Bia Barbosa
Talvez poucos momentos na história política recente do Brasil tenham deixado tão explícita a importância estratégica de uma mídia plural e diversa para a democracia do país. Da cobertura dos grandes meios de comunicação dos protestos de junho de 2013 até o tratamento mais do que cordial em relação às medidas da gestão Temer, passando por todo o processo de impeachment de Dilma Rousseff e as mobilizações que tomaram as ruas do país ao longo de 2016, a mídia brasileira confirmou a centralidade de seu papel político na definição dos rumos do país.
Mesmo com a explosão das redes sociais e a profusão de canais de comunicação no mundo online, a radiodifusão de massa foi, uma vez mais, essencial na legitimação de visões, na invisibilização de opiniões divergentes e na (de)formação da opinião pública. Mesmo com a explosão das redes sociais e a profusão de canais de comunicação no mundo online, a radiodifusão de massa foi, uma vez mais, essencial na legitimação de visões, na invisibilização de opiniões divergentes e na (de)formação da opinião pública.
A constatação de que a concentração dos meios de comunicação em poucos grupos comerciais familiares está na origem deste quadro não é novidade. Há cerca de três décadas o movimento pela democratização da mídia denuncia o processo de quase monopolização das comunicações no Brasil e cobra, de diferentes maneiras, mudanças no marco regulatório que permitiu que tal configuração do setor se consolidasse.
Essas mudanças não vieram, nem mesmo quando esteve à frente do governo federal alguém que compreendia a importância desta agenda. Faltou vontade política, coragem para enfrentar o poder dos grandes conglomerados e, também, pressão popular do lado de cá. E agora, José? Abandonamos essa bandeira? Por onde é possível avançar? Que brechas ainda estão abertas?
Não nos enganemos: não será de um parlamento que tem 40 deputados e senadores, na atual legislatura, como controladores diretos de emissoras de rádio e TV que virão as alternativas. Pelo contrário, foi este Congresso que acaba de ratificar a medida provisória, editada em setembro de 2016 por Michel Temer, que ataca sensivelmente o caráter público da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
O que a gestão Temer e os parlamentares de plantão perceberam rapidamente, entretanto, foi algo que a esquerda brasileira até hoje não foi capaz de entender: a comunicação pública pode, sim, fazer diferença na balança midiática do país. Ao ter como um de seus primeiros atos enquanto “presidente empossado” o desmonte da EBC e de seus veículos, Temer visava não o que a única empresa pública nacional de comunicação já conquistou e representa hoje; mas o que potencialmente poderia vir a ser.
Sim, porque, apesar do orçamento enxuto, dos entraves burocráticos e da falta de prioridade dada nas últimas gestões à comunicação pública, o projeto que vinha sendo desenvolvido pela EBC e seus veículos apontava para um caminho que poderia dar certo. Em 2015, por exemplo, a TV Brasil, foi a emissora que exibiu o maior número de longas-metragens nacionais, veiculando ao todo 120 filmes brasileiros, segundo a Ancine. A Globo, segunda colocada, exibiu 87 filmes e a TV Cultura (SP), 55. A TV Brasil também é o único canal da TV aberta com programação infantil, revertendo uma lógica imposta pelo mercado de que hoje, no Brasil, só podem assistir a programas infantis as famílias que tem dinheiro para pagar uma assinatura de TV.
É ali que o telespectador conta com uma faixa de programação sobre diversidade religiosa enquanto a televisão aberta é tomada de assalto por conteúdos exclusivamente católicos ou evangélicos, ou com um correspondente permanente no continente africano quando a imprensa tradicional sequer se importa com o que ocorre do nosso lado do Atlântico no hemisfério sul… Diariamente, mais de três mil veículos reproduzem, sem custos, os conteúdos de texto e foto produzidos pela Agência Brasil.
Todo este impacto não se mede com os cálculos tradicionais de audiência da mídia comercial. Mas é um embrião importante de um sistema público de comunicação que poderia começar a incomodar os pouco afeitos à diversidade e à pluralidade de ideias, opiniões e informações. Temer extinguiu assim o principal canal de diálogo da EBC com a população o Conselho Curador da empresa e entregou seu comando a um antigo aliado de Eduardo Cunha, o jornalista Laerte Rímoli, o novo presidente da EBC.
De lá pra cá, dezenas de profissionais foram demitidos, programas foram retirados da grade das emissoras, contratos foram cancelados, conteúdos foram removidos dos portais, matérias e reportagens produzidas pelos jornalistas não foram veiculadas e funcionários estão sendo perseguidos. Numa nota técnica produzida sobre a medida provisória que modificou a lei da EBC, o Ministério Público Federal afirmou que “a subordinação da empresa às diretrizes do governo” abre espaço para a prática da “censura de natureza política, ideológica e artística”.
O próprio Conselho de Comunicação Social (CCS) do Congresso, órgão auxiliar do parlamento, emitiu parecer afirmando que a MP levou a “EBC à condição de mero aparelho governamental, deixando cada vez mais distante o projeto de uma comunicação pública autônoma e eficiente.”
A hora, então, é de resgatar o projeto
Não é tarefa simples, mas a conjuntura nos obriga a olhar com maior atenção para os veículos do chamado campo público. Para se ter uma ideia, em torno da EBC vinha se constituindo a Rede Nacional de Comunicação Pública, formada por centenas de emissoras educativas e culturais, universitárias, comunitárias, legislativas e judiciárias em cerca de vinte estados. É claro que a rede será já está sendo impactada pela brusca intervenção de Temer na EBC. Mas aí estamos falando de uma quantidade significativa de canais de rádio e televisão que não estão submetidos à Presidência da República e que podem e devem ser disputados nos estados, municípios e comunidades.
Outros desafios deverão ser enfrentados. O desapreço pela comunicação pública não é exclusividade de Temer, vide o que acaba de fazer o governador do Rio Grande do Sul, Ivo Sartori (PMDB), ao extinguir a Fundação Piratini gestora da TV Educativa e da FM Cultura. Mas a mobilização local, daqueles que compreendem a importância dessas mídias para difusão cultural da sua região, para a distribuição da produção audiovisual local, para a geração de emprego e para dar visibilidade a pautas escondidas nos grandes meios pode fazer diferença.
Uma parte importante desses canais já conta, inclusive, com conselhos com a participação da sociedade civil. Ocupar esses espaços de maneira qualificada e plural pode resultar na produção de contrapontos importantes, sobretudo numa conjuntura em que disputar corações e mentes é mais do que estratégico.
Não há ilusões, claro. Parte importante desses canais está sucateada, sem perspectivas de financiamento; outra foi aparelhada por caciques locais. Em muitas não há qualquer mecanismo de transparência ou prestação de contas, ou até de controle social. Mas são espaços que não podem ser abandonados ou renegados a segundo plano, como a esquerda clássica sempre fez inclusive com a EBC em que pese a dedicação abnegada de militantes da democratização da comunicação que seguem nesta trincheira.
De uma vez por todas, ou assumimos a centralidade da batalha comunicacional para a retomada de um projeto de país ou golpes de toda sorte seguirão se repetindo. Que a disputa da comunicação pública nos mais diferentes espaços seja um primeiro movimento neste campo de guerra, para que este pequeno sopro de diversidade e pluralidade possa ganhar força, em todo o seu potencial.