Wanderley Codo
Bolsonaro já foi classificado como louco, perverso, ignorante, racista, homofóbico, mentiroso, autoritário, nepotista, perseguidor, mal-educado e despreparado. Tudo isso é verdade. Vejamos cada classificação.
Louco: Divulga pornografia (golden shower) para demonizar o carnaval.
Perverso: Elege Brilhante Ustra o mais conhecido torturador da ditadura e o único a ser responsabilizado legalmente por isso como herói nacional.
Ignorante: Não sabe nada do desmatamento e ainda contesta metodologias, consagradas internacionalmente, como a do IBGE e do INPE, punindo quem conhece.
Racista: Trata quilombolas como se fossem animais.
Homofóbico: “Venham ao Brasil para fazer sexo com mulheres, mas não para um paraíso gay”.
Mentiroso: “No Brasil não há fome e nem desmatamento”. Despreparado: Se comporta como um garoto em uma pelada de rua, sem a mínima ideia da liturgia do cargo.
Falso: Afirma que o pai do presidente da OAB, foi justiçado, quando a própria ditadura admitiu o assassinato.
Autoritário: Persegue jornalistas que o criticam e quando pode os manda demitir.
Nepotista: Indica um filho para ser embaixador nos Estados Unidos por ter fritado hambúrgueres por seis meses no Maine.
Perseguidor: Considera todos os adversários como inimigos e até a Folha de S. Paulo recebe a ‘pecha’ de comunista.
Mal-educado: Xinga e agride os jornalistas que fazem perguntas incômodas.
Há que se notar, Bolsonaro é coerente, pois segue à risca o guru, o astrólogo iletrado Olavo de Carvalho, que afirmou, com razão, ser o segundo do governo, e que é o autor de pérolas como: “A ONU apoia o terrorismo”, “A Pepsi é feita com fetos abortados”, “Há uma conspiração comunista global e o movimento gay é parte dela”, “A Lei da Inércia é falsa e Isaac Newton era burro”, “Há livros ensinando crianças fazer sexo oral com elefantes” e “O Brasil hoje é uma ditadura comunista”. Sim, coerente, escolhe uma ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos que beira a alucinações delirantes, um ministro da Educação empenhado em acabar com a Educação, um astronauta que vendia “travesseiros da Nasa” para cuidar da ciência e um chanceler que acredita ser o nazismo uma corrente de esquerda.
Projeto claro
É preciso ter cuidado, prestar muita atenção, pois abaixo dessas sandices e abaixo das loucuras, está um projeto claro, um propósito bem delineado, declarado em prosa e verso, pelo próprio Bolsonaro na primeira cerimônia de beijar a mão dos EUA, na embaixada do Brasil, em março de 2019. Lá, ele assegurou que o governo terá a missão de “desconstruir” e “desfazer muita coisa”. Vai indo bem, está destruindo a aposentadoria, a rede de proteção social, a Amazônia, a vida indígena, e por aí vai.
Aqui não é o lugar de deslindar melhor esse projeto alucinado e fascista, realizado com afinco e enorme eficiência. É preciso prestar atenção ao método que esse projeto utiliza, talvez intuitivamente, talvez bem orientado por John Bolton e sua camarilha.
O escritor italiano Umberto Eco (1932- 2016) nos avisava: “Para um Ur-Fascista não há luta pela vida, mas a vida é vivida pela luta, Mussolini é dono da frase mais sintética sobre isso: ‘Somos fortes porque não temos amigos’”. O prefixo “ur” refere -se àquilo que é primordial ou essencial.
Governar, para Bolsonaro, é enfrentar inimigos, quando estes não existem ele os inventa, como o “kit gay”. Repare que falo inimigos, pois o fascismo não tem adversários, tem inimigos e o que promove é a mera destruição do inimigo, como Hitler contra os judeus. Bolsonaro chegou a declarar, com a elegância que é a sua marca: “Vamos acabar com o cocô, que são os corruptos e os comunistas”.
