Luciana Boiteaux
A análise da política nacional dos últimos anos no Brasil apresenta um novo elemento que merece ser analisado: a atuação de novos atores como o Poder Judiciário (e o STF) e o Ministério Público, os quais, na intitulada “cruzada contra a corrupção”, com atividade supostamente “neutra”, tiveram atuação destacada na determinação dos rumos da política brasileira, especialmente no apoio à guinada conservadora, a partir da midiatização do discurso anticorrupção. Tal movimento, além de proporcionar abertura para a retirada de direitos sociais, legitima o discurso repressivo e tem impactos sérios no sistema de justiça criminal.
Para além de anteriores escândalos com repercussão jurídica (Collor de Mello, “anões do Orçamento” e “mensalão”, dentre outros), a judicialização da política atingiu seu auge com a operação denominada Lava Jato, uma sofisticação de operações anteriores que ganhou repercussão internacional.
Considerada “a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro do Brasil”, tanto pelo montante de recursos envolvidos (bilhões de reais), acusadas de pagar propina a altos executivos da estatal e a outros agentes públicos, que atingiu de maneira arrasadora o PT, apesar do igual envolvimento de políticos de outros partidos, como o PMDB e o PP.
Destaque-se que 2014 foi também ano de eleição presidencial, tendo se Lava-Jato e a disputa presidencial não deve ser desprezada.
Apontamos aqui para a dimensão política dessa operação como um marco da judicialização da política brasileira. Para isso, devemos deixar de lado a retórica da “neutralidade” da Justiça, uma vez que tal atuação repressiva teve também como objetivo impactar o jogo político e atingir aqueles que ocupavam o poder. Para além de indícios de proximidade ideológica e partidária entre o juiz Moro e o PSDB, não resta dúvidas de que, reconhecendo-se a corrupção como sistêmica e estruturante do capitalismo, para além de suas nuances tupiniquins, chama a atenção sua lógica e forma de atuar, visando impactar a mídia e a política. De fato, o foco das investigações era o PT, sendo Lula o principal, por sua importância partidária e nacional, não obstante o esquema ter contado com a participação de políticos de vários outros partidos da base governistas, especialmente PP e PMDB.
Mais do que uma operação regular “contra a corrupção”, sua dimensão é midiática e simbólica (com forte apoio da mídia corporativa, especialmente da Rede Globo). É possível afirmar que, sem a Lava-Jato não teria havido o golpe de 2016 e Michel Temer possivelmente não estaria no poder hoje, com a inquestionável maioria parlamentar que lhe permite realizar profundas e radicais reformas estruturais contra os trabalhadores, em velocidade jamais vista.3 Temos que relacionar a economia política do golpe com a Lava-Jato.
Por um lado, temos a politização da atuação dos órgãos repressivos naquela operação, a crise política e econômica e o esgotamento da estratégia petista de conciliação de classes e, de outro, uma crise de representatividade sem precedentes, catapultada por uma exposição midiática amplíssima de uma estrutura corrupta sistêmica à brasileira que mobilizou a população, especialmente as classes médias em campanha moralista, que levou às ruas com bandeiras anticorrupção uma multidão de pessoas da direita e extrema-direita, mas especialmente “antipetistas”, em movimentos de massa que deram sustentabilidade ao impeachment.
E foi justamente o afastamento definitivo de Dilma no final de agosto de 2016, chancelado pelo STF e a chegada ao poder de Temer que permitiram a aceleração de amplas reformas estruturais à Constituição como resposta, ainda mais profundas do que as realizadas pelos governos petistas, a ponto de significar um rompimento com a ordem constitucional econômico-social de 1988.
Nesse cenário, a “crise” econômica e a construção do discurso das “pedaladas fiscais”, formalmente apontadas como razão para o impeachment de Dilma e vendidas com crime de responsabilidade, mas não tipificadas em nenhum dispositivo legal, foram o pano de fundo imediato para o golpe, ou melhor, foi o argumento jurídico criado que deu aparência de legalidade, pelo menos formal, ao impeachment.
No cenário da Lava-Jato nunca se identificou qualquer ato criminoso por parte da presidenta, ainda que o cenário simbólico anticorrupção, somado à crise, tenha sido responsável pela perda de popularidade do governo Dilma, cuja estrutura foi identificada como corrupta. Mesmo sem o envolvimento direto dela na Lava-Jato, Dilma e o PT sofreram fortemente seus reflexos, que pouco atingiram o PMDB de Temer e outros partidos da base e da oposição ao PT (vale lembrar que políticos de PSDB também foram citados em delações e outros esquemas de corrupção, como o de Furnas). Além disso, a narrativa midiática intencionalmente associou a corrupção ao PT, e à esquerda em geral, o que trazgrves consequências até hoje.
