Maria Aparecida Freitas Sales
O modelo adotado pelo PT foi o de não enfrentamento, o de “esfriar” os conflitos os conflitos e apostar numa dinâmica em que as elites seguissem com seus interesses garantidos frente à não realização de reformas estruturais de interesses populares. Esse quadro aliado à crise econômica e ao fortalecimento da direita fez com que a escolha dos poderosos fosse a de não mais conciliar.
O golpe representou um ataque à frágil democracia brasileira, abrindo espaço para o aprofundamento da criminalização da luta e da pobreza. É a Casa Grande implementando uma agenda de retrocessos, que inclui a flexibilização das leis trabalhistas e o desmonte dos direitos sociais, o fortalecimento de uma pauta regressiva que ataca os direitos das mulheres, da população negra, dos indígenas e da comunidade LGBTT. Um projeto elitista, que aprofunda as desigualdades do patriarcado e racismo vinculados à divisão de classes.
O momento é de resistência e de lutas para barrar os retrocessos, apostando na ampla unidade entre as lutadoras e os lutadores. É também tempo de reflexões acerca dos rumos da esquerda e sua necessária reorganização. A crise da esquerda não está relacionada exclusivamente aos limites dos governos petistas, mas também à necessidade de superar a sua incapacidade de dialogar com os setores populares que ainda não estão organizados em espaços de militância. Essa dificuldade nos remete a duas questões estratégicas: um programa para as lutas e para a construção da revolução brasileira e um modelo organizativo que abarque a diversidade das lutas e seja radicalmente democrático.
Portanto, é fundamental que a esquerda reconheça a centralidade e o papel estratégico da luta contra o racismo e o patriarcado/machismo, compreendendo que não há hierarquia entre esses sistemas de exploração-dominação e a luta pela superação da sociedade de classes. O fato de o capitalismo brasileiro ter sido construído a partir de estruturas existentes anteriormente, escravismo e patriarcado, evidencia a necessidade de a esquerda realizar a luta de maneira imbricada. Mas é preciso que essa opção tenha uma existência concreta e não se encerre nos discursos.
O debate e a atualização do programa democrático-popular estão na ordem do dia e continua sendo o principal referencial com capacidade de orientar a construção de uma nova ordem social a partir de lutas por dentro e por fora desta ordem. A implementação das necessárias e urgentes reformas estruturais de interesse popular e o alargamento dos direitos e da democracia não se encerram nas vontades políticas de governos, mas acontecem com um amplo e radical processo de lutas populares. Um governo democrático-popular não é o fim da história, sua agenda de reformas radicais deve estar vinculada ao acúmulo de forças para o rompimento com a ordem capitalista e à construção da Revolução Brasileira.
A reorganização da esquerda não será feita por cima, como uma “dança das cadeiras” onde as siglas se modificam após debates que envolvam apenas as direções e dirigentes. Essa reorganização será gestada e experimentada nos enfrentamentos ao golpe e à retirada de direitos. Depende de novas sínteses e possibilidades de ações comuns que resultem em algo superior: com enraizamento popular e capacidade programática para responder a essa conjuntura. Experimentando a radicalização da democracia que tanto aparece em nossos debates, mas que muitas vezes está distante de nossas práticas. Necessariamente será uma experiência feminista, libertária e anti-racista, compartilhada e diversa. Radical e democrática.
Para viabilizar esse processo é fundamental que sejamos capazes de compreender a realidade brasileira, fazendo a leitura do que representou o ciclo dos governos petistas. Devemos superar dois extremos que inviabilizam o debate. De um lado, a visão acrítica do processo, que não reconhece os erros e, portanto, não os analisa. De outro, a visão moralista, que trata da complexidade desse processo apenas na chave da “traição de classe”. Quanto mais justa for a nossa análise, maior capacidade teremos para enfrentar o período e articular ações unitárias. A justeza da nossa análise também será responsável por pensar novas sínteses para o processo de reorganização da esquerda.
Vivemos um momento que nos cobra presença nas ruas, com força social, para barrar retrocessos. E temos o desafio de refletir e reorganizar nossos espaços de atuação com o objetivo de construir um programa estratégico, que seja popular e radicalmente democrático, e que alie nossos acertos históricos à ousadia da construção de um novo formato organizacional. Dessa forma, compartilhando as análises, as trajetórias e as lutas, poderemos acumular uma nova síntese que acumule para a superação do capitalismo, do patriarcado e do racismo. Contribuindo para a construção de uma sociedade socialista e libertária. Sigamos na luta!