David Deccache
Carolina Resende
Crise fiscal ou funcional? Os aspectos políticos do pleno emprego
O Brasil, principalmente a partir de 2015, vive uma das maiores crises econômicas, sociais e políticas da história. Depois de atravessar entre 2014 e 2016 a segunda maior recessão já contabilizada, a economia brasileira assiste agora a mais lenta recuperação de que se tem registro. O efeito concreto da crise se manifesta, principalmente, na elevada taxa de desemprego. De acordo com dados da Pnad Contínua, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pessoas desempregadas mais do que dobrou em um curtíssimo intervalo de tempo.
Se no início de 2015 havia 6,76 milhões de desempregados, no fim de 2016 esse número já havia chegado aos 12,3 milhões. Atualmente, conforme dados do primeiro trimestre de 2019, a cifra alcançou 13,4 milhões. Já a taxa de subutilização da força de trabalho atingiu 25%, o maior nível da série histórica iniciada em 2012, ou seja, 28,3 milhões de brasileiros estão desempregados, desalentados ou trabalham menos de 40 horas por semana. Trata-se, portanto, de um absoluto desastre social.
Se a gravidade da crise é ponto pacífico no debate, o mesmo não se pode dizer dos diagnósticos e das medidas necessárias para o enfrentamento.
Divergências sobre a crise
Há grande divergência tanto sobre as causas da crise, quanto acerca das possíveis soluções para a retomada de níveis adequados de emprego e renda. Enquanto os campos liberal e conservador concentram o diagnóstico da crise no desequilíbrio fiscal, recomendando como solução uma agenda de contração dos gastos públicos, centrada especialmente na redução de R$ 1.236,5 trilhão dos benefícios previdenciários, assistenciais e do abono salarial por intermédio da aprovação da PEC 06/20192 , há um amplo setor progressista, deliberadamente ignorado pela grande mídia, que diverge fortemente tanto do diagnóstico quanto das soluções propostas pelos liberais. Oferecem como alternativa à agenda de retrocessos a ampliação dos gastos sociais e dos investimentos públicos, em paralelo a uma reforma tributária distributiva.
O diagnóstico convencional, predominante nos círculos conservadores e liberais, e que exerce alguma influência até mesmo no campo “progressista”, é de que a crise, em suas diversas formas de manifestação, sejam elas econômicas, políticas ou sociais, decorre essencialmente de um grave desequilíbrio fiscal herdado do primeiro governo Dilma. Visões oposta vador costumam dar ênfase aos cortes de gastos, os mais progressistas preferem um ajuste fiscal focalizado, prioritariamente, na elevação das receitas públicas por intermédio da majoração da carga tributária incidente sobre os mais ricos
O núcleo duro do diagnóstico convencional é a correlação entre a desaceleração econômica e a deterioração de uma série de indicadores fiscais, principalmente os resultados primários, persistentemente deficitários, e a trajetória ascendente da relação entre a dívida pública interna e o PIB.
O problema desse diagnóstico é que se trata de uma argumentação meramente tautológica, que confunde causa com consequência. Foi justamente após a imposição do programa de austeridade que a dívida pública explode: de 2003 até 2014, a dívida líquida em relação ao PIB foi reduzida de 60,26% para 32,59%. Contudo, em 2015, ano de forte ajuste fiscal, que a dívida pública líquida sobe rapidamente até chegar a 54,13% do PIB3 em dezembro de 2018.
Contração e desaceleração
A brusca contração dos investimentos públicos teve impacto extremamente negativo no crescimento econômico e na geração de empregos.
Ainda vale destacar que nos quatro anos de ajuste fiscal (2015-2018) acumulamos os maiores déficits primários da nossa história recente.
O resultado possui uma explicação razoavelmente simples: em meio a uma crise crônica que conjuga desemprego elevadíssimo com queda brutal dos salários, há uma forte e óbvia queda da demanda das famílias por bens e serviços. Logo, as empresas acumulam estoques, reduzem investimentos e ampliam demissões.
Se o Estado também cortar os gastos que seriam, por definição, direcionados às famílias e empresas, a economia entra em espiral recessiva. Com todos os agentes cortando gastos ao mesmo tempo, inclusive o Estado, não há caminho possível para o crescimento. Fora isso, com a queda na renda das empresas e famílias, a arrecadação do Estado também despenca.
A pergunta que resta é: se a política de austeridade fiscal deteriora as contas públicas, agravando o problema que supostamente pretende resolver, qual seria a real razão para a insistência em algo tão contraproducente? A explicação está na velha economia política e é a base do diagnóstico que aceitamos neste texto.