Uma vez no poder, em resposta à crise, Temer correu para aprovar a PEC 95, que limita os gastos públicos por vinte anos, cortando investimentos em políticas sociais. Além disso, a mesma base que dava sustentação ao governo PT, mais PSDB e DEM, estão empenhados em ampliar reformas, inclusive a da Previdência, que aprofundará, caso aprovada, a retirada de direitos sociais de trabalhadores, além do projeto que “flexibiliza” leis trabalhistas e favorece o empresariado. Isso, sem mencionar a reforma do Ensino Médio e a ameaça de pautas ultraconservadoras usadas como moeda de troca nas negociações políticas de sustentação de Temer.
Não há como se ignorar a economia política do golpe apoiado pela LavaJato, na disputa por um rumo diferente para o país. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot declarou, em 17.01.2017, que a “Operação Lava Jato é pró-mercado”. Na reportagem, ele informa que “(…) já mandou para a cadeia um punhado de executivos de grosso calibre, mas não é um ataque ao capitalismo”, e que “sem instrumentos normativos, nada teria sido obtido.”
Por instrumentos normativos, leia-se inovações jurídicas da Lava-Jato, tais como a condução coercitiva (usada com Lula), o uso abusivo da prisão preventiva e da mídia, instrumentalizados pela delação premiada como fonte de provas, e a ampliação do poder do Ministério Público nas acusações criminais diante da defesa. Estes são formatos autoritários que vêm sendo aceitos sem questionamentos a partir do discurso punitivo midiático da Lava-Jato. Há, aqui, um aperfeiçoamento de estratégias comumente utilizadas contra a população pobre e negra de antecipação da pena de prisão antes mesmo da condenação definitiva (o que contraria a Constituição) para os fins de “acabar com a corrupção no país”.
Fica aqui a reflexão. Sabemos que a corrupção não acabará com a Lava Jato e que os grandes empresários e a mídia hegemônica estão surfando na onda punitiva, pelo grande serviço que aquela operação está prestando ao próprio capital, que aplaude o “aperfeiçoamento” da moralidade pública brasileira e ao mesmo tempo permite a realização de amplo reajuste estrutural de reformas que irão ampliar o lucro das empresas e aumentar a desigualdade social.
A instrumentalização do discurso midiático-punitivo para fins de retrocesso social é a marca do Brasil de hoje. Ao mesmo tempo em que ninguém é contra o combate à corrupção, o fato é que a Lava-Jato deixará um legado punitivista e violador de garantias processuais-penais. Seus efeitos serão sentidos não só na política como também no cotidiano do sistema de justiça criminal, uma vez que os “instrumentos normativos” do espetáculo punitivo da Lav Jato, por violarem princípios liberais fundantes da Constituição de 88 irão afetar diretamente os tradicionais alvos do sistema punitivo seletivo, racista e desigual que habitam os nossos fétidos cárceres, e ainda abrirão palco para a absurda proposta de “Vinte medidas contra a Corrupção” que fortalece essa linha midiática repressiva e redutora de direitos, afetando diretamente os mais vulneráveis ao sistema. O que estamos vendo hoje é a redução de direitos e liberdades individuais diretamente conectada a um processo de redução ao mínimo de direitos sociais, ou seja, um retrocesso a antes de 1988, cujas consequências serão, caso esse processo não seja interrompido, a intensificação da criminalização de movimentos sociais e o aumento do sistema repressivo, insuflados e legitimados pela redução de garantias liberais aceitas como legítimas pelo discurso midiático de combate à corrupção.
Nesse momento de crise e desemprego, o desafio da nossa esquerda é compreender essa conjuntura e o funcionamento concreto do sistema de justiça criminal para defender o fim dos abusos policiais e judiciais e o respeito aos princípios constitucionais liberais de contenção do poder punitivo, necessários para garantir a resistência política e o avanço das pautas dos trabalhadores. O combate à corrupção por meio do sistema penal é eventual e pontual, utilizado pela burguesia para corrigir distorções e abusos desfuncionais ao capital, mas a repressão aos pobres e aos movimentos sociais é prática cotidiana, contra a qual precisamos nos opor defendendo a contenção do Estado punitivo.