Ana Cristina Carvalhaes
Keka Bagno
Numa visão de longo prazo, vivemos o fim do ciclo de 40 anos do petismo. O exercício do poder em conciliação com as classes dominantes daqui e do globo, com o apoio de um amplo setor popular, entrou em colapso. Foi por um combo de razões: a crise econômica mundial, a profundidade da assimilação do partido pelo regime toma-ládá-cá da Nova República e a assunção aberta, a partir da reeleição de Dilma, de medidas francamente neoliberais.
Na síntese quase perfeita do intelectual petista Lincoln Secco: “O PT montou seu governo sobre um pacto social-rentista que melhora a vida dos muito pobres e garante superlucros ao sistema financeiro”. A definição não é perfeita porque, justamente devido à aliança com bancos, agronegócio e empreiteiras (e a manutenção da política econômica liberal), as melhorias, baseadas em aumentos salariais e programas de redistribuição restrita de renda, não tiveram raízes suficientes nem para fazer retroceder a desigualdade, nem para proteger o PT da corrupção e do golpe de seus aliados até a véspera.
Quem paga o pato
Dilma e o PT caíram porque sua lógica de se associar a setores empresariais os feriu de morte por dentro (com a chaga da corrupção) e por fora (com a incorporação das bandeiras dos inimigos neoliberais). O PT no governo deixou de ser eficiente aos olhos do grande capital. Este, com peso e consciência, ajudou a mandar às ruas, entre 2014 e 2015, milhões de brasileiros capitaneados pela direita que soube extrair muito mais oxigênio do que o PT da grande revolta de 2013.
Assim se urdiu, com base de massas, o golpe institucional (parlamentar-judicial e midiático) que reverteu a correlação de forças e pelo qual paga hoje um preço muito salgado toda a classe trabalhadora brasileira. Dentro dela, de forma bárbara, paga mais do que nenhum outro setor a juventude negra e as mulheres negras, vítimas diretas do genocídio e mães, irmãs, parentes dos jovens alvos da “guerra às drogas” e do desprezo hipócrita da maioria pela escandalosa situação carcerária no país. Pagam também as mulheres, meninas estudantes, jovens e não tão jovens trabalhadoras, mães, chefes de família, especialmente as não brancas, cujos direitos à igualdade salarial, ao reconhecimento da dupla jornada no terreno previdenciário, às creches, à atenção específica de saúde, à liberdade sexual e ao aborto estão sob o facão dos ataques dos fundamentalistas no Legislativo (que não terminaram com a prisão de Cunha).
Pagam preço altíssimo gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, no país campeão de assassinatos homofóbicos e transfóbicos, no qual a elite política conservadora se dedica a privá-los de suas conquistas e do direito a viver e trabalhar dignamente, constituir famílias, adotar filhos, terem reconhecidas suas identidades e a se expressarem livremente sem reações violentas.
Nada disso quer dizer que o PT, o petismo e o lulismo estão mortos. Apesar de derrubados do poder, derrotados humilhantemente nas urnas em 2016 e desprovidos de parte das bases históricas na classe trabalhadora, PT, PCdoB e satélites continuam influentes em organizações de movimentos sociais, como CUT, MST, UNE, sindicatos, grêmios, DCEs, associações e grupos de mulheres. Por meio delas e de seus militantes, voltam-se agora à tarefa de ressuscitar o “salvador”, Lula, em 2018.
Como atuar em tempos de golpe e fim de ciclo
Neste contexto difícil, o PSOL desponta como possibilidade de alternativa partidária à esquerda, como hipótese de superação do projeto lulo-petista de conciliação de classes. Confirmou isto nos bons resultados eleitorais de 2016, apesar de o balanço ter sido amplamente favorável à direita.
O partido de que as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros necessitam hoje expressou-se eleitoralmente, mais do que em qualquer outro lugar, na campanha-mobilização de Marcelo Freixo e Luciana Boiteaux à prefeitura do Rio. Uma campanha que apaixonou uma nova militância e plantou sementes de um partido organizado por bairros, em regiões cada vez mais excluídas, além de unificar as forças contra o conservadorismo.
Se queremos, como partido, “sair na foto” do novo ciclo da esquerda e do movimento social brasileiro que recém começa, é preciso saber para onde queremos caminhar e como. Para disputar a consciência dos trabalhadores e oprimidos destruída pelos ao menos 15 anos de política petista precisamos ampliar nossa inserção nas camadas mais pauperizadas e nos setores mais atingidos pelo retrocesso conservador.
Em tempos também de resistência, de novas formas de ação e inusitados movimentos, o PSOL precisa crescer colado nas lutas antiajuste. E nelas saber ser unitário na constituição de frentes contra os planos neoliberais. Será cada vez mais imprescindível a mais ampla unidade de ação nas mobilizações, inclusive com as organizações controladas pelo ex-governismo, no enfrentamento às contrarreformas e à repressão de Temer, dos governos estaduais e prefeituras, e contra as propostas medievais dos fundamentalistas.
O ciclo que se encerra nos deixa a lição de que não há que perder nosso perfil nem “esquecer” de nenhum aliado histórico. Fazer unidade de ação não deve significar para o PSOL, nem nas lutas, nem no terreno eleitoral, deixar de ser anticapitalista, feminista, antirracista, defensor dos LGBTTs, indígenas e quilombolas, sempre independente de governos passados e atuais. Não temos e não têm os trabalhadores e oprimidos brasileiros nada a ganhar com uma política voltada a ressuscitar Lula em 2018. Nosso objetivo é a vitória das mobilizações e a derrota do governo e da direita.
Nesse caminho, é indispensável ter participação cada vez mais forte nas lutas de mulheres, LGBTTs, jovens, negras e negros em especial e sócio-ambientais. O levante das argentinas contra o feminicídio e das estadonidenses contra as ameaças de Trump reafirmam a centralidade da luta contra as opressões.
Mais que isso, é preciso refletir estas opções programáticas na estrutura partidária, enegrecendo nossas fileiras e tornando-as mais jovens, mais femininas, mais LGBT e anti-transfóbicas, mais ecológicas. Só assim elaboraremos e responderemos melhor à realidade.
Precisamos ser conscientes de que, como no poema do Machado espanhol, não temos antecedentes. Faremos o caminho ao andar. Este caminho poderá ser, se não repetirmos o PT, nossa contribuição ao erguimento de um novo socialismo neste século.