Fernando Silva
Para compreender o projeto ou os nexos do projeto do governo de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, entre a cínica frieza da agenda liberal-econômica com os destemperos e provocações constantes do presidente é preciso um olhar panorâmico sobre o período aberto desde o golpe parlamentar de 2016.
Esses anos são marcados por uma profunda ofensiva do capital financeiro em busca de um reordenamento ultraliberal do Estado brasileiro e uma mudança qualitativa nas relações capital-trabalho, com retrocessos históricos na legislação trabalhista. Tais diretrizes vão se traduzir politicamente na, cada vez mais evidente, ruptura com o pacto articulado em torno da Constituição de 1988, no terreno dos direitos sociais, econômicos, bem como no terreno jurídico e político.
Alinhamento com Trump
O aprofundamento da agenda liberal sob o governo atual aponta na direção de uma maior subordinação ao capital financeiro, da perda de soberania, agravado com o alinhamento político Bolsonaro-Trump.
Não é tema deste artigo abordar as responsabilidades dos governos de colaboração de classe do PT, suas inúmeras concessões em particular o ajuste iniciado pelo segundo mandato de Dilma Rousseff. Também não examinaremos a lógica da governabilidade com a própria direita para obter maioria no Congresso Nacional. Lógica que levou a um total esvaziamento da participação e mobilização popular. Como sabemos, essa deseducação política cobrou um preço altíssimo quando da conjuntura do golpe de 2016.
Portanto, sem querer diminuir as responsabilidades dos governos petistas na tragédia que se abate sobre o país, essa pontuação crítica serve para se ter dimensão da ofensiva capitalista e da direita em torno do profundo reordenamento neoliberal em curso, pois nem mesmo as concessões dilmistas chegavam perto dos objetivos desta nova etapa.
O primeiro tripé de uma regressão histórica
O golpe de 2016 resultou num governo frágil e muito impopular que mesmo enfrentando crises políticas, denúncias de corrupção e uma fortíssima greve geral em 2017 aprovou o congelamento dos gastos no orçamento por 20 anos, a reforma trabalhista e o projeto de terceirizações. Ficou para o governo seguinte a missão de aprovar a reforma da Previdência que, esta sim, Temer não teve forças para conseguir.
Sob o governo Bolsonaro a referida reforma foi aprovada na Câmara dos Deputados e com isso um tripé estratégico do reordenamento ultraliberal do Estado se conclui.
Trata-se, portanto, de uma regressão histórica no universo de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Nesse terreno é muito importante pontuar que há unidade burguesa na agenda liberal mostrando a manutenção de uma hegemonia indiscutível dos interesses do capital financeiro sobre as frações políticas da classe dominante. Afinal, a reforma da Previdência foi conduzida pelo chamado “centrão”, em que pese os inúmeros choques desse bloco com a facção bolsonarista e o próprio presidente.
Além de estarem de acordo com a agenda econômica liberal, também é preciso observar que a sanha destruidora e provocadora de Bolsonaro e dos ministros mais fundamentalistas em nada é contraditória com a agenda global. Os cortes na Educação, a desastrosa política ambiental, os ataques aos sindicatos, as provocações e medidas na área de direitos humanos e democráticos se inserem dentro de uma lógica política, ideológica e também ultraliberal. A destruição de direitos de toda a ordem, o estrangulamento da Universidade Pública, a tentativa de reduzir a capacidade de resistência popular são totalmente úteis e instrumentais para a aplicação da agenda econômica.
A agressiva política de privatizações
Os ataques estruturais não se encerram com a reforma da Previdência. Chegamos então ao que parece ser o novo momento ou novo objetivo nessa lógica de destruição do Estado e subordinação ao capital financeiro e imperialista: a política de um amplo programa de privatizações e destruição de uma política social de investimento.
Este objetivo vem sendo perseguido de maneira mais explícita e selvagem pelo ministro Paulo Guedes e ganha mais força após a reforma da Previdência. Não obstante as inúmeras e desastradas declarações de Bolsonaro do tipo “tem que privatizar nem que seja uma estatal pequena por semana” ou dos anúncios contraditórios (primeiro o plano era anunciar 17 privatizações relevantes, depois foram 9), o fato é que também esses objetivos são para valer e são estratégicos para a agenda liberal. Gigantes como Correios e Eletrobras já estão na mira imediata. Não é pouca coisa.
Estamos falando de um profundo processo de destruição do patrimônio público, da soberania e de um aprofundamento ainda maior da desnacionalização da economia, pois tal como nos processos anteriores, como o das telecomunicações, é evidente que o capital transnacional e imperialista são os mais sérios candidatos a abocanhar uma nova onda de privatizações.
Senão vejamos: a gravíssima venda de 30% das ações da BR Distribuidora acabou com o controle majoritário da Petrobras e abriu as portas para gigantes multinacionais terem o controle da distribuição e comercialização dos combustíveis e derivados no país. E isso como parte de um aberto e cara de pau plano de “desinvestimentos da Petrobras”, assim assumido pela atual gestão liberal-bolsonarista na empresa.
A perda de controle da produção e distribuição de energia pelo Estado brasileiro ou do controle dos Correios vão na direção do aumento dos lucros capitalistas, mas não do desenvolvimento, da soberania e sequer da melhoria dos serviços ou de qualquer possibilidade de regulação pelo Estado dentro dessa lógica selvagem do bolsonarismo.
