Rosa Maria Marques
As medidas adotadas
Em março, mês em que a Organização Mundial da Saúde (OMS), diante da propagação do novo coronavírus no globo, definia que estávamos vivendo uma pandemia. Importantes instituições como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defenderam enfaticamente que as perdas decorrentes da crise fossem assumidas pelo Estado, ou seja, que ele atuasse como emprestador de última instância, e que houvesse uma ação conjunta dos governos para vencer as ameaças sanitária, econômica e social provocadas pela Covid-19, respectivamente. O Banco Mundial destacou, ainda, a necessidade de as cadeias de pagamento serem protegidas, a simplificação da reestruturação extrajudicial da dívida ou de formas mais radicais como moratória ou programas de adiamento dos pagamentos (para países da América Latina e Caribe) e a possibilidade dos governos, para garantir empregos e apoiar empresas, assumirem participações de propriedade em empresas estratégicas. Já a OCDE, por meio do secretário geral, Angel Gurría, defendeu, além do esforço científico conjunto para garantir o desenvolvimento da vacina, a necessidade de os governos reforçarem a economia, atenuando o impacto negativo imediato mediante três categorias de despesas. A primeira, em cuidados da saúde: financiar o uso intensivo de testes, o tratamento universal dos pacientes, o fornecimento de equipamentos de proteção individual para os profissionais da área e a disponibilização necessária de unidades de cuidados intensivos e de respiradores, entre outros. A segunda, dirigida aos trabalhadores e suas famílias: financiar empregos temporários, permitir condições mais flexíveis para a obtenção do seguro-desemprego, destinar transferências de renda para trabalhadores por conta própria e garantir assistência aos mais vulneráveis. A terceira, voltada às empresas: considerar o adiamento do pagamento de encargos e impostos; reduzir ou diferir temporariamente o imposto sobre o valor adicionado (IVA – principal imposto na Europa); garantir acesso mais amplo ao capital de giro com a criação de linhas de crédito ou garantias estatais; criar dispositivos especiais de sustentação às pequenas e médias empresas, especialmente nos setores de serviços e turismo. Essas ações seriam combinadas com esforços de regulação e supervisão financeira pelos bancos centrais e com o combate ao alto endividamento das empresas e à desigualdade econômica entre as empresas. E, assim, procederam os governos pelo mundo, dos mais progressistas aos que têm seus presidentes claramente identificados como sendo de direita.
Políticas fiscais e monetária
O conjunto de medidas adotado pelos países pode ser agrupado em duas categorias, além daquelas relacionadas ao isolamento social: políticas fiscais e monetárias; e políticas de emprego e social.
De maneira geral, as medidas visaram manter os contratos, adiando e cancelando pagamentos e propondo, em certos casos, a renegociação; manter a liquidez na economia mediante o aumento da oferta monetária; introduzir linha de crédito mais favorável às pequenas e médias empresas; fomentar o crédito para o capital de giro das empresas, especialmente com vista ao pagamento dos salários dos trabalhadores; apoiar os setores de atividade mais afetados pela crise econômica; manter empregos; aumentar a faixa de isenção dos serviços essenciais; ampliar a cobertura da transferência de renda para a população para os novos necessitados, imediatamente prejudicados pela paralisação das atividades econômicas; flexibilizar o acesso ao seguro desemprego; aumentar a disponibilidade de recursos para as ações da área de assistência social e serviços de saúde, nisso incluída a compra de materiais e equipamentos necessários ao combate à Covid-19, entre outras medidas. Parte dessas ações foram objeto de crítica em diversos países, seja pela demora da aplicação e/ou pela baixa efetividade.
Ao mesmo tempo, quando se tornou evidente a profundidade da crise econômica e a dificuldade que os países teriam para retomar a atividade, o que implicaria a permanência por um longo tempo de um amplo segmento da população em condição de pobreza, houve a retomada da discussão em torno da proposta de uma renda básica. Diferentemente do que ocorreu em outros momentos, essa proposta passou a ser defendida por economistas e personalidades até há pouco identificados com o pensamento neoliberal. No máximo, para sermos generosos, situados em um campo bastante heterodoxo, mas que dificilmente justificam a renda básica como um direito nascido do reconhecimento de que a sociedade deve garantir a todos o acesso ao que se considera o mínimo necessário não só para as pessoas sobrevirem, mas para poderem participar integralmente de todas as atividades, nisso incluído o lazer, a cultura, a educação, a saúde, etc.
Será o fim do neoliberalismo?
Frente a esse evidente protagonismo do Estado (realizado por governos com diferentes orientações), não foram poucos os que começaram a dizer que a pandemia teria enterrado o neoliberalismo e que, de certa forma, todos os governos teriam se tornado keynesianos. Os que assim procederam estão equivocados e o erro deriva da não compreensão de pelo menos três aspectos:
1 – DE QUE O NEOLIBERALISMO NÃO CONSTITUI um “regime” de acumulação e sim a expressão, no plano da política econômica e no plano do ordenamento e da reprodução societal, de um específico regime de acumulação.
2 – DE QUE A CONDUÇÃO NEOLIBERAL DO ESTADO não implica um Estado Mínimo e sim uma clara escolha das atividades onde ele atua, entregando outras ao setor privado, especialmente aquelas identificadas com o período dos trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial, conhecido como Estado do Bem-Estar.
