Plínio de Arruda Sampaio Jr.
Florestan Fernandes (1920-1995) contrariou o destino que a lhe reservava para se tornar um dos grandes intérpretes da sociedade brasileira e latino-americana. A despeito das agruras decorrentes de seu posicionamento crítico a prisão, a perda da cátedra, o exílio, o ostracismo acadêmico, jamais renegou seu compromisso existencial com as causas da classe trabalhadora e sua luta pela revolução socialista. Intelectual rigoroso, criativo e corajoso, sua reflexão sociológica, com o passar dos anos, afirma-se como um valioso patrimônio da luta contra a barbárie capitalista na periferia da economia mundial.
Dedicado à compreensão dos mecanismos de reprodução da injustiça social, em sua trajetória intelectual, o pensamento crítico fez o caminho completo, levando a sociologia crítica latino-americana ao clímax da radicalidade. Libertando-se de toda inibição teórica ou ideológica, Florestan tem contribuições importantes em várias frentes do conhecimento. As pesquisas etnológicas ousadas e inovadoras sobre o papel da guerra entre os tupinambás, as investigações pioneiras sobre o negro na sociedade brasileira, as teses sobre a importância fundamental da educação no desenvolvimento nacional e os sofisticados ensaios teóricos sobre os desafios da sociologia na periferia do sistema capitalista mundial constituem referências fundamentais àqueles preocupados em compreender a complexa realidade das sociedades latino-americanas um mundo que se apresenta como sendo “moderno” e “democrático”, mas que carrega no ventre as terríveis contradições do escravismo e do colonialismo.
Capitalismo contra democracia
A reflexão de Florestan sobre as bases sociais e políticas do capitalismo dependente desnuda as estruturas e dinamismos responsáveis pelo circuito fechado de um padrão de desenvolvimento incapaz de combinar acumulação de capital, democracia e soberania nacional. A extrema desigualdade social que caracteriza a América Latina é associada à reprodução da segregação social e da dependência externa. O desenvolvimento capitalista dependente estabelece uma separação intransponível entre uma minoria de ultraprivilegiados obcecados em perseguir os estilos de vida e consumo das economias centrais que vivem da superexploração do trabalho e da pilhagem da natureza e uma grande massa de condenados do sistema empregados, subempregados e desempregados que sofrem todas as agruras do progresso capitalista, mas são marginalizados dos benefícios materiais. Na visão dele, a raiz da exclusão social reside em última instância na capacidade de as classes dominantes latino-americanas impedirem a organização das classes subalternas como sujeitos políticos autônomos.
A divisão da sociedade em dois mundos antagônicos, separados por um abismo econômico, social, político e cultural, imprime à luta de classes uma dinâmica típica de “guerra étnica”.
Intolerância sistêmica
Fechando o espaço de entendimento entre as classes sociais, a burguesia é compelida a assumir uma atitude de extrema intolerância em relação à utilização do conflito como meio legítimo de conquista de direitos sociais. A unificação monolítica das classes dominantes é perpetuada por um padrão de resolução dos conflitos intraburgueses que se baseia na conciliação pela composição dos interesses divergentes. A intolerância contra qualquer manifestação de rebelião, materializa-se num padrão de luta de classes cuja essência consiste em evitar a qualquer custo a emergência dos despossuídos como sujeitos políticos autônomos, esterilizando suas iniciativas seja pelo cooptação, seja pelo esmagamento de suas organizações sociais e políticas. Os que vivem do próprio trabalho devem ser mantidos em estado de anomia. A neutralização dos efeitos revolucionários do protesto social deixa a história a reboque de um único sujeito: a burguesia dependente.
O tempo tem reforçado a importância da reflexão de Florestan Fernandes sobre os dilemas da luta de classes no Brasil. A interpretação sobre o caráter extraordinariamente conservador da revolução burguesa no Brasil, sobre as consequências desastrosas da ditadura militar para o futuro do Brasil e sobre os limites da democracia ritual da Nova República é uma referência fundamental para a compreensão das contradições que determinam a gravíssima crise civilizatória que há décadas ameaça o futuro da sociedade brasileira.