O exemplo da política da atual direção da Petrobras não é nada isolada, pois basta observar que os bancos públicos em particular o BNDES estão sendo esvaziados em relação à função de investimentos e empréstimos para produção e infraestrutura.
É uma estratégia de Estado zero na economia e nos direitos. Mas é um engano estratégico ou direta fortes investimentos, recuperar a economia, trazer empregos e desenvolvimento.
Segundo artigo dos economistas Fernando Sarti e Mariano Laplane, no Observatório da Economia Contemporânea, 75% do investimento direto estrangeiro que entrou no país nos últimos 20 anos vieram após a crise internacional de 2008. Destes, grande parte veio para a aquisição ou fusão com empresas domésticas. De 2008 aos dias atuais aumentou sobremaneira a desnacionalização ampla da economia com mais de 2,5 mil operações de aquisição ou 57% do total das operações.
Com toda essa abertura e esse aumento de investimento externo o país está no sexto ano de estagnação com 13 milhões de desempregados. Enquanto isso, a receita bruta das empresas estrangeiras no Brasil não parou de crescer, ou seja, quadruplicou no período de 1995-2015.
De 2015 para cá mesmo atualizando essa falsa ideia com o discurso oficial para uma perspectiva de que “agora o capital e os investimentos virão para valer” com a nova regulamentação trabalhista e previdenciária e com a desestatização global do patrimônio público outros novos e velhos fatores podem contribuir para que essa equação do capital nunca vá se fechar.
Uma longa estagnação?
O cenário mundial é de extrema incerteza. A hipótese de que um aumento da temperatura na guerra comercial EUA/ China coloque a economia capitalista na rota de uma nova recessão mundial pode por si só tornar o cenário de investimentos volátil, com deslocamentos para os portos mais seguros. Não se sabe o que pode acontecer com uma etapa de guerra de barreiras tarifárias e como a subordinada economia brasileira exportadora de commodities vai se localizar, dado inclusive o estado atual de “semianarquia” na política externa brasileira.
Gigantes da economia capitalista, como a Alemanha, dão sinais abertos de recessão. E a permanente instabilidade que o próprio presidente gerou como o desgaste da imagem do país na crise ambiental em torno das queimadas na Amazônia, num cenário internacional turbulento, pode não só inviabilizar o acordo EU/Mercosul, como adiar por um bom tempo a esperada enxurrada de investimentos.
Do ponto de vista do cenário interno uma política de ampla flexibilização e precarização de direitos, empregos e salários para a maioria da população, um esvaziamento do papel do Estado na economia e uma maior redução de direitos e cobertura social passam longe de serem indutores de retomada de crescimento, mesmo com baixos índices de inflação por ora. Para além do desemprego e do desalento, os recentes dados do aumento da miséria extrema dão pistas de que a agenda ultraliberal vai aprofundar seria necessário sacrificar direitos para voltar a ter empregos para todos. A regressão monumental de direitos está em andamento, o “sacrífico” está sendo feito, mas o cenário externo e o selvagem reordenamento liberal do Estado e das relações capital-trabalho não parecem apresentar a solução mágica de curto prazo. Esta poderá ser a última fronteira para um deslocamento da maioria da população para a oposição ao governo. As brechas para uma resistência ampla e popular têm sido abertas em episódios como a mobilização da educação, a defesa da Amazônia entre outras.
Em busca de outro desenvolvimento
Será preciso estar preparado para a hipótese de um deslocamento maior da população contra as medidas do governo que permitam ao menos deter o aprofundamento da ofensiva reacionária. Continua sendo para ontem a busca de uma ampla frente única para acumular posições, resistência de massas e evitar dispersão das lutas sociais. Sem o protagonismo popular não se derrota a agenda liberal onde o andar de cima está de acordo.
Ao mesmo tempo, a esquerda precisa entrar no debate do desenvolvimento com outra lógica, capaz de oferecer uma alternativa estratégica ao desastre que se anuncia. A alternativa à agenda liberal não pode ser um mais do mesmo das alternativas nacional-desenvolvimentistas burguesas. Será preciso, com certeza, um amplo resgate do Estado brasileiro no que diz respeito à universalização de direitos sociais e humanos, da capacidade de controlar setores estratégicos da economia, na capacidade de priorizar investimentos em pesquisa e tecnologia, numa inédita e soberana regulamentação estatal sobre o capital financeiro.
Mas para além disso, é preciso pensar num modelo que coloque no eixo a busca de uma transição na matriz energética e produtiva que rompa a exclusividade na dependência dos combustíveis fósseis; numa profunda mudança no modal de transportes no país e nas grandes cidades; numa profunda reforma agrária que equacione os recursos da terra para colocar um fim na lógica predatória do desmatamento; e numa transição no modelo de mineração para colocar um fim nos desastres do modelo extrativista que geram Marianas e Brumadinhos. Precisamos de outra lógica que parta da ideia de um desenvolvimento distributivista das riquezas já produzidas e existentes, que por si só já significaria uma revolução na estrutural desigualdade e que, por fim, equacione as condições para uma ruptura com os modelos predatórios de crescimento.