Plínio de Arruda Sampaio Jr.
A ascensão de uma direita que coloca abertamente a violência como solução para os problemas políticos é consequência direta da resposta regressiva e autoritária da burguesia à polarização da luta de classes provocada pelo impacto devastador da crise capitalista sobre as classes trabalhadoras. Trata-se de um fenômeno mundial.
No Brasil, as tendências autoritárias manifestam-se de maneira particular mente primitiva. Sem projeto nacional para enfrentar os desafios de um momento histórico adverso, a burguesia submete-se docilmente à “solução americana”, cuja essência reside no rebaixamento da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho e o consequente rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores. O novo padrão de acumulação solapa as bases da democracia de cooptação cristalizada na transição da ditadura militar para o Estado de direito.
Ricos e pobres
Enquanto o crescimento da economia alimentou a expectativa de melhoria social, as terríveis contradições de uma sociedade brutalmente cindida entre ricos e pobres foram ignoradas e empurradas para frente. A esperança de dias melhores funcionava como um apaziguador da luta de classes.
Entretanto, assim que a expansão econômica cessou, vieram à tona os gigantescos antagonismos de uma sociedade subdesenvolvida e dependente que ao longo de sua história não resolveu nenhum de seus problemas históricos. O fim do espaço de acomodação dos antagonismos sociais pela expansão da renda, do emprego e das políticas públicas obrigou o Estado a exacerbar a repressão contra as classes subalternas. O ataque às liberdades democráticas tornou-se generalizado: guerra aberta aos pobres como forma de militarização da ordem pública; criminalização dos movimentos sociais como meio de intimidação do protesto social; cruzada moralista como expediente de desmoralização da política; crescente judicialização da política como recurso autoritário para esvaziar a soberania popular; e ofensiva ideológica liberal e anticomunista como estratégia para naturalizar o status quo.
O ocaso da Nova República
As contradições latentes na acanhada democracia da Nova República converteram-se em antagonismos abertos nas Jornadas de Junho de 2013. Frustrados com o mesquinho “melhorismo” dos governos petistas, os jovens que tomaram as ruas cobraram dos governantes as promessas vazias da Constituição de 1988. Posta contra a parede por um Estado de mal estar social que corria o risco de fugir ao controle e premida pela necessidade de dar uma resposta à crise econômica, a burguesia assumiu sem rodeios seu caráter autocrático e antissocial e partiu para a ofensiva contra os trabalhadores.
Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às demandas da população. A convicção de que “todos os políticos são iguais” decorre da constatação prática de que, no final das contas, os imperativos do capital sempre acabam prevalecendo. Para as classes dominantes, é o oposto. A crise política reflete a impossibilidade de conciliar as exigências dos negócios “ordem e progresso” com o respeito às regras do jogo democrático. Os de cima enxergam as aspirações da classe trabalhadora como uma ameaça a seus privilégios e assumem sem disfarce seu caráter despótico.
A resposta reacionária da burguesia à crise da democracia de baixa intensidade que substituiu a ditadura militar não pode ser dissociada do afã de recompor a qualquer custo a taxa de lucro e abrir frente de acumulação para o capital.
Especialização regressiva
O ajuste neoliberal aprofundou a especialização regressiva da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. A retomada do crescimento da renda ficou condicionada à retirada de direitos trabalhistas e à maior precarização das condições de trabalho. O aprofundamento da liberalização comercial acelerou a reprimarização da economia, aprofundando a desarticulação do sistema econômico nacional. O avanço da liberalização financeira, da privatização do patrimônio público e da desregulamentação da economia levou ao paroxismo o desmanche dos centros internos de decisão, deixando o Estados nacional desarmado para enfrentar uma situação particularmente difícil. A revitalização do agronegócio e do extrativismo mineral como principais frentes de acumulação de capital potencializou a devastação ambiental.
O acirramento do conflito social decretou a falência dos governos de conciliação de classes, evidenciando a necessidade de um padrão de dominação burguês à altura das barbaridades exigidas pelos imperativos do capital rebaixamento substancial do nível tradicional de vida dos trabalhadores; esvaziamento progressivo da soberania nacional, intensificação da devas[1]tação ambiental e ataque implacável às liberdades democráticas.