O desfecho ultraconservador da revolução burguesa no Brasil teria sido o elo final que aprisiona a economia e a sociedade no circuito fechado do capitalismo dependente. Na hora decisiva de definição do padrão de solidariedade com as outras classes sociais, entre 1930 e 1964, a burguesia abandonou toda e qualquer veleidade democrática e nacionalista para se afirmar exclusivamente como uma burguesia dos negócios, sem nenhum nexo moral com as classes subalternas. A consolidação do padrão de dominação pela linha de menor resistência, compondo os interesses das burguesias “modernas” com os das burguesias “atrasadas”, sem abrir brechas para contemplar os pleitos da classe trabalhadora, sepultou qualquer possibilidade de superação da segregação social e da dependência externa.
A cristalização do padrão de dominação ultrarrígido, que funciona como uma contrarrevolução permanente, liquidou definitivamente qualquer veleidade civilizatória que porventura a burguesia tivesse no sentido de estabelecer nexos morais com as classes subalternas. A perpetuação de mecanismos de satelização em relação ao centro capitalista e a reprodução de formas anacrônicas, modernas e ultramodernas de superexploração do trabalho sedimentaram uma racionalidade capitalista sui generis, de acordo com a qual o capitalismo é aceito como forma de acumulação de riqueza, mas rejeitado como forma de convivência de uma comunidade nacional.
Contrarrevolução permanente
A contrarrevolução permanente consubstanciou-se na constituição de um Estado autocrático burguês uma democracia de cooptação que restringe o acesso ao poder estatal aos interesses da plutocracia que nega toda cidadania ao trabalhador. Qualquer que seja a forma específica do regime político uma ditadura militar aberta ou uma democracia institucional autoritária, o poder tornou-se hermético às demandas das classes populares. Controlado monoliticamente pelas classes dominantes, o Estado ficou completamente destituído da capacidade de realizar reformas de caráter democratizante e nacionalista, transformando-se irremediavelmente em guardião de privilégios aberrantes e de mecanismos de auto privilegiamento. O espaço de mudança “dentro da ordem” tornou-se mínimo e as pressões de mudança “contra a ordem” passaram a ser respondidas com reações violentas, características de uma classe dominante que sabe que construiu seu mundo em cima de um barril de pólvora.
Nessas condições, a razão de Estado ficou inevitavelmente comprometida com a reprodução da dupla articulação que sustenta o capitalismo dependente. As estruturas e os dinamismos do capitalismo dependente tornaram-se a forma específica de existência do mundo burguês.
Induzido de fora para dentro pelas irradiações do centro capitalista, o desenvolvimento passou a ser calibrado por uma lógica política que se pauta por dois objetivos básicos: reproduzir a assimetria na correlação de forças que impede a emergência dos pobres como sujeito político; e evitar que as disputas das diferentes frações de capital em torno do ritmo e da intensidade da modernização coloquem em risco a unidade das classes dominantes, ameaçando, assim, a supremacia absoluta sobre o poder político.
O caráter desigual e combinado do desenvolvimento capitalista assumiu a forma de uma “modernização do arcaico” e de uma “arcaização do moderno”. Ao afastar a possibilidade de consolidação de um sistema econômico nacional e de superação do regime de segregação, abrindo caminhos para uma solução positiva para o problema histórico da integração nacional, o Estado nacional burguês consolida-se como uma subnação.
Ditadura e Estado de direito
A interpretação de Florestan Fernandes sobre a transição da ditadura militar para o Estado de direito é vital para o entendimento da crise terminal da Nova República.
A exaustão do regime militar é atribuída ao acúmulo de contradições provocadas pelo próprio padrão de desenvolvimento internacionalizado e excludente de que era fiador. Bastou a crise internacional ter transformado o famigerado “milagre brasileiro” numa crise de dívida externa que se arrastou por mais de duas décadas, para que o regime passasse a ser crescentemente contestado. As pressões pelo fim vieram de todos os lados: de baixo para cima, pela resistência dos trabalhadores, sobretudo a liderada pela oposição operária; de fora para dentro, pela necessidade de ajustar o padrão de dominação às exigências da nova rodada de globalização dos negócios; e até mesmo por amplos segmentos da plutocracia brasileira cada vez mais insatisfeitos com a crescente autonomização dos generais na condução do Estado.
Na ausência de uma oposição combativa que encurralasse a ditadura de baixo para cima, a solução para a crise do regime foi encaminhada, na melhor tradição do mandonismo brasileiro, pela via institucional, por intermédio de um processo que Florestan designou de “liberalização outorgada”.