Desemprego como estratégia
O primeiro efeito da austeridade é o aumento do desemprego. E o desemprego muda a correlação de forças entre trabalhadores e patrões: o medo de demissões é “disciplinador”. Dada a mudança na correlação de forças por conta do desemprego, os trabalhadores passam a aceitar salários mais baixos e piores condições laborais. Por conta disso, os empresários, que só enxergam os salários como custo, consideram este rebaixamento a solução para a retomada da lucratividade em um momento de crise. Contudo, se os salários, do ponto de vista do capitalista individual, são apenas um custo, no agregado se tornam um componente fundamental da demanda para garantir a própria realização da produção capitalista. (Marx 2013, Kalecki 1943 e Lerner 1951).
A segunda função da austeridade é esmagar a capacidade do Estado em manter o funcionamento básico por meio da imposição de uma série de restrições orçamentárias, abrindo, dessa forma, o caminho para o setor privado ampliar a participação em diferentes esferas de acumulação antes ocupadas pelo setor público.
Austeridade e reformas
Dois casos recentes elucidam bem esse conflito de interesses e a “funcionalidade” da austeridade fiscal: quando o ministro da educação do governo Bolsonaro anunciou um grande corte de recursos em universidades federais, as ações das três maiores redes de ensino privado do país, Kroton Educacional, Estácio Participações e a Ser Educacional, dispararam imediatamente. O segundo exemplo é a pressão do setor financeiro pela aprovação de uma ampla reforma da Previdência que força uma enorme massa de trabalhadores, desassistidos pelo Estado, a contratarem fundos privados.
O diagnóstico é particularmente aderente ao caso do Brasil, que manteve baixos níveis de desemprego e elevação dos salários reais acima da produtividade por um longo período. A não elevação da produtividade se deu por conta da insuficiência de políticas industriais tecnológicas, que somadas à manutenção da abertura comercial e à liberalização financeira, não favoreceu a sofisticação estrutural, situação que se aprofunda a partir da descontinuidade da elevação dos gastos com investimentos públicos no primeiro governo Dilma. Essa combinação, ao elevar a parcela dos salários na renda, reduziu as margens de lucros das empresas e acirrou o conflito distributivo, gerando uma forte reação dos capitalistas à política econômica vigente (Gráfico 1).
Distribuição Funcional da Renda no Brasil, 2000-2015
Em 2015, o governo Dilma cedeu às pressões do capital e alterou o regime da política econômica visando à resolução do conflito distributivo a favor do capital. Com a grande contração dos gastos públicos, o desemprego subiu fortemente e os salários despencaram (Gráfico 2).
Os aspectos políticos do pleno emprego: taxa de desocupação x rendimento médio real habitual
Alteração de rota
A alteração de rota em direção à austeridade fiscal plena foi conduzida pelo ministro da Fazenda Joaquim Levy, detentor de um título de PDH em Chicago, berço do neoliberalismo, e ex-economista-chefe da gestora de investimentos Bradesco Asset Management. No dia 5 de julho de 2015, poucos meses após o início do programa de austeridade fiscal conduzido por Levy, Samuel Pessoa, um prestigiado economista nos círculos liberais, escreveu, em um surto de sinceridade, uma coluna na Folha de S. Paulo intitulada “Luzes no fim do túnel”, que corrobora nossa descrição sobre a real função do programa de ajuste fiscal:
Há duas semanas o IBGE divulgou a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) referente a maio. (…) A boa notícia foi a queda de 5% do rendimento médio real. Aqui aparece o lado negro da economia. Queda de salário real é boa notícia! O motivo é que a combinação entre queda de salário real e elevação da taxa de desemprego sugere que o mercado de trabalho está sendo mais flexível do que se imaginava há alguns meses.
O desemprego e a redução dos salários, ao contrário do previsto por Samuel Pessoa e outros tantos liberais, não foram a esperada luz no fim do túnel, mas sim o início da tempestade perfeita. Com empresas e famílias endividadas, em paralelo à demanda em queda, o resultado foi o aprofundamento da crise econômica e, de forma contraproducente, a expansão de déficits fiscais.
O diagnóstico do descontrole fiscal, além de ter sido útil para alterar a correlação de forças capital x trabalho e reduzir o espaço fiscal dos gastos socais e investimentos públicos, também cumpriu, no caso específico do Brasil, uma função reacionária de caráter político e jurídico extremamente relevantes para o aprofundamento da agenda neoliberal. Em 2016, o diagnóstico do descontrole fiscal e a criminalização das políticas contracíclicas foram centrais para a sustentação jurídica do impeachment de Dilma Rousseff.
Por fim, a mesma argumentação foi o elemento retórico, travestido de tecnicismo, que embasou a aprovação do novo regime fiscal, a Emenda Constitucional nº 95, mais conhecida como o teto dos gastos e que iremos detalhar a seguir.