Assim como a abolição da escravidão decretou a morte da Monarquia em 1889 e a crise da economia cafeeira em 1929 selou a sorte da República Velha, a crise terminal do processo de industrialização por substituição de importações, cuja pá de cal foi o ciclo neodesenvolvimentista de Lula e Dilma, destruiu as bases objetivas que davam sustentação à Nova República.
A guerra aberta contra os trabalhadores para impor condições ainda mais draconianas de exploração da força de trabalho requer uma compressão brutal do espaço de manifestação da vontade política das classes subalternas. Se os direitos trabalhistas não cabem nos cálculos de rentabilidade dos empresários e a política social não cabe no regime de austeridade imposto pela comunidade financeira, o padrão de dominação baseado na democracia de cooptação não coaduna com um ajuste econômico que coloca no horizonte um padrão de acumulação baseado na produção de commodities para o mercado internacional.
Lavagem cerebral
A solução reacionária para a crise econômica é simplesmente impossível sem a anomia política da classe trabalhadora. Para evitar qualquer possibilidade de oposição aos imperativos do capital, a opinião pública tem de ser submetida à lavagem cerebral de que os remédios amargos que compõem as “reformas” liberais constituem o único meio de tirar o país do atoleiro. Como o protesto social poderia furar o cerco da ignorância difundida pela grande mídia e dialogar diretamente com as massas, torna-se obrigatório criminalizar a luta social, estigmatizar a crítica e cercear a atuação dos partidos de esquerda.
Além de agir diretamente sobre a consciência da classe trabalhadora, o capital investe sistematicamente contra as migalhas democráticas existentes nos interstícios de uma estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma burguesia que não superou o espírito despótico do senhor de escravo, os direitos adquiridos dos trabalhadores não podem se sobrepor às exigências dos negócios. Uma vez que os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas sociais ja mais passariam pelo crivo do voto popular, torna-se necessário desmoralizar as instituições que expressam mesmo que muito precariamente a vontade do cidadão.
O ataque à Nova República assumiu a forma de uma cruzada moralista contra a corrupção. As investigações judiciais comprovaram o que todos sabiam. A corrupção é um elemento estrutural do padrão de acumulação e dominação do capitalismo brasileiro. As delações dos altos executivos do capital são didáticas. O capital é o elo dominante da relação criminosa. Os partidos são comprados pelos empresários. Os políticos funcionam como despachantes de interesses privados nos aparelhos de Estado. A radiografia das relações promíscuas da política com o capital feita pelo poder judiciário e sua espetacularização pelos grandes meios de comunicação trucidaram o sistema político e todas as suas instituições. Paradoxalmente, as causas profundas da corrupção a absoluta preponderância dos negócios na vida nacional em nenhum momento foram colocadas em questão.
Os que esperavam uma solução jurídica para a grave crise política que assola a nação fazem lembrar as fantásticas aventuras do Barão de Münchhausen, que se salvou do pântano onde afundava puxando-se pelos cabelos. Os paladinos da moralização Janot, Moro, Dallagnol e Fachin não foram à raiz do problema. A corrupção foi reduzida a uma questão moral de foro individual e circunscritas a casos específicos.
Na melhor tradição da justiça brasileira, a República de Curitiba operava segundo a norma “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. As investigações foram seletivas. O sistema financeiro foi blindado de qualquer investigação, mesmo sendo evidente que seria impossível a lavagem de magnitudes amazônicas de dinheiro sujo sem a sua cumplicidade. A ramificação da rede criminosa no sistema judiciário e na grande mídia foi negligenciada. O capital estrangeiro não foi sequer investigado. Os acordos de leniência deixaram as em – presas livres para continuar saqueando os cofres públicos e pilhando o país. No final, sob a aparência de uma faxina geral, permaneceu tudo como dantes. A engrenagem do roubo não foi abalada. As relações promíscuas entre o grande capital e o Estado permaneceram incólumes.
Submissão do Estado
Os limites pouco republicanos da investi – da contra a corrupção revelam que o verdadeiro objetivo da operação “Fora Todos” não nunca foi o de moralizar a vida pública, mas aumentar ainda mais a submissão do Estado aos interesses dos grandes negócios.
Ao se explicitar que por trás de cada representante do povo existe invariavelmente o patrocínio de uma grande empresa, a relação de confiança entre os eleitores e seus representantes foi aviltada. Desmoralizados perante seus constituintes, os políticos perderam toda autonomia para mediar o conflito entre o interesse privado e o interesse público. Acuados pela ofensiva avassaladora da campanha midiática contra a política, abraçaram, sem qualquer contraponto, a agenda de desmonte das conquistas trabalhistas e democráticas que estabeleciam um patamar mínimo de civilidade à sociedade brasileira.
