-Gilberto Maringoni -Francisvaldo Mendes -Bernadete Menezes -Mario Augusto de Azeredo
Entrevista
Luíza Erundina
Luíza Erundina de Sousa tornou-se personagem de destaque na vida pública brasileira ao ser a primeira mulher a assumir a prefeitura de São Paulo, em 1988. A passagem pela administração provocou uma reviravolta na ideia de como a esquerda deve governar.
“A gente não assumiu para aceitar os limites vigentes; fomos lá para inverter prioridades”, relata Erundina numa tarde chuvosa de agosto, em seu escritório na zona sul paulistana.
Sua gestão foi marcada por enfrentamentos com a grande imprensa e com os grandes interesses na cidade. “Sobrevivemos por contar com sólido apoio popular”, completa.
Luíza Erundina está na política há mais de seis décadas. Assumiu o primeiro cargo público aos 24 anos, no impulso de uma militância com a Igreja católica. Era a diretora de Educação e Cultura da Prefeitura Mnicipal de Campina Grande. De lá para cá, não parou mais. Filiada ao PSOL desde 2016, essa paraibana de Uiraúna cumpre o sexto mandato como deputada federal com dedicação admirável.
“Eu não me casei, não tenho marido, não tenho filho, não tenho nada. Eu me doei para a política. E por quê? Porque acredito na história!”, enfatiza. O melhor, em se tratando de Luíza Erundina, é deixar que fale por si mesma.
Como a senhora ver a situação atual? Com muita preocupação e ao mesmo tempo indignação. Bolsonaro não reúne condições mínimas necessárias, nem do ponto de vista da capacidade política, nem no que tange a qualidades pessoais exigidas para o exercício do cargo de presidente da República. E o mais grave é que ele não tem o menor compromisso com a democracia. Não há nada que nos faça esperar de Bolsonaro alguma coisa, além do vazio de ideias, o que, aliás, foi marca registrada durante a campanha eleitoral. A agenda do país está marcada por de[1]núncias de escândalos que envolveriam os filhos e integrantes do governo. O governo Bolsonaro conspira contra o interesse da sociedade ao produzir um sem-número de crises, enquanto milhões de brasileiras e brasileiros não têm a garantia dos direitos fundamentais, como o direito ao trabalho, por exemplo. Enquanto a sociedade é distraída com postagens no Twitter da família presidencial, aos poucos vai se sedimentando, sem grandes contestações, ideias de extrema direita que inspiram um projeto de poder que tenta se impor pelo medo, pela violência e pela intimidação. Além disso, temos uma administração obcecada por estabelecer o controle moral das pessoas, enfraquecer os mecanismos de luta social, alienar o patrimônio público e as riquezas nacionais, reduzir os gastos sociais, desarticular os órgãos e ações de proteção ambiental e fragilizar ainda mais as minorias sociais, como indígenas, quilombolas, mulheres, negros e homossexuais. Jair Bolsonaro tornou-se o demolidor de tudo aquilo que o povo brasileiro construiu ao longo da história. Não vai deixar pedra sobre pedra, se não reagirmos rápido e à altura para defendermos o patrimônio público.
Qual sua avaliação sobre a economia? Em relação às perspectivas de crescimento econômico, o futuro do país parece fadado ao fracasso total. O índice de desemprego atinge mais de 13 milhões de pessoas e o subemprego já é o maior desde que teve início a série histórica, em 2012. Isso significa que 1 em cada 4 brasileiros aptos a trabalhar está fora do mercado de trabalho. A reação de Bolsonaro a esse quadro alarmante foi debochar e desacreditar as informações do IBGE, dizendo que “a metodologia de cálculo da taxa de desemprego no País não mede a realidade”. Há claros sinais de que o governo Bolsonaro pretende avançar na agenda de redução do custo do trabalho que se dará, não só pelo achatamento dos salários, mas também por meio da desregulamentação do mercado de trabalho.
Em um discurso na USP, no ano passado, a senhora disse ter vivido a ditadura do Getúlio, na infância, e, já na vida adulta, conheceu a ditadura de 1964. A situação atual se compara a qual delas? É possível fazer essa comparação? Não, acho que não. As coisas aconteceram de uma fase histórica para outra sem que houvesse ruptura alguma. Não há rupturas. As classes dominantes se acertam e resolvem as diferenças. Isso vale para a época da libertação dos escravos, a mudança da República, Getúlio Vargas, a ditadura de 1964 etc. Veja o governo Lula. O ministério dele era dos que detinham o poder na ditadura. É muito triste. A gente perde um pouco a perspectiva de mudança no nosso tempo, embora considere que o projeto que nos inspira é o sonho maior de uma sociedade verdadeiramente democrática, civilizada, igualitária, justa, com um nível de relação em que a natureza humana seja a referência principal como elemento de igualdade, de dignidade e de direitos.