3 – DE QUE O ESTADO É UM INSTRUMENTO de dominação de classe (das classes capitalistas e proprietárias), que deve prezar pela manutenção da dominação. Há mais ou menos quarenta anos, o capital que está no centro das relações econômicas e sociais é o capital portador de juros (chamado de capital financeiro pela mídia). Esse capital, especialmente na forma de capital fictício, não tem nenhum comprometimento com a geração de emprego e renda, colocando-se numa posição de exterioridade à da produção. Como dizia Marx, dinheiro que faz dinheiro sem passar pelas agruras da produção. E desde que esse capital readquiriu liberdade para atuar (quando foram procedidas as desregulamentações financeiras), o crescimento foi descomunal, principalmente enquanto capital fictício, equivalendo a dez vezes o PIB mundial. A liberdade de ação desse capital somente pôde ser promovida se, simultaneamente, fosse defendida a liberdade de todos os capitais, isto é, se fosse colocada em marcha uma ampla desregulamentação, de modo a eleger o mercado “lócus” da alocação ótima de recursos. É o que aconteceu.
A supremacia definidora
São esses os fundamentos que nos permitem afirmar que, nas últimas décadas, a reprodução do capital ocorreu sob a supremacia do capital portador de juros, o que acarreta um conjunto de consequências no plano econômico e social que, no espaço deste artigo, não podemos aqui aprofundar.
Apenas para lembrar as principais, mencionamos: baixo crescimento; baixo nível de investimento; elevado desemprego; queda da participação dos salários na renda nacional dos países; e aumento da desigualdade e da pobreza. A dominância desse capital expressa-se, no plano ideológico e das políticas empreendidas pelos Estados, como neoliberalismo, de modo que um não pode existir sem o outro.
Pensar que a pandemia encerrou o neoliberalismo e que o mundo pós-pandemia pode se organizar de uma outra forma pela simples razão de o Estado ter assumido o protagonismo no combate à Covid-19 e à crise por ela provocada é esquecer este fato básico: que a dominância do capital portador de juros e neoliberalismo constituem uma unidade indissociável. Além disso, considerar o neoliberalismo superado é desconsiderar que o período anterior, o dos trinta anos dourados, foi resultado de uma especial configuração de fatores econômicos, políticos e sociais que se seguiram ao final da II Guerra Mundial, os quais não estão presentes no atual cenário mundial.
Ademais, o aumento do gasto dos governos observado no mundo todo para lastrear as medidas mencionadas não é sinônimo de abandono do neoliberalismo.
O Estado das finanças
Ao contrário do que muitos dizem, o neoliberalismo não propõe a construção de um Estado Mínimo, mas o abandono pelo Estado de certas áreas ou atividades e a entrega da economia ao setor privado. Isso, em geral, é acompanhado do aumento do Estado, sobretudo, na área de segurança e de produção de armamentos. Os Estados nacionais, mesmo aqueles que promoveram acentuada privatização de suas empresas e que diminuíram a responsabilidade nas áreas sociais, privatizando quase que totalmente a saúde e a educação, não viram o tamanho ser reduzido como percentual do PIB.
Um terceiro aspecto que precisa ser levado em conta para se analisar o significado dos Estados terem assumido o protagonismo nesse momento de pandemia decorre da sua natureza enquanto instrumento da manutenção da forma de dominação vigente. Na situação do avanço da Covid-19, seria totalmente inimaginável supor que os governos nada fizessem para frear a contaminação, para garantir as ações e serviços de saúde e mesmo para mitigar os efeitos da crise econômica decorrente da crise sanitária. O custo político disso seria enorme, provocando um cenário de desestabilização num segundo momento.
O papel assumido pelos diferentes governos, mesmo aqueles que agiram de forma mais tímida ou descompromissada, é o de garantidor da soberania nacional, o qual o inimigo externo foi substituído pela Sars-CoV2. Permitir a entrada sem nada fazer é atestar a incapacidade de manter a ordem constituída, isto é, a manutenção da dominação das classes dominantes sobre o conjunto da população trabalhadora e, para isso, é fundamental a manutenção da coesão social. Mesmo se colocando na coluna da frente da batalha contra a Covid-19, aqueles que cometeram erros e titubeios durante a condução da pandemia não passarão impunes e serão cobrados em um momento futuro.
Uma última observação se faz necessária. No mundo pós-pandemia, é possível que os Estados das principais economias do mundo concedam especial atenção aos sistemas de saúde, fortalecendo o lado público e elevando o nível do gasto da assistência social em geral.
A expansão do gasto na pandemia
A ressignificação do sistema público decorre do fato de esta não ser a última pandemia a que estaremos submetidos. Frente a essa possibilidade, os governos procurarão estar preparados, inclusive mantendo ou desenvolvendo a indústria da saúde para não ficar dependente, como foi o caso da maioria dos países, da produção de equipamentos e reagentes dos testes altamente concentrada na China e na Índia. A expansão do gasto com assistência social, por sua vez, será obrigatória, decorrente da necessidade da manutenção da coesão social em um mundo em que a população pobre terá aumentado significativamente como resultado da crise.