A regra do jogo
Em suma, a corrupção faz parte da regra do jogo e o poder judiciário não está acima da Lei. A corrupção sistêmica é uma característica inerente ao Estado brasileiro, permeia todos os poros da administração pública e envolve todos os partidos da ordem. Sem a promiscuidade do público e do privado, a dominação burguesa entra em colapso. Problemas políticos, relacionados com a forma de organização do poder, só podem ser resolvidos com decisões políticas. A operação “Fora Todos” apenas preparou o caminho para uma “modernização” dos esquemas de intermediação ilícita dos interesses do capital nos aparelhos de Estado, adaptando-os às exigências do novo padrão de acumulação.
Ao assumir sem disfarce o conteúdo de classe do Estado, a burguesia afirma sua ditadura implacável sobre a sociedade. A banalização do debate público, a criminalização dos movimentos sociais e a destruição do sistema político esvaziam a democracia de qualquer conteúdo popular. Hermeticamente fechado aos de baixo, o circuito político apresenta-se como o que é: um condomínio exclusivo da plutocracia destituído de qualquer verniz democrático. A soberania popular fica ainda mais comprimida, deixando a sociedade a um fio da autocracia explícita.
A tirania como solução
Assustada com a possibilidade de que a volta de Lula ao Planalto pudesse arrefecer a intensidade do ajuste ortodoxo exigido pelo capital internacional e dar uma sobrevida à democracia de cooptação, na eleição de 2018, a burguesia brasileira jogou-se abertamente na aventura autoritária e, sem medir as consequências de partir para o confronto aberto com as classes subalternas, convocou um capitão de mato para pôr ordem na senzala. As tectônicas frustrações e ressentimentos com as promessas fraudadas da Nova República foram galvanizadas pela extrema direita. O obscurantismo venceu a esperança.
A vitória eleitoral de uma candidatura que se apresentava abertamente como antídemocrática manifestou o inequívoco repúdio dos eleitores aos partidos da ordem PSDB, MDB e PT à frente. A eleição de um candidato da extrema direita, com um programa que defende abertamente a violência política como solução para os problemas nacionais, marcou a falência definitiva da Nova República. A contra revolução vitoriosa em abril de 1964 voltou a assumir formas abertamente ditatoriais, cuja expressão concreta ditadura civil, abertamente militar ou de matiz abertamente totalitária ainda não está definida.
Os primeiros passos do governo Bolsonaro revelam que as ameaças retrógradas e autoritárias do ex-capitão não eram bravatas de campanha para explorar as frustrações de uma população fatigada, mas sim anúncios de uma intenção real de retirar direitos trabalhistas, destruir políticas sociais, atacar negros, mulheres, indígenas, LGBTs, cercear o pensamento crítico e a livre expressão artística, eliminar as parcas restrições à depredação do meio ambiente, e, na contramão da retórica pseudo-nacionalista esboçada timidamente durante a campanha eleitoral, liquidar a identidade nacional e franquear o espaço econômico brasileiro à sanha do capital internacional, entregando a soberania nacional ao arbítrio do imperialismo norte-americano.
Delírios e realidade
Não obstante a genuína disposição de atacar tudo que represente conquistas civilizatórias do povo brasileiro, os aventureiros que chegaram ao Planalto, apesar da falta de disposição de luta das forças de oposição dentro da ordem, têm enfrenta do grandes dificuldades para transformar seus delírios distópicos em realidade. A distância entre o terrorismo retórico e as ações práticas explica-se fundamentalmente pela enorme dificuldade encontrada pelo novo governo para lidar com as contradições da realidade.
Os obstáculos mais visíveis são o gigantesco despreparo e a assustadora incompetência de seus quadros dirigentes, começando pelo próprio presidente. O primitivismo, a inépcia e a falta de compostura de Bolsonaro expuseram suas brutais limitações intelectuais, política, retórica e moral para o exercício do cargo para o qual foi eleito. Os escândalos que envolvem diretamente seu filho mais velho e seu partido com gravíssimas denúncias de desvio de dinheiro público, financia – mento ilegal de campanha, enriquecimento ilícito e envolvimento orgânico com grupos milicianos desmoralizaram toda e qualquer ilusão em relação à idoneidade dos novos governantes.