A transição lenta, segura e gradual para o Estado de direito, arquitetada por Golbery do Couto e Silva, arrastou-se por mais de uma década, culminando com a eleição da chapa Tancredo Neves e José Sarney por um Colégio Eleitoral desenhado pela própria ditadura e, logo em seguida, com a promulgação da Constituição de 1988, que legitimou e institucionalizou, na forma de uma “democracia ritual”, o padrão de dominação autocrático-burguês consolidado pela ditadura militar.
A transição para o Estado de direito não alterou as bases sociais e políticas que subordinavam integralmente o Estado aos interesses do grande capital nacional e internacional. O refluxo do regime militar não significou o fim da contrarrevolução, mas apenas uma mudança na forma de combinar violência e cooptação como método de bloquear a emergência das classes subalternas na história.
A violência institucionalizada permaneceu incólume como forma de regulação do conflito entre o capital e o trabalho. O braço militar cedeu o comando do Estado aos agentes políticos da burguesia, mas foi mantido como elemento estratégico de tutela em última instância da democracia de cooptação. A síntese de Florestan parece até premonitória: “Os militares marcharam do comando ostensivo para a retaguarda do poder, preservando a autonomia de decisão e sua capacidade de veto. O pior (…) consistia no fato de que a ordem ilegal montada na ditadura permaneceria intacta e pronta para ser usada, de acordo com as circunstâncias”.
Aquém das expectativas
Passadas mais de três décadas desde a promulgação, verifica-se que, para a maioria da população, principalmente para os segmentos mais pobres, a Nova República ficou muito aquém das expectativas. A esperança de que a Constituição Cidadã fosse a base institucional para a promoção de mudanças estruturais que criassem o substrato econômico, social, político e cultural de uma sociedade nacional com um mínimo de equidade social, sem o que inexiste qualquer possibilidade de cidadania efetiva, foi frustrada.
É o que explica em última instância a crise política que se arrasta de maneira dramática desde as memoráveis Jornadas de junho de 2013. É o que explica, em última instância, a apatia política de amplos segmentos da população. É o que explica a atratividade do discurso que prega a negação da política em ampla parcela dos trabalhadores, sobretudo dos segmentos mais destituídos.
As cláusulas de defesa da economia nacional não impediram a desindustrialização do parque produtivo, a desnacionalização galopante dos meios de produção, a privatização de setores estratégicos de infraestrutura e a revitalização do agronegócio o latifúndio moderno voltado para o mercado internacional. O compromisso explícito com a defesa do meio ambiente não foi obstáculo para que a devastação da natureza avançasse a galope em todas as dimensões. Os preceitos de combate à usura e de incentivo ao investimento produtivo não evitaram que o Brasil se tornasse um paraíso do rentismo, submetido aos interesses ultra particularistas do capital financeiro nacional e internacional. O objetivo de fomentar uma economia autodeterminada contrastou com o avanço avassalador da especialização regressiva que levou a um sistemático rebaixamento da posição do país na divisão internacional do trabalho.
A conquista de direitos formais não mudou a dura realidade da maioria da população. A concretização das políticas públicas universais esbarrou na penúria de recursos para financiá-las. Os direitos trabalhistas nunca foram efetivamente cumpridos e, aos poucos, foram sendo sistematicamente vilipendiados. O sonho de um estado de bem-estar social, a despeito de pequenos avanços aqui e acolá, terminou na mercantilização de praticamente todas as dimensões da vida. A reforma agrária nunca passou de um simulacro para apaziguar os desvalidos da terra. A concentração fundiária atravessou incólume a Nova República. A reforma urbana nunca saiu do papel. O Estatuto da Cidade não impediu que a especulação imobiliária corresse solta. O direito das nações indígenas à autodeterminação não se traduziu em demarcação de terra e respeito ao modo de vida. O objetivo de combate à pobreza foi substituído por políticas assistencialistas de administração da barbárie. A segregação social e o patriarcalismo permaneceram incólumes.
Em consequência, pouco, ou quase nada, avançou-se no combate ao racismo e ao machismo estruturais. A discriminação da população LGBT permaneceu. O compromisso com a valorização da cultura nacional contrasta com a ofensiva colonialista avassaladora, que levou ao paroxismo o mimetismo dos padrões de consumo e estilo de vida das economias centrais.
