Francisca Adalgisa da Silva
No Brasil, existe um flagrante desigualdade regional quando nos referimos ao saneamento. Os dados mostram que a desigualdade no acesso ao saneamento básico está relacionada com condições de moradia, renda, nível de escolaridade da população, desenvolvimento local e gestão da prestação de serviços. Há também diferenças macrorregionais nos índices de investimento e no desenvolvimento do setor, que dizem respeito à organização do Estado e aos modelos de planejamento adotados. Historicamente, os investimentos sofrem expressivas oscilações e descontinuidades. Um exemplo está na década de 1980, que expressou o grande endividamento dos anos 1970. Na época, a expansão da economia brasileira procurava seguir as transformações do processo produtivo internacional, como o acelerado avanço tecnológico, a fragmentação produtiva ao redor do globo, os novos rumos da economia mundial e a abertura de novos mercados capitalistas, que propiciaram novas relações entre mercado e Estado.
Intervenção do Estado
Nessa lógica, o Estado realizou forte intervenção nos anos 1970, sobretudo em pontos estratégicos para o desenvolvimento, como o saneamento básico nas cidades que se expandiam graças à migração interna.
Como resposta à demanda por sanea mento, em 1971 o regime militar criou o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), sob a tutela do Banco Nacional da Habitação (BNH), e compeliu os municípios a concederem os serviços de água e esgoto às recém-criadas Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESB). Estas uti – lizaram-se dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para expansão de sistemas de água e esgotos.
Nos anos 1990, com a indução à desnacionalização da economia, o processo de privatização do Estado e das empresas e o esvaziamento dos projetos sociais evidenciam os modelos de mercado de investimentos. Foram afetados todos os campos da atividade estatal, inclusive o saneamento.
Após o período Planasa, por uma década o setor de saneamento foi abandonado, deixando no esquecimento o mecanismo nos anos 1990, com a indução à desnacionalização da economia, o processo de privatização do Estado e das empresas e o esvaziamento dos projetos sociais evidenciam os modelos de mercado de investimentos. Foram afetados todos os campos da atividade estatal, inclusive o saneamento articulado de financiamento, o FGTS. No período da decadência, iniciado em meados da década de 1980, as iniciativas governamentais de planejamento, instituição de marcos legais e, sobretudo, o financiamento do setor, mostraram-se pontuais e desarticuladas, afetando sobremaneira a expansão dos serviços. Ampliaram-se a insuficiência e a desigualdade nas escalas regional e local. Esse vazio administrativo e de gestão somente foi alterado com a Lei nº 11.445/07, conhecida como a Lei do Saneamento e que instituiu o marco legal.
Controle social
Conforme o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab, 2019), o setor de saneamento básico convive, desde as origens, com dificuldades para o estabelecimento de mecanismos tanto de acesso e participação quanto de controle social. Isso se dá, em boa parte, por interesses corporativos e pela supervalorização da dimensão técnica cujo jargão, por si só, é excludente. Há também desigualdades sociais e regionais, desinteresse social pelo assunto, falta de uma cultura solidamente estabelecida de participação social somada ao fato de que os mecanismos estabelecidos para tal ainda são relativamente recentes e estão sendo internalizados em ritmos diferenciados local e regionalmente.
O déficit do acesso aos serviços de saneamento segue o padrão verificado em outras políticas sociais no Brasil. O relatório “País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras” aponta que entre 2016 e 2017 a redução da desigualdade de renda no Brasil foi interrompida pela primeira vez nos últimos 15 anos, com reflexos em todas as políticas socais, incluindo o saneamento básico. Essas desigualdades estão presentes em outras áreas da sociedade, uma vez que o Brasil ocupa a 9º posição de país mais desigual no ranking global de desigualdade de renda. Aqui, 1% da população detém quase 30% da renda do país, segundo a “Pesquisa Desigualdade Mundial 2018”. Essa é uma estrutura social que concentra renda e produz uma sociedade que não tem acesso a direitos considerados fundamentais, como a água, a coleta e o tratamento de esgotos.
Meta não atingida
Apesar dos avanços registrados desde a edição da Lei do Saneamento, o Brasil não deverá atingir a universalização do serviço em 2033, meta estabelecida pelo Plansab. Dados referentes a 2016 e divulgados em 2018, extraídos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apontam que, em âmbito nacional, 83,3% da população era abastecida com água potável, sinalizando uma grande margem da população sem atendimento, ou seja, 35 milhões de brasileiros.