Não se pode acusar Bolsonaro de incoerente, as loucuras dele são compartilhadas fielmente por quase todo ministério.
O inimigo de Bolsonaro é o Brasil
Não discordarei se você concluir que o inimigo eleito por Bolsonaro, aliado a Trump e iluminado por Olavo de Carvalho, é o Brasil. Bolsonaro conta ainda com apoio interno para essa tarefa. Destruição é a palavra mais ouvida e temida do governo atual: destruir a Previdência, as Universidades, as empresas estatais.
Além da força bruta, que Bolsonaro usa sempre que consegue, há outros métodos de governo, leia-se, de eliminar os inimigos. O sociólogo Carlos Serra se utiliza de um verbo angolano, ‘confusionar’, provocar confusão no adversário, e elenca mandamentos para isso, sendo os preferidos de Bolsonaro:
Diabolização “Jair Bolsonaro afirmou, durante um evento evangélico, que a “ideologia de gênero” é “coisa do capeta”, o PT, a esquerda, são coisas do demônio, e devem ser exorcizadas. Note-se que todos Rede Globo, Folha de SP, MEC antes de serem destruídos, todos são comunistas, portanto, todos guerreiros do demônio, que devem ser destruídos. Como candidato, Bolsonaro afirmou querer abolir Paulo Freire do MEC com lança chamas”. A demonização encerra o inimigo em uma vala comum, o inferno, onde qualquer coisa que ele fizer será uma estratégia insidiosa para capturar nossa alma. Nenhum diálogo com ele faz sentido.
Ironia Bolsonaro: ‘Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida’. A ironia, pesada e chula, quando usada contra um inimigo, destrói a capacidade de enfrentamento, de crítica, de contestação.
Complô Aqui a função é dupla, Bolsnaro inventa complôs e depois os combate ferrenhamente, como as organizações comunistas que dominam as Universidades (sic) e organiza complôs contra a sociedade organizada.
Provocação Carlos Serra, com razão, considera a provocação o mandamento que aglutina todos os outros, uma espécie de síntese de todos. Bolsonaro provoca a tudo e a todos, inclusive figuras tidas como aliados, como Sérgio Moro “vai fazer troca-troca”. Procure, será difícil você encontrar uma fala de Bolsonaro no Twitter que não implique, direta ou indiretamente, uma provocação.
Confusionar o inimigo
O efeito de tudo é o de confusionar os inimigos, ou seja, todos nós. Qual o efeito da confusão que Bolsonaro provoca?
Já se viu que Bolsonaro governa como quem guerreia e que o inimigo somos todos nós. Na guerra, a principal estratégia consiste em confundir esse inimigo. Se você souber o próximo passo do contendor, você pode reagir, contra-atacar ou no mínimo se defender. Quando o inimigo conseguir confusionar e lhe deixar sem saber de nada sobre os próximos passos, você perdeu. A ausência de lógica e de racionalidade é uma estratégia de guerra, que até agora tem sido vitoriosa.
Se você apertar o botão, o elevador vem. Você aprendeu que, para trazer o elevador você precisa apertar o botão. Agora, imagine que o elevador não venha se você apertar o botão, você também aprende isso, o que não deve fazer para que o elevador venha. Você pega o biscoito e leva um tapa. Aprende a não pegar o biscoito para evitar o tapa. Se você levar o tapa porque não pega o biscoito, outra vez você aprende a evitar o tapa, você pega o biscoito.
Mas você pode aprender ainda outra coisa; imagine que você aperta o botão ou pega a bolacha e o elevador ou o tapa, venha algumas vezes e não venha outras. Idem, você não aperta o botão e não pega biscoito e às vezes o elevador ou o tapa vem ou não, você aprende. Aprende que nada do que você faça ou não faça lhe traz algum resultado previsível. Você aprende que não adianta fazer nada para controlar as respostas do seu meio. Você está desamparado. Desamparo aprendido.
