Andrea Penna
Silvio Tendler se tornou nacionalmente conhecido por ter dirigido o filme definitivo sobre o golpe de 1964. Lançado em plena ebulição do movimento pelas Diretas Já, em 1984, Jango lotou salas pelo país e é hoje disponibilizado gratuitamente no YouTube, como toda a obra do diretor. Com a maior parte dos personagens centrais da trama ainda vivos, Tendler realizou uma das obras capitais para o entendimento do nó histórico representado pela chegada dos militares ao poder.
Aos 69 anos e com uma carreira de mais de cinco décadas, Tendler construiu uma obra coerente, de alta qualidade e que não foge da polêmica. Em 2018, lançou Dedo na Ferida, documentário que trata “do fim do Estado de bem-estar social e da interrupção dos sonhos de uma vida melhor para todos”, em um cenário no qual a lógica homicida do capital financeiro inviabiliza qualquer alternativa de justiça social. Colecionador de mais de 60 prêmios, esse carioca inquieto concedeu a seguinte entrevista a Socialismo e Liberdade.
Entrevista
Silvio Tendler
Você sempre fez política no cinema? Eu gosto muito do cinema político que consegue alcançar um público amplo. Dedo na ferida veio dentro de uma série que estou fazendo ligada aos movimentos sociais. Fiz Privatizações, a distopia do capital (2014) e Dedo na ferida com o pessoal do Sindicato dos Engenheiros do Rio e da Fisenge (Federação Interestadual dos Sindicatos dos Engenheiros). Com outros movimentos sociais fiz O veneno está na mesa 1 (2011), O veneno está na mesa 2 (2014) e Agricultura tamanho família (2014). Tenho trabalhado em um cinema ligado às lutas sociais de forma mais direta
Como surgiu a ideia de fazer o Dedo na ferida? A ideia é discutir o problema da financerização da vida, em que acaba o capitalismo produtivo e nasce o capitalismo financeiro especulativo, que não produz nada. Ele faz uma transferência cotidiana de renda dos mais pobres para os mais ricos. Busco mostrar que com a vitória do pensamento único não existe o contraditório. Resolvi mostrar como o sistema financeiro prejudica o desenvolvimento humano, econômico e social.
E você faz isso por meio de uma narrativa dinâmica. Não adiantava fazer um filme-tese em que falasse só de economia. Era preciso mostrar as consequências da financerização no cotidiano das pessoas. Há entrevistas com economistas muito importantes, como Paulo Nogueira Batista, Guilherme Melo, Laura Carvalho Ladislau Dawbor, Yanis Varufakis (ex-ministro grego), Costa Gavras (cineasta) e outros. E aí eu peguei, como contraponto, o Anderson, um podólogo que trabalha todo dia em Copacabana e mora a quase 3 horas de distância, em Japeri, cidade com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado do Rio de Janeiro. E desse contraponto, nasce o Dedo na Ferida.
Como você vence a barreira da distribuição? Levei o Dedo na Ferida no Brasil inteiro. Foi lançado em cinema, ficou em cartaz sete semanas, o que é um recorde no país para esse tipo de filme. O mais importante é que está atingindo os mais variados públicos. Tenho conseguido passar para estudantes secundaristas (ensino médio), tanto no cinema como em escolas públicas e particulares, assim como em universidades.
Você participou da escola de cinema em Cuba. Como foi essa experiência? Nos anos 1980, fui admitido no Comitê dos Cineastas da America Latina, impulsionados pelo estado Cubano. Na época havia recursos. Ainda existia a URSS que apoiava muito Fidel Castro, incentivado por Gabriel Garcia Márquez, e resolveu fazer uma escola de cinema. O Comitê se transformou em Fundación del Nuevo Cine Latino-americano. Fundaram a Escola de Cinema, da qual faço parte. Ela tem um grande impacto na América Latina e criou espaço para muitos jovens que queriam fazer cinema, mas não tinham meios.
Como você está vendo o quadro da cultura hoje no Brasil e, particularmente, a situação do cinema? Nós estamos num momento político muito ruim no Brasil. O país está numa penúria total. Lula e Dilma deixaram um arcabouço de cultura montado, funcionando. Existe o espaço para a arte, mas não existe nas salas de cinema que foram moldadas pelo neo-liberalismo, pelo processo de globalitarismo dos anos 90. Mudaram-nas da rua para dentro dos shoppings, acabaram com as salas nas cidades do interior. Cidades que não têm shoppings dificilmente têm salas de cinema. O que prevalece hoje na exibição cinematográfica são os filmes de entretenimento. Não tenho nada contra o entretenimento. Sempre tivemos espaço para tal, também para o neo-realismo italiano, para a nouvelle vague francesa, para o cinema novo brasileiro. E esses espaços praticamente acabaram. Então, hoje, ver um filme político em sala de cinema é muito complicado. Está tudo dominado, loteado. Então temos de criar novas formas de comunicação.
O que o levou a disponibilizar sua obra gratuitamente na internet? Meus filmes são produções públicas. Viralizo-os pela internet. Já que não dão dinheiro, pelo menos são assistidos. Tenho conseguido público nesses esquemas alternativos. A obra artística só existe se houver um olhar que a admire, caso contrário não existe obra. Tenho conseguido isso, por meio dessas estratégias alternativas. Está funcionando muito bem.
Quem é Silvio Tendler
Licenciado em História pela Universidade de Paris VII, mestre em Cinema e História pela École des Hautes-Études/ Sorbonne, em Paris, e especializado em cinema documental aplicado às Ciências Sociais no Museu Guimet. Sílvio Tendler iniciou a trajetória no movimento cineclubista dos anos 1960. O primeiro filme foi um documentário sobre a Revolta da Chibata (1968). Tendler realizou mais de 50 filmes, entre curtas, médios e longas-metragens. Nos últimos anos, tem produzido películas junto ao movimento popular e disponibilizado trabalhos gratuitamente no YouTube.