A situação atual é desafiadora por termos um governo aparentemente sem lógica. Há um projeto ultraliberal e um moralismo ideológico de extrema direita. Ele perde apoio social aceleradamente, mas segue forte. Como se explica o fato de um deputado apagado e conhecido apenas por ideias extremistas chegar à presidência da República? A realidade maior é muito anterior a ele. Desde 2013, a meu ver, a jornada daquele movimento de massa com mais de um milhão de pessoas na rua durante o mês inteiro já era uma sinalização de que estava havendo uma virada da realidade política, da realidade social, e da realidade na dimensão plural. E isso estava gestando um governo e um presidente com as características dele.
Na sua opinião, não houve uma frustração em relação à segunda eleição da ex-presidenta Dilma, em que ela prometera emprego e desenvolvimento e ao assumir o governo, aplica um programa ultraliberal? Essa frustração não criou uma aversão à política e abriu espaço para um candidato como Bolsonaro? É verdade. Mas o que mais pegou para chegar a esse resultado é a questão moral, a da corrupção. O que mais frustrou, no meu ponto de vista, foi a ideia da maioria de que qualquer um podia roubar, menos o PT. Acho que a questão moral tem um apelo muito forte nas camadas populares. Começou com o mensalão, em que ficou evidente que o PT pôs a mão.
Por que o PT não podia ser corrupto? Pelo critério de que alguém de esquerda não poderia não ser ético e honesto. Esse é um valor popular importante, forte, embora, para nós, não seja o principal a corrupção é efeito, não é causa. E, para o povo brasileiro, a questão da ética é muito importante. O PT é um pouco udenista nesse sentido. A origem cristã do PT, nas comunidades eclesiais de base, a força da igreja, a Teologia da Libertação… Muitos de nós vínhamos de lá. Portanto, têm uma marca importante na nossa cultura, na nossa origem, esses valores cristãos. Alguns são bons, outros nem tanto, mas, sem dúvidas, na questão da honestidade, não roubar, não tirar do pobre, não tirar do público é um valor fundamental.
A primeira Constituição republicana, de 1891, estabelece o Estado laico. Nós estamos regredindo quase 130 anos nesse aspecto. Como a senhora ver o peso que as igrejas pentecostais passaram a ter na política? Vamos pegar a história do Brasil, sobretudo, considerando a minha origem de classe. A religião foi sempre forte na política. O coronelismo, o poder, a disputa pelo poder, a conquista do poder e o exercício dele tinham como sustentação a religião. E era a religião católica, não a protestante. É verdade que, com as transformações da Teologia da Libertação e a renovação de certo setor da igreja, as coisas não se davam nos termos em que aconteciam tradicionalmente lá no Nordeste. Mas por que agora temos os evangélicos? Primeiro, o fenômeno dos evangélicos floresce nas camadas mais pobres, mais desassistidas, menos informadas, com menos acesso à educação. Além disso, eles têm uma metodologia e uma pedagogia muito forte. Atraem as pessoas e as reconhecem, criando um ambiente de elevação da autoestima. Aprende-se a ler a bíblia, a usar a bíblia. Há a música, o canto e a promessa da prosperidade. Se você faz isso para Deus, você vai ser próspero. O projeto político dos evangélicos começou a partir do momento em que eles buscaram eleger um vereador. Tal vereador neste ano, no próximo mais tantos e no próximo um deputado. Eles têm um projeto de poder que foi se construindo ao longo do tempo de forma consolidada, consistente, planejada e hoje tem um cara deles dirigindo o país. É um projeto de poder.
Em 1930, houve um golpe e uma mudança de regime. Em 1964, também houve golpe e uma mudança de regime. Em 2016, houve golpe, mas não uma mudança. Tivemos a eleição de um presidente de extrema direita, mas sem mudança de regime. Formalmente, estamos em um regime constitucional. Não é uma anomalia estarmos em uma democracia que não é uma democracia? Nunca tivemos democracia plena. A democracia representativa se exercita até num período como o de agora, mas a democracia participativa, direta, sem a qual não há soberania popular, não. O artigo 14 da Constituição, que estabelece os mecanismos de democracia direta e participativa, nunca foi regulamentado devidamente.