A guerra sem quartel entre as diferentes facções que compõem governo, dividido entre grupos de extrema direita, seitas evangélicas, militares, políticos fisiológicos e empresários, evidenciou a absoluta inépcia de Bolsonaro para dar um mínimo de coerência, solidez e efetividade às ações do Estado.
A dificuldade do governo Bolsonaro de transformar a teoria em prática esbarra, sobretudo, em problemas institucionais. Ao contrapor a chamada “Nova Política” a imposição da vontade do mercado sem mediação política alguma à “Velha Política” o encaminhamento dos imperativos do mercado mediado pelo toma lá, dá cá da fisiologia parlamentar – Bolsonaro reiterou sua aposta na negação da Nova República como panaceia para os problemas nacionais. No entanto, enquanto a Constituição de 1988 não for revogada e o Congresso Nacional não for formalmente fechado, não se governa sem apoio parlamentar.
O crivo da luta de classes
Por fim, o governo Bolsonaro terá que passar pelo crivo da luta de classes. O caráter extraordinariamente regressivo de suas políticas desperta forte resistência em amplos setores da população. Os efeitos recessivos do corte nos gastos públicos sobre o nível de atividade econômica, a concorrência predatória de produtos importados provocada pela maior abertura comercial e o impacto devastador do corte de benefícios sociais sobre os pequenos negócios das cidades do interior, sobre tudo nas regiões mais pobres, são alguns exemplos que mostram as dificuldades para unificar o apoio de segmentos da própria burguesia a Bolsonaro.
A incapacidade de dar uma resposta objetiva aos problemas que afligem a população o flagelo do desemprego, a assustadora degradação dos serviços públicos, a escalada da violência social tende a corroer seu apoio nas classes trabalhadoras. Se o crescimento econômico não for recuperado, criando condições para a acomodação dos diferentes interesses sociais, possibilidade que não se inscreve no horizonte imediato, a sustentação política de Bolsonaro pode rapidamente evaporar. A incapacidade de dar uma resposta objetiva aos problemas que afligem a população o flagelo do desemprego, a assustadora degradação dos serviços públicos, a escalada da violência social tende a corroer seu apoio nas classes trabalhadoras. Se o crescimento econômico não for recuperado, criando condições para a acomodação dos diferentes interesses sociais, possibilidade que não se inscreve no horizonte imediato, a sustentação política de Bolsonaro pode rapidamente evaporar.
Sem se intimidar com as ameaças de violência política vociferadas pelo presidente, a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores tem encontrado forte resistência popular. O carnaval de 2019 foi uma catarse contra a ignorância reacionária de Bolsonaro. Em defesa da educação pública e da Previdência Social, estudantes e trabalhadores têm protagonizado greves na cionais e manifestações multitudinárias. Ainda que o antagonismo à solução liberal-autoritária, latente em crescentes parcelas da população, não tenha conseguido se transformar em força política organiza da, capaz de levar os protestos às últimas consequências e dar um xeque-mate na aventura de Bolsonaro, tudo indica que o conflito social tende a se intensificar, colocando em questão a possibilidade de uma escalada autoritária sem uma ruptura formal com o Estado de direito.
A ameaça autocrática
A ausência de bases institucionais, sociais e políticas para transformar as intenções tirânicas do presidente eleito em realidade não significa necessariamente uma derrota do consenso burguês em torno da via autoritária como resposta à crise política. Divididas entre caudilhos decadentes Lula e Ciro Gomes, que apostam todas as fichas no fiasco de Bolsonaro e na reciclagem da política tradicional, as forças de oposição têm se demonstrado impotentes para oferecer uma alternativa à moribunda Nova República e ao ajuste neoliberal sem fim. Na ausência de uma saída demo crática, construída de baixo para cima, mais dia menos dia, a burguesia encontra rá uma forma política para consolidar sua resposta autocrática para a crise política.
O impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira não tem solução à vista. O velho morre, mas o novo ainda não tem força para nascer. Sem resolver a crise política, não há possibilidade de resolver a crise econômica. E, sem uma ruptura radical com o ajuste neoliberal, não há como evitar o aprofundamento da barbárie. Na periferia brasileira, a crise estrutural do capital assume dimensões dantescas. O futuro é de grande instabilidade política, conflito social e turbulência política.