A segurança contra o arbítrio do Estado e do poder econômico não chegou às periferias nem aos grotões do Brasil. A guerra aos pobres não cessou. Sob a hipocrisia de combate às drogas, a polícia militar continuou com carta branca para aterrorizar a juventude pobre, sobretudo a negra, sob a benção de uma justiça classista que sancionou um processo ilegal de encarceramento em massa. Banidos dos aparelhos repressivos que cuidam da ordem social e política, a tortura e o assassinato continuaram como práticas rotineiras dos aparelhos repressivos do Estado contra a população desvalida.
Liberdade corrompida
A liberdade partidária, que deveria dar vazão à diversidade do espectro de interesses que compõem a sociedade, foi completamente corrompida por um sistema político-eleitoral que transformou o partido num cartório de oligarquias corruptas e o político profissional em mero despachante de interesses particularistas de grupos econômicos. O direito à informação e à discussão do contraditório base de um espaço público democrático foi completamente usurpado pelo monopólio que coloca os grandes meios de comunicação nas mãos de poucas famílias que funcionam como ventríloquos do grande capital. O direito de greve, garantido na formalidade da lei, é negado pela perpetuação de uma estrutura sindical controlada pelo Estado, dirigida por uma burocracia dócil aos interesses patronais, bem como pelo cerco ostensivo da Justiça do Trabalho. Por fim, o direito à manifestação e organização política foi atropelado pela criminalização dos movimentos sociais e pela judicialização da política.
Postas em perspectiva, as advertências de Florestan sobre as consequências nefastas da transição negociada por cima da ditadura militar para o Estado de direito, revelaram-se pertinentes. Não houve acerto de contas com os crimes econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais perpetrados pela ditadura.
A promessa de fomentar a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, estabelecida logo no primeiro artigo da Constituição, não foi cumprida. O acordo político que sacramentou a transição para o Estado de direito era uma quadratura do círculo.
A busca de um Estado de bem-estar social, da soberania nacional e da democracia participativa chocava-se reiteradamente com a preservação dos mecanismos de autodefesa e auto privilegiamento dos donos do poder, a blindagem jurídica dos interesses do capital internacional e a manutenção do papel das forças armadas como poder moderador, com a função de tutela em última instância da democracia de cooptação. A derrota de todas as iniciativas que pudessem colocar em risco as estruturas responsáveis pela segregação social e pela dependência externa é a prova dos nove de que a Constituição Cidadã não abria brechas para a ruptura do circuito fechado que condena os trabalhadores a uma vida miserável.
Desmantelar a dominação
A reflexão de Florestan Fernandes é fundamental para a compreensão dos desafios que devem ser enfrentados para vencer a contrarrevolução permanente. Ele nunca se preocupou em deixar uma receita pronta, mas nos legou alguns princípios básicos sobre como desmantelar a máquina de dominação burguesa na América Latina.
Contra a intolerância dos ricos, Florestan Fernandes defende a necessidade de organizar a “intransigência” dos pobres.
Convicto da resistência feroz das classes dominantes e do imperialismo a qualquer tipo de reforma social que possa colocar em risco seus privilégios, Florestan Fernandes não cansou de alertar para a ilusão que significa imaginar que os problemas latino-americanos poderiam encontrar uma solução pacífica por dentro da institucionalidade perversa de uma democracia restrita. A advertência para os riscos da acomodação aos parâmetros da ordem no 1º Congresso do Partido dos Trabalhadores, no início dos anos 1990, servem para todas as organizações que reivindicam o socialismo, mas se acomodam docilmente ao papel de esquerda do status quo. “(…) Os petistas não devem se deixar iludir. Eles precisam se fazer duas perguntas: 1º.) A social-democracia, adulterada para servir às nações capitalistas centrais, é viável na periferia e nela perderia o caráter de uma capitulação ao despotismo do capital? 2º.) O PT manterá a natureza de uma necessidade histórica dos trabalhadores e dos movimentos sociais radicais se preferir a ‘ocupação do poder’ à ótica revolucionária marxista?”.
O fim trágico da experiência petista no governo e o desdobramento catastrófico da crise terminal da Nova República, que coloca no horizonte a possibilidade de um retorno a formas abertamente ditatoriais de poder, parecem confirmar a orientação de que os partidos socialistas devem se reorganizar sabendo que não podem confiar cegamente na democracia ritual e precisam estar sempre preparados para enfrentar uma burguesia que não hesita em passar da “guerra civil oculta” para a “guerra civil aberta”.
A obra de Florestan Fernandes é um precioso tesouro que deve ser estudado e debatido por todos que lutam contra a barbárie de nosso tempo.