Segundo o SNIS, a região Sudeste apresenta os melhores índices de atendimento com rede de água: 91,3% da população. Quanto aos índices e tratamento de esgotos, a região Centro-oeste se destaca com 92,6% de coleta dos esgotos produzidos e tratamento de 52% do total coletado.
Essas desigualdades entre unidades federativas também são identificadas dentro de cada Estado, pois existem municípios ou áreas com diferenças em indicadores de renda e acesso a serviços públicos. As desigualdades sociais revelam a vulnerabilidade da população a um conjunto de enfermidades relacionadas à deficiência ou à falta de saneamento básico.
Nordeste prejudicado
As regiões que apresentam menores índices em atendimento de abastecimento de água são a Norte e a Nordeste, respectivamente, 55,4% e 73,6% com atendimento de coleta de esgotos pública de 10,5% e 26,8%, respectivamente.
Segundo o Plansab, a partir de informações do PNAD/IBGE, a forma mais utilizada para esgotamento é a rede pública de esgotos, que atende a 60,2% dos domicílios. A segunda forma mais praticada é a utilização de fossa séptica em 15,6% dos domicílios. Restam, então, 17,9% dos domicílios brasileiros que não possuem solução adequada de esgotamento sanitário, o que corresponde a 12,4 milhões de domicílios, ou seja, 37 milhões de brasileiros destinando os esgotos para fossas rudimentares, valas, rios, lagos, mar ou outros destinos. Portanto, quando os defensores da privatização afirmam que 100 milhões de brasileiros não têm serviços adequados de esgotos. Há uma clara distorção de dados em desfavor da atual estrutura de prestação de serviços para justificar a total destruição mediante à privatização generalizada.
Em 2017, o Sudeste apresentou o maior Apesar dos avanços registrados desde a edição da Lei do Saneamento, o Brasil não deverá atingir à universalização do serviço em 2033, meta estabelecida pelo Plansab percentual de domicílios atendidos com rede de esgoto, 89,0%, e o Norte, o maior percentual de domicílios atendidos com fossa séptica, 41,0%, condição que não é inadequado para a região. Trata-se de uma solução unifamiliar compatível em territórios com baixa densidade demográfica e pequena quantidade de núcleos urbanos concentrados.
Entretanto, a evolução experimentada pelo setor de saneamento foi absolutamente exitosa desde a promulgação da Lei do Saneamento em 2007, que permitiu o arcabouço legal para segurança de financiamentos pelo FGTS e pelo Orçamento Geral da União. Os investimentos realizados entre 2010 e 2017 possibilitaram saltos quantitativos expressivos no atendimento em apenas sete anos: (i) os domicílios urbanos atendidos com esgotamento sanitário, segundo o SNIS, passaram de 46,7% para 60,2%, em 2017; (ii) o abastecimento de água urbano no Nordeste passou de 58,9% para 70%, em 2017 e nas áreas rurais de 45,2% para 57,5%; (iii) no Sul, o esgotamento sanitário saltou de 36,1% para 50,6%, em 2017; (iv) o tratamento de esgoto gerado, na média geral do país evoluiu de 46,7%, em 2010, para 60,2% em 2017.
Privatização é solução? Manaus responde
Entre 1913 e 1969, a prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus foi realizada pelo próprio Município. De 1969 até 2000, a Companhia de Saneamento do Estado do Amazonas (Cosama), criada pelo Planasa, foi responsável por essa operação.
Segundo Rocha (2019), a partir da década de 1960 se desencadeou intenso processo de ocupação e ampliação das periferias de Manaus, que serviam de moradia para os milhares de trabalhadores atraídos pela possiblidade de empregos nas empresas da Zona Franca. O forte crescimento populacional não foi acompanhado pelo desenvolvimento e planejamento da cidade, levando os trabalhadores a procurar moradia nas periferias e palafitas das zonas Norte e Leste.
Segundo o IBGE (Censo 2010) há 72.762 domicílios, o que corresponde a 25,89% da população de Manaus vivendo em assentamentos precários, exposta a doenças de veiculação hídrica (malária, dengue, diarreia, hepatite A e febre tifoide).
