que se tornou um mecanismo indireto de apropriação da massa de recursos que são dos trabalhadores. Bolsonaro, na minha avaliação, é representante disso. E ele não cai facilmente por ser funcional ao grande capital. Se Temer deu um passo na reforma trabalhista, Bolsonaro fez estrago no direito dos trabalhadores que ninguém teve capacidade de fazer, porque há uma hegemonia liberal no Congresso Nacional, nos tribunais superiores e até no tribunal do Trabalho, que era tido como a instituição de justiça mais voltada à defesa dos trabalhadores. Não é mais.
Há risco de golpe no Brasil? Um governo de caráter fascista não precisa ser resultado de uma ruptura. Os constrangimentos institucionais impostos por Bolsonaro são parte de uma estratégia que impõe o acovardamento das instituições. Há mais de 30 processos de impeachment na Câmara. E, com a compra do centrão, se antes Rodrigo Maia não conseguia iniciar um processo, muito menos agora se exporá, sabendo que as chances da medida prosperar são pequenas. Então, para que golpe? Para que chamar de ruptura se esse processo de normatização do uso do território pode ganhar ares de legalidade? O centrão pode não ter votos para eleger o presidente da Câmara, mas eles têm uma capacidade de movimentação grande.
Como você vê a pandemia sob o governo Bolsonaro? As pesquisas de opinião mostram um descontentamento do povo em relação à postura do governo em vários aspectos do que seria uma política para o momento da pandemia. Muitas das ações não são apenas equivocadas, mas intencionais, de destruição dos mecanismos técnicos e científicos orientadores de políticas públicas. O governo, quando nega a ciência, nega com base em um projeto intencional. Há quem acredite que o Brasil, para ser um país do futuro, deve eliminar as diferenças étnicas. Há quem acredite na existência de apenas um povo brasileiro, e por sermos um povo não podemos reconhecer heterogeneidades internas a esse povo. Nesse sentido, não haveria por que reconhecer povos quilombolas, tradicionais, e 305 etnias diferentes em tribos indígenas, falando 274 idiomas. Se você concebe que tais diferenças devem ser eliminadas porque, a rigor, nunca deveriam ter existido, por que proteger esses povos? Para quem tem uma visão nessa perspectiva, se você é pobre, é porque você naturalmente nasceu para se reproduzir enquanto pobre. Essa ideia faz com que o governo cruze os braços, pois quanto mais pobres, indígenas, quilombolas morrerem de Covid num país como o nosso, a perspectiva eugênica de uma raça superior se consolida. Talvez eles vejam que não será fácil fazer isso, mas a autoridade máxima do governo faz questão de dizer que todos vamos nos contaminar e podemos morrer. E grande parte da população porque 30% é grande parte da população não é capaz de perceber o papel e o lugar do presidente na sociedade. Há uma base de sustentação que permite a ele falar tais coisas, que integram seu projeto, visando criar confusão para consolidar essa base que, mesmo sendo vítima, concorda com o algoz. Essa é a base do desleixo governamental para com a crise da pandemia.
E como a doença tem afetado as comunidades indígenas? Tenho chorado de tristeza ao ver as notícias. O povo Asurini, do Trocará (Sudeste do Pará) tinha, na segunda quinzena de junho, cem doentes entre os 305 membros. Foi uma das vítimas mais diretas da hidrelétrica do Tucuruí. Morreram o cacique Poraquê, a esposa, a irmã e até o pajé, a maior autoridade espiritual e médico da comunidade. Ao matar os caciques, você está matando uma história. O filho do cacique Poraquê que é professor escreveu um texto bonito. Ele disse que, com a morte deles, perderam uma sabedoria ancestral, e agora vão enriquecer a biblioteca divina. Ele falou com a dor de quem perdeu pai, mãe e tia, e de um povo que chegou a ter até 2 mil membros em uma aldeia no Trocará e que, por conta do linhão da Eletronorte e da estrada que foi aberta dentro das suas terras, hoje tem seis vezes menos integrantes, adoecidos pelo álcool e drogas, com as crianças e adolescentes violentadas sexualmente.