O governo Lula era a grande esperança de alargar essa democracia. Como a senhora avalia o período de 2003 a 2016? O projeto de Lula para presidente da República foi, a meu ver, muito pessoal. Era o PT disputando para o Lula ser presidente sem um compromisso mais concreto, mais público e mais assumido de que seria outro projeto. A preocupação era de que, elegendo o Lula, se teria completado o projeto do PT. Tanto é que as sucessivas eleições Lula na segunda vez e Dilma na primeira e segunda vezes, nunca foram realizadas a partir de uma avaliação de que os governos teriam que completar seu projeto, que se supunha ser aquele que deu origem ao PT. Aquele era o projeto de se promoverem as reformas. O PT não fez nenhuma reforma estrutural importante. Nenhuma. A estrutura de poder do Estado brasileiro e as relações com a sociedade civil não se alteraram essencialmente. Portanto, foi um governo progressista, popular, mais aberto ao diálogo, mas não um diálogo que atentasse para a soberania do interlocutor. A grande dívida histórica que o governo do PT deixou para a democracia brasileira é que desperdiçaram toda a popularidade, o prestígio e toda a força política que o partido tinha para promover as reformas pelas quais existia, ou existe, o PT.
A senhora não acha que houve uma melhoria do padrão de vida ao longo dos governos petistas? Isso aconteceu diante de uma conjuntura internacional que favoreceu muito o Brasil. Mas distribuição de renda real nunca foi feita. O que se fez foi transferência de renda. O Bolsa Família e esses programas todos são políticas compensatórias. Você mandou para o Bolsa Família bilhões e bilhões durante vários anos e isso, de uma certa forma, dinamizou a economia local, o poder local. Mas tanto não emancipou esses setores que, logo que esse programa foi reduzido no peso e na importância, as pessoas voltaram a uma situação até pior. Não se mexeu na estrutura tributária e se fizeram reformas regressivas da Previdência.
Por que a Dilma foi derrubada e o Lula foi preso, se eram governos que, segundo a senhora, não realizaram reformas progressistas? Porque era um governo de conciliação de classes. O próprio Lula costumava dizer que quem mais ganhou no governo dele foram os pobres e os banqueiros. Ele não mexeu muito nos interesses da classe dominante. Acontece que isso tem limites. Os banqueiros não poderiam continuar ganhando tanto e, ao mesmo tempo, os pobres serem atendidos naquilo que é básico e fundamental. Portanto, houve um tempo, até pela crise econômica, que fez com que esse modelo já não pudesse mais oferecer aquilo que prometia e que, de uma certa forma, atendia aos interesses daqueles cujos interesses sempre foram garantidos.
Tivemos 13 anos de governos do PT e a sociedade parece ter se despolitizado. Isso aconteceu? Não lhe parece contraditório? Sim, despolitizada. A gente tinha secretaria para tudo no PT. E eles impulsionavam a disputa na sociedade. Por exemplo, a política da educação. Tinha um setor do partido que elaborava a política da educação, e a militância ligada à educação militava no movimento de educação, interagindo dos dois lados. A política de educação que o partido elaborava por meio daquele coletivo era alimentada pela militância que, por sua vez, também se alimentava disso para levar posições aos movimentos. Ela influenciava o movimento politicamente, teoricamente, conceitualmente. Portanto, havia uma imersão real, porque a gente veio de lá. A gente não foi para lá depois que teve o PT. A gente estava lá antes do PT. Então, nossa origem no movimento, na luta concreta, de uma certa forma, contribuiu para o PT ser aquilo que ele era no início.
O PT a atacou em duas oportunidades, pelo menos. Na primeira, quando a senhora foi para o governo Itamar, em 1994. Na outra, quando foi candidata à Prefeitura de São Paulo, em 2004, quando o vice era Michel Temer. O que acha dessas críticas? Em relação ao Itamar Franco, a participação do PT foi determinante para derrubar o Collor. Por que o PT se recusou a ajudar o governo Itamar? Ele não tinha tanta legitimidade, não tinha partido nem condição pessoal que pudesse dar uma estabilidade para garantir que a outra eleição pudesse ocorrer. Havia um risco grande de instabilidade. Por que o PT não foi ajudar? Por um cálculo eleitoreiro. “Nós derrubamos o Collor. O Lula perdeu para o Collor. Na próxima, será o Lula”. Só que faltavam mais de dois anos. O PT deveria ter tido a responsabilidade de ajudar o governo e o país, mas não fez assim. Era um momento delicado da vida nacional e pensaram que se fossem ajudar o Itamar isso poderia comprometer a eleição do Lula.