Caos fabricado
A ideia de caos político, econômico e social criou o cenário perfeito para imobilizar a reação popular a uma série de retrocessos, o mais grave deles a reforma trabalhista aprovada em 2017. Ela alterou mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e criou modalidades de trabalho como o regime de sobreaviso e o trabalho intermitente.
- Reforma tributária solidária e a revogação da EC/95
Poucos meses após o golpe parlamentar que destituiu a ex-presidente Dilma Rousseff, o governo Michel Temer impôs um novo regime fiscal que entrou em vigor a partir da aprovação da Emenda Constitucional n° 95. Esta estabeleceu que as despesas primárias do governo seriam corrigidas, anualmente, de acordo com a inflação dos últimos 12 meses. Assim, em 2019, por exemplo, a inflação usada foi a medida entre julho de 2017 e junho de 2018. Dessa forma, mesmo havendo crescimento econômico e populacional, os gastos públicos permanecerão estáticos.
Haverá redução, ano a ano, do orçamento público em proporção ao PIB, queda essa que será potencializada pelo crescimento demográfico. É pior do que congelamento:
trata-se de um amplo projeto de redução do tamanho do Estado e da constitucionalização da ideologia neoliberal de mercantilização de todas as esferas da vida. E isso é comprovado pelos dados: com a vigência do teto dos gastos, a participação do Estado na economia passará de 19,6% do PIB em 2015, para 15,8% em 2026 e 12% em 2036 (DWECK; ROSSI, 2016).
A bancada de deputados federais do PSOL elaborou uma PEC para revogar o teto dos gastos (EC 95/2016) e estabelecer um piso para a execução de investimentos públicos, que caíram de 4,06% do PIB em 2013 para 1,85% em 2017, nível mais baixo já registrado no país.
Carga fiscal distributiva
Outra agenda sistematicamente marginalizada pelo Congresso e pelos economistas liberais é a elaboração de uma ampla reforma tributária progressiva. A nossa estrutura fiscal, além de complexa, é perversa com os mais pobres e benevolente com os mais ricos.
No Brasil, a tributação dos bens e serviços foge completamente do padrão internacional por dois motivos:
Primeiro porque na maior parte dos países essa modalidade de tributação é feita por meio de um único imposto sobre o valor adicionado (IVA). Nós temos cinco tributos sobre bens e serviços três federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS) o que torna a carga tributária extremamente complexa e pouco transparente.
O segundo motivo tem a ver com regressividade. Quase metade da nossa arrecadação provém de tributos que incidem sobre bens e serviços, com baixa tributação sobre renda e patrimônio. Já nos países mais ricos, a tributação sobre bens e serviços corresponde a cerca de 1/3 da arrecadação, conforme dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Não por acaso, existe um amplo sentimento social de que os cidadãos pagam impostos de maneira excessiva e um alto grau de intolerância a propostas de aumento da carga tributária.
Que reforma queremos?
Precisamos de uma reforma que aumente a arrecadação em bases progressivas (renda, patrimônio e transações financeiras) e a reduza em bases regressivas (consumo e produção). Esse simples realinhamento tem o potencial de:
- a) Taxar proporcionalmente mais os cidadãos ricos.
- b) Aliviar o peso da tributação sobre os mais pobres e a classe média.
- c) Reduzir a carga tributária sobre as empresas, transferindo parte do ônus para a pessoa física do sócio (hoje isento de contribuição).
- d) Estimular o setor produtivo, promovendo a competitividade sem fragilizar ainda mais as relações trabalhistas e a massa salarial.
- e) Redistribuir renda.
A PEC 45, em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe a necessária fusão de cinco tributos que incidem sobre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A medida, além da simplificação, dará maior transparência à regressividade tributária. Caso aprovada a PEC 45, teremos o maior IBS do mundo, com alíquota próxima a 27%. Por isso, a bancada do PSOL propôs uma emenda para corrigir essa injustiça.
Se a emenda for aprovada, a redução do IBS, em valores absolutos, será de R$ 159,4 bilhões, o que significa queda da alíquota total de 27% para 21,3%. A redução será alcançada pelo ajuste da tributação incidente sobre os muito ricos em cinco eixos: taxação de lucros e dividendos e fim da isenção de juros sobre capital próprio; regulamentação do imposto sobre grandes fortunas; majoração da alíquota máxima do imposto sobre heranças; cobrança de IPVA para embarcações e aeronaves; e criação da contribuição social sobre altas rendas da pessoa física (CSPF). Os ajustes propostos fazem com que a renda disponível de um trabalhador que recebe um salário mínimo aumente em 5,7%.