Como está a situação sanitária em Belém? de esquerda, é do MDB, ele ouviu sanitaristas e decidiu obedecer às orientações da OMS. No momento mais crítico da pandemia, houve uma postura importante na defesa de toda uma estratégia de isolamento social enquanto construíam hospitais de campanha nas regiões como Santarém, no Marajó, em Breves, no sul e sudeste do Pará, em Marabá, bem como em Belém. Foi implementado um processo interessante de investimento. Naturalmente, houve situações constrangedoras para o governo e problemáticas para o povo, com diversas denúncias de ilegalidades na contração de compras de equipamentos, como os respiradores e outros insumos indispensáveis para o enfretamento da Covid-19. Tirando esse aspecto, que deve ser investigado e punido caso haja comprovação de desvios, há uma política, de modo geral, em favor do isolamento e do investimento no tratamento, na cura e na prevenção. Muitas prefeituras não conseguem ter a mesma orientação. Foi o caso de Belém, cujo prefeito tucano teve uma postura de omissão irresponsável e de completo desprezo com a vida da população. Foi revoltante assistir pessoas morrendo sem assistência nas portas de UPAS e de hospitais municipais. Também é importante destacar que o governo federal nada faz e o governo estadual, mesmo que eu tenha de reconhecer, faz aquém do que seria preciso diante da gravidade extrema da pandemia. Há uma queda, calculada pela consultoria do Congresso Nacional, de 30%, na média nacional, nas arrecadações dos estados e municípios, por conta da pandemia. O Pará é um estado estruturalmente muito pobre. Aqui, dos quase 9 milhões de habitantes, nós temos 4 milhões com uma renda per capita inferior a meio salário mínimo. Um grande contingente da população está naquela faixa determinada internacionalmente abaixo da linha da pobreza. Então, é um quadro de miséria muito significativo.
Quais são suas perspectivas para o cenário que está por vir? Eu sou um otimista estrutural, pois estou certo que o futuro será socialista. Mas sou um pessimista conjuntural. Acredito, realmente, que as condições de disputa política são muito mais propícias, apesar das condições de vida estarem mais difíceis. Nós não podemos duvidar da capacidade de resistência do nosso povo. A estratégia do governo foi destruir os sindicatos. Nós, da esquerda, sempre criticamos a Carta Del Lavoro da Itália de Mussolini que inspirou o sindicalismo brasileiro e impôs contribuições sociais e o imposto sindical. Esses mecanismos sustentaram as burocracias sindicais, inclusive de esquerda, por muito tempo. Mas, com a reforma trabalhista e o fim do imposto sindical, isso teve impacto na desestruturação das entidades. Acho que o movimento sindical vai reacender numa perspectiva mais autônoma. Agora, para se ter sindicato forte, é preciso ter respeitabilidade na base. É preciso fazer o esforço de visitar fábrica, conversar, filiar, e produzir uma nova consciência da importância da organiza, mas, independentemente disso, há uma dinâmica da sociedade, baseada no uso das redes sociais, que vai ocorrendo a despeito dos movimentos mais tradicionais. Acho que isso pode nos surpreender e, em alguma medida, já está surpreendendo. A pandemia não será eterna, e as ruas vão se impor, quando ela acabar. Pode parecer que isso seja um otimismo exagerado, mas creio que essas formas novas de resistência possam nos surpreender, e nós possamos em breve festejar a queda de Bolsonaro, como fruto de uma grande mobilização popular.
EDMILSON BRITO RODRIGUES
É o que se poderia classificar como um radical tranquilo. Os gestos, a voz calma e pausada e o riso fácil às vezes explodem de indignação diante da ação de um forte sobre um fraco ou em embates com a extrema direita no Congresso Nacional. “É o sangue cabano”, brinca ao fazer referência à Cabanagem, intensa rebelião popular contra o governo regencial que se espalhou pela província do Grão-Pará, entre 1835-40. O instinto rebelde o acompanha desde o movimento estudantil e tem o primeiro reconhecimento amplo ao se eleger por duas vezes deputado estadual pelo PT, em 1986 e 1990. Seis anos depois, após duro enfrentamento, sagra-se vitorioso na campanha pela prefeitura de Belém, exercendo dois mandatos consecutivos até 2004. As gestões mudaram o modo e o sentido de se fazer política na capital de um dos estados mais pobres da Federação. Ampliou a participação popular em vários órgãos de governo, expandiu a oferta e a qualidade dos serviços municipais de educação e saúde, instituiu metas no planejamento, urbanizou bairros caracterizados por moradias insalubres e desenvolveu uma série de projetos sociais e culturais que lhe valeram muitas premiações nacionais e internacionais, como Prefeito Amigo da Criança. Edmilson saiu do PT em 2005, em direção ao PSOL. Cinco anos depois, tornou-se o deputado estadual mais votado da história do Pará. Em 2014 obteve o primeiro mandato para a Câmara dos Deputados, onde está até hoje. Edmilson é professor da Universidade Federal Rural da Amazônia. Aos 63 anos, esse arquiteto e doutor em Geografia pela USP se prepara novamente para disputar a prefeitura de sua cidade. O sangue cabano vai arrepiar!