Hoje a senhora reafirma essa posição? Não tenha a menor dúvida. Eu estava saindo da Prefeitura de São Paulo com uma equipe excepcional. Apesar das dificuldades e da oposição do governo do estado, começando com o Quércia [1987-91] e depois com o Fleury [1991-95], do governo federal, com Sarney [1985-91] e Collor [1990- 92], e da Câmara Municipal durante os quatro anos de minha gestão, além do Tribunal de Contas, acho que nós acertamos muito mais do que erramos. Aprendi muito e saí com outro entendimento político, de ação política, e tinha a compreensão de que, inclusive, nosso governo havia participado da luta pelo impeachment do Collor.
Em determinada ocasião, a senhora convocou a militância e os movimentos sociais para se concentrarem na Câmara Municipal, algo que nenhum outro go verno do PT fez. Como foi esse episódio? A Câmara queria cassar o mandato porque o Tribunal de Contas recomendou rejeição das minhas contas. Até ali, o Tribunal tinha mais de 30 anos e nunca havia rejeitado conta de prefeito algum. Nós éramos minoritários na Câmara Municipal. Aí tentaram cassar meu mandato.
Essa experiência de estar no Executivo, sofrer uma ameaça, convocar o movimento social para defender a administração nunca se repetiu do lado do PT. Por quê? Isso aconteceu a todo momento no nosso governo. Por que nós sobrevivemos com minoria durante quatro anos na Câmara? Por que nós sobrevivemos a um Tribunal de Contas que era um instrumento político contra o nosso governo? Por que nós sobrevivemos ao Partido dos Trabalhadores contra o nosso governo? Todo mês, a direção municipal se reunia, fazia o balanço do governo e punha na imprensa antes de falar com a prefeita, que era do partido. Só existe uma explicação para ter sobrevivido durante todo esse tempo. Foi o apoio popular real, e sem aparelhamento de movimento algum. Nós não trouxemos nenhuma liderança para o governo pelo simples fato de ser liderança de um movimento. E outra coisa: essa prática de chamar o apoio popular não se fez apenas naquele momento, naquela situação com a Câmara. Quando entrei, os governos federal e estadual fecharam as torneiras de financiamentos. Na época, havia o Banespa, que arrecadava alguns tributos do município. E havia dívidas que a prefeitura tinha com o Banco do Brasil e com a Caixa Econômica. Eles fecharam a torneira enquanto não pagássemos dívidas de governos passados, que eles nunca cobraram! O presidente da Caixa não quis me receber. Eu coloquei, na frente da Câmara Municipal, um caminhão, e fui para cima dele com os movimentos. Naquele tempo, não tinha internet, mas o presidente da Caixa Econômica me mandou um telegrama, me chamando para conversar. Até ali ele não aceitava a audiência comigo, para eu poder colocar a situação da prefeitura. Eles iam inviabilizar o governo desde o primeiro momento.
A senhora não aceitou os limites daquela institucionalidade vigente? A gente não foi lá para aceitar. A gente foi com uma proposta que se caracterizava por dois eixos. Primeiro, fazer um governo com inversão de prioridades: governar para a maioria e, ao mesmo tempo, cuidar da cidade, daquilo que é importante para manter a cidade com condições de vida para todo mundo. Porém, no investimento público, a meta era priorizar a periferia e as políticas sociais. Isso nós cumprimos do primeiro ao último dia. O chamado orçamento participativo era real. E era um orçamento feito regionalmente. A população definia as prioridades e era razoável na compreensão de que não dava para fazer tudo. Eles tinham instrumentos e informações, além de assessoria para acompanhar a execução orçamentária. Portanto, foi uma mudança. Acho que o governo correspondeu à origem, ao partido de esquerda não tanto por ter sido honesto, porque isso é o mínimo, e nem também pelas realizações. Um governo, mesmo que não seja de esquerda, mas que seja inteligente e capaz, pode atender, prioritariamente, a população. O que diferenciou nosso governo foi a mudança de cultura do que é ser governo.
Seu secretariado era composto por nomes de peso, como Lúcio Gregori, Marilena Chauí, Ermínia Maricato, Paulo Freire, Amir Khair, Paul Singer, Coronel Silvestre e outros. Por isso, lastimo o que não aconteceu no governo Lula. Com Dilma não, porque nunca tive expectativa com ela. Mas os dois governos Lula, com o carisma, a popularidade e a capacidade que tinha com a massa, ele poderia ter feito tudo o que quisesse no primeiro governo. Mas ele conciliou. Nunca mexeu uma vírgula no marco legal das comunicações. Eles criticam a Globo e companhia, mas não fizeram nada. Trabalhei nessa área desde o primeiro mandato.