Evitando choques
O psicólogo estadunidense Martin Seligman estudou isso há meio século. Um cão recebia choques e tinha ao alcance uma alavanca para apertar e evitar o castigo. O seu par recebia os mesmos choques, mas não tinha alavanca para os evitar. Depois, os dois cães iam para uma situação na qual bastava saltar para o outro lado da gaiola em que haviam sido colocados para evitar o choque assim que ouvissem a campainha. Dessa forma, quem conseguia evitar os choques antes rapidamente aprendia a se livrar deles. No entanto, aquele que recebera choques inevitáveis, abaixava, gania, mas não conseguia evitá-los. O fenômeno é análogo à depressão, o desamparo aprendido. O mundo ensinou que não adianta fazer nada para evitar o sofrimento ou conquistar o prazer, e aprendemos a não fazer nada, a não agir ou reagir, sendo levado à depressão. Isso dói, isso provoca sofrimento, sofrimento emocional.
O nosso mundo não é composto apenas de botões e biscoitos. A maioria das coisas que vivemos e enfrentamos tem origem e repercussão social. São situações que demandam um controle social, e que podem produzir a percepção de que nada do que fizermos pode alterar o quadro, somos vítimas do desamparo também em nível coletivo.
Um garoto que recebe castigos e afagos sem poder perceber o que fez para que um ou outro ocorra, é um forte candidato ao desamparo aprendido, um fenômeno psicológico análogo à depressão.
Uma tristeza profunda, sem fim, associada a sentimentos de dor, amargura, desencanto, desesperança, baixa autoestima e culpa, alguns sinais de depressão. Parece familiar?
Desesperança e inação
Com a honrosa exceção dos estudantes, UNE e UBES, e dos 25% que ainda aprovam as sandices de Bolsonaro, o resto do país sofre de desesperança, sente-se incapaz de fazer algo e não faz nada. Claro que existem razões fortes advindas da má organização das forças progressistas ou ainda na falta crônica de um programa político, quer seja de enfrentamento, quer seja de alternativas de poder. Mas também há um estado psicológico de desamparo, um estado psicológico normalmente associado à ansiedade.
O psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook, relatado por Eliane Brum, no jornal El País: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila”. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil.
A reversão do quadro
Os brasileiros estão doentes de Brasil, depressão e ansiedade que nos atingem como epidemia, cotidiano que nos entristece, com um dia a dia de absurdos vomitados pelo presidente da República.
Haverá reversão, a menos que as Universidades já tenham sido eliminadas, a Amazônia tenha se tornado um deserto, os índios eliminados por garimpeiros, os velhinhos já tenham morrido trabalhando, ou por receber 400 reais por mês e o povo armado esteja se matando. A menos que não haja mais Brasil.
O Brasil sofre de desamparo e aprendeu que nada pode ser feito. Aprendeu a sofrer calado com todas as artimanhas usadas para nós confusionar. Até agora, Bolsonaro e asseclas lograram o maior objetivo: destruir o Brasil. Para isso, instalar a ausência de uma resposta da sociedade aos descalabros, como os cães de Seligman, aprendemos a não reagir.
A ausência de resposta das ruas aos descalabros, o jogo de cabra-cega que assola a oposição e o silêncio constrangedor da cidadania não pode ser explicado apenas pelo desamparo aprendido. Mas essa trama joga o papel na situação que estamos vivendo. Vale repetir, aprendemos todos que não há nada a fazer, estamos todos acabrunhados, tristes, vendo o mundo desabar, com a cabeça enterrada no chão, à espera do pior. “A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão” Outra vez Chico.
Os cães do experimento de Seligman, só venciam a letargia quando eram puxados fortemente pela coleira, obrigados a enfrentar o desamparo. De quem, de onde virá o ato de força que nos obrigará a reagir? De nós mesmos?
De onde quer que venha, que não demore, ainda é tempo de salvar o país. Do brasileiro expulsar o sentimento de abandono a si mesmo, recuperar a dignidade que só se conquista com a cabeça erguida.