Em 2000, com o agravamento das condições de atendimento à população, o sistema de abastecimento de água e esgoto em Manaus foi privatizado em leilão na Bolsa de Valores de São Paulo. O estado do Ama – zonas vendeu a estatal Cosama e um contrato de concessão de Manaus tem prazo de 30 anos, prorrogável por mais 15 anos para o grupo francês Suez Lyonnaise des Eaux. O valor do negócio, R$ 193 milhões, foi muito abaixo do patrimônio estimado em quase R$ 500 milhões o que gerou grande repercussão nacional. Em Manaus, a nova empresa francesa adotou o nome de Águas do Amazonas, substituída posteriormente pela Manaus Ambiental, após quebra de contrato com a primeira concessionária.
Série de incertezas
O processo de privatização do setor de saneamento em Manaus trouxe à tona uma série de incertezas quanto à eficácia como meio de universalização dos serviços. Ao mesmo tempo revelou uma série de questões sociais. Houve redução dos índices de atendimento e uma representativa perda de qualidade de vida da população. Há condições incontornáveis à universalização sustentável dos serviços de água e esgoto, reforçando a permanência das desigualdades de acesso, atingindo os grupos mais vulneráveis, isto é, os pobres urbanos. Como afirmação desse cenário, basta observar que 90,93% da arrecadação da empresa concessionária, vêm do setor residencial, mesmo sendo a região largamente industrializada (ROCHA, 2019).
Outro discurso falacioso é o de que a privatização dos serviços públicos de saneamento acarreta redução de gastos públicos e ampliação da abrangência do acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário. Rocha (2019) mostra que, apenas no período entre 2000 e 2012, o Estado investiu mais de R$ 580 milhões no sistema de abastecimento, provenientes dos entes municipal, estadual e federal. A justificativa da privatização para aliviar as finanças públicas não tinha mais sentido, pois o Estado é o principal investidor no sistema.
Descumprimento de regras
Para o Ministério Público (MP–AM) a privatização “não cumpriu com as metas contratuais a partir dos primeiros anos da gestão e ainda foi premiada com repactuações e aditivos contratuais”. (ROCHA, 2019)
Os relatórios da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos do Estado do Amazonas (Asam), apontam que desde a assinatura do primeiro contrato, a maior parte das metas pactuadas não foi cumprida pela Águas do Amazonas. Foram celerados vários termos aditivos ao contrato original, mas, segundo a Arsam, há ausência de transparência sobre os serviços prestados e população atendida.
Para Rocha (2019), é possível afirmar que a privatização dos serviços de água e esgoto em Manaus não somente tem falhado em garantir a universalização do acesso à água potável em Manaus, como também tem contribuído para reproduzir uma cidade desigual e a contaminação das águas na região.
Na capital amazonense não existe coleta de esgoto na maior parte da cidade, sendo os resíduos lançados in natura nos igarapés, córregos e rios, levando à cidade a ocupar destaque entre os piores índices de atendimento do país. Apenas 10,2% da população têm serviço público de coleta de esgotos e perdem-se 44,2% da água potável produzida. Entretanto, tem-se ali a tarifa mais alta da região amazônica, R$ 5,31/m³, e a quarta tarifa mais elevada do Brasil.
O Brasil na contramão
Desde meados de 2018, a narrativa falaciosa do Governo Federal, apoiada por grandes corporações e entidades ligadas a esses grupos, tem se empenhado em convencer a sociedade que a situação atual do saneamento básico no país somente irá melhorar com privatização.
Esse discurso coloca o Brasil na contramão da tendência mundial pela reestatização de serviços públicos como ocorreu em Paris, Berlim, Atlanta, Johannesburg, Buenos Aires, Jacarta, Kuala Lumpur, Indianapolis, La Paz, Valladolid e Turim. O Governo Federal insiste em forçar a privatização dos serviços públicos de água e esgoto, moda dos anos 1990 que está ultrapassada por motivos como: (i) desempenho medíocre das empresas privadas; (ii) subinvestimento; (ii) aumento abusivo de preços e dos custos operacionais e; (iv) dificuldade em fiscalizar a empresa privada; (v) falta de transparência financeira; e (vi) má qualidade de serviço. A transformação da água em mercadoria implica favorecer a apropriação pelas classes mais abastadas da sociedade e classificar/desclassificar aqueles que não possuem dinheiro para pagar como subcidadãos (ROCHA, 2019).
Garantir o acesso à água de qualidade e aos serviços públicos de saneamento básico de forma universal e integral, com transparência nas ações e submetido ao controle social e, também, que o Saneamento Básico seja prioridade de Estado, com recursos garantidos de forma perene e permanente, inclusive com subsídios para a população de baixa-renda.