E como responder ao ataque relacionado à aliança com Michel Temer? Veja, naquele tempo eu estava no PSB após ter saído do PT e o presidente do partido era o Miguel Arraes. O Quércia conversou com Arraes. Surgiu daí a negociação para que o Temer abrisse mão se ele ficasse como vice. Foi uma articulação nesse nível. Eu faria da mesma forma.
A esquerda parece ter retirado do horizonte de reivindicações coisas básicas, brandidas nos anos 1980, como emprego, salário, renda e comida. A esquerda que no governo praticou ajuste fiscal e austeridade não perdeu a sensibilidade às dores do povo? Quando foi que o povo realmente protagonizou uma luta social e política real? Foi, primeiro, do lado da Igreja. É ela que organiza, que está junto todo dia lá na paróquia, como acontece hoje nos meios evangélicos. Aí veio junto a Teologia da Libertação e, ao mesmo tempo, o PT organizando politicamente a população. Os núcleos do PT tinham vida real. Eu militei nos núcleos por local de moradia, por categoria profissional. Ali era um núcleo real de vida política. E, ao mesmo tempo, organizava a população na defesa dos direitos sociais, humanos, de cidadania. Os movimentos eram fortes. Começa pelo movimento contra a carestia, depois pelo direito à creche. Era outra luta por posto de saúde, por coleta de lixo na periferia, pela canalização dó córrego que enchia a casa dos pobres de cocô quando havia enchente. Enfim, a ação dos movimentos sociais populares em torno de certas medidas veio com uma organização. A base da Teologia da Libertação, o apelo pela fé, pela religiosidade e, ao mesmo tempo, um par[1]tido político nascendo dessa origem, mas trazendo o componente da política numa linha de reconhecimento de direitos, de organizar o povo davam o tom há 30 ou 40 anos. Eu me lembro que, antes do PT e dessa ação completa ligada a esses setores, os movimentos populares não permitiam que se falasse em política. Não permitia se usassem politicamente os movimentos. Em vez de você politizar a luta, era neutralizar a luta sem que tivesse política no meio. Isso foi uma evolução no processo de ajudar a população a se conscientizar sobre a condição de sujeitos de direitos, da força dela quando se organiza. Isso veio muito ligado ao PT, politizando a partir da população pobre se organizando por meio da Igreja progressista. Por isso, tem uma marca forte do PT. Mas o PT tinha uma pluralidade enorme de tendências. Não é só tendência da disputa interna de poder do partido. É de concepção de vida. Tinha os cristãos que estavam lá, os trotskistas que vieram do exílio, os leninistas que também vieram. Enfim, o PT era um amálgama de experiências políticas das mais diversas compreensões, misturado com os que estavam chegando do exílio e os que estavam começando aqui.
O que a move hoje para seguir essa militância de forma tão intensa, com viagens, reuniões e participações em atividades que fogem da rotina? Primeiro, a responsabilidade de ter um mandato que não é meu. Eu tenho que dar conta disso. Tenho 84 anos e este é meu último mandato. Eu poderia pensar que, por ser meu último, poderia fazer de qualquer jeito. Eu não me casei, não tenho marido, não tenho filho, não tenho nada. Eu me doei à política, e não na política por ela mesma. E por quê? Porque eu acredito na história! O sonho me alimenta desde que me dei conta, precocemente, das coisas.
A primeira prefeita de São Paulo
Luíza Erundina de Sousa, 84, é uma das mais emblemáticas personalidades públicas do PSOL. Sua trajetória mescla-se com as lutas sociais e políticas brasileiras, desde 1958. Sétima dos dez filhos do artesão de selas e arreios de couro, Antônio Evangelista de Sousa e de Enedina de Sousa Carvalho, Erundina começou a trabalhar ainda criança, vendendo bolos e doces produzidos pela mãe.
A vida militante começou na prefeitura de Campina Grande, onde foi Secretária Municipal de Educação e Cultura, em fins dos anos 1950, atuando mais tarde com as Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Opôs-se claramente ao golpe de 1964.
Formada em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba, mudou-se para São Paulo em 1971. Na cidade, trabalhou na Secretaria de Bem-estar Social da prefeitura, com migrantes nordestinos da periferia. Logo, vinculou-se a movimentos por moradia, tornando-se liderança destacada. Erundina foi fundadora do PT, em 1980. Elegeu-se vereadora dois anos depois e deputada estadual em 1986.
O ponto alto da vida política se deu entre 1989-93, quando conquistou a prefeitura de São Paulo. Seria ainda ministra da Administração Federal, por poucos meses, em 1993 (governo Itamar Franco). Em 1997 deixaria o PT, vinculando-se ao PSB, pelo qual se elegeu deputada federal em 1998. Em 2016 trocaria a legenda pelo PSOL.